Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
145/09.1TAELV.E1
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO DE JULGAMENTO
DEFICIENTE GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE
REGIME DE ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 11/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - A arguição de nulidade decorrente de deficiente gravação da prova pode ser feita no prazo do recurso que visa a reapreciação de prova gravada. [1]
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I. No processo comum singular que, com o nº 145/09.1TAELV, corre termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Elvas, os arguidos A, B e C, todos com os demais sinais dos autos, foram julgados e condenados:

- o arguido A, como autor de um crime de difamação agravada, na forma continuada, p.p. pelos artºs 30º, 79º, 180º, nº 1, 182º, 183º, nº 2 e 184º do Cod. Penal (na redacção anterior à Lei 40/2010, de 3/9), na pena de 400 dias de multa; como autor de um crime de difamação agravada, p.p. pelos artºs 180º, nº 1, 182º, 183º, nº 1, al. a) e 184º do Cod. Penal, na pena de 200 dias de multa; em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, foi o mesmo arguido condenado na pena única de 450 dias de multa, à razão diária de € 6,50, no montante de € 2.925,00;

- o arguido B, como autor de um crime de difamação agravada, p.p. pelos artºs 31º, nº 3, da Lei 2/99, de 13/1, por referência aos artºs 180º, 182º, 183º, nº 2 e 184º, todos do Cod. Penal, na pena de 260 dias de multa, à razão diária de € 12,00, no montante de € 3.120,00;

- o arguido C, como autor de um crime de difamação agravada, p.p. pelos artºs 180º, nº 1, 182º, 183º, nº 1, al. a) e 184º do Cod. Penal, na pena de 200 dias de multa, à razão diária de € 9,00, no montante de € 1.800,00.

Na procedência parcial do pedido cível formulado pela demandante E, foram os arguidos/demandados solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia de € 2.500,00, a título de compensação por danos não patrimoniais.

Inconformados, recorreram os arguidos C e B.

O primeiro pede a revogação da sentença recorrida, declarando-se a mesma nula ou absolvendo-se o arguido e, subsidiariamente, a redução da pena que lhe foi aplicada, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):

«1º A douta sentença recorrida dá como provados, a publicação pelo arguido/recorrente dos cartoons constantes de fls. 45/52 (Vide ponto 21 dos factos provados).

2º A douta acusação, apenas refere que o recorrente, publicou os cartoons de fls. 45, 46 e 48.

3º Em sede de factos provados (ponto 24), só os 3 cartoons se encontram provados.

4º A sentença recorrida, funda a sua convicção para a condenação do arguido, em dois cartoons, o de fls. 20 e o de fls. 72. (Vide alínea b) da sentença, ponto 2- Convicção do Tribunal e Exame Crítico das Provas), pois,

5º Nenhuma prova se logrou produzir em sede de audiência de discussão e julgamento, no que tange à possibilidade dos cartoons publicados sugerirem a existência de uma relação de carácter sexual entre a assistente e o Presidente da Câmara, elemento importante a considerar nestes autos.

6º Na ausência desta prova, o Tribunal teve que se socorrer da generalidade dos cartoons juntos aos Autos, incidindo particular relevância os cartoons referidos no Art.º 4 das conclusões.

7º Ora, o cartoon de fls. 20, encontra-se prescrito e por isso foi objecto de despacho de arquivamento.

8º O cartoon de fls. 72, não foi publicado pelo arguido/recorrente.

9º Perante tal situação, existe nítida contradição entre os factos dados como provados e a fundamentação dada para essa prova, a qual acarreta nulidade da sentença, nos termos do Art.º 379/1-c) parte final do Código de Processo Penal, o que desde já se requer seja determinado.

10º A não se considerar desta forma, sempre se dirá que o arguido não praticou qualquer crime, senão vejamos:

11º Para o preenchimento deste tipo legal de crime, mormente o seu elemento subjectivo, verifica-se que a intenção do arguido ao publicar os cartoons, foi o de satirizar o executivo local (Vide ponto 23 dos factos provados e página 18 da sentença, sendo que,

12º Tal intencionalidade é corroborada no ponto 2, alínea c) da sentença, na parte referente ao exame crítico das provas, donde resulta: “…Importa salientar que os três arguidos são assumidamente críticos e opositores políticos do actual executivo camarário…”

13º Assim, resultando que o arguido é assumidamente crítico e opositor político do actual executivo camarário, legítima se tornou a publicação dos cartoons, cuja intenção foi de facto satirizar o executivo camarário e não atingir a honra da Assistente.

14º Desta forma, porque afastado o elemento subjectivo, deverá o arguido ser absolvido.

15º A liberdade de expressão e informação é um direito constitucional protegido, devendo este direito ser exercido sem impedimentos, nem descriminações.

16º A Douta Sentença Recorrida viola claramente esta disposição constitucional. – Art.º 37º da Constituição da República Portuguesa

17º A não se entender ainda dessa forma, sempre se dirá que a pena de multa aplicada ao arguido é excessiva, pois,

18º É primário neste tipo de crime (ponto 48 dos factos provados).

19º Quando tomou conhecimento deste processo, retirou do blog os cartoons (ponto 47 dos factos provados) que,

20º Pese embora a sentença recorrida tenha reflectido na determinação concreta da medida da pena, estes dois pontos, a verdade é que não fixou a multa dentro dos seus limites mínimos, o que desde já se requer.

21º A ter decidido da forma como se encontra delimitado na sentença recorrida, esta violou as normas constantes dos Art.º 379/1-c) do C.P.P., no que à contradição entre os factos provados e a fundamentação para essa prova diz respeito, por não poder conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, o que acarreta a nulidade da sentença.

22º A não se julgar dessa forma, a condenação do arguido por um crime doloso, como é o caso dos autos, não se tendo verificado esse dolo, atentos os motivos já expostos, violou a Meritíssima Juiz “ a quo “, as normas previstas nos Art.º 180º/1, 182º, 183º/2 e 184º do C. Penal, todos do Código Penal, devendo o arguido ser absolvido.

23º Ainda a não julgar-se conforme se pede supra, sempre se dirá que a pena aplicada ao arguido é excessiva, devendo a mesma ser reduzida aos seus limites mínimos, sendo que,

24º Não tendo a pena de multa sido fixada dentro dos seus limites mínimos, encontram-se violados os preceitos contidos nos Art.º 71º, alíneas a), b) e e); 72º alíneas c) e d) e Art.º 73, alínea c), todos do Código Penal.

25º Quanto ao quantitativo indemnizatório fixado é claramente excessivo

26º Do elenco dos factos não provados consta que as publicações não causaram na Demandante sentimentos de dor, desilusão e injustiça.

27º Logo se não existe dano, tal situação não merece a tutela do Direito, e em conclusão não garante a possibilidade de ressarcimento.

28º Devendo o quantitativo indemnizatório ser reduzido para zero por inexistência de dano, uma vez que a Douta Sentença ao decidir na fixação de uma indemnização do montante de 2.500,00 €, violou as normas constantes dos Art.º 379/1-c) do C.P.P.».

O segundo pede, igualmente, a declaração de nulidade da sentença ou a sua absolvição e, subsidiariamente, a redução da pena, bem como a redução do valor estipulado na procedência parcial do pedido cível, devendo considerar-se autónoma a sua responsabilidade. E extrai da sua motivação as seguintes conclusões (igualmente transcritas):

«I. Os depoimentos dos arguidos A e B, não são percetíveis, mas essenciais para a reapreciação da matéria de facto.

II. Tal impede a apreensão do sentido das declarações daqueles e cerceada fica a possibilidade do recorrente impugnar a matéria de facto considerada provada a 18) 19) 20) 27) e 28) da Douta sentença, através da reapreciação da prova gravada.

