Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4161/15.6T8ENT.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário: 1 - Os tribunais competentes para apreciar e decidir a ação de reembolso da prestação pagas pela CGA a título de capital de remição a sinistrado vítima de ofensas corporais, quando se encontrava em serviço, instaurada contra o responsável pela ofensa corporal, em que se traduziu o acidente de serviço, são os tribunais comuns e não os tribunais administrativos.
2. A qualificação do evento danoso como de serviço, apenas legitima a CGA para demandar ou intervir em processo em curso, com vista a ser ressarcida pelo terceiro responsável pelo evento danoso, pelas quantias que teve que pagar ao sinistrado/lesado seu beneficiário.
3. O direito de reembolso em causa entronca numa responsabilidade extracontratual de índole privada, pelo que se afigura um litígio de direito privado, ainda que com alguns elementos públicos, atenta a natureza da demandante, estando, por conseguinte fora do âmbito da competência dos tribunais administrativos.
Decisão Texto Integral: ACORDAM 0S JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

No Tribunal Judicial da Comarca Caixa Geral de Aposentações, LP, com sede em Lisboa, intentou ação judicial contra AA, residente em Entroncamento, pedindo, a condenação deste no pagamento da quantia global de € 12.647,74, acrescida de juros de mora legais vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.
Como sustentáculo do peticionado invoca o direito ao reembolso da quantia paga a BB, enquanto sua subscritora, a título de capital de remição, pela incapacidade permanente parcial apurada na decorrência de um acidente de trabalho ocorrido no Agrupamento de Escolas, onde aquela exercia funções de educadora de infância, causado pelo réu e relativamente ao qual correu processo-crime, onde o mesmo foi condenado para além do mais pela pratica de um crime de ofensa à integridade física na pessoa de BB.
O Julgador “a quo” entendeu que “atento o pedido e a causa de pedir formulados pelo autor, a ação proposta pela Caixa Geral de Aposentações, LP (CGA) configura uma ação que visa exercer o direito de regresso, relativamente a quantias pagas a funcionária pública, subscritora da referida CGA, a título de compensação pelos danos sofridos na decorrência de um acidente de serviço” e reconheceu existir incompetência em razão da matéria dos tribunais cíveis para apreciar e julgar a questão, tendo declarado tal incompetência e absolvido o réu da instância.
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Desta decisão foi interposto pela autora o presente recurso, terminando nas alegações apresentadas por formular as seguintes conclusões que se transcrevem:
I.ª A CGA não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que declarou-se materialmente incompetente para apreciar o pedido formulado pela CGA nestes autos, fundamentando que " ... as questões a apreciar no presente pleito emergem, em primeira linha, de um acidente de serviço e que o tribunal competente para a apreciação de um acidente em serviço ocorrido com um funcionário público, subscritor da "CGA ", como é o caso, é, nos termos do transcrito artigo 4.º/1 do ETAF, o Tribunal Administrativo e não o presente Tribunal Judicial." (cfr. segundo parágrafo da última página da Sentença)
2.ª Porém, nestes autos, não está em causa a qualificação do acidente de viação como sendo simultaneamente um acidente em serviço, tendo a CGA feito a prova de que o acidente foi qualificado pela entidade empregadora da sinistrada como tendo ocorrido em serviço. (Doe, 3 junto à PJ.).
3.ª Uma vez que o acidente já se encontra qualificado pela entidade empregadora, que é a única entidade que dispõe da competência legal para o fazer (n.º 7 do art." 7.° do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20/11), não é legalmente admissível, face ao conteúdo a norma legal prevista no n.º 3 do art.º 46.° do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, pretender discutir-se a caraterização e qualificação do acidente.
4.ª A ação proposta pela CGA não consubstancia um litígio emergente de relação jurídica administrativa, nem está em causa a responsabilidade civil da Administração, antes correspondendo ao conhecimento de uma questão de direito privado - responsabilidade civil de terceiro, incluindo seguradoras -, o que é competência dos tribunais comuns, tal como está disciplinado quer no Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de fevereiro, onde se prevê o "Pedido de reembolso de prestações em ação cível" (cfr. art.º 1.º) e o "Pedido de reembolso de prestações em ação penal" (cfr. art.º 2.°), quer no próprio Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, onde se prevê, o direito de reembolso da CGA no âmbito de "... ações cíveis ... " (n.º 1 do art.º 47.°) ou em “… processo crime…” (n.º 2 do artº 47º)
5.ª A competência material afere-se pela relação litigiosa submetida a apreciação do Tribunal nos exatos termos afirmados pelo Autor da pretensão e pelo pedido formulado, sendo que, no caso, a CGA limitou-se a peticionar o ressarcimento dos danos que sofreu, exigindo dos responsáveis civis o reembolso das indemnizações pagas em reparação do acidente em serviço.
6.ª A competência dos Tribunais comuns para apreciar e decidir o direito de regresso previsto no n.º 3 do art.º 46.° do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, foi, ainda recentemente, objeto do Acórdão da Relação de Guimarães proferido em 2015-12-10, no âmbito do proc.º n.º 60/13.4TBBGC.G 1, em foi Relator o Juiz Desembargador Francisco Cunha Xavier. (cfr. Doe. 12 - seguindo a numeração dos documentos juntos à PJ. - que se junta e se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos)
7.ª Acresce que a matéria dos autos já foi objeto de abundante tratamento pelos Tribunais comuns para se concluir no sentido do provimento do peticionado pela CGA. A título de exemplo, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2003-05-12, Proc.º n.º 0351539, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 06A2213, de 2006-09-12 (em que estava em causa a indemnização decorrente de acidente simultaneamente de trabalho e de viação e quanto a uma norma - o n. ° 6 do art. ° 9. ° do Decreto-Lei n. ° 466/99, de 6 de novembro - de igual natureza à do n.º 3 do art." 46.° do Decreto-Lei n." 503/99, de 20 de novembro) ou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 2015-11-17 no processo n.º 295/14.2TJCBR.C1. (todos disponíveis na base de dados do IGFEJ em www.dgsi.pt).
8.ª O entendimento vertido na Sentença recorrida, para além de contrariar os elementos probatórios carreados aos autos e os dispositivos legais aplicáveis, equivale a esvaziar de conteúdo a norma legal prevista no n.º 3 do art.º 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20/11, que estabelece - sem margem para equívocos - o direito da CGA ser reembolsada do dano patrimonial sofrido "... contra terceiro responsável, incluindo seguradoras, por forma a dele obter o valor do respetivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial".
9.ª A douta decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que declare que a ação intentada contra a seguradora para obter a satisfação do direito de reembolso ao responsável civil pelo acidente em serviço é da competência dos tribunais comuns e, em consequência, ordene a baixa dos autos à 1.ª instância para apreciação do pedido.

