Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1516/22.3T8BJA-B.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: PROCESSO TUTELAR
NATUREZA URGENTE DO PROCESSO
RECURSO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. O despacho que altera a natureza dos autos retirando-lhe a natureza urgente, não corresponde a um despacho de mero expediente, nem tem natureza discricionária, sendo, pois, recorrível nos termos gerais.
2. A atribuição de natureza urgente aos processos tutelares cíveis depende de um único critério, que é o de saber se a demora pode causar prejuízo ao interesse da criança, o que exige análise casuística da concreta situação em que a mesma se encontra.
3. Tendo sido elaborado um Relatório Social com base na observação atual da situação em que as crianças se encontram na companhia dos pais, sem terem sido detetados sinais que ponham em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o seu desenvolvimento, não se justifica a manutenção da natureza urgente dos autos.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1516/22.3T8BJA-B.E1 (Apelação em Separado)

Tribunal recorrido: TJ da Comarca ..., ... - Juízo Família e Menores - J...

Apelantes: AA e BB

Apelados: CC e DD

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO

Nos autos principais que seguem termos como processo tutelar comum ao abrigo do artigo 67.º da Lei n.º 141/2015, de 08-09 (Regime Geral do Processo Tutelar Cível, doravante, RGPTC), AA e BB, tios paternos de EE e FF, nascidos em ../../2010, e filhos de CC e de DD, não se conformando com o despacho proferido em 25-09-2023 (ref.ª ...29), infra transcrito, vieram interpor recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES[1]:

«A- AUSÊNCIA DE SITUAÇÃO DE PERIGO

1 - Os Requerentes, tios paternos dos menores, detinham a guarda de facto destas crianças desde os seus três anos de idade tendo permanecido sob a guarda e efectivos cuidados destes tios a que apelidam de “pai” e “mãe”; prova feita aliás em sede de audiência de julgamento do processo-crime nº312/22.... que correu termos do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ....

2 - Após 9 anos de permanência aos cuidados dos tios paternos (Requerentes), os progenitores decidiram subtraí-los arrancando-os ao seu meio natural devida, prova feita aliás em sede de audiência de julgamento do processo-crime nº312/22.... correu termos do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ....

3- A acção de regulação de responsabilidades parentais foi pensada durante vários meses (tempo suficiente para os progenitores descobrirem e esquematizarem uma vida no Algarve) e intentada com o receio de que os progenitores lhes retirassem os meninos, tanto que o fizeram.

4- Sucede que desde a tenra idade (3 anos) dos menores EE e FF até ao verão de2022 eram os tios paternos AA e BB que detinham a efectiva guarda dos menores de forma ininterrupta durante 9 anos, bem como resultou desse Douto Tribunal a quo, Tribunal da Relação de Évora – processo 1516/22.3T8BJA.E1, 1ª Secção Cível, com data de 09.02.2023 - de que foram os tios paternos os guardiões de facto, como o reportam nas conclusões desse mesmo Recurso de Apelação e assente na base do nº3 do artigo 43 do RGPTC.

5 - Concedendo-lhes por isso total legitimidade em requerer a Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, prosseguindo os trâmites do processo nesse mesmo entendimento – Processo Tutelar Comum n.º 1516/22.3T8BJA, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... Juízo de Família e Menores ... Juiz ....

6 - Para além da PI, comprovou-se em sede de audiência de julgamento do Processo Crime nº 312/22...., que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ..., movido pela ora progenitora DD contra o Requerente Tio Paterno AA, que culminou na absolvição de AA, o que transcreve da sentença:

1) Os menores FF e EE, nasceram em ../../2010, e são filhos de CC e de DD .

2) Por falta de condições económicas e sociais de CC e de DD, os menores passaram a residir desde os três anos de idade com os tios paternos, o aqui arguido e sua mulher, BB.

3) Desde, portanto, data não apurada, mas seguramente em 2013 e o mês de Julho de 2022, que os menores FF e EE, viveram entregues à guarda e aos cuidados do arguido e da sua mulher, na casa sita na Rua ..., em ... (…)

4) O arguido habita com a cônjuge BB, em ..., na morada constante dos autos, propriedade do casal, adquirida com recurso a empréstimo bancário.

5) A habitação dispõe de adequadas condições de habitabilidade e conforto, localizando-se na malha urbana da cidade.

6) A união com a respectiva cônjuge, BB, a qual decorre mais de uma década, foi descrita pelo casal como afectivamente gratificante.

7) Na actualidade, a quebra do convívio diário com os menores FF e EE, com os quais o casal desenvolveu uma dinâmica de pais e filhos, ao longo de cerca uma década, tem vindo a marcar negativamente a saúde do arguido o qual passou a apresentar um quadro depressivo e dificuldade em conciliar o sono, situação que o determinou ao recurso de acompanhamento médico (…).

8) Decorre no Tribunal de Família e Menores ... processo com vista à regulação das responsabilidades parentais de FF e EE, por parte do arguido e seu cônjuge.

9) AA apresenta um percurso de vida familiar e socialmente ajustado e integração profissional que valoriza e do qual subsiste.

10) O arguido move-se, assim, em enquadramento que lhe é favorável, detendo como factores de protecção, um adequado e gratificante envolvimento familiar no agregado que constituiu, situação profissional estruturada, com desempenhos laborais em área onde se sente realizado e aceitação no espaço social onde se insere.

11) Resultou demonstrado que os menores FF e EE, por falta de condições económicas e sociais dos progenitores, passaram a residir desde os três anos de idade, com os tios paternos, o arguido e sua mulher, BB, na casa sita na Rua ..., em ....

12) Desde o ano 2013 até ao mês de Julho de 2022, o arguido e a sua esposa exerceram de facto as responsabilidades parentais relativamente aos dois menores, que foram acolhidos na residência daqueles, local onde receberam suporte e ambiente familiar que os progenitores não souberam ou não puderam providenciar.

13) Em concreto, resultou provado que o arguido e a sua esposa proporcionaram formação, saúde, segurança, educação, sustento e acompanhamento psíquico e físico dos menores, durante aproximadamente 9 anos, numa cidade onde residiam também os progenitores – diga-se numa residência a escassos metros da destes.

14) Os progenitores mantinham o contacto com os menores ao fim de semana, porque assim o pretendiam.

15) Resultou demonstrado que os menores, a determinada altura, passaram a tratar o arguido e a sua esposa por pai e mãe respectivamente.