III. Gerando consequentemente o vício de nulidade, por força das disposições conjugadas dos artigos 32.º da Constituição da Republica Portuguesa, 101.º n.º 1), 363.º, 364.º, 411 n.º 4), 412 n.º 3) e 4), todos do Código de Processo Penal, e artigo 9.º do Decreto-Lei 39/95 de 16 de Fevereiro.

IV. Pelo que, deverá, salvo melhor opinião, julgar-se verificada a invocada nulidade, com as demais consequências daí decorrentes, anulando-se, inclusivamente a decisão decorrida.

V. O direito penal, constitui entre nós, o ultimo acesso de tutela legal dos bens jurídicos que visa proteger.

VI. Quer-se crer, no entanto, que os cartoons, pelos quais os arguidos vêm acusados, não são merecedores de censura penal.

VII. Pois que os mesmos constituem, apenas, uma sátira politica e não mais.

VIII. Por sua vez, “A crítica política de âmbito autárquico, admite o uso de imagens mais contundentes e até com algum grau de provocação”.

IX. A par, integra-se, neste parâmetro, a liberdade de expressão, e até de imprensa, tal qual se verifica assegurada, pelos artigos 37.º e 38.º da Constituição da Republica Portuguesa.

X. Dado o carácter político, da Assistente, a sua publicidade, bem como a de qualquer outro membro do executivo camarário, será de prever, e até condescender, na eventual verificação de críticas mais desafiadoras, verbalizadas ou não, que visem, atingir uma determinada fracção politica.

XI. Não integrando a censura penal, deverão os arguidos ser absolvidos dos crimes pelos quais vêm acusados.

XII. Dir-se-á, ainda, que, não se verificou, sequer, o dolo de lesar, violar ou ofender, o bem jurídico protegido com a incriminação atribuída pelos artigos 180.º e seguintes do Código Penal.

XIII. O arguido B, é director do jornal X, e nessa qualidade, por omissão, permitiu a publicação dos cartoons de fls 40,71, e 72 dos autos.

XIV. Não possuiu, no entanto, conhecimento prévio do teor dos referidos cartoons.

XV. Sendo este um requisito essencial e indispensável para o cometimento do crime de difamação.

XVI. Porque a violação do seu dever de garante, não foi dolosa, dado o desconhecimento do teor dos cartoons, tal qual é reconhecido na douta sentença a fls 19, e ainda, porque possui responsabilidade autónoma, face ao do arguido A, nos termos do numero 3 do artigo 31 da Lei 2/99, deve o arguido B ser absolvido do crime de difamação, dado que o mesmo só permite o seu cometimento a titulo doloso, ex vi dos artigos 13.º e 180.º do Código Penal.

XVII. Pelo que, na falta de prova do referido conhecimento prévio, é de aplicar-se o princípio segundo o qual é inocente, e na dúvida a favor deste, pois que, não cabe ao recorrente o ónus da prova do desconhecimento específico, dado os princípios subjacentes ao processo penal (artigo 32.º da C.R.P.).

XVIII. Consequentemente, até verificação e prova em contrario, não pode ser imputado ao arguido, a titulo doloso, o crime de difamação pelo qual vem acusado, porquanto não possuiu o mesmo conhecimento prévio dos referidos cartoons e ou imagens (de fls 40, 71, e 72).

XIX. E isso mesmo é reconhecido na Douta sentença a fls 19, penúltimo paragrafo, e fls 32, penúltimo paragrafo, pelo que se encontra violado o disposto no artigo 410, n.º 2 alínea a) e alínea b) do CPP.

XX. Pelo que faltando um requisito essencial – conhecimento prévio do teor dos cartoons – deve concluir-se pela omissão negligente, e por via disso absolver-se o arguido.

XXI. Importa nesta sede referir, dado que a sentença a fls 32 formula a sua convicção em anteriores cartoons, que os arguidos, neste caso o recorrente, foi apenas acusado pelos cartoons de fls 40, 71, e 72, pelo que só sobre estes produziu a sua defesa, e só em relação a estes, procedeu, em audiência de julgamento, às intervenções julgadas necessárias.

XXII. Sendo certo que o direito de defesa é pleno, e a todos cabe a sua garantia constitucional. Pelo que, mal andou, o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção em cartoons sobre os quais o arguido não se encontrava acusado e por via disso não se defendeu, violando o dispositivo constitucional que integra o princípio do contraditório (artigo 32.º da CRP)

XXIII. No que tange ao pedido de indemnização civil, e a considerar-se (ficcionadamente e sem prescindir), a existência de dolo, sempre se dirá, dada a autonomia da responsabilidade do recorrente, e a reconhecida omissão, que não concorre com igual grau de responsabilidade para o dano, devendo, afastar-se a responsabilidade solidária no que a este tange, e fixar-se um valor menor.

XXIV. Afastando o dolo e no que ao pedido de indemnização civil tange, deverá, antes sim, considerar-se a responsabilidade autónoma e por facto próprio, a omissão, e a mera culpa do recorrente, e em consequência deverá o quantitativo pecuniário indemnizatório, ser fixado em valor manifestamente menor ex vi do artigo 483, e 494.º do Código Civil.

XXV. Sem prejuízo, de se considerar excessivo o valor indemnizatório fixado na douta sentença.

XXVI. Caso se considere a verificação do dolo do recorrente, dir-se-á, ainda, quanto à medida da pena que, por o recorrente ser o único arguido com responsabilidade autónoma, enquanto director do jornal, face aos demais, por se verificar a omissão e não um comportamento activo, a idade do recorrente, a falta de antecedentes criminais, e o comportamento posterior deste, padece a mesma de um excesso de valor e desproporcionalidade, ao fixar-se, tal qual sucede, o quantitativo total a pagar em €3.120,00€ (três mil cento e vinte euros), correspondendo a 260 dias de multa à razão diária de € 12,00 (doze euros).

XXVII. Face ao exposto e aos restantes arguidos, crê o recorrente que será merecedor de uma pena menor, e de igual forma, com um valor diário mais baixo, tendo em vista, incutir no próprio - que por comparação não sente - a equidade da decisão.

XXVIII. Sendo certo, que e a considerar-se a omissão negligente, dir-se-á que pena não cabe, porque crime não houve.

XXIX. Pelo que nestes termos e sempre com o Mui Douto suprimento de V.ª Exas deve o presente recurso ser aceite, e em consequência, ser a decisão recorrida anulada, e se tal não couber, por outra revogada, que conclua pela absolvição do arguido, do crime de que vem acusado, com as consequências daí decorrentes.

Se assim não for determinado, o que só por mera hipótese de raciocínio e dever de patrocínio se coloca, deve, ainda, ser, reduzida a pena aplicada ao recorrente arguido.

Mais deve, no que ao pedido indemnização civil se refere, considerar-se o valor estipulado como excessivo, e considerar-se autónoma, a responsabilidade do recorrente, que contribuiu por mera culpa, para o dano, com as demais consequências daí decorrentes».

Responderam a Digna Magistrada do MºPº e a assistente, ambas pugnando pela improcedência do recurso.

Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não houve resposta.

II. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.

Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP [2] - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se:

a) É nula a sentença recorrida, por força do estatuído no artº 379º, nº 1, al. c) do CPP, porquanto o tribunal recorrido conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento (pretensão formulada pelo recorrente C)?

b) Deve o arguido C ser absolvido do crime de difamação agravada, por inexistência, in casu, do elemento subjectivo desse tipo legal de crime?

c) É nulo o julgamento, face à deficiente gravação das declarações dos arguidos A e B?

d) Deve o arguido B ser absolvido do crime de difamação agravada, por a sua conduta não ser merecedora de censura penal sendo que, aliás, agiu sem dolo?

e) São excessivas as penas aplicadas aos arguidos C e B?

