Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2283/22.6T8FAR.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – O “interesse em agir” na ação, enquanto pressuposto processual, não se confunde com o interesse subjetivo que o autor tenha na demanda.
II – In casu, o autor não é herdeiro ou legatário da testadora, nem representa quem o seja. O “interesse” do Apelante é a anulação do testamento e da habilitação de herdeiros, com os decorrentes pedidos formulados, mormente de nulidade do subsequente registo do imóvel a favor da ré.
III – A nulidade dos indicados atos só pode ser peticionada por qualquer interessado (artigo 286.º do Código Civil).
IV – Este “interessado” não é quem tenha um interesse indireto nessa declaração, mas sim “pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio”.
V – Não tendo a qualidade de interessado direto no pedido deduzido, o autor não só não tem objetivamente interesse em agir – conforme foi considerado na decisão recorrida –, como nem sequer tem a prévia, e necessária, legitimidade substantiva e processual para instaurar a presente demanda, falta que igualmente determinaria a decretada absolvição da instância.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 2283/22.6T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]

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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – Relatório
1. AA, instaurou a presente ação contra CC, pedindo que seja declarada:
A. A nulidade e ineficácia do ato notarial de aprovação do testamento de DD, datado de 15.10.2002 e lavrado no Cartório Notarial de Portimão, a cargo do Notário …;
B. A nulidade e ineficácia do ato notarial de habilitação de herdeiros datado de 02.07.2005 de EE;
C. A não conformidade com a lei inglesa da habilitação de herdeiros de CC datada de 22.02.2011; e,
D. A nulidade do registo predial da apresentação 457 e 1955, pelo facto de não ter sido dado cumprimento do trato sucessivo, bem como assim, atento o facto de toda a documentação apresentada juntamente enfermar de erros graves.
Em fundamento da deduzida pretensão, alegou, em síntese, que desde 1970, viveu e trabalhou no prédio rústico descrito sob o n.º …2, da Conservatória de Registo Predial de Tavira, em virtude de acordo celebrado com a sua anterior proprietária – a falecida DD – tendo realizado benfeitorias no mesmo, no valor de 55.000,00€, sempre havendo o desejo firme de que, após o falecimento daquela, aquele bem ficasse para si.
O testamento cuja validade o autor pretende colocar em causa trata-se do documento n.º 3 junto com a petição inicial, reportando-se a ato notarial datado de 15.10.2002 (seis meses antes de ocorrer o falecimento da testadora DD) que, em seu entender, não indica onde, quando, como e por quem foi celebrado, não se mostrando redigido pela testadora, por não ser aquela a sua letra (artigos 16.º e 17.º da petição inicial – fls. 41 v.º e ss.), apresentando ainda outras irregularidades (artigo 20.º da petição inicial) e padecendo da nulidade decorrente do facto de a mesma pessoa assumir a qualidade de testemunha e tradutora (artigos 22.º e 23.º da mesma peça).
O autor coloca ainda em causa a qualidade de EE como cabeça de casal na escritura de habilitação de herdeiros da falecida que corresponde ao documento n.º 4, pois o mesmo não compreendia a língua portuguesa conforme declara em seu testamento público outorgado em 2008, e não fora nomeado para o efeito, cabendo o exercício da testamentaria à Dr.ª …, de acordo com as regras de sucessão previstas na lei inglesa e que deveriam ter sido observadas.
Assim, conclui que a escritura de habilitação de herdeiros celebrada em 22.02.2011 através da qual a ré foi considerada como sucessora de EE – documento n.º 8 – e que deu origem ao registo do prédio em causa a seu favor, contem factos falsos, sendo, por isso, nula.

2. Regularmente citada, a ré contestou, deduzindo, no que importa à decisão do presente recurso, a exceção de ilegitimidade/falta de interesse em agir do autor, com fundamento no facto de este não ser herdeiro ou legatário da falecida DD, nem representar quem o seja, tendo apenas alegado a expetativa de que o prédio rústico de que (alegadamente) cuidou, lhe pudesse vir a ser atribuído.

