Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
507/23.1GBABF.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: RESSOCIALIZAÇÃO E “DESSOCIALIZAÇÃO”
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário: I - A teorização relativa à doutrina roxiniana apresentada pelo recorrente e conducente, na sua perspetiva, à absolvição do arguido em virtude de “a condenação comportar mais uma dessocialização que uma ressocialização”, não encontra apoio no sistema penal português, que, enformado pelo princípio da culpa, com respaldo no artigo 32º da CRP, não contempla a possibilidade de se absolverem os agentes dos crimes sempre que, atestada a sua culpa, se verificarem os demais pressupostos dos quais a lei penal faz depender a condenação.
II - As necessidades de prevenção geral associadas ao crime de desobediência são elevadas, atendendo à frequência com que este tipo de ilícito tem vindo a ocorrer em Portugal, com prejuízo sério para a manutenção da ordem e da tranquilidade públicas, sendo que o sentir da comunidade cada vez menos tolera este tipo de comportamentos irresponsáveis, reivindicando que os mesmos sejam sancionados de forma justa e adequada.

III - A pena acessória de proibição de conduzir imposta pela prática de um crime não pode deixar de ser aplicada, nem é substituível, uma vez que tais possibilidades não se encontram previstas na lei – o artigo 69º do CP não prevê a possibilidade de a pena acessória de proibição de conduzir não dever ser cumprida, nem tal possibilidade é aberta por qualquer outra disposição legal – e a sua aplicação está sujeita ao princípio da legalidade previsto no artigo 1º do CP, com assento constitucional no artigo 29º CRP.

Decisão Texto Integral: Constatando-se que o presente recurso – cujo objeto se reporta apenas à obrigatoriedade de condenação do recorrente (verificados que estão todos os pressupostos das incriminações) e às dosimetrias das penas – se revela manifestamente improcedente, devendo, pois, ser rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 420º, nº 1, alínea a) e 417º, nº 6, alínea d) ambos do CPP, encontra-se legitimada a prolação de decisão sumária.
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I - Relatório.

Nos presentes autos de processo sumário que correm termos no Juízo Local Criminal de … - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 507/23.1GBABF, foi o arguido AA, filho de BB e de CC, solteiro, nascido em …1988, natural de …, agente turístico, com domicílio no …, …, …, condenado da seguinte forma:

- Pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 152.º, n.ºs 1, al. a) e 3, do Código da Estrada e 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa.

- Pela prática de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo 348º nº2 do Código Penal, com referência ao artigo 154º nº 1 e nº3 do Código da Estrada, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa.

- Em cúmulo jurídico das penas referidas penas, foi o arguido condenado na pena única de 150 dias de multa, à razão diária de 6,00 € (seis euros), o que perfez a quantia de 900,00 € (novecentos euros).

- Ao abrigo do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do CP, foi o arguido condenado na pena acessória de proibição de conduzir todos e quaisquer veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses.

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Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1. O presente recurso tem por objeto a matéria de direito da douta sentença condenatória prolatada nos presentes autos, que condena o Arguido; a) na pena de 80 (oitenta) dias de multa, ante a comissão de um crime de desobediência, p. e p. pela conjugação dos arts. 152º, n.ºs 1, al. a) e 3 do Código da Estrada (doravante, CE), e 348, n.º 1, al. a) do Código Penal (doravante CP); b) na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, ante a comissão de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pela conjugação dos arts. 154º, n.ºs 1 e 3 do CE e 348, n.º 2 do CP; c) computando-se, em sede de cúmulo jurídico, a pena unitária de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), numa quantia total de € 900,00 (novecentos euros); d) na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, cominada nos termos do art. 69º, n.º 1, al. a) do CP, pelo período de 5 (cinco) meses.

2. Não se pode senão discordar in toto com a condenação prolatada pelo Tribunal a quo;

3. Resulta clarividente, ante a matéria de facto dada como provada e fixada nos presentes autos, que o Arguido: a) é agente primário dos crimes pelos quais foi condenado; b) tem 34 (trinta e quatro) anos de idade); c) é pessoa diligente, trabalhadora, inserida socialmente, exercendo profissionalmente a função de agente turístico, na modalidade de motorista de tuk tuk; d) é o suporte da vida intrafamiliar, porquanto se assume como cuidador informal do seu padrasto, que, em virtude da sua idade avançada 87 (oitenta e sete) anos de idade, padece de demência em estado agravado; e) o Arguido agiu motivado para salvaguardar o seu único instrumento de trabalho, que, por vias disso,

4. constitui o seu único meio de sustento económico-financeiro; f) o Arguido não padece de qualquer adição, consumindo álcool apenas a título esporádico e social; g) o Arguido é permeável ao apelo normativo, posto que logrou consciencializar-se acerca do conteúdo da justiça e do iter processual dos tribunais.

5. A presente condenação comporta mais uma dessocialização que uma ressocialização.

6. Com efeito, o Arguido percebe todos os rendimentos associados, quer à sua subsistência, quer ao papel que desempenha como cuidador do seu padrasto, da atividade de agente turístico, na modalidade de motorista de tuk tuk, pelo que a presente condenação, atendendo ao seu conteúdo e alcance, vai redundar num elevado prejuízo patrimonial, conduzível a uma gritante carência económico-financeira e, por vias disso, individual, familiar e social.

7. Ante o exposto, releva convocar a doutrina da responsabilidade de CLAUS ROXIN, segundo a qual, não obstante se poder assacar um juízo de censura ao agente do crime, por este ter sido sensível ao apelo normativo, se imperativos de prevenção especial o ditarem – mormente por a condenação comportar mais uma dessocialização que uma ressocialização -, e inexistirem elevadas exigências preventivo-gerais, que veiculem elevada necessidade de reposição contrafáctica da força da norma vulnerada, deve o tribunal proceder à sua absolvição, sob pena de se subverter a teleologia que preside à aplicação da sanção criminal.

8. Tal responsabilidade erige-se numa categoria dogmática autónoma, ao nível da teoria geral da infração penal, não se confundindo com o instituto da dispensa da pena.

9. Ante o circunstancialismo fáctico supra aduzido e posto que o Arguido exteriorizou premissas demonstrativas, quer na audiência de julgamento, quer no relatório social, de ter apreendido o conteúdo da norma, deve, à luz de uma síntese dialética que procure otimizar os fins de prevenção geral e de prevenção especial associados à censurabilidade, deve o Arguido ser absolvido, pelo que se requer a substituição da sentença condenatória prolatada pelo Tribunal a quo por uma outra que absolva o Arguido.

Sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio,

10. Ainda que se não entenda proceder à absolvição, ante a inoperatividade da doutrina roxiniana, discorda-se, ante a sua desproporcionalidade e subversão face à teleologia da sanção criminal, da pena aplicada ao Arguido.

11. Resulta da conjugação dos arts. 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1 do CPque a medida da pena, ante o caso concreto, associa-se à tutela de bens jurídicos fundamentais, tutela essa veiculada pelas exigências de prevenção geral, a operar como reposição contrafáctica da vigência da norma, na qual se enxerta pontos de vista preventivo-especiais de socialização, determinantes para o resultado prático da medida da pena, operando a culpa como limite desta.

12. Ora, não sobrevém, por vias disso, qualquer óbice a que a medida da pena fique abaixo da medida da culpa, desde que se garanta o mínimo de tutela de bens jurídicos fundamentais, através das exigências preventivo-gerais.

13. Já no que concerne à aplicação da pena de multa, resulta do art. 47º, n.ºs 1 e 2 do CP, que o tribunal, ao fixar o correspetivo quantum, tem de ter em conta os rendimentos individuais do condenado – o como e o quantum desses rendimentos –, e o quadro económico-existencial onde o agente se insere.

14. O Tribunal a quo não tomou em devida conta tais elementos.

15. Com efeito: a) os rendimentos do Arguido estão dependentes do fator “sazonalidade”, sendo que a maior parte dos mesmos é percebida nos meses de verão, em virtude do acréscimo de turismo; b) o Arguido atuou motivado pela conservação do seu instrumento de trabalho, único mecanismo de perceção de rendimentos; c) o Arguido revela-se permeável à avaliação do desvalor da conduta que praticou e, por vias disso, ao apelo normativo, qual premissa demonstrativa de uma atitude de regresso ao direito, o que afasta a sobrelevação de exigências preventivo-gerais de reposição contrafáctica de reposição da norma vulnerada; d) o Arguido não padece de nenhuma adição; e) o Arguido é cuidador informal do padrasto, atividade que compreende elevado desgaste físico e emocional; f) o Arguido não provocou qualquer dano.

16. Pelo que, ainda que se entenda pela impossibilidade de absolver o Arguido, ante os elementos que depõem a favor deste, deve a pena de multa fixar-se, já realizado o cúmulo jurídico, em 130 (cento e trinta) dias, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), relegando-se a cominação condenatória para o mínimo legal, requerendo-se a substituição da douta sentença condenatória por outra em conformidade com o exposto.

17. Outro tanto, se não pode concordar com a aplicação da presente pena acessória.

18. O episódio relatado no âmbito imputacional dos presentes autos é único, esporádico e residual, contrastando com o zelo e diligência que presidem ao comportamento quotidiano do Arguido.

19. Releve-se que a pena acessória não opera automaticamente, antes depende da verificação de certos pressupostos autónomos, em função de cada crime, e de um particular conteúdo de ilícito e de censurabilidade justificador da correspetiva cominação – assim o entendem a doutrina e jurisprudência dominantes.

20. Em conformidade, ante a ilicitude e censurabilidade comprimidas associadas ao iter criminoso do Arguido, e porquanto a cominação da pena acessória em mérito é impeditiva da prossecução da atividade profissional do Arguido, por vias disso comportando mais uma dessocialização que uma ressocialização, não se descortinam fundamentos para a sua aplicação, devendo a douta sentença condenatória ser substituída por uma outra que não aplique a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, cominada nos termos do art. 69º, n.º 1, al. a).

21. Ainda que assim se não entenda, deverá a presente pena ser substituída por outra que relegue a sua operatividade para o mínimo legal possível – 3 (três) meses, nos termos do art. 69º do CP.”

Termina pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que o absolva da prática dos crimes ou, subsidiariamente que lhe aplique penas menos gravosas.

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O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1.ª Foi o recorrente condenado pela prática de dois crimes de desobediência previstos e punidos pelos artigos 348.º, n.º 1 alínea a) n.º 2, e 69.º, n.º 1 alínea a), ambos do Código Penal na pena de concurso de 150 dias de multa e na pena acessória de 5 meses.

2.ª As penas estão fixadas criteriosamente e são adequadas tendo em conta as necessidades de prevenção especial, significativas atentas as anteriores condenações e as circunstâncias dos factos.

3.ª A atuação como dolo direto, de ilicitude moderadamente elevada não permitem dizer que as penas ultrapassam a medida da culpa tendo em conta também os limites mínimo e máximo das molduras aplicáveis.

4.ª As penas estão criteriosamente fixadas e devem ser mantidas.”

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A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.

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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

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II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:

A) Determinar se a factualidade provada suporta a condenação do arguido pela prática dos crimes que lhe vêm imputados nos autos.

B) Determinar se os critérios e os parâmetros utilizados pelo tribunal a quo para determinar as medidas concretas das penas parcelares, da pena única e da pena acessória aplicadas ao recorrente se revelam legalmente fundados e adequados, ou se, ao invés, os critérios legais, aplicados à situação daquele, imporiam a aplicação de penas mais reduzidas.

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II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados e não provados os seguintes factos:

“3.1. – Factos Provados

3.1.1. - Com relevância para a decisão criminal, provaram-se os seguintes factos:

1. No dia 10 de março de 2023, cerca da 1 h e 49 m, AA conduziu um veículo automóvel em via pública depois de ter ingerido bebidas alcoólicas e com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,159 gramas por litro.

2. Por causa do resultado positivo apresentado, foi notificado pelo militar da GNR que lhe realizou o teste e se encontrava em exercício de funções, que ficava impedido de voltar a conduzir por um período de 12 horas subsequentes e que se o fizesse sem novo teste negativo praticaria um crime.

3. Apesar desse impedimento, voltou a conduzir um veículo em via pública às 3 horas e 10 minutos do mesmo dia 10 de março de 2023, antes de terminado o período de 12 horas posteriores à notificação.

4. O arguido sabia que não podia voltar a conduzir pelas 3 horas e 10 minutos dado ainda não ter decorrido o período das 12 horas.

5. Sabia que tinha a qualidade de condutor de veículo automóvel em via pública, e que a obrigação de não voltar a conduzir por um período de doze horas resultava da lei e lhe fora comunicada por agente de autoridade em exercício de funções e com competência para o fiscalizar e notificar.

6. Mais sabia da consequência legal da renovação da condução antes de se ter completado o período de doze horas e agiu pretendendo não acatar a ordem de se abster de conduzir.

7. Nas circunstancias de tempo e lugar expressas na alínea 3), o arguido conduziu um veículo automóvel na Estrada … em ….

8. Por militar da GNR em exercício de funções foi-lhe comunicado que deveria realizar novo teste de despistagem de álcool no sangue em aparelho de medição por ar expirado.

9. O arguido recusou-se a realiza-lo.

10. Foi advertido de que a recusa o faria incorrer na prática de crime de desobediência e manteve a decisão de não efetuar teste de despistagem de álcool.

11. O arguido sabia que por ser condutor de veículo em via pública devia realizar teste de pesquisa de álcool e que a sua realização lhe estava a ser determinada por militar da GNR em exercício de funções e com competência para o determinar.

12. O arguido conhecia a qualidade e competência do militar da GNR que lhe deu a ordem de realização do teste de pesquisa de álcool no sangue, e sabia que estava obrigado legalmente realizá-lo.

13. Atuou sempre de forma livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mais se apurou que:

14. Consta no relatório da DGRSP que: « AA, de 34 anos de idade, à data dos factos subjacentes ao presente processo, residia com o padrasto, em espaço habitacional pertencente à família, avaliado como sendo provido de adequadas condições de habitabilidade, situação que perdura na atualidade. A dinâmica intrafamiliar foi valorada como perturbada pelo quadro definido como de demência, de que padece o padrasto, de idade avançada, com 87 anos de idade, que tem vindo, nos últimos dez anos a agudizar-se. Nesta decorrência, AA tem vindo a assumir o papel de cuidador, com repercussões nefastas na organização da sua vivência, tendo em conta o desgaste que essa tarefa implica. Detentor de um trajeto escolar de reduzida expressão, abandonou a sua prossecução após a conclusão do 9º ano do ensino básico, por condicionalismos de ordem económica. Com efeito, após a morte da mãe, ocorrida quando tinha 13 anos de idade, vítima de doença oncológica, determinou a inserção no mercado de trabalho, como forma de contribuir para o orçamento familiar e assegurar a sua subsistência (…) Desde há cerca de 1 ano, adquiriu um Tuk-Tuk, dedicando-se a essa atividade, o que lhe permite fazer face às suas necessidades. Referenciou consumos moderados de haxixe, em horário pós-laboral e isoladamente, considerando que não tem problemas a esse nível. Relativamente ao consumo de álcool, avalia os mesmos como moderados, após o trabalho, em contexto grupal, admitindo, no entanto, que, pontualmente, ingere álcool em moldes abusivos, na sequência da envolvência e ambiência grupal; considerando que não tem dependência de álcool, informação corroborada pela irmã. Com capacidade de descentração, o arguido revela o sentido de oportunidade da intervenção do sistema da justiça, bem como capacidade para avaliar o desvalor da conduta ilícita, referenciando que foi um episódio casuístico».

15. O arguido foi condenado:

• Por sentença proferida no processo n.º 529/14.3… do Juízo Local Criminal de … –Juiz …, transitada em julgado em 11/09/2017, pela prática de um crime de apropriação ilegítima, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de €8,00; pena extinta por cumprimento.

• Por sentença proferida no processo n.º 1/19.5… do Juízo Local Criminal de … –Juiz …, transitada em julgado em 12/11/2019, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €6,00; pena extinta por cumprimento.

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3.2. – Factos Não Provados

Com interesse para a decisão da causa, não ficaram factos por provar.”