O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

1. O arguido A é pintor.

2. O arguido B é proprietário e director de um periódico de publicação quinzenal, intitulado “X”.

3. O arguido C é autor e administrador do blog www.xxx.blogspot.com, com a designação “Câmara dos Comuns”.

4. A partir de data indeterminada o arguido A começou a criar uma série de cartoons que intitulou de “Rondónia”, subordinados a diversos temas e acontecimentos locais, nos quais desenhava figuras de animais, com destaque para porcos, burros e ovelhas, que colocava em poses que transmitiam certos comportamentos.

5. Quer pelos temas versados nos cartoons, quer pelas figuras neles desenhados e pelos comportamentos que assumiam, os animais representados eram facilmente identificados com figuras públicas da política autárquica local.

6. Assim, nesses cartoons, o Presidente da Câmara Municipal de --- era retratado como um burro, os membros do executivo camarário eram retratados como uns porcos, a Assistente era retratada como uma porca loura e os munícipes correspondiam aos carneiros e ovelhas.

7. Nos referidos cartoons elaborados pelo arguido A e juntos aos autos a figura principal era sempre o Presidente da Câmara Municipal de---.

8. À excepção do burro, todas as restantes figuras apareciam em regra despidas, com destaque para os porcos.

9. Porém, de entre os vários porcos sobressaía sempre um representado no feminino, sendo o único que era representado com cabelo e colocado sempre próximo da imagem do burro.

10. E quer pelo posicionamento que assumia nos cartoons, quer pelo facto de ser representada com cabelo louro e no feminino, quer ainda por apresentar sempre num dos braços a sigla “CMR”, interpretada como significando “Câmara Municipal da Rondónia”, essa figura de porca retratava a vereadora E, pessoa da confiança do Presidente da Câmara e que está habitualmente ao seu lado em todos os actos oficiais ou públicos.

11. O arguido A decidiu remeter para publicação no jornal “X” cada um dos cartoons com o intuito de satirizar o executivo camarário e o meio político local, bem sabendo que, com a divulgação e publicação dos referidos cartoons, também denegria, necessariamente, o bom nome e a dignidade de E e também atingiria, necessariamente, a sua honra, consideração e bom nome, como aconteceu.

12. Assim, pelo menos a partir de Março de 2007, o jornal quinzenal “X”, de que é proprietário e director o arguido B passou a publicar, com a autorização genérica deste último, os referidos cartoons, tendo sido publicados.

13. O Jornal “X”, de acordo com o arguido A, publicou, entre outros:

- No jornal “X” difundido no dia 1 de Outubro de 2008 um cartoon com o título “Rondónia – 2008”, sob o tema “Homenagem em Memória dos Ex-combatentes do Ultramar e em Honra do Soldado Desconhecido”, no qual estava representada uma porca com cabelo louro, meias de renda e ligas, com uma braçadeira com as iniciais “CM”, imediatamente atrás de um burro fardado de soldado com um símbolo “PS” na lapela, uma espingarda numa mão, uma garrafa na outra e um presunto no capacete;

- No jornal “X” difundido no dia 11 de Março de 2009 um cartoon com o título “Rondónia 2009 – A”, sob o tema “Carnaval na Rondónia - 2009”, no qual estava representado um burro a tocar tambor, seguido de uma fila de porcos com orelhas de burro com bandeiras com a sigla “PS”. Imediatamente ao lado do burro com o tambor figurava uma porca com cabelo louro, meias de renda e ligas, a tocar uma corneta; e

- No jornal “X” difundido no dia 25 de Março de 2009 um cartoon com o título “Rondónia 2009”, sob o tema “Vacinação Contra a Campanha Negra e o Bota Baixismo”, no qual estava representada uma porca com formas roliças e cabelo louro, com uma seringa encostada numa nádega. A seringa era segura pela mão de um burro colocado imediatamente atrás da porca, com as calças ao fundo das pernas, numa posição a sugerir preliminar de um acto sexual, também ele a receber uma injecção ministrada por um porco vestido de enfermeiro;

em todas estas publicações dos cartoons no Jornal “ X”, a Assistente está representada (como) uma porca, com formas roliças, com cabelo louro, semi – nua, com meias de renda e ligas ao lado da caricatura do burro.

14. Com efeito, o arguido A., em geral, desenhou sempre a imagem da Assistente com formas roliças, e nos cartoons referidos no ponto 13) dos factos provados desenhou-a com o peito desnudado e colocou-lhe como acessórios meias de renda e ligas.

15. Ao colocar cinto de ligas, meias de renda e saltos altos na caricatura da porca e ao posicioná-la sempre junto à figura do burro, bem como em determinadas posições em relação a este último, o arguido A. sabia que criava a ideia de uma certa intimidade de natureza sexual entre a Assistente e o Presidente da Câmara.

16. O arguido A. pretendeu ainda, e conseguiu, formar no imaginário de todos quantos tiveram acesso aos cartoons, a ideia de que a porca retratava uma prostituta, uma devassa, uma mulher de acesso fácil, desfrutável e com elevada apetência sexual.

17. Sabia este arguido que ao publicar aqueles cartoons no jornal os dava a conhecer a um grande número de pessoas.

18. O arguido B permitiu que os cartoons elaborados pelo arguido A fossem publicados no jornal “X” pelo menos desde Março de 2007 a Março de 2009, e não impediu a publicação dos cartoons referidos no ponto 13) dos factos provados.

19. O arguido B tinha perfeita consciência que a forma como a imagem da porca estava representada nos cartoons que foram publicados no período compreendido entre Março de 2007 e Março de 2009 era tida como uma figura pouco honesta, e que a constante proximidade da porca em relação ao burro sugeria um relacionamento íntimo entre as duas figuras, sabendo ainda que ao publicar aqueles cartoons no seu jornal os dava a conhecer a um grande número de pessoas e dessa forma, para além de publicar uma sátira política, necessariamente, denegria a reputação, bom nome e consideração social de E.

20. O arguido B tinha consciência de que a figura do porco caricaturada no feminino, com cabelo loiro, semi – nua, com formas roliças, envergando meias de renda e ligas, e retratada sempre ao lado do “burro”, era facilmente identificada com a Assistente.

21. Em data não concretamente apurada de Setembro de 2008, o arguido C, de comum acordo com o arguido A, decidiu publicar no blog que aquele administrava, “Câmara dos Comuns” em www.xxx.blogspot.com., os cartoons elaborados pelo arguido A e constantes de fls. 45/52, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

22. Ambos os arguidos (C e A) sabiam que a imagem da porca, com o cinto de ligas, meias de renda e saltos altos, estando tal figura sempre posicionada junto à figura do burro, criava a ideia de intimidade de natureza sexual entre a Assistente e o Presidente da Câmara.

23. Ainda assim, os arguidos C e A tomaram uma só decisão, a de publicar tais cartoons com o intuito de satirizar o executivo camarário e o meio político local, bem sabendo que com a divulgação e publicação dos referidos cartoons denegriam, necessariamente, o bom nome e a dignidade de E. e também atingiriam, necessariamente, a sua honra, consideração e bom nome, como aconteceu.

24. Assim, e com a concordância do arguido A, o arguido C publicou no referido blog:

- No dia 12 de Setembro de 2008, um cartoon com o título “Rondónia – 2008”, sob o tema “A Reconquista” no qual estava representada uma porca de cabelo louro, meias de renda e ligas, com uma espada numa mão e uma bandeira na outra, situada imediatamente atrás de um burro com casaca de general e uma espada na mão, aparecendo em segundo plano vários porcos também com espadas na mão;

- No dia 17 de Setembro de 2008, um cartoon com o título “Rondónia – 2008”, sob o tema “Homenagem em Memória dos Ex-combatentes do Ultramar e em Honra do Soldado Desconhecido”, no qual estava representada uma porca com cabelo louro, meias de renda e ligas, com uma braçadeira com as iniciais “CM”, imediatamente atrás de um burro fardado de soldado com um símbolo “PS” na lapela, uma espingarda numa mão, uma garrafa na outra e um presunto no capacete; e

- No dia 19 de Setembro de 2008, um cartoon com o título “Rondónia – 2008”, sob o tema “O Sucateiro – Zé Basófias” no qual estavam representados diversos porcos e em plano de destaque um burro de cabelo branco e junto dele uma porca de cabelo louro, meias de renda e ligas;

em todas as publicações dos cartoons no blog “Câmara dos Comuns”, em www.xxx.blogsport.com, está representada uma porca, com formas roliças, com cabelo louro, semi – nua, com meias de renda e ligas ao lado da caricatura do burro, que é facilmente identificada com a Demandante.

25. Os arguidos sabiam que ao publicar estes cartoons no blog os davam a conhecer a um número muito elevado de cibernautas.

26. Os arguidos também sabiam que a forma como a imagem da porca estava representada sugeria a figura de uma meretriz, e a constante proximidade em relação ao burro sugeria um relacionamento íntimo entre as duas figuras, o que denegria a reputação, bom nome e consideração social de E.

27. Ao desenhar, publicar e publicitar os aludidos cartoons, todos os arguidos agiram voluntária e conscientemente, conhecendo a qualidade da Assistente enquanto vereadora do executivo camarário, o que determinou a sua conduta.

28. Por outro lado, ao publicitar os cartoons, os arguidos quiseram que aquelas imagens chegassem ao conhecimento de um número elevado de pessoas, especialmente as residentes no concelho.

29. Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou:

30. Entre 28 de Março de 2007 e 25 de Março de 2009, o jornal “X” publicou os cartoons constantes de fls.19/44 e 70/72, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e que foram desenhados pelo arguido A.

31. A Demandante é o “braço direito” do Presidente da Câmara e é pessoa conhecida em todo o concelho de ---.

32. As publicações dos cartoons no jornal e na internet criou na Demandante ansiedade e angústia, sofrendo ao longo do período das publicações um desgaste psicológico, marcado por sentimentos de tristeza, o que se reflectiu nas suas relações pessoais e profissionais.

33. O arguido A. encontra-se reformado e aufere a reforma de 800,00 mensais.

34. Vive com a esposa que é doméstica e pagam €40,00 de renda de casa e cerca de €100,00 por mês em medicamentos.

35. O arguido tem 2 filhos.

36. O arguido tem o antigo 5.º ano.

37. Não tem antecedentes criminais.

38. O arguido B encontra-se reformado, mas continua a exercer as funções de empresário, tendo declarado o rendimento anual de €10.955,56, no ano de 2010, bem como os rendimentos prediais descritos a fls. 464/474.

39. Vive em casa própria, com a esposa, que é reformada

40. Tem o 2.º ano do liceu.

41. Não tem antecedentes criminais.

42. O arguido C aufere o rendimento mensal de €2.000,00 líquidos.

43. Vive com as duas filhas (de 11 e 4 anos de idade) e a esposa, que está desempregada.

44. Pagam €350,00 mensais a título de empréstimo para aquisição de habitação.

45. Pagam cerca de €300,00 pelo colégio das suas filhas.

46. O arguido tem o curso técnico da Escola Superior Agrária de ---

47. O arguido C retirou os cartoons do seu blog logo que teve conhecimento da pendência do presente processo crime.

48. O arguido foi condenado em 15 de Dezembro de 2003 pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez cometido em 13.12.2003, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de €5,00 e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses.

49. O arguido C é visto pelos amigos e conhecidos como uma pessoa bem formada.

50. O arguido A é considerado como um artista local.

O tribunal recorrido considerou, ainda, que “não se provaram, com interesse para a apreciação e decisão da presente causa, os seguintes factos:

a) A porca retratada nos cartoons acima referidos era D, filha do Presidente da Câmara Municipal de ---, e sua chefe de gabinete.

b) Cada um dos cartoons publicados no jornal “X” foram publicados de comum acordo entre o arguido A o arguido B.

c) As publicações dos cartoons no jornal e na internet criou na Demandante sentimentos de dor, desilusão e injustiça, o que se reflectiu nas suas relações familiares.

A demais matéria alegada, porque conclusiva, não foi considerada.

E desta forma justificou a Mª juíza a quo a sua convicção:

«Convicção Do Tribunal e Exame Crítico Das Provas:

“Ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” (Chiovenda citado in Acórdão da Relação Lisboa de 19 de Maio de 2004 disponível em www.dgsi.pt).

Como assinala Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 204 e ss.), a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova), e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros.

Deste modo, importa ter presente que o princípio da livre apreciação da prova consignado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, não representa a possibilidade de uma apreciação puramente subjectiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objectiva e crítica e, em boa medida, objectivamente motivável, de harmonia com as regras da lógica, da razão, da experiência e do conhecimento científico.

No caso concreto, a prova do teor dos desenhos constantes dos cartoons e as suas publicações, quer no jornal “X” quer no blog administrado pelo arguido C, resultaram da análise dos documentos juntos a fls. 19/52 e 70/72 e das declarações dos próprios arguidos que reconheceram tais factos, bem como a autoria dos referidos cartoons. A matéria inserta nos pontos 1 a 4 dos factos provados também foi reconhecida pelos arguidos.

Assim, importa analisar a convicção do Tribunal quanto à restante factualidade acima provada, devendo tal análise ser efectuada em três vertentes, a saber:

a) determinar se a pessoa retratada nos cartoons como uma porca loira é ou não a Assistente;

b) determinar se o teor dos referidos cartoons sugere a existência de uma relação de carácter sexual entre a pessoa retratada como sendo uma porca loira e o Presidente da Câmara e se a forma como a porca se encontra caracterizada é identificada com uma pessoa de má fama, uma prostituta;

c) aquilatar qual o intuito dos arguidos ao publicarem os referidos cartoons.

Vejamos, individualizadamente, cada um destes aspectos.

a) No que concerne à identificação da pessoa que se encontra retratada nos cartoons pela figura de uma porca loira importa desde logo esclarecer que nenhum dos arguidos admitiu tratar-se da assistente.

Com efeito, todos os arguidos afirmaram que a porca loira que se encontra sempre desenhada nos cartoons junto ao burro retrata a filha do Presidente de Câmara, visando-se com tais desenhos fazer uma crítica ao facto deste ter nomeado aquela para chefe do seu gabinete. Todos os arguidos reconheceram ainda que a figura do burro correspondia efectivamente a uma caricatura do Presidente da Câmara Municipal de --- e que os porcos eram os seus comensais enquanto que as ovelhas eram os munícipes.

Já a assistente e as demais testemunhas por esta arroladas – MC, CF, JV e NM, – foram unânimes ao identificarem a figura da porca loira como retratando a assistente, fundando tal identificação no facto da Assistente ser loira e de acompanhar sempre o Presidente da Câmara a todos os actos públicos e oficiais.

Salientaram ainda as testemunhas acima mencionadas que a filha do Presidente da Câmara Municipal de ---, apesar de também ser loira, nunca o acompanha nos actos públicos/oficiais. Refira-se que apesar da relação profissional e política que une estas testemunhas à assistente, a verdade é que esta versão se mostrou credível e foi reforçada pelo exame dos documentos juntos a fls. 360/441 – cópias certificadas de boletins municipais dos anos de 2007/2009 – de cujo teor resulta evidente que a única senhora loira que, invariavelmente, acompanha o Presidente da Câmara, nos actos públicos e oficiais da edilidade, é a Assistente.