16) Importa referir que, atenta a tenra idade dos menores, impunha-se a elaboração de uma perícia quanto à respectivas capacidades de prestarem depoimento como testemunhas nos autos, o que não foi feito.

17) A testemunha DD, progenitora dos menores referiu que durante os 9 anos em que estes residiram com os tios, e durante o qual esta manteve o contacto pontual com os menores, nunca houve qualquer relato ou indício de que os menores tivessem sido, de alguma forma, maltratados ou molestados em casa do arguido, por este e pela sua esposa.

18) Ainda quanto a esta matéria importa fazer alusão ao depoimento das várias testemunhas arroladas pela defesa, cuja credibilidade permaneceu incólume, quer pela consonância dos respectivos depoimentos, quer pela isenção que demonstraram nos respectivos relatos. BB, esposa do arguido, GG, sogro do arguido, HH, sogra do arguido, II, cunhado do arguido, JJ, companheira do cunhado do arguido, KK, mãe do arguido, LL, irmã do arguido, MM e NN, vizinhos do arguido, relataram com clareza e objectividade, todos os factos de que têm conhecimento directo, atestando todo o cuidado, amor, protecção e suporte dado pelo arguido e pela sua esposa aos menores EE e FF, durante cerca de 9 anos, de forma livre e espontânea, sem oposição dos progenitores, que se mantinham à revelia quanto às responsabilidades parentais.

19) As testemunhas OO, PP, QQ, RR e SS, atestaram o acompanhamento dado aos menores, no âmbito escolar e psicossocial por parte do arguido e da sua esposa.

20) Após esse episódio as crianças deixaram, de forma súbita e repentina, de ter contacto com os tios, pessoas que àquela data exerciam de facto as responsabilidades parentais.

21) A ofendida DD apresentou uma versão díspar e sem suporte probatório nos autos, relatando ter sido agredida pelo ofendido, facto que fez com que tivesse de receber tratamento hospital, o que lhe causou danos psíquicos. Ora, o depoimento da ofendida, além de notoriamente trabalhado, indicia ter como fundamentos motivos que são alheios a este processo-crime.

22) A ofendida DD apresentou uma versão díspar e sem suporte probatório nos autos, relatando ter sido agredida pelo ofendido, facto que fez com que tivesse de receber tratamento hospital, o que lhe causou danos psíquicos. Ora, o depoimento da ofendida, além de notoriamente trabalhado, indicia ter como fundamentos motivos que são alheios a este processo-crime.

23) Por outro lado, a ofendida tinha conhecimento que o arguido e a sua esposa haviam intentado no Tribunal de Família um processo com vista a regular as responsabilidades parentais dos dois menores, de forma que por decisão do Tribunal passasse a ser reconhecido o papel que há muito haviam assumido na vida dos menores.

24) Todas as descritas circunstâncias lançam dúvidas sérias ao depoimento da ofendida, quer quanto à sua credibilidade, quer quanto à sua motivação. (…)

7 – Resultou sem sombra de dúvida que os progenitores subtraíram os seus filhos ao seu meio natural de vida, não sendo próprio de pais que amem seus filhos, pois que é de clara violência psicológica contra os seus filhos.

8 - Foi a morada dos tios, a residência concreta e habitual daquelas crianças, a que constava em todos os dossiers (médicos, escolares, fiscais…) – ponto 18, 19, 23 e 30, residência essa, a dos tios, a que revelava “uma integração dos menores num ambiente social e familiar, correspondendo ao lugar onde, na prática, se situa o centro da sua vida”24 – prova feita aliás em sede de audiência de julgamento do processo-crime nº312/22.... que correu termos do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ....

9 - Para além de que os menores pretendem regressar para casa dos tios paternos, já o tendo manifestado a outros familiares – ponto 32 da PI - por terem sido os tios a assegurar desde sempre os cuidados necessários ao são desenvolvimento dos menores – pontos 3, 8, 10, 17, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 30 e 31 da PI, por serem, reitera-se, os tios paternos os guardiões de facto desde há 9 anos a esta data25, até à violenta subtracção por partes dos progenitores, a qual, sendo de tal forma grave, deveria ter existido actuação do MP, no sentido de salvaguardar os menores junto dos tios paternos, conforme alegado no ponto 3 da PI de Regulação de Responsabilidades Parentais em Regime Provisório Urgente datado de 29.07.2023 com Refª Citius ...82, e nada foi atendido; PPP arquivado.

10 - Estes tios beneficiavam do vínculo afectivo robusto o suficiente entre eles e os menores, porque foram sempre os tios que gozavam da estreita relação com as crianças, por cuidarem, orientarem, estimular, valorizar, amar… o que não existe entre progenitores e menores; o que lhes está a ser vedado quer pela ausência de qualquer regime, ainda que provisório, quer ainda pela morosa justiça, da qual aguardam, expectantes, há longos meses.

11 - Para além de que resulta da PI com pedido de Regime Provisório de RRP com data de 29.07.2023 Refª Citius ...82 que os menores não reconhecem os seus pais biológicos como sendo “pais”, e sim os tios paternos, conforme ficou demonstrado no relatório social do mês de Julho de 2023, sobressaindo assim uma clara alienação parental que está a ser totalmente esquecida pelo douto tribunal.

12 – As competências parentais dos progenitores são nulas, pois não permitem contactos entre menores e família de ..., e por isso não serão os guardiões mais aptos ao saudável crescimento destas crianças, devendo sim promover-se por uma “relação que construa, preserve e fortaleça os vínculos afectivos positivos existentes entre ambos os pais e filhos (in casu tios e sobrinhos) e afaste uns e outros de um ambiente destrutivo de tais vínculos.”

13 – Houve por isso uma errada aplicação da lei ao despromover-se o carácter urgente do processo como consequência da suposta ausência de perigo, por despacho ora sob recurso que, não se entendendo como sendo de mero expediente, será recorrível por ofender claramente os direitos processuais dos requerentes e dos menores, que devam ser dignos de protecção, e por isso deve ser revogada tal decisão, mantendo-se o carácter urgente dos autos 1516/22.3T8BJA, pois só assim irá de encontro ao superior interesse das crianças e sua salvaguarda;

14 – Ao não aplicar carácter urgente, a justiça não estará a colocar o bem-estar geral das crianças em primeiro lugar, ofendendo os direitos, in casu, do EE e FF mas também dos seus tios paternos, AA e BB, que devem ser dignos de protecção, onde só a lei e justiça podem promovê-la.