3. Em 02.11.2022, foi proferido despacho informando as partes sobre a eventual procedência da exceção de falta de interesse em agir, determinando a sua notificação ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, tendo ambas emitido pronúncia.

4. Por sentença proferida em 04.01.2023, foi julgada procedente a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir por parte do autor, e consequentemente, a ré foi absolvida da instância.

5. Inconformado, o autor interpôs o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«I. O presente recurso tem como objecto toda a matéria da Sentença recorrida que indevidamente determinou: julgar-se procedente a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir por parte do autor e, por conseguinte, absolver o réu da instância, (ao abrigo do disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.ºs 1 e 2, 578.º, todos do Código de Processo Civil).
II. E que, consequentemente fez com que se quedasse assim prejudicadas todas as demais questões suscitadas nos autos, bem como determinou, a falta do integral conhecimento do mérito da ação.
III. O recorrente fundamenta a sua pretensão invocando o facto de, desde 1970, ter vivido e trabalhado no prédio rústico descrito sob o n.º …2, da Conservatória de Registo Predial de Tavira, em virtude de acordo celebrado com a sua anterior proprietária - a falecida DD - tendo realizado benfeitorias no mesmo, no valor de € 55 000,00 (cinquenta e cinco mil euros), sempre havendo o desejo firme de que, após o falecimento daquela, aquele bem ficasse para si (note-se que tal desejo era não só do recorrente mas também da de cujus, e não como se pretende evocar na douta sentença recorrida e pela recorrida, somente do Autor). (nosso sublinhado e negrito)
IV. O recorrente faz inclusive referência no seu petitório inicial, a testamento onde não se indica, onde, quando, como e por quem, foi o mesmo elaborado.
V. Pelo que não faz qualquer sentido o evocado na motivação fática da sentença recorrida, em que o decidido teve por base o teor dos documentos juntos aos autos e relativamente aos quais não foi suscitado o competente incidente de falsidade, porquanto sempre se criou a dúvida razoável do mesmo.
VI. Senão, veja-se para tanto, o teor dos art.ºs 97.º e 98.º da PI: (…) “ A questão da validade e eficácia tanto de testamentos como das escrituras públicas de habilitação de herdeiros que contenha afirmações não correspondentes com a realidade prestadas ou não, por cabeça de casal, convergindo obrigatoriamente com o facto, de que os testamentos ou as escrituras padecem de nulidade se não tiverem sido observados os requisitos formais exigidos pela lei, é evidente que perdem igualmente a sua capacidade probatória em relação aos factos declarados perante a autoridade pública quando se demonstre a sua falsidade. (…) “Ora aqui para além de estarmos a apreciar a falsidade do documento em si, estamos também a apreciar as declarações feitas perante o notário e que, feita a prova autêntica referida, se comprovou serem desconformes com a realidade.”
VII. E, nesta esteira, teria assim o recorrente, de invocar situação justificada, razoável, fundada de lançar mão do processo, para nele fazer valer o seu direito que manifestamente carecia de tutela judiciária, o que sempre com a devida vénia por opinião diversa, o autor fez.
VIII. Ora, no caso concreto e contrariamente ao aludido na sentença recorrida, conforme resulta da matéria alegada na petição inicial, a pretensão do recorrente não se susta apenas e tão só, na expetativa de, em caso de falecimento da anterior proprietária do imóvel em causa, o mesmo vir a ser-lhe atribuído.
IX. Muito pelo contrário, o autor ao interpor a competente Acção Declarativa de Condenação sob a forma Processo Comum para Declaração de Nulidade de Testamento, sempre tencionou alcançar e obter a tutela requerida, e que o destino daquele imóvel não fosse para a recorrida.
X. Salientou-se o facto de o recorrente ter tido a posse do referido imóvel, e de a ter mantido, muito depois do falecimento da anterior proprietária do imóvel, e de ali ter efetuado avultado investimento, e com a devida vénia, sem que o tribunal “a quo” se debruçasse convenientemente sobre esse tema decidendo;
XI. E, efetivamente viria a lavrar uma escritura de justificação da posse do mesmo, independentemente de posterior decisão judicial que viria a tornar nula tal posse, mas com reflexo nos testamentos que agora se requereu a nulidade.
XII. Mas todavia, só por estes simples factos, é por demais evidente que o recorrente tem interesse em demandar a recorrida, e esta interesse em contraditar.
XIII. Atente-se, pois, na factualidade e nos fundamentos evocados pela sentença recorrida, quanto à eventual falta de interesse em agir por parte do recorrente ali autor.
XIV. Em bom rigor, o recorrente tem tanto interesse em demandar a recorrida, da mesma forma como o teve, no processo da ação que correu os seus termos sob o n.º 345/05.3TBTVR, do Tribunal Judicial de Tavira (onde foi apensada a ação n.º 517/13.7TBTVR) foi proferida sentença transitada em julgado em 27/11/2019, por virtude acórdão do Tribunal da Relação de Évora que a manteve na íntegra, que muito embora tenha julgado improcedente, por não provada, como teve interesse em demandar na ação que o recorrente ali autor AA intentou contra o réu EE e que, por virtude do óbito deste, o recorrente teve igualmente interesse em demandar a outra ré, prosseguindo contra a ré CC, que por sua vez teve interesse em contraditar.
XV. Ora, sempre se dirá, que se é verdade e certo, que também ali, a Ré teve interesse em contraditar, porquanto foi a mesma absolvida do pedido do Autor na declaração da aquisição do direito de propriedade, por usucapião, do referido prédio, onde se originou o cancelamento de qualquer inscrição ou registo incompatível com o direito do recorrente ali autor e, a se julgou procedente, a ação que a recorrida ali autora CC intentou contra o recorrente e ali réu AA e BB, por que motivo não teria agora o recorrente interesse em demandar a recorrida?
XVI. Se, em consequência, dessa ação foi declarado a ineficácia da escritura de justificação celebrada, em 28/3/2012, no Cartório Notarial de Tavira e o cancelamento da inscrição registral que, com base nessa escritura, foi efetuada a favor do recorrente ali réu AA e a nulidade da escritura de doação celebrada na mesma data, com o consequente cancelamento da inscrição registral que, com base nessa escritura de doação, foi efetuada a favor do réu BB.
XVII. Porquanto este enquadramento jurídico é similar e decorre daqueles outros, e no que aqui concerne ao interesse processual, sempre o recorrente terá interesse em demandar e a recorrida o interesse em contradizer.
XVIII. Enquanto o interesse do recorrente será aferido pelas vantagens na obtenção de tutela judicial para que este, veja nulos aqueles atos notariais, já este último trata das desvantagens impostas à recorrida quando o interesse da contraparte é defendido.
XIX. O interesse em agir traduz-se na necessidade objectivamente justificada de recorrer à acção judicial, por parte do aqui recorrente, o que desde logo se requer seja reconhecido por V. Exas. Meritíssimos Juízes Desembargadores.
XX. De facto, o interesse na demanda surge como uma consequência direta e necessária da alegação de um direito preterido ou insatisfeito ou de um direito (potestativo) para cujo exercício a lei exige o recurso aos tribunais.
XXI. Ou seja nesses casos, quer a legitimidade processual quer o interesse processual promanam da mesma materialidade, ou seja, da invocação de um direito nos termos acima referidos, pelo que o interesse processual não surge aí como um pressuposto dotado de particular acuidade ou até autonomia.
XXII. Quando o recorrente configura, através dos factos que articulou, a existência de um conflito de interesses com a recorrida, porquanto a forma como aquele imóvel integrou a sua esférica jurídica assenta em nulidades e falsidades, sempre o tribunal “a quo” teria de apurar no mínimo as irregularidades evocadas pelo recorrente ao longo do seu articulado contribuindo assim para a cabal descoberta da verdade material.
XXIII. E, até porque, salienta-se igualmente, que o recorrente não efetuou o pedido para que o referido imóvel voltasse a integrar o seu acervo patrimonial.
XXIV. Em concreto bastar-lhe-ia que os seus pedidos fossem atendidos e o bem entregue aos herdeiros legítimos;
XXV. Só por esse facto já existiria da parte do recorrente interesse em agir face à conexão daquele imóvel entre as partes litigantes.
XXVI. Pelo que, esse interesse em agir sempre deverá ser um interesse jurídico, concreto e atual, que tenha por base uma posição subjetiva reconhecida pelo ordenamento e uma necessidade imediata e real de tutela jurisdicional.
XXVII. Estão em causa atos praticados pela recorrida e outros, que carecem de escrutínio e tutela jurisdicional, para que se confirme com exatidão e se assegure de forma consistente como aquele acervo patrimonial chegou de forma falseada à sua esférica jurídica.
XXVIII. Os princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça impõem solução equilibrada, por proporcional e adequada, que não vede o acesso necessário ou útil e bem assim, nem permita o acesso supérfluo e inútil.
XXIX. Por, não se conformar o recorrente, com a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” que determinou, julgar-se totalmente procedente a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir por parte do autor e, por conseguinte, absolver o réu da instância.
XXX. Porque, sendo óbvio, que tal decisão é injusta e desadequada, face ao circunstancialismo e conexão com a posse do referido imóvel evocado pelo recorrente.
XXXI. Ou seja, concretizado o juízo, na ponderação do concreto litígio, e sendo previsível a procedência da acção, nos termos configurados pelo demandante, porque aliás é susceptível de lhe trazer, objectivamente, uma situação de vantagem ou utilidade, o que traduz a adopção do denominado critério da utilidade ou prejuízo, com enfoque no nº. 2 do artº. 30º, do Cód. de Processo Civil.
XXXII. Sempre seria de rejeitar tal ilegitimidade, evocada pela recorrida, por ser completamente infundada face à factualidade essencial presente nos autos.
XXXIII. Pelo que se requer seja a recorrida considerada parte legitima por ter interesse em contraditar tendo para o efeito impugnado alguns factos sem que ainda assim fizessem prova do alegado.
XXXIV. Ser o recorrente parte legitima por ter interesse em demandar a recorrida face aquele imóvel que nunca deveria ter integrado o seu acervo patrimonial e aos valores com que esta se apoderou e fez seus sem fundamento para o mesmo.
XXXV. Da fundamentação discutida na presente causa, sempre com a devida vénia por opinião diversa, e em relação ao supra mencionado, não se viria nunca a constatar,
sequer, quaisquer factos que tivessem resultado como provados nos termos em que foram pela sentença recorrida.
XXXVI. Pelo que, entendemos ter existido falta de fundamentação na sentença recorrida ou ainda pese embora sem se querer extremar as situações ter havido algum excesso de pronuncia;
XXXVII. Quanto ao facto de ser ter considerado a ilegitimidade do recorrente, por ter sido considerado em não ter interesse agir, o que por conseguinte, levou à absolvição indevida da instância da recorrida.
XXXVIII. Com efeito, o Autor não pretendeu alegar sem ter interesse em agir ou por não ter utilidade ou necessidade do processo com o formato que a recorrida pretendeu elencar e que o próprio Tribunal “a quo” veio erradamente a interpretar.
XXXIX. Evoca e alega sim, o recorrente, que aqui, para além de estarmos a apreciar a falsidade do documento em si, estamos também a apreciar as declarações feitas perante o notário e que, feita a prova autêntica referida, se comprovou serem desconformes com a realidade, enriquecendo assim a recorrida à custa da recorrente.
XL. Sempre, teria evidentemente de alegar o recorrente, inclusive que, a questão da validade e eficácia tanto de testamentos como das escrituras públicas de habilitação de herdeiros que contenha afirmações não correspondentes com a realidade prestadas ou não, por cabeça de casal, convergindo obrigatoriamente com o facto, de que os testamentos ou as escrituras padecem de nulidade se não tiverem sido observados os requisitos formais exigidos pela lei, é evidente que perdem igualmente a sua capacidade probatória em relação aos factos declarados perante a autoridade pública quando se demonstre a sua falsidade, cf. se fez prova.