Acresce que esta versão – de que a porca retrata a assistente – também se mostra mais consentânea com as regras da normalidade da vida e da lógica, na medida em que não faria qualquer sentido insinuar a existência de uma proximidade física e até mesmo sexual entre o Presidente da Câmara Municipal de --- e a própria filha (insinuação essa que se mostra particularmente expressiva nos cartoons de fls. 20 e 72).

Por último importa dizer que a figura da porca é sempre evidenciada em relação aos demais porcos ali retratados, uma vez que a imagem destes é sempre idêntica entre si, o que impede a identificação destes últimos; o que nos leva a concluir que a porca, apesar de não ser a principal visada nos cartoons, era uma figura de relevo no executivo camarário, como é o caso da Assistente.

Assim, por todos estes motivos, concluiu o Tribunal que a porca loira desenhada nos cartoons juntos aos autos visa, efectivamente, retratar a assistente, como aliás qualquer munícipe da cidade de --- facilmente identificaria (só não o fazendo a testemunha H l porque claramente a mesma não se quis comprometer com tal interpretação, o que resultou evidente da forma vaga, contida e parcial como o mesmo depôs a este respeito).

Posto isto passemos à análise crítica da prova produzida em julgamento relativamente ao teor dos cartoons em causa nos autos.

b) Nesta perspectiva, importa então saber se o teor dos referidos cartoons sugere a existência de uma relação de carácter sexual entre a pessoa retratada, a Assistente, e o Presidente da Câmara Municipal de ---; mais importa determinar se a forma como a porca se encontra caracterizada nos referidos cartoons é facilmente identificada com uma pessoa de má fama, uma prostituta.

Para tanto, haverá que atender e analisar o conjunto dos cartoons juntos aos autos, que no seu todo permitem uma interpretação mais contextualizada e precisa do conteúdo dos cartoons individualizados nos pontos 13 e 24 dos factos provados.

Ora, como acima já adiantámos, a nosso ver, efectivamente os desenhos em causa sugerem, de uma forma geral, a existência de uma intimidade sexual entre a figura da porca e o burro, ou seja, entre a assistente e o Presidente da Câmara e tal sugestão é particularmente expressiva em dois cartoons, a saber: o cartoon de fls. 20 (onde se vê o burro a dar tocar no traseiro da porca, enquanto esta corre numa passadeira,); e o cartoon de fls. 72 (onde a figura da porca, que está nua e de gatas, aguarda que a figura do burro, que está de calças baixas, lhe espete uma seringa no traseiro); ora, qualquer um destes cartoons insinua, de forma clara e vincada, a existência de uma intimidade física e sexual entre as duas figuras, sendo esta a única interpretação possível para qualquer português médio que seja convidado a interpretar tais desenhos.

Saliente-se ainda que a proximidade física entre as duas figuras (a porca e o burro) é uma constante em todos os cartoons, sendo que em muitos deles a porca se encontra caracterizada com meias de renda pretas, cinto de ligas e sapatos de salto, o que também reforça a sugestão de que existe uma intimidade sexual entre a figura da porca e a figura do burro.

Noutra perspectiva importa ainda dizer que a caracterização da figura da porca (quando colocada com meias de renda, cintos de ligas e saltos altos) também tem uma conotação pejorativa relativamente à assistente, na medida em que, a linguagem visual é, muitas vezes, densificada pela utilização de símbolos sociais e culturais, facilmente perceptíveis para qualquer intérprete. E para qualquer intérprete médio que viva numa sociedade ocidental e tradicionalmente católica (como é o caso da sociedade portuguesa), a imagem de uma figura feminina com o peito desnudado, meias de renda pretas, cinto de ligas e saltos altos tem claramente um sentido sexual, correspondendo tal imagem a uma mulher de má porte.

E não se diga que os actuais usos, modas e trajes femininos já ultrapassaram tal simbolismo, na medida em que muitas mulheres utilizam meias de renda, saltos e cinto de ligas, sem que isso as prejudique do ponto de vista moral ou social (se bem que não comparecem em actos públicos com o peito desnudado); é que in casu não estamos no plano da moda, estamos, isso sim, no plano da linguagem visual – onde a única forma de identificar uma mulher de má porte é através da utilização destes símbolos e clichés, ou seja, através da caracterização da imagem feminina com meias de renda, cinto de ligas e salto alto.

E quer a assistente quer as testemunhas acima mencionadas também tiveram por base todos estes elementos interpretativos, o que conferiu credibilidade aos respectivos depoimentos.

Assim, pelas razões supra expostas, concluiu o Tribunal pela prova da factualidade vertida nos pontos 5 a 10 e 14 a 16 dos factos provados.

c) Já quanto à terceira e última problemática acima enunciada – a de saber qual o intuito dos arguidos ao publicarem tais cartoons –:

Importa salientar que os três arguidos são assumidamente críticos e opositores políticos do actual executivo camarário. Com efeito, o arguido A disse que através dos referidos cartoons pretendia atacar o poder político local; já o arguido B disse que foi vereador da oposição deste Presidente durante vários anos; e, por fim, o arguido C afirmou que é membro da Assembleia Municipal e Presidente da Concelhia de um dos partidos da oposição do executivo camarário em funções há vários anos.

Também a assistente e as demais testemunhas foram unânimes ao reconhecer nos arguidos, em particular nestes dois últimos, opositores políticos do Presidente da Câmara, que é aliás sempre o principal visado nas críticas constantes dos cartoons em causa nestes autos, como se pode observar na análise dos mesmos.

Por tal motivo, concluiu o Tribunal que a principal intenção dos arguidos ao publicarem os referidos cartoons era a de criticarem o poder executivo local. Porém, os arguidos bem sabiam que ao fazê-lo, através da publicação dos referidos desenhos e com a assistente retratada da forma supra descrita, necessariamente atingiam a honra e consideração devidas a esta última, como aconteceu (cf. pontos 11, 15 a 17, 19, 20, 22, 23 e 25 a 29 dos factos provados).

Já para a prova da existência de uma única resolução criminosa por parte dos co-arguidos A e C – a mesma resultou do teor do texto de fls. 27 (onde consta que os arguidos tomaram a decisão única de publicarem alguns trabalhos inéditos do pintor A – ou seja tiveram uma só resolução criminosa) conjugada com as declarações do próprio arguido C, que também foram neste sentido.

Cumpre ainda referir que relativamente aos restantes factos descritos integradores do elemento subjectivo do tipo, os mesmos resultam do cotejo da matéria objectiva dada como provada que permitiu a este Tribunal, com base em regras de experiência comum, inferir a sua verificação.

No que tange à prova da factualidade concretamente descrita nos pontos 31) a 32) o tribunal fez fé nas declarações da assistente e das testemunhas MC, CF, JV e NM,, as quais descreveram a forma como a assistente se mostrava afectada e angustiada pelas publicações em causa nos autos, o que lhe causou tristeza e a afectou ao nível profissional e pessoal, o que se nos afigura natural face ao teor dos cartoons e à sua divulgação numa cidade do interior do país, como é o caso de ---.

Quanto ao facto 47 e à determinação das condições pessoais, sociais e económicas dos arguidos, o Tribunal fez fé no teor de fls. 464/474 e nas suas declarações que, conjugadas com as regras da experiência comum, mereceram nesta parte a credibilidade do tribunal.

No que se refere aos antecedentes criminais dos arguidos, tomou-se em consideração os certificados de registo criminal constantes de fls. 352/355.

A prova dos factos referidos nos pontos 49 e 50 resultou das declarações prestadas pelas testemunhas H, HC e F – o primeiro apreciador da arte do arguido A e os dois últimos amigos do arguido C – , que depuseram de forma natural e credível.

Face ao teor da motivação antecedente facilmente se conclui pela não prova da matéria inserta na alínea a) dos factos não provados.

No que respeita à matéria vertida na alínea b) dos factos não provados assim se concluiu em virtude do arguido B afirmar de forma peremptória que deu uma autorização genérica ao arguido A. para que este publicasse os seus cartoons, sendo certo que nem sempre tais desenhos eram vistos pelo director do jornal antes da publicação. Perante tais declarações e na ausência de prova em sentido diverso concluiu-se negativamente quanto à matéria agora em análise.

Já matéria descrita na alínea c) dos factos não provados resultou da ausência de prova nesse sentido, uma vez que tal factualidade não foi confirmada por nenhuma das testemunhas ouvidas a esse respeito».

III. Decidindo:

Uma primeira questão prévia:

Entende a assistente que o recurso interposto pelo arguido B, bem como a arguição de nulidade relativa à deficiente gravação da prova, são intempestivos.

Vejamos:

O recorrente B suscita a nulidade do julgamento (e dos actos subsequentes, dele dependentes), alegando a imperceptibilidade das declarações que ele próprio e o seu co-arguido A prestaram em audiência, na gravação que das mesmas foi feita. Tal imperceptibilidade impediu-o, segundo afirma, de exercer cabalmente o seu direito ao recurso, porquanto a reapreciação da prova produzida pressupõe a identificação dos excertos que impõem decisão diversa da recorrida o que, no caso, se mostra impossível de fazer.

Entende a assistente que a arguição dessa nulidade foi feita de forma extemporânea.

Historiemos os factos relevantes nesta matéria:

1. A sentença condenatória foi lida na sessão da audiência de julgamento que teve lugar em 06/06/2012, na presença dos arguidos, e nesse mesmo dia depositada.

2. Em 19/06/2012, o arguido B requereu cópia da gravação da audiência, fornecendo o respectivo suporte (fls. 542).

3. Tal cópia foi-lhe entregue em 21/06/2012 (fls. 543).

4. Em 10/07/2012 deu entrada em Tribunal o requerimento de interposição do recurso do arguido B, no qual e entre o mais, suscita a nulidade do julgamento por deficiente gravação das declarações prestadas por ele e pelo co-arguido A; com tal requerimento, juntou “DUC de multa por ser acto praticado no primeiro dia útil seguinte, ao abrigo do artº 145º do CPC, bem como o respectivo comprovativo de liquidação”.

Posto isto:

À data em que foi proferida a decisão, como à data em que foi interposto o recurso, o artº 411º, nº 1, al. b) do CPP dispunha que o prazo para interposição do recurso era de 20 dias, contando-se a partir do depósito da sentença na secretaria. Tendo o recurso por objecto a reapreciação da prova gravada, tal prazo era elevado para 30 dias – nº 4 desse preceito.

Como é sabido, entretanto entrou em vigor a Lei 20/2013, de 21/2 que, entre o mais, revogou o nº 4 do artº 411º do CPP e deu nova redacção ao seu nº 1, elevando para 30 dias o prazo de interposição do recurso.

A lei processual é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.

Ora, como elucidativamente se afirma no Ac. STJ de 19/1/2011 (rel. Sousa Fonte), www.dgsi.pt., “para efeitos de conjugação do regime dos recursos com o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), do CPP, o regime aplicável deve ser o que vigorava na data em que, pela primeira vez, se verificaram no processo, em concreto, os pressupostos do exercício do direito ao recurso, não havendo a considerar qualquer questão no âmbito da sucessão de regimes”.

É este o entendimento que enforma a solução adoptada no AUJ do STJ nº 4/2009, DR I série, de 19/3/2009, onde se escreve:

«No que respeita ao arguido, o momento relevante do ponto de vista do titular do direito ao recurso só pode ser, assim, coincidente com o momento em que é proferida a decisão de que se pretende recorrer, pois é esta que contém e fixa os elementos determinantes para formulação do juízo de interessado sobre o direito e o exercício do direito de recorrer.(…) Visto o fundamento pela posição do arguido, a decisão que conforma os termos, o conteúdo e, por decorrência, os efeitos — a concretização e o exercício — do direito de «recorrer das decisões que lhe sejam desfavoráveis», deve constituir também o momento determinante (uma sorte de «acto fundador») para a definição do regime e do sistema de recursos aplicável à decisão que estiver em causa. Proferida a decisão que pela sua natureza e conteúdo permite verificar a existência dos pressupostos para o exercício de direito, o direito de recurso a exercer relativamente à decisão que esteja em causa deverá ficar processualmente estabilizado nesse momento e com esse acto, com o sentido que então ganhar na integração do estatuto processual, pois só de tal modo se cumprirá a sua função como garantia integrante do direito de defesa”.

No seguimento deste entendimento jurisprudencial – que temos por pacífico – há que concluir que a alteração entretanto introduzida em matéria de (prazo de) recursos se não aplica na situação dos autos, porquanto a decisão recorrida foi proferida no domínio da “lei velha” e no domínio da mesma lei decorreu e terminou o prazo de recurso. E neste exacto sentido se decidiu no Ac. STJ de 18/10/2007 (rel. Simas Santos), www.dgsi.pt.: “o eventual alargamento da recorribilidade já não será susceptível de aplicação quando o prazo de interposição de recurso se esgotou no domínio da lei antiga” [3].

E assim sendo, vejamos se o recurso interposto e a arguição de nulidade foram deduzidos fora de tempo, como sustenta a assistente.

A considerar-se que o prazo de recurso era de 20 dias, o mesmo terminava em 28/06/2012, ou no dia 03/07/2012, com pagamento de multa [4]; a considerar-se que o prazo de recurso era de 30 dias, o mesmo terminava em 09/07/2012, ou no dia 12/07/2012, com pagamento de multa.

O recurso foi interposto em 10/07/2012, isto é, para além do prazo de 20 dias (ainda que com multa), dentro do prazo de 30 dias (com multa).

Tudo está, pois, em saber se ao recurso em causa há-de ser aplicado o prazo alargado, reservado ao que tem por objecto a reapreciação da prova - nº 4 do artº 411º do CPP -, ou não.

Diz a assistente que no caso em apreço não se pretende a reapreciação da prova gravada: os recorrentes limitam-se a arguir uma nulidade decorrente de uma alegada imperceptibilidade das declarações prestadas por si e pelo seu co-arguido A, sendo o próprio recorrente quem afirma que o recurso não tem por objecto a reapreciação da prova gravada, afirmando-se impedido de tal fazer, face à imperceptibilidade das gravações.

E é verdade.

Ainda assim, entendemos que o recurso em causa podia ser interposto no prazo de 30 dias (ou até ao 3º dia útil posterior ao termo do prazo, face ao disposto no artº 145º, nº 5 do CPC, ex vi do artº 107º-A do CPP, como sucedeu in casu).

E isto face, precisamente, à justificação apresentada pelo recorrente que é, simultaneamente, um dos fundamentos do recurso: a imperceptibilidade das declarações prestadas em audiência por si e pelo seu co-arguido A..

Publicitada a sentença, o arguido (como o magistrado do MºPº ou o assistente) analisa-a e ou se conforma com a mesma ou, não se conformando, formula a intenção de recorrer.

Nesta última situação, a sua discordância com a decisão recorrida pode ser restrita à qualificação jurídica dos factos ou à espécie ou medida da pena ou, bem assim, alargada à própria decisão proferida em matéria de facto.

Discordando da factualidade tida como assente e pretendendo impugná-la com reapreciação da prova gravada, o arguido terá necessidade de ouvir as gravações da audiência, a fim de dar integral cumprimento às exigências formuladas nos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP. E requererá, pois, as pertinentes cópias.

Sabe, nessa altura, o arguido que o prazo que dispõe para recorrer é o prazo alargado (de 30 dias) previsto no artº 411º, nº 4 do CPP [5].

E porque assim é, elaborará a sua motivação de recurso no primeiro ou no último dia do prazo disponível, conforme o que entender melhor para a defesa dos seus interesses.

Se, por hipótese, ao 24º ou 29º dia do prazo (dentro, portanto, dos 30 dias de que dispõe para impugnar a matéria de facto com pedido de reapreciação da prova gravada) se deparar com uma gravação de tal forma deficiente que o impeça de identificar os excertos dos depoimentos que, em sua óptica, impõem decisão diversa da recorrida em matéria de facto, que fazer?

Na interpretação normativa que faz a assistente, nada: não pode recorrer no prazo alargado de 30 dias, porque não pode pedir a reapreciação da prova gravada; não pode recorrer no prazo normal de 20 dias, porque entretanto já decorreu; não pode arguir a nulidade do julgamento porque, entretanto, já decorreram mais de 10 dias sobre a recepção das cópias da gravação.

Não nos parece que uma tal interpretação seja consentânea com o direito ao recurso constitucionalmente consagrado (artº 32º, nº 1 da CRP).

O normal, o curial, o expectável, é que a gravação de audiência seja feita com recurso a meios adequados, por pessoal habilitado a operá-lo, atento e diligente na verificação da qualidade da gravação. Trata-se de um processo no qual o magistrado do MºPº, o assistente ou o arguido não têm qualquer intervenção e por cujas falhas não podem, por isso, serem responsabilizados ou penalizados.

E por aqui se descortina já o entendimento que temos sobre o prazo durante o qual pode ser suscitada a nulidade relativa à deficiente gravação da audiência.

Nos termos do disposto no artº 363º do CPP, “as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade”.

À falta de gravação das declarações se há-de equiparar a gravação de tal forma deficiente que torne imperceptível o(s) depoimento(s), sob pena de violação do efectivo exercício do direito ao recurso em matéria de facto, como cremos ser jurisprudência pacífica.

Posto que tal nulidade não vem considerada como insanável pelo artº 119º do CPP ou por qualquer outra disposição legal, há-de a mesma ser considerada sanável e dependente de prévia arguição pelo interessado (artº 120º, nº 1 do CPP).

Como é sabido, há quem entenda que o prazo (de 10 dias – artº 105º, nº 1 do CPP) para arguir a nulidade se inicia a partir de cada sessão de julgamento, fazendo recair sobre os intervenientes processuais um especial dever de fiscalização da regularidade das gravações efectuadas pelo funcionário judicial [6].

Não concordamos.

E sufragamos o entendimento que nesta Relação se vem consolidando [7], no sentido de que a arguição de nulidade decorrente de deficiente gravação da prova pode ser feita no prazo do recurso que visa a reapreciação de prova gravada [8].

Com efeito – e como elucidativamente se afirma no Ac. RE de 14/2/2012 (rel. António Latas), www.dgsi.pt., “conforme se verifica na generalidade dos casos, o interessado apenas solicita cópia da gravação com vista à interposição de recurso em matéria de facto, hipótese em que a nulidade por deficiência da gravação poderá constituir um dos fundamentos do recurso da decisão final, nos termos do art. 410º nº3 do CPP. Neste caso, a nulidade não deve considerar-se sanada, conforme exigência expressa do preceito, pois a sanação da nulidade deve aferir-se no momento em que se inicia o prazo de interposição do recurso e não em qualquer outro momento, pois o que a lei pretende é permitir ao interessado que em vez de invocar a nulidade perante o tribunal de julgamento o possa fazer perante o tribunal de recurso, caso em que passa a constituir um dos fundamentos de recurso, a cujo regime fica sujeito. A invocação de nulidade não sanada em sede de recurso, constitui uma especialidade do regime de arguição das nulidades relativas ou sanáveis, que afasta o regime geral no que respeita ao prazo e respectivo dies ad quem. A arguição de nulidade por deficiência de gravação da audiência que não se encontra sanada ao iniciar-se o prazo de recurso fica, antes, sujeita ao prazo aplicável ao recurso em causa, na medida em que passa a constituir um dos seus fundamentos, como aludido”.

De outro lado, absurdo seria que no prazo de interposição do recurso se interpusesse um novo e distinto prazo, agora para arguir uma nulidade. É que, como se refere no Ac. RP de 3/11/2010 (rel. Olga Maurício), «se quer a arguição da nulidade por gravação deficiente, quer o recurso da decisão da matéria de facto exigem a audição da prova oral produzida em audiência, é ilógico exigir aos intervenientes que ouçam as gravações primeiro para um fim e, depois, as “reouçam”, agora para outro fim. E nem se diga que o recorrente avisado deve fiscalizar, de imediato, a qualidade das gravações efectuadas, isto para que não seja confrontado, de surpresa, e já para além do prazo de 10 dias, com uma má gravação. Primeiro, se o prazo para recorrer é de 30 dias, este prazo abrange, evidentemente, o trigésimo dia: o acto praticado no último dia é tão válido como o que é praticado no primeiro. Depois, é incumbência dos tribunais a realização das gravações da prova produzida em audiência e a gravação tem que ser feita nas devidas condições, para que os objectivos visados – audição dos mesmos -, sejam alcançados, tudo como diz a lei. Exigir aos intervenientes que, antes de tudo o mais, fiscalizem esta qualidade significa admitir a má qualidade do serviço desenvolvido, por um lado, e onerar quem não está incumbido de o fazer com mais este ónus, em que se traduziria um tal controlo (…). O legislador deve ter-se por razoável, eficaz e simples, e a resposta a todas estas exigências obtém-se fazendo coincidir o prazo para arguir a nulidade por gravação deficiente das provas produzidas em audiência com o prazo para o recurso da decisão sobre a matéria de facto, quando se requeira a reapreciação da prova gravada».

Dir-se-á que um tal entendimento desresponsabiliza totalmente os intervenientes processuais do controlo oportuno dos vícios [9]. Mas este reparo só seria aceitável se responsabilidade alguma tivessem tais intervenientes no processo de gravação das declarações produzidas em audiência. O que, manifestamente, não é o caso.

É, assim, de concluir pela tempestividade do recurso e da arguição de nulidade.

Uma segunda questão prévia:

Ambos os recorrentes alargam a sua discordância relativamente à decisão recorrida à condenação de que foram alvo, na procedência parcial do pedido cível.

Recordemos: a demandante peticionou a condenação solidária dos demandados/arguidos no pagamento da quantia de € 35.000,00, a título de compensação por danos não patrimoniais. A final, a Mª juíza a quo condenou solidariamente todos os arguidos, na procedência parcial do pedido, a pagarem à demandante a quantia de € 2.500,00.

Estatui-se no artº 400º, nº 2 do CPP que “o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.

A alçada do tribunal de 1ª instância é de € 5.000,00 – artº 24º, nº 1 da L. 3/99, de 13/1, na versão que lhe foi dada pelo DL 303/2007, de 24/8.

Assim, embora o valor do pedido cível (€ 35.000,00) exceda o valor de tal alçada, certo é que o valor da sucumbência (€ 2.500,00) não é superior (antes, igual) a metade da mesma.

Consequentemente, não se tomará conhecimento do recurso nessa parte, sem prejuízo, naturalmente, do disposto no nº 3 do artº 403º do CPP.

Posto isto:

Maugrado a ordem pela qual foram elencadas as questões a decidir, naturalmente que começaremos pela suscitada imperceptibilidade da gravação das declarações prestadas em audiência pelos arguidos A e B (suscitada no recurso deste último).

É que, como nos parece evidente, procedendo a nulidade arguida, prejudicadas ficam as demais questões suscitadas em ambos os recursos: anulado, ainda que parcialmente, o julgamento, inválidos ficarão os actos subsequentes e dele dependentes, nomeadamente a própria sentença recorrida.

E entrando, então, na apreciação da questão supra identificada sob a al. c): a arguida nulidade do julgamento, decorrente da deficiente gravação das declarações dos arguidos A e B.

Como supra referimos, à falta de gravação das declarações há-de equiparar-se a gravação de tal forma deficiente que torne imperceptível o(s) depoimento(s), sob pena de violação do efectivo exercício do direito ao recurso em matéria de facto. Ou seja: a imperceptibilidade das declarações gravadas – e que sejam, naturalmente, necessárias ao exercício do direito de recurso - consubstancia nulidade, sanável com a repetição, parcial, do julgamento.

Diz a Digna Magistrada do MºPº na 1ª instância que “os depoimentos dos arguidos B e A, embora apresentem um ruído de fundo que nos parece provocado pela forma como os arguidos se dirigiam ao aparelho captador de som, são perfeitamente audíveis e inteligíveis, não se verificando a nulidade invocada, nem havendo razão para a sua repetição”.

Salvo o devido e merecido respeito, as declarações em causa são tudo menos “perfeitamente audíveis e inteligíveis”.

Procedendo à audição da gravação - com recurso a auscultadores de boa qualidade – o melhor que se pode dizer é que 10 a 15% das citadas declarações são audíveis; no restante, o ruído de fundo é de tal ordem que impede uma percepção, perfeita ou imperfeita, daquilo que é declarado pelos arguidos, impossibilitando, mesmo, determinar o sentido dos seus depoimentos. O pouco que se ouve é desgarrado do respectivo contexto e manifestamente insuficiente em ordem a permitir uma válida impugnação da matéria de facto, porquanto impossibilita o cumprimento dos requisitos expressos nos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP.

Ora, o recorrente B pretende, como afirma, impugnar a matéria de facto apurada nos pontos 18 (parcialmente), 19, 20, 27 e 28, considerando essenciais a tal impugnação as declarações que ele e o seu co-arguido A prestaram, por só através delas se poder determinar – em sua óptica – a verificação do elemento subjectivo do tipo de crime por cuja autoria foi condenado.

Imperceptíveis tais declarações, impossibilitada fica a sua tarefa de recorrer em matéria de facto.

Verificada está, pois, a arguida nulidade.

Procedente a respectiva arguição, há que declarar a nulidade do julgamento, obviamente limitada à parte relativa às declarações deficientemente gravadas [10]. O que implica, claro, a repetição da prova oral produzida, cuja qualidade de gravação não permite a sua correcta audição, isto é, a repetição das declarações dos arguidos A e B. Naturalmente, produzidos (e devidamente gravados) os novos depoimentos, repetir-se-ão os actos processuais subsequentes (alegações orais – artº 360º do CPP -, últimas declarações dos arguidos – artº 361º, idem – e nova sentença) porquanto todos aqueles actos, posteriores à declarada nulidade, se mostram inválidos, porque dela dependentes – artº 122º, nº 1 do CPP.

Na impossibilidade de repetição pela Mª juíza que proferiu a sentença recorrida, proceder-se-á a novo e total julgamento [11].

E assim decidindo, prejudicado fica o conhecimento das demais questões suscitadas nos dois recursos.

IV. São termos em que acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido B, declarando parcialmente nulo o julgamento efectuado nestes autos (e os termos subsequentes, dele dependentes), ordenando a reabertura da audiência de julgamento, pela mesma juíza que produziu a sentença recorrida, a fim de nela serem novamente ouvidos os arguidos A e B, seguindo-se os demais termos processuais subsequentes, considerando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas neste recurso e no recurso interposto pelo arguido C.

Sem custas.

Évora, 5 de Novembro de 2013 (processado e revisto pelo relator)

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Sénio Manuel dos Reis Alves

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Gilberto da Cunha

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[1] - Sumariado pelo relator

[2] Obviamente, sem prejuízo das questões que oficiosamente importa conhecer, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, DR 1ª Série, de 28/12/1995).

[3] Assim o decidiu o relator deste acórdão, na decisão sumária proferida no Proc. 24/10.0IDPTG.E1, em 4/4/2013, www.dgsi.pt.; no mesmo sentido, cfr. Ac. RL de 8/5/2013, proferido no Proc. 2207/10.3TDLSB.L1-3, www.dgsi.pt.

[4] Descontando o prazo que mediou entre o pedido de cópia da gravação e a sua entrega.

[5] Referimo-nos, sempre, à versão anterior à que lhe foi introduzida pela Lei 20/2013, de 21/2, vigente à data em que foi depositada a sentença recorrida, como à data em que foi interposto o recurso.

[6] Neste sentido, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do CPP”, 4ª ed. 943: “A nulidade sana-se se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de 10 dias (artº 105º, nº 1) a partir da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido (…). Se (a) audiência de julgamento se prolongar por várias sessões, o prazo conta-se a partir de cada sessão da audiência (…)”.

[7] E desta forma abandonamos o entendimento sustentado pelo relator deste acórdão no aresto proferido em 27/9/2011, proferido no Proc. 443/10.1GBLLE.E1. Aí sustentámos que a nulidade em causa deveria ser arguida nos 10 dias subsequentes à entrega da cópia referida no artº 101º, nº 4 do CPP (no mesmo sentido, cremos, vão os Acs. RE de 20/1/2011, Proc. 67/07.0GCSTR.E1, RP de 29/9/2010, Proc. 26/09.9TAMTR.P1 e da RL de 24/1/2012, Proc. 143/11.5PGLRS.L1-5, todos in www.dgsi.pt), se esse prazo terminasse antes de interpor o recurso da decisão final, deveria fazê-lo perante o juiz da 1ª instância; terminando no mesmo dia ou depois, deveria fazê-lo nas alegações de recurso e como fundamento do mesmo, sendo lícito ao tribunal ad quem o respectivo conhecimento, posto que se trataria de nulidade não sanada (artº 410º, nº 3 do CPP).

[8] Cfr., neste sentido e entre outros, os Acs. RC de 7/9/2011, Proc. 33/11.1GTCTB.C1 e de 1/6/2011, Proc. 1/06.5IDGRD.C1, RL de 19/5/2010, Proc. 59/04.1PDCSC.L1-3 e de 26/1/2012, Proc. 281/08.1TAALM.L2-9, RP de 29/9/2010, Proc. 1392/01.0TAVNG.P1 e de 3/11/2010, Proc. 6751/06.9TDLSB.P1, RE de 14/2/2012, Proc. 90/08.8GAGLG.E1, de 4/6/2013, Proc. 299/09.7IDSTB-D.E1, de 26/2/2013, Proc. 445/12.3GDPTM.E1 e de 8/11/2011, Proc. 431/02.1TAFAR.E1, todos in www.dgsi.pt .

[9] O STJ, no seu Ac. de 24/2/2010, Proc. 628/07.8S5LSB.L1.S1 (rel. Maia Costa), www.dgsi.pt., entendeu que a redacção dada ao artº 101º, nº 3 do CPP pela Lei 48/2007, de 29/8, permitindo às partes o acesso atempado à documentação da audiência “atribui-lhes concomitantemente a responsabilidade de um controlo em tempo oportuno dos vícios. O interessado deverá, pois, solicitar atempadamente cópia das gravações e proceder de imediato à audição das mesmas. Caso o não faça, adopta um procedimento negligente que não recebe protecção legal”.

[10] Em obediência ao princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais inválidos, previsto no artº 122º, nº 1 do CPP – neste sentido, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., 944.

[11] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, op. e loc. cit. e Ac. RC de 9/7/2003, CJ ano XXVIII, t. IV, 36.