15 - Termos em que deve ser dado provimento ao recurso nesta parte por provado, e, consequentemente, revogada a decisão recorrida.

B- FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO/DESPACHO

1 - O despacho sob crítica, não fundamentou, não tendo revelado um juízo crítico e ponderativo dos factos e razões pelas quais optou pela decisão de determinar a despromoção do carácter urgente dos presentes autos, nos moldes em que o fez, nem de forma a tornar inteligível a decisão.

2 - Não fundamenta as razões de alteração substancial do carácter urgente do processo, para processo não urgente, apenas norteando a decisão num relatório social totalmente falível e não credível, que se cinge a condições económicas e habitacionais, descurando em absoluto toda a envolvência processual destes autos ab initio.

3 - Desconhece-se em que condições psicológicas se encontram os menores (apesar de solicitada nestes autos avaliação psicológica aos menores, bem como relatório médico sobre anterior acompanhamento que já vinham tendo com o Dr. EE, Psicólogo, Departamento de Psicologia da ...), pelo que não podemos acompanhar o juízo de ponderação que o douto tribunal haja feito e os fundamentos pelos quais optou por entender não existir perigo para estas crianças e como consequência de um mero relatório social, despromover os autos para “não urgente”.

4 - Apenas referindo o douto tribunal e muito sumariamente “Não vivenciando os jovens EE e FF qualquer situação de perigo ou risco, conforme resulta do teor do relatório que antecede, os autos deixam de revestir carácter urgente e, por conseguinte, não se justifica que continuem a ser tramitados com carácter urgente”.

5 - Por arrasto, nesse mesmo despacho, apenas agenda, o douto tribunal, conferência de pais, para o dia 7.12.2023, pelas 10h, protelando mais de dois meses na vida destas crianças, que aguardam expectantes um desfecho junto dos tios paternos há mais de um ano.

6 - Aliás, bem sabe o douto tribunal que os menores recusaram assinar acordo da CPCJ com aplicação de medida em meio natural de vida, in casu, junto dos pais, por quererem ficar com os tios paternos, AA e BB, pelo que estas crianças poderão estar a viver sob alta pressão.

7 - Não concretiza o douto tribunal a que circunstâncias de perigo se refere, nem faz alusão às competências parentais, que muito têm sido debatidas nestes autos; não existe nenhum juízo ponderativo sobre factos que justifiquem que a sobejamente comprovada subtracção de menores ou quaisquer outros nos permitam assumir com toda a segurança de que estas crianças, estarão efectivamente fora de qualquer tipo de perigo.

8 - Não se compreende e nem é inteligível que o douto tribunal, ao não proceder a uma análise de todos os recursos existentes, permite-se proferir despacho no sentido de garantir total ausência de perigo.

9 - É totalmente omissa e escassa a fundamentação do douto tribunal, não esclarecendo, nem justificando, num juízo crítico e pormenorizado.

10 - A ausência de fundamentação leva-nos para a senda da nulidade quando inviabiliza a perceptibilidade das razões que levam àquela decisão, in casu, comprometendo claramente a compreensão da mesma e seus fundamentos.

11 - Na jurisdição voluntária existe a possibilidade de adequação e oportunidade, mas tal não significa que não se deva adequar certo grau de legalidade como garantia dos direitos fundamentais e de segurança no processo.

12 - A análise objectiva e criteriosa da prova existente nos autos, pautando-se pelo exercício rigoroso, que devia, ficou aquém para uma concreta compreensão e conformação legal.

13 - O Tribunal da Relação de Coimbra, no seu acórdão de 15.01.2013 referiu: “(…) Assim, o julgador, em consonância comopreceituadonoartigo304ºnº5CPC,deve fundamentar tanto no plano fáctico, como no plano jurídico, a decisão por si proferida. A não fundamentação destas decisões implica a sua nulidade (Cfr. 668º nº1 al.b) CPC). Também ocorre a nulidade da sentença quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial (…).

14 - Não pode o Estado derrogar normas que garantam o cumprimento de deveres fundamentais para com os cidadãos, in casu, o dever de fundamentação de uma decisão, sob pena de prejudicar irremediavelmente o direito de ser compreendida e de se recorrer dos seus fundamentos, nos termos do disposto no artigo 607º nº 4 CPC, entre outros.

15 - Nenhum dos critérios necessários se verifica no despacho objecto de recurso, pelo que não é compreensível e inteligível o que motiva aquela decisão; decisão essa desprovida de raciocínio e apreciação crítica dos factos e fundamentos que considerou decisivos.

16 - Qualquer juízo técnico contido em relatórios não dispensa o Meritíssimo/a Juiz de, no despacho, proceder à fundamentação, não sendo o juízo técnico doutros intervenientes processuais ou de assessoria o que assenta no exercício da judicatura.

17 - Constituindo um dever fundamental de garante num processo justo e equitativo, por força do disposto no artigo 6º da CEDH, 20º nº 4 e 205º nº 1 da CRP, “…as decisões que não são de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei…”, assim sendo devem revestir a forma prevista no artigo 607º nº 4 do CPC, sob pena de nulidade, conforme o predisposto nos artigos 154º e 615º nº 1b) do CPC.

18 - O dever de fundamentação das decisões implica “impor ao juiz um momento de verificação de controlo crítico da lógica da decisão…”, “…permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação…”, e ainda “…tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, garantindo a transparência do processo e da decisão…” conforme resulta do Acórdão do TC nº 304/88, de 14/12 no BMJ 382/230 e no DR, II Série, de 11.04.01989.

19 - Não devendo consistir num mero pro forma, e devendo impor “…a sua análise crítica no processo dialéctico que culmina na decisão (…). A nulidade consiste na falta absoluta de descriminação dos factos a considerar na sentença…”, conforme assim o explana o Acórdão do TRG de 06.10.2011.

20 - Sendo necessária a fundamentação rigorosa, adequada e criteriosa que permita o controlo absoluto dos requisitos e raciocínio que levaram àquela decisão.

21 - Não sendo de mero expediente, deve o despacho ser fundamentado, com análise critica das provas, indicando ilações retiradas de factos e especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, o que não se verifica.

22 - Sendo imposto um dever geral de fundamentação, não pode aquela decisão consistir numa mera adesão a um relatório técnico-social totalmente falível, como assim o reporta a CRP no seu artigo 205º nº1 onde preceitua que “…as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei…”; ora não entendo nós que o douto despacho objecto de recurso seja de mero expediente, atenta ao facto de ofender claramente os direitos processuais dos requerentes e dos menores, que devam ser dignos de protecção.

23 - Não foi feito um exercício e exame crítico das provas, conforme resulta do Acórdão do TRC de 15.01.2013, acima descrito, “… exame crítico das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação da matéria de facto- , mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. O Exame é a análise das provas; a crítica, na semântica, é a abordagem da validade cada um dos meios de prova, em ordem a ancorar a convicção probatória e que vai permitir ao tribunal credibilizar alguns desses meios e refutar outros…”.

24 - Acrescentando «…devendo, pois, o juiz pesar com justo critério lógico o valor das provas produzidas, o que está em conexão com o também neste aspecto chamado «princípio da publicidade», definido por CASTRO MENDES «Do Conceito de Prova», pág. 302, como sendo “aquele segundo o qual o processo - e portanto a actividade probatória e demonstrativa - deve ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo e presumivelmente se convença como o julgador (...)”, o que, no entanto, não exclui a intuição ou conhecimento por outros sentidos, em si insusceptíveis de serem demonstrados exteriormente...».

25 - Não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, nos termos do disposto, entre outros, nos art.º 152.º, 154.º, 607.º, n.º 4, e 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, sem prejuízo do reconhecimento da violação dos deveres fundamentais consagrados nos termos dos art.º 6.º da CEDH, 20.º, n.º 4 e 203.º, 204.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1 da CRP.

26 - Termos em que deve ser dado provimento ao recurso nesta parte por provado, e, consequentemente, revogada a decisão recorrida.

C – PROLACÇÃO NO TEMPO DE AGENDAMENTO PARA CONFERÊNCIA DE PAIS

1 - “A duração razoável do processo é um direito fundamental, um postulado reconhecido mundialmente no âmbito internacional, constitucional e processual, que traduz a obrigação do Estado dar tempestividade à tutela jurisdicional”.

2 – A Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais - Tratado de Roma, no art. 6º, nº 1 preceitua que “…Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.”

3 - A Constituição da República Portuguesa, também o prevê, no seu art. 20º, nº 4, que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”

4 - O Código de Processo Civil Português no art. 2º, nº 1 refere que “a proteção jurídica através dos Tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar”.

5 - Tratando-se nada mais do que a garantia de proteção jurídica eficaz e temporalmente adequada, efetivada através dos tribunais, que devem apreciar a matéria de fato e de direito objeto do litígio ou da pretensão, bem como solucionar a lide concedendo uma decisão judicial vinculativa. Esta garantia ainda engloba o direito dos demandantes de, em tempo útil, obter uma sentença executória.

6 - O direito de acesso à justiça entende-se com um direito efetivo à jurisdição implicando “que a resposta judicial à pretensão deduzida tenha lugar em prazo razoável”.

7- A duração razoável do processo requer a utilização dos meios que garantam a celeridade na tramitação. Tal direito está embutido no próprio direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, que também garante tempestividade da tutela e requer celeridade ao processo.

8 - A duração do processo deve ser apreciada em concreto, averiguando-se as circunstâncias e peculiaridades de cada caso, devendo ser considerados, para verificação da razoabilidade: a complexidade da causa e do assunto, os interesses em jogo, a contribuição das partes na demora do processo e a relevância do direito posto em juízo para a vida da parte prejudicada pela excessiva demora do processo.

9 - Termos em que deve ser dado provimento ao recurso nesta parte por provado, e, consequentemente, revogada a decisão recorrida.

FACE AO EXPLANADO, pugna-se pela procedência do presente recurso e revogação da decisão que:

i. Conclui pela ausência situação de perigo ou risco dos menores EE e FF com fundamento num relatório social que se fica pelas condições económicas e/ou habitacionais.

ii. Despromove o carácter urgente do processo como consequência da suposta ausência de perigo.

iii. Promove realização de conferência de pais apenas para o dia 7 de Dezembro de 2023 pelas 10h, protelando a acção no tempo, bem sabendo da vontade dos menores em querer regressar a casa dos tios paternos, ora recorrentes, há muito tempo.

Devendo ser substituída por outra decisão que:

a. Analise a prova factual e que fundamente com rigor crítico as circunstâncias que levaram à decisão de não perigo em que se encontram as crianças;

b. Mantenha o carácter urgente do presente processo de regulação de responsabilidade parentais, não se entendendo como sendo este despacho objecto de recurso, de mero expediente, e por isso será recorrível por ofender claramente os direitos processuais dos requerentes e dos menores, que devam ser dignos de protecção.

c. Promova por data mais próxima atenta a urgência do superior interesse das crianças envolvidas.»

Na resposta ao recurso, o Ministério Público apresentou as seguintes CONCLUSÕES:

«a) Nos termos do disposto no art. 32.º, n.º 1, do RGPTC, o despacho que o recorrente pretende ver revogado é irrecorrível, não devendo o recurso ser admitido;

b) Caso assim se não entenda, sempre se dirá que, nos termos do disposto no artigo 13º do RGPTC, para que um processo desta natureza seja declarado urgente e, consequentemente, corra em férias judiciais, é necessário que a demora possa causar prejuízo ao interesse do menor. Não é uma urgência automática, que resulte directamente da lei para todos os processos tutelares; antes, tem de emergir de situações concretas e determinadas a ponderar pelo juiz;

c) O despacho recorrido encontra-se suficientemente fundamentado, sendo perfeitamente inteligível e alcançável a razão de ser do Tribunal não ter atribuído carácter urgente aos presentes autos;

d) considerando que tal despacho decidiu em conformidade com os princípios e normas legais aplicáveis ao caso, encontrando-se devidamente fundamentado, nenhuma censura merece, devendo o recurso improceder.

Termos em que não deverá ser admitido o presente recurso ou, ainda que assim não se entenda, deverá ser negado provimento ao recurso interposto e confirmado o douto despacho recorrido.»

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:

Questão prévia: da admissibilidade do recurso

- Nulidade do despacho recorrido

- Se os autos devem continuar a ser tramitados como urgente.

B- De Facto

Os factos e ocorrências processuais relevantes para a apreciação do recurso constam do antecedente Relatório, a que se acrescenta o seguinte (elementos que igualmente constam da tramitação da ação principal consultada na plataforma CITIUS):

1- O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«Não vivenciando os jovens EE e FF qualquer situação de perigo ou risco, conforme resulta do teor do relatório que antecede, os autos deixam de revestir carácter urgente e, por conseguinte, não se justifica que continuem a ser tramitados com carácter urgente.

DN.

Para realização de uma conferência designo o dia 07.12.2023, às 10h00, devendo ser convocados:

- os progenitores,

- os tios paternos;

- os menores EE e FF

Por ora, dispensa-se a audição dos técnicos.

Notifique, com as legais cominações, sendo os jovens na pessoa do legal representante, com a legal cominação - art. 35º, n.º 3 RGPTC.

No dia da diligência, os jovens devem ser encaminhados para junto do gabinete da Técnica da Segurança Social, junto deste tribunal, onde deverá permanecer até ser ouvida pelo tribunal.»

2- O Relatório a que se reporta a decisão recorrida foi ordenado na sequência do deferimento de promoção do Ministério Público onde se fez constar:
«(…) a verdade é que se desconhece a actual situação de vida de EE e FF, nomeadamente se desenvolveram laços afectivos com os progenitores, se se encontram a frequentar o estabelecimento de ensino e, na afirmativa, se se encontram integrados no seio escolar e social da sua actual residência, porquanto a última informação social junta aos autos data de 16.01.2023, a fls. 164 a 166.

De facto, não se pode, igualmente, olvidar, que as crianças se encontram a residir com os progenitores há aproximadamente um ano, em ..., impondo-se aferir junto das mesmas a sua efectiva vontade, atento o impacto psicológico e emocional que uma eventual decisão de alteração da residência poderá refectir no crescimento e desenvolvimento salutar de EE e FF.

Neste sentido, promove-se que se determine a elaboração urgente de relatório social às condições de vida das crianças EE e FF.

Mais se promove que se designe data para conferência, a que alude o disposto no artigo 35.º, n.º 1 do REGIME GERAL DO PROCESSO TUTELAR CÍVEL, para o qual deverão ser convocados os progenitores, os tios paternos, as crianças EE e FF e a Técnica da Segurança Social que proceder à elaboração do relatório social.»

3- Em 19-09-2023, o ISS de ... – Equipa ATT (ISS) fez juntar aos autos o referido Relatório, lendo-se no mesmo que, após terem sido consultadas as fontes e seguidas as metodologias que referem («Consulta das Peças Processuais; Consulta do SISS (Sistema Informático da Segurança Social); Contato telefónico junto da progenitora para agendamento de atendimento, ao progenitor e aos jovens para dia 23/08/2023 no Serviço Local da Segurança Social de ...; Atendimento Presencial em sede da Segurança Social de ... dia 23/08/2023; Visita Domiciliária efetuada em 24/08/2023»), foi feita a avaliação da situação, nos seguintes termos:

«No âmbito do processo nº 1516/22.3T8BJA, comparativamente às crianças EE e FF, vem o douto do Tribunal da Comarca ... – Juízo de Família e Menores ... – Juiz ..., solicitar à Equipa do Setor de Assessoria Técnica aos Tribunais - 2 (...), ..., do Centro Distrital ..., ISS, IP. informação Social relativamente a cada um dos menores e ao respetivo agregado familiar dos pais, ao qual estão inseridos e informação, analogamente, à necessidade de regular as RPP das crianças, tendo em consideração que até ao verão de 2022, os menores estavam à responsabilidade dos tios paternos.

No decurso do agendado via telefone, os pais e as crianças compareceram no local e no horário articulado. Inicialmente foram ouvidos os pais em atendimento, obtendo-se a seguinte informação:

- Começaram por informar que as crianças se encontram bem, a nível escolar transitaram para o 8ºano de escolaridade, mantêm o mesmo Diretor de Turma na Escola ... do Agrupamento de Escolas ... e que ambos estão a ser acompanhados no ... pela psicóloga, Dra. TT.

- Ainda no seguimento do atendimento a mãe referiu que no âmbito do processo crime aquando das agressões, que foi vítima por parte do tio paterno das crianças, sendo que no mesmo processo as crianças também foram ouvidas, onde prestaram as declarações, que também foram alvo de agressões, como ex: chapadas na cara, palmadas. O FF agarrou-lhe o pescoço, como referido no Inquérito, sendo importante referir ainda que foram atendidos no Departamento de Psicologia Forense.

- Os pais também informaram que os menores são alvo de “Bulling” sendo que os tios enviam mensagens através da rede social TikTok, onde são aliciados com o depósito de dinheiro, jogos de consola e vestuário, em troca de permitirem o contato através do diálogo e mesmo presencial por parte dos tios.

- A mãe trabalha como vigilante no IEFP, o pai mantém-se a trabalhar como mecânico auto numa oficina em ....

Atendimento realizado, sem a presença dos pais, aos jovens:

- Após a audição dos pais e sem a presença destes, ouviu-se os menores, ao que confirmaram a informação prestada pelos pais, contudo referiram que tinham saudades dos amigos da escola quando viviam em ....

- Os menores mostraram-se empenhados e motivados para o regresso às aulas e mostraram disponibilidade para frequentarem atividades extracurriculares, ao que lhe foi disponibilizado várias opções existentes na cidade ....

Obtivemos a informação, pós atendimento que as crianças estão a praticar ... no Clube ... de ..., no Parque da Juventude.

Posteriormente, ao atendimento individual dos intervenientes, realizou-se atendimento conjunto, ao que se apurou o seguinte:

- Verificou-se que as informações prestadas eram coincidentes face ao contexto, constatando-se ainda que existia uma grande cumplicidade e um bom ambiente familiar entre todos.

- Foi solicitado ao pais se no dia 24/08/2023, era possível efetuar uma visita domiciliária, ao que nos foi respondido prontamente que sim, dessa forma na data referida efetuou-se a visita domiciliária que em seguida passamos a referir:

- Residência situada na Av. ... ... ... III ... ..., tipologia T2, com Hall de Entrada, Cozinha, Quarto para os dois menores, Quarto para os pais, WC e Varanda.

- A habitação está em bom estado de conservação, toda higienizada, o mobiliário em excelentes condições, com equipamentos e eletrodomésticos em excelentes condições de utilização.»

4- Concluindo o Relatório com o seguinte Parecer Técnico:
«Considera esta Equipa que as crianças EE e FF, tendo como base as peças processuais e no que foi referido nos atendimentos, assim como o verificado na Visita Domiciliária, que poderá perfilar e perspetivar uma certa estabilidade e tranquilidade que qualquer criança necessita.

Perante o já recolhido verificou-se, uma vez mais, que a situação, atual, dos pais é favorável e positiva no que concerne às atuais condições envolventes.

Apesar de os jovens não terem que decidir o seu projeto de vida, nem de querem tomar essa decisão e/ou de demonstrar interesse com quem gostariam de estar e/ou viver, ressalva-se para o facto de o FF e o EE na atualidade, estarem bem integrados, mais bem-dispostos e mais sociáveis junto dos pais e pares.

No entanto mostram-se desagradados com a contínua situação envolvente, tendo que forçosamente e por obrigação dos pais, cortar os laços com os tios paternos. Os jovens mantem o sentimento de desgosto, com a situação, referindo terem saudades dos amigos, da escola e de tudo que faziam, na localidade de ....

Em suma, considera esta Equipa, uma vez mais, que os jovens não se encontram em situação de perigo/risco

Importa informar o douto Tribunal que aquando da última avaliação realizada, o comprometimento dos jovens era maior e ambíguo, situação que atualmente não se verifica, estando estes adaptados a ..., às vivências e rotinas diárias e dos pais.

No entanto e atendendo à avaliação, à data, realizada por todos os intervenientes (CPCJ’S e SATT2/EMAT de ...), sugere-se ao douto Tribunal, que as crianças possam ser ouvidas em espaço neutro, de modo a expressarem o pretendido, sem pressões e/ou represálias de um dos lados.»

5- Em face do teor deste Relatório, o Ministério Público promoveu que fosse designada data para a conferência prevista no artigo 35.º, n.º 1, do RGPTC, para o qual deveriam ser convocados os progenitores, os tios paternos, as crianças EE e FF e a Técnica da Segurança Social que procedeu à elaboração do Relatório Social.

6- O que foi deferido, tendo a referida conferência tido lugar no dia 07-12-2013, tendo sido ouvidos os menores e prestado declarações, os tios e os progenitores, tendo sido, no final, proferido o seguinte despacho:
«Da análise conjugada das declarações proferidas na presente conferência, menores, tios paternos e progenitores, bem assim, de toda a informação constante dos presentes autos, importa esclarecer algumas questões que são aqui suscitadas pelas partes e que podem colocar em causa a estabilidade dos menores, pelo que, urge proceder de molde a apurar e avaliar o contexto actual em que os menores EE e FF se encontram inseridos, designadamente apurar as condições habitacionais, sociais e familiares dos progenitores.

Assim, os presentes autos, de jurisdição voluntária (art. 12º RGPTC), seguem as regras previstas no RGPTC, e apenas em casos excecionais e omissos se aplicam as regras do CPC (art. 33º RGPTC), por conseguinte:

I - Considerando que os tios paternos colocam em causa as condições habitacionais dos progenitores e que do relatório já junto, apenas consta uma descrição genérica das condições apuradas, determino que se solicite à equipa multidisciplinar de assessoria técnica a realização de relatório que contemple as condições habitacionais dos progenitores, contemplando as características da habitação/tipologia (dispõe de espaço exterior, quarto próprio para os menores), condições de higiene e de salubridade, contexto/meio em que se insere e espaços envolventes (proximidade de equipamentos escolares, espaços verdes), acessibilidade e rede de transportes - art. 21º, n.º 1, al. e) RGPTC, ex vi do art. 39º, n.º 5 RGPTC.

Remeta para melhor compreensão cópia das alegações e da presente acta.

II - No mais, ante o conflito latente entre os progenitores e os tios paternos dos menores, com o desígnio de serenar o mesmo e lograr obter uma solução que vá ao encontro superior interesse dos menores, decido suspender por 2 meses a conferência, remetendo as partes para audição técnica especializada, art.º 23 e 38º, al. b) ambos do R.G.P.T.C., por remissão do art. 44º, n.º 2 do RGPTC.

Notifique e comunique à Segurança Social para os fins convenientes, com cópia da P.I, e da presente acta, não se vislumbrando a necessidade de fixar um regime provisório, ante o relatado pelos menores e a vontade de ambos permanecerem com os seus pais.»

C- Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso

1- Questão prévia: da admissibilidade do recurso

Competindo ao Relator a apreciação das questões que obstem ao conhecimento do recurso (artigo 652.º, n.º 1, alínea b), do CPC) com possibilidade de reclamação para a conferência (n.º 3 do citado preceito), entende-se que, razões de celeridade neste tipo de processos, atento os interesses em causa – superior interesse dos menores -, se impõe o conhecimento dessa questão prévia já em sede de Acórdão.

O Ministério Público na resposta ao recurso defende a irrecorribilidade do despacho objeto de impugnação, invocando o disposto no artigo 32.º, n.º 1, do RGPTC.

Estipula este preceito do seguinte modo:
«1- Salvo disposição expressa, cabe recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis.»

É notório que a situação em apreço não se encontra contemplada na previsão deste normativo, pois o despacho recorrido não aplica, altera ou cessa medidas tutelares cíveis, reportando-se, antes, não ao litígio que os autos revelam, mas sim a questões concernentes à tramitação dos autos, seja quanto à retirada de natureza urgente à dita tramitação, seja quanto à marcação de diligências, no caso, da conferência de pais, com determinação de quem deve ser convocado e os termos em que devem ser ouvidos os menores.

Mas será que, por ordenar e regular a tramitação de atos processuais, não é recorrível?

A resposta é negativa levando em conta que o despacho em causa não se limita a regular a normal tramitação de uma certa forma processual aplicável no caso concreto, situação que, por força do artigo 33.º do RGPTC, aplicável ex vi do artigo 630.º, n.º 1, do CPC, estaria fora da órbita da recorribilidade, mas porque ao alterar a natureza urgente que os autos principais vinham assumindo (com o beneplácito do tribunal recorrido), nesse segmento colide com os interesses das partes e afeta os direitos das mesmas, incluindo das crianças em causa nos autos, no que concerne ao modo como são contados os prazos processuais, aspeto onde a natureza urgente ou não urgente ganha evidência e relevo (cfr. artigo 138.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 33.º do RGPTC).

Desse modo, no segmento em que altera a natureza dos autos retirando-lhe a natureza urgente, não corresponde a um despacho de mero expediente (definido na lei como o que se destina «a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes»), nem tem natureza discricionária (também definido na lei como aquele que decida «matérias confinadas ao prudente arbítrio do julgador» - cfr. artigo 152.º, n.º 4, do CPC), sendo, pois, recorrível nos termos gerais.

Nestes termos, decide-se a questão prévia em apreciação no sentido da recorribilidade do despacho impugnado na parte em que determina a alteração da natureza urgente dos autos.

2- Nulidade do despacho recorrido
Os recorrentes invocam a nulidade da decisão recorrida por entenderem que a mesma viola os «art.º 152.º, 154.º, 607.º, n.º 4, e 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, sem prejuízo do reconhecimento da violação dos deveres fundamentais consagrados nos termos dos art.º 6.º da CEDH, 20.º, n.º 4 e 203.º, 204.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1 da CRP», alegando, em suma, que o tribunal a quo não fundamentou a decisão num juízo ponderado e crítico dos factos evidenciados nos autos, dos quais resulta que os progenitores subtraíram os menores à guarda dos recorrentes, que deles cuidaram desde os 3 anos de idade, aceitando acriticamente um Relatório Social onde se diz que as crianças não estão em perigo, mas que apenas alude às condições económicas e/ou habitacionais dos progenitores.

Vejamos, então.
A nulidade da decisão que vem invocada reporta-se ao disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, sabendo-se, pois, que as situações previstas neste preceito são de natureza taxativa, ou seja, a decisão (despacho, sentença, acórdão – cfr. artigo 613.º, n.º 3, do CPC) é nula se o vício formal que lhe é apontado se enquadrar na taxatividade normativa elencada no preceito, afetando, por essa razão, a decisão em si mesma (embora tal não se confunda com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida).

Assim, excetuando a falta de assinatura do juiz (alínea a) do n.º 1 do artigo 615.º), as alíneas b) a e) do preceito reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença.

A falta de fundamentação a que alude o n.º 1, alínea b) do artigo 615.º, do CPC, está em consonância com o dever de fundamentação das decisões, consagrado na CRP e na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1, da CPR, artigos 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC).

Porém, como tem sido entendido de forma consensual, a arguida nulidade só ocorre quando a falta de fundamentação for absoluta, o que não se verifica quando haja insuficiente ou errada fundamentação de facto e/ou de direito, vícios para os quais a lei tem remédios diversos que não passam pela declaração de nulidade do decidido (cfr., assim, artigos 639.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), 640.º e 662.º, n.º 1 e 2, alíneas c) e d), todos do CPC).

O artigo 607.º do CPC, mormente o seu n.º 4, encontra-se delineado para a estruturação de sentenças/despachos/decisões finais, proferidas na sequência de produção de prova relativamente aos factos controvertidos, em ordem à emissão de uma decisão que dirima o conflito, impondo a lei que, nessa situação, o juiz discrimine os factos provados e não provados, analisando criticamente a prova e especificando os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção.

Em situações em que não está em causa a prolação de uma decisão que dirima o conflito das partes, em que ainda nem existiu uma audiência final ou ato processual com a mesma finalidade, a lei não exige uma discriminação ponto por ponto, facto por facto, com a respetiva fundamentação e análise crítica da prova.

No caso dos autos, para além de estarmos perante um processo de jurisdição voluntária (artigo 12.º do RGPTC) ao qual se aplicam as disposições dos artigos 292.º a 295.º do CPC (reguladoras dos incidentes da instância - cfr. artigo 986.º do CPC), aplicam-se com as necessárias adaptações o disposto no artigo 607.º do CPC (cfr. artigo 295.º do CPC), a realidade é que a decisão proferida não visou dirimir a controvérsia trazidas aos autos, mas apenas pronunciar-se sobre a alteração da natureza urgente dos mesmos (para além de marcar a conferência de pais e especificar quem deveria ser convocado para a mesma e em que termos deviam os menores ser acolhidos em tribunal).

A fundamentação do despacho remete para o Relatório Social realizado imediatamente antes do despacho impugnado (e, relembre-se que a sua realização teve precisamente como objetivo aferir da atual situação de vidas das crianças, ou seja, desde que passaram a viver com os progenitores), aceitando, pois, as conclusões vertidas no Relatório Social quanto às atuais condições económicas, habitacionais, sociais, escolares e familiares em que as crianças vivem, ali tidas como indicadoras de inexistência de uma situação de perigo para as mesmas.

Assim, o despacho recorrido ao remeter para o Relatório Social e conclusões nele apresentadas, não se encontra totalmente desprovido de fundamentação, pelo que não sofre do vício formal da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, nem viola, consequentemente, as demais normas invocadas pelos recorrentes.

Improcede, assim, a arguida nulidade da decisão recorrida.

3- Se os autos devem continuar a ser tramitados como urgentes
Esta é, efetivamente, a questão central que este recurso coloca.

Em termos gerais, um processo de natureza urgente carateriza-se por uma maior celeridade na sua tramitação de forma a alcançar, no mais curto tempo possível (pelo menos, em comparação com outros que não tenham essa natureza), uma decisão que dirima o conflito que as partes trazem a tribunal, servindo, assim, não apenas o interesse das partes no que concerne à celeridade, mas também o interesse geral da boa administração da justiça e inerente garantia constitucional do direito à tutela jurisdicional efetiva prevista no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

A lei tipifica os processos que têm natureza urgente guiando-se, essencialmente, pelo critério da natureza das matérias (por exemplo, processos de insolvência e afins, despejos de determinados tipo de contratos de arrendamento, etc.) ou da necessidade de obstar à produção de danos irreparáveis ou de difícil reparação (como sucede com os procedimentos cautelares, por exemplo).

A natureza urgente reflete-se sobretudo no estabelecimento de prazos processuais próprios e regras quanto ao modo de contagem.

Assim, nos processos urgentes vigora a regra da continuidade dos prazos judiciais, pelo que correm termos em férias (cfr. artigos 138.º, n.º 1, e 137.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), encurtamento de prazos para a prática de atos próprios do juiz e promoções do Ministério Público (artigo 156.º, n.º 3, do CPC) ou da parte (v.g. interposição de recurso - cfr. artigo 638.º, n.º 1, do CPC), com prevalência do ato urgente sobre os demais.

Nos processos tutelares cíveis – categoria a que pertencem os autos principais e seus apensos – o legislador entendeu por bem não os categorizar como processos urgentes, determinando, ao invés, uma outra regra – a prevista no artigo 13.º do RGPTC – estipulando que «Correm durante as férias judiciais os processo tutelares cíveis cuja demora possa causar prejuízo aos interesses da criança».

Remetendo para o juiz a tarefa de, casuisticamente, em função da concreta situação da criança, do conflito de interesses em presença e da providência proposta, decidir se deve atribuir natureza urgente ao processo.

Estabelecendo, contudo, regras de controle do prazo e do seu excesso (artigo 14.º, n.ºs 3 e 4, do RGPTC) ou encurtando o prazo de interposição do recurso e de resposta (artigo 32.º, n.º 3, do RGPTC, o que vai de encontro ao disposto no já citado artigo 638.º, n.º 1, do CPC).

No caso em apreço, apesar de não termos detetado nenhum despacho a atribuir caráter urgente aos autos principais, a verdade é que o tribunal a quo determinou a cessação da natureza urgente, o que significa que o processo principal vinha a ser tramitado nesses termos.

Porém, na avaliação que fez da situação das crianças com base no Relatório Social já antes referido, que se pronuncia de forma clara e fundamentada pela inexistência de perigo para as mesmas, com base na observação das condições habitacionais, sociais, familiares em que se encontravam naquele momento, considerou que o processo devia seguir a sua normal tramitação sem ser sob a égide da natureza urgente.

Como se disse, a aferição é casuística e com base na situação concreta em que a criança se encontra, do conflito em presença e das providências que estão requeridas ou se justificam em face daquela concreta situação.

No caso, o referido Relatório Social nada evidencia no sentido da situação vivida atualmente pelas crianças junto dos seus progenitores, as poder colocar em perigo.

Sendo necessário levar em conta que o artigo 3.º, n.º 2, alínea a) a f), da Lei n.º 147/99, de 01-09, e alterações subsequentes (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo que estabelece princípios orientadores aplicáveis aos processos tutelares cíveis como expressamente estipula o artigo 4.º, n.º 1, dessa Lei) enuncia, ainda que de forma não taxativa, as situações em que a criança ou o jovem se encontra em perigo, destacando-se as situações em que, por ato de terceiro, a criança ou o jovem é colocado em situação de desequilíbrio e desajustamento com afetação do seu desenvolvimento físico, moral e psíquico, bem como da sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento em geral.

Nessas situações, o superior interesse da criança prevalece sobre qualquer outro (seja dos progenitores ou de terceiro) e determina que a avaliação casuística a levar a cabo pelo tribunal imponha a atribuição de natureza urgente ao processo tutelar cível.

Considerando o teor do referido Relatório Social, nele não são identificados vetores de risco que ponham em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento das crianças em causa nos autos, pelo que não se pode criticar a decisão que, com base nesse Relatório Social, considerou que as crianças não se encontravam em perigo, não se justificando que os autos continuassem a ser tramitados sob as regras dos processos urgentes.

Contrapõem os recorrentes que o tribunal a quo não ponderou todos os elementos existentes no processo, defendendo que devia ter sido atendida a situação anterior à estadia das crianças com os pais e todos os factos que determinaram que os mesmos tivessem estado à guarda (de facto) dos tios durante 9 anos, alegando, ademais, que também não foi tido em conta o corte de relações com a família e amigos de ....

Afigura-se-nos que os recorrentes não têm razão na medida em que, para a decisão que foi proferida, o que relevava era a situação atual das crianças e se a mesma evidencia que as mesmas se encontravam em perigo.

E o que foi apurado pelo ISS foi no sentido de, naquele momento da observação/avaliação, inexistir esse risco e/ou perigo, ou seja, o superior interesse das crianças encontrava-se acautelado com a permanência das mesmas juntos dos seus pais, inseridas no respetivo meio familiar (realçando-se no Relatório Social, a «grande cumplicidade e um bom ambiente familiar entre todos»), beneficiando as crianças de uma habitação com boas condições, encontrando-se inseridos na escola que frequentam e devidamente acompanhados no GAAF de ... por uma psicóloga.

Apesar de manifestarem ter saudades dos tios e dos amigos de ..., tal circunstância não obnubila o anteriormente mencionado.

Em face de todos os elementos que constam do Relatório Social, sendo que os ora Apelantes não invocam qualquer motivo ou razão que o descredibilize, não existia fundamento para desconsiderar as conclusões ali alcançadas, as quais sopesadas à luz do critério do artigo 13.º do RGPTC, são adequadas e suficientes para fundamentar a alteração da natureza urgente dos autos.

Realçando-se, ademais, que não sendo ainda aquele o momento processual para emitir decisão sobre a questão de fundo colocada pelos ora Apelantes ao tribunal quando intentaram a ação principal, não se pode criticar a decisão recorrida por não se ter pronunciado, naquele momento, sobre os factos que irão suportar essa decisão, quando venha a ser tomada no momento processual próprio.

Pelo que, também para efeitos de apreciação do objeto deste recurso, fica prejudicada a apreciação das Conclusões do recurso que alinham no sentido da falta de ponderação crítica sobre todo o circunstancialismo anterior ao momento em que foi realizado o referido Relatório Social.

Do mesmo modo, encontra-se prejudicada a questão que suscitam da dilação da marcação da conferência de pais, considerando a natureza não urgente do processo, como acima dito.

Sendo certo que a mesma foi, entretanto, realizada, pelo que sempre ficaria prejudicada a apreciação da referida dilação.

Nestes termos, improcede a apelação.

III- DECISÃO

Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Dado o decaimento, as custas são da responsabilidade dos Apelantes (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP; porém, os Apelantes estão dispensados do seu pagamento nos termos da modalidade do apoio judiciário que lhes foi concedido.

Évora, 20-02-2024

Maria Adelaide Domingos (Relatora)

José António Moita (1.º Adjunto)

Manuel Bargado (2.º Adjunto)

_________________________________________________

[1] Que se transcrevem, excetuando as notas de rodapé por se reportarem a referências doutrinárias e jurisprudenciais, extravasando, nessa parte, de forma manifesta, o disposto no artigo 639.º do CPC.