Cumpre apreciar e decidir:

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Tendo por alicerce as conclusões, a única questão que importa apreciar consiste em saber se para a ação de reembolso da prestação, correspondente ao capital de remição, paga pela CGA à sinistrada, vítima de ofensas corporais em serviço, contra o responsável por essas ofensas são competentes os tribunais comuns ou os tribunais administrativos.

Os factos a ter em conta são os supra aludidos no relatório.

Conhecendo da questão
A questão que nos é colocada para apreciação é semelhante à que foi colocada no âmbito de recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães (processo 60/13.4TBBGC.G1) tendo nesse âmbito sido proferido acórdão em 10/12/2015, cujos fundamentos temos por corretos e relevantes os quais sufragamos e passamos a enunciar, fazendo-se naturalmente as alterações impostas pela referência a este caso concreto:
Concordamos com o que se diz na decisão recorrida no que se refere à delimitação da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, em face do que se estabelece no n.º 3 do artigo 212º da Constituição e no artigo 4° do ETAF, sendo certo que, para o efeito, assume especial realce a natureza administrativa (ou fiscal) da concreta relação jurídica num dado litígio, tal como o autor configura a ação, à semelhança do que ocorre com os demais pressupostos processuais.
Contudo, já não se concorda com a sentença quando nela se conclui que, embora exista na ação uma chamada à colação de regras privatísticas, o facto de o evento danoso ter sido qualificado como acidente de serviço pela entidade patronal da trabalhadora, confere à relação jurídica em causa uma natureza administrativa, deferindo a competência para a apreciação do litígio à jurisdição administrativa, por referência ao n.º 3 do artigo 212º da Constituição e ao proémio do n.º 1 do artigo 4° do ETAF.
O direito da Caixa Geral de Aposentações a ser ressarcida dos montantes pagos funda-se no artigo 46° do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, onde se estabelece que:
Artigo 46.º
Responsabilidade de terceiros
1 - Os serviços e organismos que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações previstas no presente diploma têm direito de regresso, contra terceiro civilmente responsável pelo acidente ou doença profissional, incluindo seguradoras, relativamente às quantias pagas.
2 - O direito de regresso abrange, nomeadamente, as quantias pagas a título de assistência médica, remuneração, pensão e outras prestações de carácter remuneratório respeitantes ao período de incapacidade para o trabalho.
3 - Uma vez proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade, a Caixa Geral de Aposentações tem direito de regresso contra terceiro responsável, incluindo seguradoras, por forma a dele obter o valor do respetivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial.
( ... ).
Ora, a qualificação do evento danoso como de serviço, à luz do artigo 7° do citado diploma, apenas legitima a CGA para demandar ou intervir em processo em curso, com vista a ser ressarcida pelo terceiro responsável pelo evento danoso, incluindo as seguradoras, pelas quantias que teve que pagar ao sinistrado/lesado seu beneficiário, à semelhança do que sucede com o Instituto da Segurança Social e o Centro Nacional de Pensões, relativamente ao direito de reembolso que lhes assistir, nos termos dos artigos 1º a 4° do Decreto-Lei n.º 59/89, de 20 de Novembro (cf., ainda, o artigo 70° da Lei n.º 4/2007, de 20 de Dezembro).
No caso concreto, os factos que integram a causa de pedir para o referido direito de reembolso peticionado, que corretamente consiste num direito de sub-rogação (e não num direito de regresso, como impropriamente se refere na lei), tal como a A. a configura, assentam essencialmente na existência da responsabilidade civil por factos ilícitos do terceiro responsável pelo acidente se serviço, no caso o ora réu, autor das ofensas corporais à trabalhadora, enquanto sinistrada, a quem a autora teve de indemnizar com o pagamento do capital de remição inerente à reparação dos danos patrimoniais sofridos.