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No que tange ao enquadramento jurídico ajuizou a sentença recorrida da seguinte forma:

“(…)4.2.1- Enquadramento jurídico-penal

Atento ao quadro factual determinado de acordo com o teor da acusação e, considerando o princípio da vinculação temática do Tribunal (consagrado nos arts. 339.º, n.º 4, 358.º e 359.º, todos do Código de Processo Penal), importa, neste momento, efetuar o respetivo enquadramento jurídico e, nesse âmbito, apurar se o arguido deve ser jurídico-penalmente responsabilizado pela prática, em concurso efetivo, de um crime de desobediência, p. e p. pelo arts. 152.º, n.ºs 1, al. a) e 3, do Código da Estrada e 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, acrescido da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. e p. na alínea c), do n.º 1 do 69.º do Código Penal e de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 2 do Código Penal, por referência ao art. 154.º, n.º 1 a 3, do Código da Estrada, acrescido da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. e p. na alínea b), do n.º 1 do 69.º do Código Penal.

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Crime de desobediência

Prevê o artigo 348.º do Código Penal que:

“Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b)Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.

A cominação legal encontra-se prevista no artigo 152º, nº 3 do Código da Estrada, ao prever que: As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do nº 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.

Pratica um ato de desobediência quem faltar à obediência devida.

No adjetivo “devida” estão implícitos os requisitos que a lei aponta, sendo que “Só é devida obediência a ordem ou mandado legítimos. Condição necessária de legitimidade é a competência in concreto da entidade donde emana a ordem ou o mandado. Para que o destinatário saiba se está ou não perante uma ordem ou mandado desse tipo, torna-se indispensável que este chegue ao seu conhecimento e pelas vias normalmente utilizadas – que lhe seja regularmente comunicado. Faltar à obediência devida não constitui, porém, por si só facto criminalmente ilícito. A dignidade penal da conduta exige, para além do que fica dito, que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou mandado” (Cristina Líbano Monteiro, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo III, p. 351).

Ora, do teor do mencionado preceito legal retira-se que são vários os elementos constitutivos do tipo previsto no artigo 348º do Código Penal:

a) a existência de uma ordem ou mandado;

b) a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado;

c) a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;

d) a regularidade da sua transmissão ao destinatário;

e) a recusa do destinatário em obedecer a essa ordem ou mandado.

Tanto a ordem como o mandado “consubstanciam uma ordem de conduta concreta imediatamente dirigida a alguém; a imposição de uma aceção ou abstenção determinadas … A ordem há-de provir de autoridade ou funcionário competente, ou seja, deve caber dentro das atribuições próprias ou delegadas de quem a profere: naquele momento, naquela matéria e para aquele lugar… A comunicação há-de começar por constituir autêntica comunicação. Isto é: não basta que o meio de fazer chegar a ordem ao conhecimento do seu destinatário se mostre formalmente irrepreensível; torna-se necessário que aquele se tenha inteirado, de facto, do seu conteúdo… Acrescente-se ainda que só se deve obediência a ordens possíveis de cumprir, sendo a possibilidade aferida, como é próprio do comando dirigido a alguém em concreto pela situação e capacidades do particular destinatário…” (Cristina Líbano Monteiro, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo III, p. 356/357).

Retornando ao caso em apreço, resulta que o arguido, no mesmo dia (10 de março de 2023), mas em duas ocasiões distintas, conduziu o veículo automóvel na via publica, mais concretamente na Estrada …, em …, aquando da segunda fiscalização rodoviária. Mais resulta que, embora o mesmo haja se submetido ao teste de alcoolemia na primeira fiscalização no decurso da qual acusou uma taxa de alcoolemia de 1,159 g/l, já na segunda, quando lhe foi solicitado que realizasse teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado, o mesmo recusou se a realizar o teste, apesar de advertido e de ter compreendido que incorria na prática de um crime de desobediência.

Com efeito, resultou da prova produzida que o arguido compreendeu o que lhe era explicado (tanto que havia realizado o mesmo teste no decurso da primeira fiscalização, escassas duas horas antes), a que, acresce que o arguido não invocou qualquer motivo de saúde ou de outra índole para não ser submetido ao referido teste, recusando, pura e simplesmente, submeter-se ao mesmo.

O tipo doloso do crime de desobediência preenche-se, assim, sempre que alguém incumpre, consciente e voluntariamente, uma “ordem ou mandado legítimos regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente” (neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.11.2004, Processo nº0444024, e de 03.11.2004, Processo nº0442810, ambos publicados in www.dgsi.pt).

Acresce que, e diversamente do que já chegou a ser defendido, o Dec. Lei nº44/05, de 23Fev., ao ter introduzido alterações ao Código da Estrada, não retirou ao condutor o direito de se recusar a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado ou a colheita de sangue para análise de pesquisa de álcool no sangue, por razões plenamente justificadas e até protegidas pela Lei Fundamental [direito à integridade física e moral, direito à intimidade privada, direito à objeção de consciência] conforme resulta do exposto no Acórdão n.º 167/2011, do TC, de 24/3/2011 e o Acórdão n.º 485/10, do TC, sujeitando contudo tal conduta à punição como crime de desobediência.

Exige-se, assim, o dolo enquanto voluntariedade e representação de todos os elementos do crime.

O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo as consequências da prática de tais atos. Além de se ter provado que o arguido sabia que tinha de obedecer à ordem dada, com a cominação aí prevista de que incorria na prática de crime de desobediência, provou-se que tal ordem era legítima e que lhe havia sido formalmente transmitida por autoridade com competência para o fazer, e, ainda, que o arguido agiu com a consciência de violar o dever de acatamento de tal ordem. Isto equivale a dizer que o agente não só representou como consequência necessária da sua conduta a realização do ilícito (pois estava perfeitamente alertado e consciente de que incorreria na prática de um crime caso não agisse em conformidade com a ordem dada), como se conformou com essa realização, pelo que agiu com dolo direto de preenchimento do tipo.

Não se verifica a existência de qualquer causa que exclua a culpa da arguida ou que afaste qualquer condição de punibilidade (não sendo o seu eventual estado etílico motivo para afastar a sua imputabilidade, conforme exposto no n.º 4 do art. 20.º do Código Penal). Verificando-se o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime, e inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pode-se afirmar que o arguido cometeu, em autoria material, o crime de desobediência de que se encontra acusado e pelo qual deverá ser punido.

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Crime de desobediência qualificada

Determina o art. 348.º do Código Penal que:

1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.»

A disposição legal referida no nº 2 encontra-se prevista no artigo 154º, nº 1, 2 e 3 do Código da Estrada, ao prever que:

1 - Quem apresentar resultado positivo no exame previsto no n.º 1 do artigo anterior ou recusar ou não puder submeter-se a tal exame, fica impedido de conduzir pelo período de doze horas, a menos que comprove, antes de decorrido esse período, que não está influenciado pelo álcool, através de exame por si requerido.

2 - Quem conduzir com inobservância do impedimento referido no número anterior é punido por crime de desobediência qualificada.

3 - O agente de autoridade notifica o condutor ou a pessoa que se propuser iniciar a condução nas circunstâncias previstas no n.º 1 de que fica impedido de conduzir durante o período estabelecido no mesmo número, sob pena de crime de desobediência qualificada.

O tipo penal ora em evidência enquadra-se sistematicamente no Cap. II do Tit V do CP, reservado aos crimes contra a autoridade pública. Com efeito, o bem jurídico que esta norma visa tutelar é a autonomia intencional do Estado, mediante a imposição aos cidadãos do respeito pelas decisões legitimamente tomadas.

Isto é, o tipo legal do crime de desobediência visa a tutela penal do bem jurídico que é o interesse do Estado no cumprimento das instruções legítimas dos seus agentes ou órgãos, em matéria de serviço e ordem públicos, por parte daqueles a quem são dirigidas (vd. o Acórdão da Relação do Porto de 20/05/87, CJ, XII, t. III. pp. 225). Por outro lado, e ao requerer que tais instruções sejam regularmente comunicadas (e até que, na ausência de previsão legal, seja expressamente cominada, por quem as dita, a punição do seu incumprimento), o legislador penal não deixou de tomar em consideração que quem as recebe necessita de ter um conhecimento exato do seu teor, e de estar ciente da necessidade do seu acatamento para poder determinar-se em conformidade, isto é, para tomar uma atitude fiel ao direito.

Assim, a ordem ou mandado têm que se revestir de legalidade substancial, ou seja, têm que se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente.

Por outro lado, exige-se a legalidade formal que se traduz na exigência de as ordens ou mandados serem emitidos de acordo com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão.

Requer-se, ainda, que a autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado tenham competência para o fazer, isto é, que aquilo que pretendam impor caiba na esfera das suas atribuições.

Por fim, os destinatários têm que ter conhecimento da ordem a que ficam sujeitos, o que exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido.

Ou seja, a ordem tem que ser regularmente comunicada ao agente. Sendo um ato comunicacional, exige-se o efetivo conhecimento pelo agente (trata-se de uma declaração receptícia). Só assim, como bem se compreende, é possível aferir qual a posição anímica tomada pelo agente perante o comando que lhe foi dirigido: não cumpriu porque não quis, apesar de saber que devia cumprir, ou foram outros os motivos do seu incumprimento?

Quanto ao elemento subjetivo, sendo que a nossa Ordem Jurídica prevê como regra geral a punição dos factos dolosos, sendo a punição dos negligentes meramente excecional (carecendo, por conseguinte, de previsão expressa na lei, cfr. art.º 13.º do CP), constata-se que, na falta de previsão especial, a desobediência é um crime doloso.

O dolo é constituído por um elemento dito intelectual (o conhecimento, pelo agente, dos factos que preenchem um tipo de crime) e um elemento volitivo (correspondente à vontade de praticar aqueles factos).

No que ao caso concreto concerne, e em face dos factos dados como provados, o arguido efetivamente conduzia sob a influência de álcool e ficou, por isso, impedido de conduzir pelo período de 12 horas, tendo, não obstante, voltado a conduzir menos de 2 horas depois de se ter realizado a efetuar exame de alcoolemia sem que, entretanto, haja requerido contraprova ou requerido novo exame do qual resultasse que já não se encontrava sob a influência de álcool.

A entidade donde emanou a ordem aludida é a competente e a ordem emitida era legítima.

O arguido tomou conhecimento dessa decisão, pois que lhe foi comunicada e dado a assinar o auto de onde constava essa notificação, o arguido recusou-se a assinar, sem prejuízo de lhe ter sido esclarecido a referida proibição.

Sucede, porém, que o arguido, não obstante se encontrar impedido de conduzir, foi intercetado a conduzir a mesma viatura numa via pública em pleno período de impedimento. Donde, o arguido não cumpriu a ordem que lhe foi dada porque assim não quis. Assim, nada mais resta concluir se não que o arguido praticou os factos com dolo, na modalidade de dolo direto, cfr. art.º 14.º, n.º 1 do CP.

Considerando-se preenchidos os elementos do tipo de ilícito em evidência (quer o objetivo, quer o subjetivo), importa condenar o arguido pela prática do crime de desobediência, pelo qual vinha acusado.

Verificando-se o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime, e inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pode-se afirmar que o arguido cometeu, em autoria material, o crime de desobediência qualificada de que se encontra acusado e pelo qual deverá ser punido.(…)”

***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A)Da subsunção dos factos ao direito. Conforme desde logo anuncia no intróito da motivação do recurso, no qual se fixou o objeto e a delimitação do mesmo, o recorrente circunscreveu-o à matéria de direito. Não pondo em causa a matéria de facto considerada provada, os factos que assumem relevância para efeitos de subsunção às normas penais são, pois, os que se cristalizaram no elenco dos factos provados constante da sentença recorrida. Dito isto e considerando que de tal acervo factual constam todos os factos necessários ao preenchimento dos ilícitos penais de desobediência – p. e p. pelo artigos 152.º, n.ºs 1, al. a) e 3, do Código da Estrada e 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal – e de desobediência qualificada – p. e p. pelo 348º nº2 do Código Penal, com referência ao artigo 154º nº 1 e nº3 do Código da Estrada – sem que se verifique qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, não vemos como pudesse ter sido proferida qualquer outra decisão que não fosse a de condenação do recorrente como autor dos referidos crimes.

A teorização relativa à doutrina roxiniana apresentada pelo recorrente e conducente, na sua perspetiva, à absolvição do arguido em virtude de “a condenação comportar mais uma dessocialização que uma ressocialização”, não encontra apoio no sistema penal português, que, enformado pelo princípio da culpa, com respaldo no artigo 32º da CRP, não contempla a possibilidade de se absolverem os agentes dos crimes sempre que, atestada a sua culpa, se verificarem os demais pressupostos dos quais a lei penal faz depender a condenação. Dito de outro modo, revela-se incontroverso que, verificado o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos e revelando-se o comportamento do agente ilícito e culposo, o mesmo se constitui como autor dos crimes respetivos, impondo-se a sua condenação. Todas as demais circunstâncias atinentes às condições pessoais, sociais ou profissionais do arguido ou à intensidade da ilicitude ou da culpa, reportam-se à pena e não à incriminação. Não poderá, pois, deixar de improceder, a argumentação apresentada pelo recorrente para sustentar a sua absolvição.

*** B) Da determinação das medidas concretas das penas

O recorrente questiona a medida concreta das penas de multa que lhe foram aplicadas como penas principais, considerando-as excessivas, propugnando ainda a não aplicação da pena acessória de proibição de conduzir, ou, subsidiariamente, a sua aplicação em medida mais reduzida.

Analisemos então se lhe assiste razão. Incidindo os recursos sobre as penas ou sobre as medidas das penas aplicadas na decisão recorrida, ao tribunal ad quem caberá verificar o respeito pelas normas e pelos princípios gerais que regulam essa matéria. Conforme é amplamente aceite pela jurisprudência dos tribunais superiores, o sistema de recursos no processo penal português tem como escopo a correção dos erros ocorridos na primeira apreciação judicial dos factos e na sua subsunção ao direito. Daqui resulta que o tribunal de recurso só deve intervir na escolha da pena e da sua medida concreta quando detetar incorreções no processo da sua determinação, quer ao nível da valoração factual, quer no que diz respeito à aplicação das normas legais que regem a matéria em causa. Tal sindicância não abrange, pois, a fiscalização da escolha da pena e do seu quantum exato, na perspetiva da realização de uma nova determinação da mesma, devendo manter-se a pena concretamente aplicada sempre que se verifique que a sua fixação assentou numa correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais e que, consequentemente, não se revela desajustada, nem desproporcionada. Estabelecida a margem de atuação deste tribunal da Relação no presente recurso, será importante recordar os princípios basilares e orientadores da matéria que temos em análise. Assim, estabelece o artigo 40º do CP que a finalidade das penas é a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º e 40.º do CP, se os crimes forem puníveis alternativamente com pena de prisão ou com pena de multa – o que sucede no caso dos autos – o tribunal deve dar preferência à pena de multa, desde que a mesma realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com respeito pelos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP. Tendo como balizas a culpa – que constitui o limite máximo – e a prevenção geral – que coincide com o limite mínimo – a medida concreta da pena determinar-se-á de acordo com as necessidades de prevenção especial. A determinação da medida da pena deverá, pois, ser feita tendo em conta a culpa do agente, observadas as exigências de proporcionalidade entre a pena e o crime, o princípio de necessidade e dignidade penal, bem como as finalidades de prevenção especifica e geral, tutelando de forma efetiva o bem jurídico. (1)

Realizado o enquadramento normativo, analisemos então as circunstâncias do caso em apreço e, bem assim, o processo de determinação das penas concretas realizado pelo tribunal a quo, na perspetiva da realização da sindicância com a abrangência acima delineada.

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Sobre a escolha e determinação concreta das medidas das penas principais discorreu a sentença recorrida, após as considerações de natureza estritamente jurídicas, nos seguintes termos:

“(…) Retornando à apreciação do caso concreto, tendo sempre presente as anteriores considerações teóricas, pode-se desde já considerar que, no caso em concreto, as exigências de prevenção especial são moderadamente elevadas, dado já ter antecedentes criminais. Todavia, apenas sofreu até ao momento, duas condenações por crimes de natureza distinta, tendo em ambos sofrido pena de multa, pelo que há que considerar que as exigências de prevenção especial são suficientemente acauteladas com a aplicação de uma pena de multa, a qual, como ficou dito, só deverá ser afastada se exigências de prevenção geral, sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, o impuserem.

Contudo, não se podem deixar de se considerar relativamente elevadas as exigências de prevenção geral de todos os crimes em discussão, atento que estamos perante um tipo de criminalidade de elevada acuidade, reveladora de uma grosseira indiferença para com a ordem jurídica e os valores defendidos pela sociedade em que se insere. Igualmente se sabe que a medida da intensidade das razões de prevenção geral tem de ser vista caso a caso. Por outro lado, como é consabido, também o grau de culpa concreto contribui para que sejam mais ou menos acentuadas as exigências de prevenção geral.

Retornando à apreciação do caso concreto, tendo sempre presente as anteriores considerações teóricas, pode-se desde já considerar que, no caso em concreto, as exigências de prevenção especial são moderadas. Assim, considera o Tribunal que a aplicação ao arguido de uma pena de multa realizará de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, constantes do artigo 40º do Código Penal.

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5.3. – Determinação da medida concreta da pena

(…) Atendendo, assim, às considerações supra enunciadas, para a determinação da medida concreta da pena, importa considerar:

Assim, ao abrigo do nº 2 do artigo 72º do Código Penal, e no que respeita ao crime de desobediência

- A favor do arguido –

- Integração sociofamiliar e profissional.

- Contra o arguido –

- Intensidade do dolo: o arguido agiu com dolo direto, que é a forma mais gravosa de dolo, o que configura um maior juízo de censura.

- Antecedentes criminais por crimes de natureza distinta.

Tudo ponderado, em tendo em conta o limite máximo imposto pela culpa, tem-se como adequada a aplicação de uma pena de 80 (oitenta) dias de multa.

***

- Assim, ao abrigo do nº 2 do artigo 72º do Código Penal, e no que respeita ao crime de desobediência qualificada

- A favor do arguido –

- Integração sociofamiliar e profissional.

- Contra o arguido –

- Intensidade do dolo: o arguido agiu com dolo direto, que é a forma mais gravosa de dolo, o que configura um maior juízo de censura.

- Antecedentes criminais por crimes de natureza distinta.

Tudo ponderado, em tendo em conta o limite máximo imposto pela culpa, tem-se como adequada a aplicação de uma pena de 130 (cento e trinta) dias de multa.

***

5.4. - Cúmulo Jurídico

Determinadas as penas concretamente aplicáveis ao arguido, passemos então à determinação da pena unitária a aplicar ao presente concurso real heterogéneo de crimes.

Como resulta do artigo 77.º, nº1, do Código Penal, na determinação da medida concreta da pena unitária a aplicar nos casos de concurso de crimes serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Ora, nos termos do nº 2 do citado normativo, a moldura abstrata da pena unitária oscilará entre um limite mínimo correspondente à mais elevada das penas parcelares a cumular e um limite máximo igual à soma dessas penas, sem que ultrapasse 25 anos de prisão ou 900 dias de multa.

Ora, tendo em atenção o disposto no artigo 77.º, nº 2, do Código Penal, deverá ser construída uma moldura penal entre os 130 dias e os 210 dias de multa, onde o Tribunal deverá ter em conta os factos e a personalidade do agente, ou, como refere Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado”, apontado este autor como critério avaliativo a seguir o da “conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique”. Para além de uma “avaliação da personalidade unitária” reconduzível ou não a uma tendência criminosa (“Direito Penal Português”, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 421).

Assim, na formação da pena única, assume importância fundamental a visão de conjunto na ponderação da eventual conexão dos factos entre si e da relação “desse bocado da vida criminosa com a personalidade”: do conjunto dos factos decorrerá a gravidade do ilícito global perpetrado, adquirindo valor decisivo a avaliação relativa à conexão e ao tipo de conexão que entre aqueles se verifique; na avaliação da personalidade relevará a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa (ou mesmo a uma “carreira”) ou tão-só a uma pluriocasionalidade (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-09-2010, processo nº 851/09.0JAPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt).

Numa avaliação conjunta dos factos verifica-se que assume elevada gravidade, atendendo a que, em duas ocasiões distintas, o arguido pratica crimes de distinta natureza. Da personalidade do arguido, ainda resulta, contudo, uma pluriocasionalidade e não uma tendência criminosa, atendendo a que se trata da segunda condenação, por ilícito de natureza similar, não denotando, contudo, uma tendência criminosa.

Procedendo-se à efetivação do cúmulo jurídico das penas parcelares, considera-se ajustada a pena unitária de 150 dias de multa.

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5.5. - Determinação do quantitativo diário

Este segundo consiste em fixar, dentro dos limites estabelecidos pelo art. 47.º, n.º 2 do Código Penal, o quantitativo de cada dia de multa. O referido preceito legal, na redação introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, dispõe que “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e €500,00, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”.

No que se refere a critérios que devem ser tomados em conta para determinar a condição económica e financeira do condenado, o Código Penal é omisso, pelo que, como sustenta o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias (ob. cit., pág. 129), tal só pode significar que deverá atender-se à totalidade dos rendimentos próprios do condenado, qualquer que seja a sua fonte, com exceção de abonos, subsídios eventuais, ajudas de custo e similares. Por outro lado, àqueles rendimentos há-de ser deduzidos os gastos com os impostos, prémio de seguro, prestação de alimentos imposta por lei, prestação da casa e outras despesas que pesem extraordinariamente ou duradouramente sobre os rendimentos do condenado (cfr. mesmo autor, ob. cit., pp. 129/130). Contudo, para além disso, o quantitativo da multa, embora respeitando sempre as condições económicas e financeiras do arguido, tem de lograr alcançar as finalidades da punição, de modo a representar uma censura suficiente do facto, que possa ser sentida verdadeiramente pelo arguido, no seu património, e seja, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade da norma violada.

Assim, e considerando a situação económica do arguido, constante dos factos provados, afigura-se como adequado o quantitativo diário de €6,00 (seis euros), o que, no caso, perfaz a quantia de € 900,00 (novecentos euros)(...).”

Verificamos, assim, ter o tribunal a quo entendido que, quer a ilicitude dos factos, quer a censura relativamente às condutas sindicadas, ou seja, a culpa, não poderão considerar-se diminutas. Mais entendeu que, considerando a grosseira indiferença para com a ordem jurídica que a prática dos crimes de desobediência revela e atendendo às condições pessoais do recorrente e aos seus antecedentes criminais, são também relevantes as exigências de prevenção geral e especial.

Subscrevemos integralmente tal entendimento, registando-se ademais que as necessidades de prevenção geral associadas ao crime de desobediência são elevadas, atendendo à frequência com que este tipo de ilícito tem vindo a ocorrer em Portugal, com prejuízo sério para a manutenção da ordem e da tranquilidade públicas, sendo que o sentir da comunidade cada vez menos tolera este tipo de comportamentos irresponsáveis, reivindicando que os mesmos sejam sancionados de forma justa e adequada. Estas as razões pelas quais, a nosso ver, se justificam cabalmente, as dosimetrias das penas parcelares e da pena única fixadas na sentença, quer no que diz respeito aos dias de multa, quer no que tange ao quantitativo diário de 6,00 € estabelecido, que se mostra absolutamente ajustado à situação económica que os rendimentos do arguido espelham.

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No que diz respeito à pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, a que se reporta o artigo 69.º, nº 1, al. a) do CP, o tribunal graduou-a em 5 meses, dentro de uma moldura legal de 3 meses a 3 anos e fundamentou a sua decisão da seguinte forma: “(…) 6.1. – Pena Acessória

Deverá ainda o arguido ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal. Tendo em conta o grau de ilicitude, a culpa do arguido, o dolo direto, a existência de antecedentes criminais por crimes de natureza distinta e a necessidade de prevenir este tipo de ilícito, considera-se adequado fixar em 5 (cinco) meses de proibição de conduzir veículos com motor a aplicar ao arguido quanto ao crime de desobediência. (…)” Sobre a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, recorremos novamente aos ensinamentos do Professor Figueiredo Dias para concluirmos que a determinação da pena acessória obedece aos mesmos critérios que concorrem para determinar a pena principal, ou seja, aos critérios consignados no art.º 71.º do CP, cabendo à sanção de proibição de conduzir, no contexto da circulação rodoviária, uma função preventiva coadjuvante da pena principal. Assim, considerando que, nos termos do disposto no art.º 69, n.º 1, alínea c) do CP, a pena acessória pode ser determinada por um período fixado entre três meses e três anos, no caso dos autos deve ter-se em conta, como circunstância que depõe contra o recorrente, os seus antecedentes criminais, depondo a seu favor as suas condições de natureza pessoal e profissional. O tribunal a quo graduou esta pena em medida situada muito próxima do limite mínimo da sua moldura abstrata, tendo levado em consideração todas as mencionadas circunstâncias e tendo ponderado adequadamente as necessidades de prevenção geral e especial.

Afigura-se-nos, pois, totalmente destituída de razoabilidade a alegação do arguido na sua motivação e nas conclusões do recurso no sentido de que o tribunal não tomou em devida consideração os elementos relativos às condições pessoais do recorrente, tendo fixado penas demasiados elevadas. De facto, não vislumbramos, de todo, que as penas aplicadas na sentença recorrida se revelem excessivas ou desproporcionadas, nem que violem o princípio da culpa. Ao invés, quer as penas principais, quer a pena acessória se mostram absolutamente ajustadas à situação do recorrente. Os reflexos da pena acessória de proibição de conduzir na vida pessoal e profissional do recorrente, aos quais o mesmo faz alusão na motivação do recurso, constituem consequências inevitáveis do cumprimento da mesma e deveriam ter sido ponderados antes de aquele ter voltado a delinquir, desrespeitando as ordens dos agentes de autoridade.

Uma última nota relativamente à pretensão do recorrente de não aplicação da pena acessória de proibição de conduzir apenas para dizer que a mesma não poderá proceder, em virtude de não encontrar qualquer apoio na lei penal que a prevê. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, alínea c) do CP “É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

(...) c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para deteção de condução de veículo ou de pilotagem de aeronave com ou sem motor sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo;”

Nos presentes autos o arguido foi condenado pelo crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a) do CP, por referência ao artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 3 do Código da Estrada, pelo que a sua condenação na pena acessória de proibição de conduzir é imposta pelo disposto no artigo 69º, nº 1, alínea c) do CP acima transcrito. Do que vem dito decorre que a pena acessória de proibição de conduzir imposta pela prática de um crime não pode deixar de ser aplicada, nem é substituível, uma vez que tais possibilidades não se encontram previstas na lei – o artigo 69º do CP não prevê a possibilidade de a pena acessória de proibição de conduzir não dever ser cumprida, nem tal possibilidade é aberta por qualquer outra disposição legal – e a sua aplicação está sujeita ao princípio da legalidade previsto no artigo 1º do CP, com assento constitucional no artigo 29º CRP. A pretensão do arguido/recorrente não tem, pois, qualquer cabimento legal, improcedendo necessariamente o recurso também nesta parte.

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Nesta conformidade, somos a concluir que a sentença recorrida realizou uma correta e equilibrada ponderação de todas as circunstâncias relevantes, tendo cumprido os critérios legalmente estabelecidos para a condenação do recorrente e para a determinação das medidas das penas, encontrando-se adequadamente fundamentada. O juízo realizado pelo tribunal a quo é bem fundado e não merece reparo, pelo que o recurso deverá improceder na sua globalidade.

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III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, decide-se negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto integralmente pela relatora)

Évora, 11 de janeiro de 2024.

Maria Clara Figueiredo

.............................................................................................................,

1 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 3.ª ed., pp. 96 e Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, 2ª Reimpressão, Coimbra Editora, pp. 114 e segs.