XLI. E concomitantemente, nesta sequência, desconhece-se a motivação do Tribunal “a quo” para da sentença recorrida extrair a ilação: de verificar-se inexistir qualquer interesse processual, por banda do autor, em desencadear uma acção judicial destinada a impugnar os atos notarias em causa ou a sua validade perante a ordem jurídica portuguesa.
XLII. Não obstante, já o tribunal “a quo” consegue compreender o contexto das ações que decorreram entre as partes anteriormente, e que se acrescente à douta sentença recorrida, que se tenha julgado face às mesmas, que o recorrente já havia esgotado as suas possibilidades, quais possibilidades? sobre aquele bem? com base em quê?
XLIII. Sempre com a devida vénia por entendimento diverso, não pode o recorrente, conformar-se com o facto de o Tribunal “a quo” não ter tido o discernimento de entender o facto de que a recorrida locupletou-se com o investimento efetuado no imóvel pelo recorrente e com o desapossamento operado com base na nulidade de documentos que a validaram a propriedade da recorrida para aquele efeito».

6. A ré apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.

7. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
A única questão colocada no presente recurso de apelação, é a de saber se deve ou não ser revogada a decisão que absolveu a ré da instância, por ter julgado procedente a arguida exceção inominada de falta de interesse em agir.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto:
Na sentença recorrida foi considerada provada a seguinte matéria de facto:
«1. O prédio misto situado em …, descrito na Conservatória de Registo Predial de Tavira sob o n.º …, da freguesia de Conceição, inscrito na matriz predial rústica n.º … e matriz predial urbana n.º …foi adquirido por DD, no estado de divorciada, por compra, o que ficou registado pela Ap. 1, de 20/7/1972.
2. Em virtude do casamento com FF em 19/3/1974, aquela mudou o seu nome para DD, o qual permaneceu até ao momento do seu falecimento.
3. Em 23/1/1976, por testamento lavrado no Cartório Notarial do Concelho de Albufeira, em que o notário foi o Dr. …, DD deixou todos os seus bens móveis e imóveis que possuía em Portugal, incluindo o saldo de depósitos bancários, ao seu marido, FF.
4. No mesmo testamento, ficou igualmente previsto, que, em caso do seu marido vir a falecer antes, ou no momento simultâneo da testadora, todos os bens seriam divididos em partes iguais para: GG e HH, únicos filhos do seu marido.
4-A[4]. Consta arquivado no Cartório Notarial de Portimão, a cargo do Notário …, o instrumento de aprovação do testamento outorgado por DD, apresentado por aquela em 15.10.2002, contendo como suas disposições de última vontade, revogar todos os testamentos anteriores, e deixar os seus bens a EE (cfr. fls. 46 a 50).
4-B. No dia 21.05.2003, foi lavrado no mesmo Cartório Notarial, instrumento de abertura desse testamento cerrado, do qual consta que DD faleceu no dia 04.04.2003 (cfr. fls. 50v.º e 51).
5. No dia 22/2/2011 compareceu CC, no cartório notarial da Dr.ª…, em Faro a qual outorgou escritura de habilitação herdeiros do falecido, EE, natural de …, Reino Unido, de nacionalidade Britânica o qual deixou um testamento, datado de 7/3/2008, no mesmo Cartório Notarial que contempla um legado e uma herdeira do remanescente, ou seja, cônjuge ou ex-cônjuge.
6. No âmbito da ação que correu os seus termos sob o n.º 345/05.3TBTVR, do Tribunal Judicial de Tavira (onde foi apensada a ação n.º 517/13.7TBTVR) foi proferida sentença transitada em julgado em 27/11/2019, por virtude acórdão do Tribunal da Relação de Évora que a manteve na íntegra, a julgar improcedente, por não provada, por um lado, a ação que AA (aí também na qualidade de autor) intentou contra o réu EE e que, por virtude do óbito desta prosseguiu contra a ré/habilitada CC e em sua consequência, absolveu-a do pedido (declaração da aquisição do direito de propriedade, por usucapião, do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de Tavira sob o n.º …2 e o cancelamento de qualquer inscrição ou registo incompatível com o direito do autor) e, a julgar procedente, por provada, por outro lado, a ação que a aí autora CC intentou contra os aí réus AA e BB e, em consequência, declarando a ineficácia da escritura de justificação celebrada, em 28/3/2012, no Cartório Notarial de Tavira e o cancelamento da inscrição registral que, com base nessa escritura, foi efetuada a favor do réu AA e a nulidade da escritura de doação celebrada na mesma data, com o consequente cancelamento da inscrição registral que, com base nessa escritura de doação, foi efetuada a favor do réu BB».
Atento o teor dos documentos juntos aos autos com a petição inicial, ao abrigo do disposto nos artigos 607.º, n.º 4, ex vi 663.º, n.º 2, do CPC, considerando a insuficiência da base factual para a compreensão do hiato entre os pontos 4. e 5., ou seja, a razão pela qual CC surge na posição passiva nos presentes autos, aditam-se na ordem cronológica respetiva, os factos pertinentes.
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III.2. – O mérito do recurso
A pretensão deduzida pelo ora Apelante e os seus fundamentos encontram-se indicados no relatório supra.
Na sentença recorrida identificou-se – e bem –, a questão essencial que constitui objeto do presente litígio, e que é a de “saber se assiste ao autor o direito a impugnar judicialmente os sucessivos atos notariais através dos quais o imóvel descrito sob o n.º …2, da Conservatória de Registo Predial de Tavira veio a ser inscrito a favor da ré”, concluindo que não.
Para tal, ponderou que «Com particular interesse sobre esta matéria, escreve Miguel Teixeira de Sousa, na obra “O Interesse Processual na Ação Declarativa”, 1989, pág. 6 que “a vantagem do autor e a desvantagem do réu são necessariamente apreciadas em relação à situação das partes no momento da propositura da ação; só conhecendo esta situação se pode saber se o autor vai obter algum benefício com a atribuição da tutela requerida ou se o réu vai sofrer algum prejuízo com a concessão dessa tutela. O interesse processual não pode ser afirmado ou negado em abstrato: apenas comparando a situação em que a parte (ativa ou passiva) se encontra antes da propositura da ação com aquela que existirá se a tutela for concedida, se pode saber se isso representa um benefício para o autor e uma desvantagem para o réu. Se a situação relativa entre as partes não se alterar com a concessão dessa tutela judiciária, então falta o interesse processual.”
Ora, conforme resulta da matéria alegada na petição inicial e foi sublinhado pela ré, a pretensão do autor sustenta-se, apenas e tão só, na expetativa de, em caso de falecimento da anterior proprietária do imóvel em causa, o mesmo vir a ser-lhe atribuído. Note-se que, em ponto algum da sua peça processual, o autor concretiza a forma como tal transmissão haveria de ter lugar, sendo certo que a mesma nunca ocorreu e foi, nessa sequência, que o autor lavrou uma escritura de justificação da posse que, entretanto, por decisão judicial transitada em julgado, veio a ser anulada.
Inexiste pois, conforme resulta dos factos provados, qualquer possibilidade de, uma vez obtida a tutela requerida, o autor obter uma vantagem, esgotadas que se mostram os diversos mecanismos judiciais de que lançou mão para haver para si, integrando no seu acervo patrimonial, o imóvel em causa.
Consequentemente, em nosso entender e salvo o devido respeito por opinião contrária, verifica-se inexistir qualquer interesse processual, por banda do autor, em desencadear uma acção judicial destinada a impugnar os atos notarias em causa ou a sua validade perante a ordem jurídica portuguesa”.
Dissente o Apelante, dizendo que “sempre tencionou alcançar e obter a tutela requerida, e que o destino daquele imóvel não fosse para a requerida”.
Pese embora o que consta invocado nas respetivas conclusões na parte em que aduz que em virtude de acordo celebrado com a falecida DD, havia tido a posse do imóvel e de a ter mantido muito depois do seu falecimento, de ali ter feito benfeitorias que, sem mais concretização, quantificou em 55.000,00€, e de ter havido sempre o desejo firme de que após o falecimento daquela o imóvel ficasse para si, fazendo notar que tal desejo era não só do recorrente mas também da de cujus, a verdade é que a alegação efetuada não sustenta o “interesse em agir” na ação, pressuposto processual que não se confunde com o interesse subjetivo que o autor tem em ver o imóvel inscrito novamente a seu favor no registo!
Com efeito, este pressuposto processual, «consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece»[5].
No caso vertente, o Recorrente entende que a situação é semelhante à das anteriores ações entre as partes, questionando porque motivo não teria agora “interesse” em demandar a recorrida.
Mas, salvo o devido respeito pela posição sustentada pelo Autor, não tem razão. Como recentemente se afirmou no Ac. TRP de 28.03.2023[6] «em princípio, a necessidade de tutela jurisdicional é aferida objetivamente perante a situação subjetiva alegada pelo autor. O autor tem interesse processual se, da situação descrita, resulta uma necessidade de tutela judicial para realizar ou impor o seu direito.
Para o Prof. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora in “Manual de Processo Civil”, pág.179, o interesse em agir consiste na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação. No fundo, a existência de uma situação de carência que necessite de intervenção dos tribunais. Pois segundo mesmo mestre tem de se tratar de uma situação de necessidade absoluta, não bastando um mero capricho, temos de estar perante uma necessidade justificável, razoável e fundada.
Na jurisprudência, cfr. Acs. do STJ de 5.02.2013, de 21.03.2013, de 11.04.2013, de 9.05.2018, de 19.12.2018, etc., todos in www.dgsi.pt, o interesse em agir é aceite como um verdadeiro pressuposto processual inominado determinante da absolvição da instância.
Em suma, não se confundindo com a legitimidade, não obstante esta assentar no interesse direto em demandar e em contradizer, a necessidade de recorrer à via judicial, enquanto concretização do interesse processual, não tem que ser uma necessidade absoluta, a única ou última via aberta para a realização da pretensão formulada, mas também não bastará para o efeito o puro interesse subjetivo de obter um pronunciamento judicial».
In casu, o autor fala que fez benfeitorias, mas nem sequer pede o seu valor. Ora, se o Apelante se considera lesado porque alguém se locupletou com as benfeitorias feitas por si no imóvel, teria que pedir uma indemnização por esses seus prejuízos e não a anulação do testamento e da habilitação de herdeiros que não o beneficia diretamente de forma alguma. Na verdade, ainda que a existência de benfeitorias no imóvel, efetuadas pelo Apelante, conferisse legitimidade ao mesmo para intentar uma ação, o certo é que nesta o Apelante não alega que benfeitorias são essas, atribuindo-lhes apenas o valor de 55.000 €, e não formulado qualquer pedido, donde não existir, com este fundamento, qualquer interesse em agir relativamente à pretensão formulada.
Diz também o Apelante que pretende que o destino daquele imóvel não seja para a recorrida porque tinha a expetativa que seria para si. Sabemos que sim. Tanto assim que até lavrou justificação notarial, a qual foi anulada por sentença transitada em julgado, que este Tribunal, por acórdão, confirmou. Portanto, o que nesta ação diz sobre ter tido a posse e tê-la mantido, é totalmente irrelevante. Na verdade, não se vê como pode o Apelante continuar a sustentar que pretende vir a integrar no seu acervo patrimonial o referido imóvel, se acaba por admitir que “não efetuou o pedido para que o referido imóvel voltasse a integrar o seu acervo patrimonial”. Assim, também com este fundamento não tem interesse em agir.
Na realidade, o que o ora Apelante pediu nesta ação foi a declaração de nulidade de atos notariais, pretendendo daí fazer decorrer as demais consequências, mormente em sede registral.
Acontece que, como bem salientou a Apelada, quem não dispõe de um qualquer interesse na destruição do negócio nulo não tem legitimidade para propor a correspondente ação, já que não é titular da relação jurídica controvertida. Portanto, a questão que os autos convocam não se reconduz apenas à falta de interesse em agir, já que este, como vimos, é definido como a utilidade ou necessidade do processo, sendo que o autor não tem sequer a qualidade de interessado que lhe conferiria legitimidade para instaurar a ação de anulação do testamento e da escritura de habilitação de herdeiros (artigo 30.º do CPC).
Com efeito, no domínio do direito adjetivo, o conceito de legitimidade enquanto pressuposto processual ou condição necessária à prolação de decisão de mérito, exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão ou pedido) reportando-se, portanto, à posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o. À semelhança do que ocorre com o direito substantivo, haverá que a aferir, em regra, pela titularidade dos interesses em litígio nos autos, fazendo-o de acordo com o critério enunciado nos n.ºs 1 e 2 do artigo 30.º do Código de Processo Civil, ou seja, em função do “interesse direto (e não indireto ou derivado) em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação”. Assim, conforme decorre do disposto no citado preceito legal, a titularidade do interesse em demandar e do interesse em contradizer apura-se, sempre que o pedido afirme (ou negue, evidentemente) a existência duma relação jurídica, pela titularidade das situações jurídicas (direito, dever, sujeição, etc.) que a integram[7].
Ora, o autor pediu a declaração de nulidade dos indicados atos, mas esta só pode ser peticionada por qualquer interessado (artigo 286.º do Código Civil), sendo que este “interessado” não é quem tenha um interesse indireto nessa declaração – como seria o caso do autor, em face dos fundamentos em que fez assentar a presente demanda –, mas sim “pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio”[8].
In casu, o autor não é herdeiro ou legatário da testadora DD nem de EE, nem representa quem o seja, sendo certo que da alegação do Apelante não se colhe – nem podia, porque lhe falha a necessária qualidade –, a demonstração do seu interesse direto na anulação destes negócios jurídicos, decorrendo apenas que a satisfação do seu pedido é um fim em si mesmo, ou seja, o “interesse” do Apelante é a anulação do testamento e da habilitação de herdeiros, com os decorrentes pedidos formulados, mormente de nulidade do subsequente registo do imóvel a favor da ré.
Porém, não tendo a qualidade de interessado direto no pedido deduzido, o autor não só não tem objetivamente interesse em agir – conforme foi considerado na decisão recorrida –, como nem sequer tem a prévia, e necessária, legitimidade substantiva e processual para instaurar a presente demanda, falta que igualmente determinaria a decretada absolvição da instância.
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, o presente recurso deve improceder, sendo de confirmar a decisão recorrida.
Vencido, o Recorrente suporta integralmente as custas do recurso, que no caso são apenas as custas de parte, tudo de harmonia com o princípio da causalidade e em face do preceituado nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente.
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Évora, 15 de junho de 2023
Albertina Pedroso [9]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] Juízo Central Cível de Faro – Juiz 1.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Francisco Xavier; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] Doravante abreviadamente CPC.
[4] Factos aditados nos termos constantes da fundamentação aposta in fine, que destacamos com o uso de negrito.
[5] MANUEL DE ANDRADE prefere o termo “interesse processual”, também usado por CALAMANDREI (págs. 79 e 80). MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in “As partes, o objecto e a prova na acção declarativa”, Almedina 1998, define o interesse processual ou interesse em agir como o “interesse da parte activa em obter tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão dessa tutela”.
[6] Processo n.º 169/22.3T8MCN.P1
[7] Cfr., JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, vol. I, 4.ª edição, ALMEDINA, págs. 91 a 94.
[8] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in CÓDIGO CIVIL ANOTADO, Vol. I, 3.ª edição revista e atualizada, COIMBRA EDITORA, pág. 261 e, no mesmo sentido, MOTA PINTO, TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL, 4.ª edição, 2.ª reimpressão, COIMBRA EDITORA, pág. 620.
[9] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três desembargadores desta conferência.