É nesta relação causal que assenta o direito de indemnização pelos danos sofridos em consequência do acidente, nos quais se inclui o direito ao reembolso por parte da Caixa Geral de Aposentações das quantias pagas ao sinistrado por via do acidente.
É verdade que, no caso, trata-se de uma entidade pública que pretende agir contra um sujeito privado, invocando o direito de regresso com base no facto de o réu ser o responsável pelo pagamento da indemnização no âmbito de um crime de ofensas corporais que foi também caracterizado como acidente de serviço, por a vítima estar no seu local de trabalho e no desempenho da sua atividade quando foi ofendida.
Também é certo que aos tribunais administrativos cabe julgar a responsabilidade civil das entidades públicas (e de alguns sujeitos privados, quando atuam no exercício poderes públicos) e julgar o direito de regresso contra os titulares de órgãos, funcionários e agentes, nos termos do artigo 4.º n.º 1, alíneas g), h) e i), do ETAF (na versão da Lei n.º 13/2002), e do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Coletivas de Direito Público, aprovado pela Lei n,º 67/2007, de 31 de Dezembro.
Porém, este caso, não só não cai na previsão daquelas alíneas do artigo 4.° do ETAF, como não consubstancia um litígio referente a uma relação jurídico-administrativa que possa caber na competência dos tribunais administrativos.
O direito de regresso em causa entronca numa responsabilidade extracontratual de índole privada, pelo que se afigura um litígio de direito privado, ainda que com alguns elementos públicos, atenta a natureza da demandante, estando, por conseguinte, fora do âmbito da competência dos tribunais administrativos.
Deste modo, competentes para a causa não são os tribunais administrativos, mas, sim, os tribunais comuns, como resulta do n.º 1 do artigo 211° da Constituição e do artigo 40° n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26/08.
Aliás, como refere a recorrente matéria idêntica à dos autos já foi objeto de tratamento pelos tribunais comuns, designadamente nos acórdãos do Supremo Tribunal da Justiça, de 12/09/2006 (proc. n.º 06A2213), e de 19/05/2011 (proc. n.º 1029/06.0TBTNV.C1.Sl), que se pronunciaram sobre o direito de reembolso da Caixa Geral de Aposentações.
Nestes termos, relevam as conclusões apresentadas pela apelante devendo revogar-se a decisão recorrida, reconhecendo a competência aos tribunais comuns para conhecer da causa.
Em Conclusão (artº 663º n.º 7 do CPC)
1 - Os tribunais competentes para apreciar e decidir a ação de reembolso da prestação pagas pela CGA a título de capital de remição a sinistrado vítima de ofensas corporais, quando se encontrava em serviço, instaurada contra o responsável pela ofensa corporal, em que se traduziu o acidente de serviço, são os tribunais comuns e não os tribunais administrativos.
2. A qualificação do evento danoso como de serviço, apenas legitima a CGA para demandar ou intervir em processo em curso, com vista a ser ressarcida pelo terceiro responsável pelo evento danoso, pelas quantias que teve que pagar ao sinistrado/lesado seu beneficiário.
3. O direito de reembolso em causa entronca numa responsabilidade extracontratual de índole privada, pelo que se afigura um litígio de direito privado, ainda que com alguns elementos públicos, atenta a natureza da demandante, estando, por conseguinte fora do âmbito da competência dos tribunais administrativos.

DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, declarando-se competentes para a causa os tribunais comuns.
Sem custas

Évora, 6 de Outubro de 2016



Maria da Conceição Ferreira



Mário António Mendes Serrano




Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes