Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
282/16.6T8FAR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: ACIDENTE IN ITINERE
ACIDENTE DE TRABALHO
QUALIFICAÇÃO
Data do Acordão: 06/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Nos termos do art. 9.º, nºs. 1, al. a), 2, al. b) e 3, da LAT, o que a lei protege é o trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, no percurso normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador desde que inexistam interrupções ou desvios, sendo que, quando estes ocorram, não deixa de se considerar acidente de trabalho se os mesmos tiverem sido determinados para satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
II – Não definindo a lei o que seja “necessidade atendível” do trabalhador, o que importa apurar sempre que existam interrupções ou desvios no percurso normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador é se, no concreto contexto, segundo um critério de adequação social, atendendo a regras de razoabilidade, se tratou de uma necessidade compreensível e ainda com conexão com a relação laboral.
III – O sinistrado que, na véspera do acidente, trabalhou como condutor de pesados de mercadorias até de madrugada e, decorridas as necessárias horas de descanso, regressou ao seu local de trabalho ainda da parte da manhã, tendo saído do mesmo por volta das 17h15, encontra-se numa situação de défice de períodos de repouso, sobretudo, de lazer, dos quais faz parte o convívio social, que constitui uma necessidade incontornável do ser humano.
IV – Quando este sinistrado, após sair do local de trabalho, efectua um desvio para ir conversar com um amigo, durante cerca de 20 minutos, e já após ter retomado o seu percurso habitual, sofre um acidente, é de considerar este acidente como de trabalho, pois não só o mesmo manteve a conexão com a relação laboral havida, como o desvio verificado foi determinado para satisfação de uma necessidade perfeitamente compreensível e adequada, pelo que, atendível. (sumário da relatora).
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A… (A.) veio, nos termos dos arts. 99.º, n.º 1 e 101.º, ambos do Código de Processo do Trabalho, participar acidente de trabalho contra a seguradora Companhia de Seguros …. (R.), solicitando que o acidente que sofreu seja declarado como acidente de trabalho, que seja encontrado o grau de incapacidade e indemnizado de todos os danos sofridos.
Para o efeito alegou, em síntese, ter sofrido acidente de viação, quando conduzia a sua viatura automóvel, no dia 13-08-2013, cercas das 18h00, na EN. 270 ao Km 36.5, no Sítio de Apra, Concelho de Loulé, quando se deslocava do trabalho para a sua residência, sendo que o local onde ocorreu o sinistro fica no trajecto que se situa entre o local de trabalho e a sua residência.
Mais alegou que, à data, a sua entidade patronal era a Transportadora … e que o sinistrado exercia a profissão de motorista de pesados, sendo que a sua entidade patronal tinha a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a Companhia de Seguros ...
Alegou, por fim, que sofreu lesões graves e que o acidente foi participado pela entidade empregadora à seguradora, apesar de esta nunca ter participado o sinistro ao tribunal respectivo e nunca lhe ter pago qualquer prestação, uma vez que não aceitou a caracterização do acidente como de trabalho ou o nexo causal entre o acidente e as lesões.
Em 16-12-2016, foi realizado exame médico ao A., no Gabinete Médico-Legal de Faro, tendo-lhe sido atribuída uma ITA entre 13-08-2013 e 31-12-2013 e, após a alta, uma IPP de 2%.
Realizada a tentativa de conciliação, não foi possível conciliar as partes, não concordando o A. nem com a ITA, nem com a IPP que lhe foi atribuída, e não reconhecendo a R. a existência e caracterização do acidente como de trabalho, não aceitando a responsabilidade emergente do sinistro, nem o resultado da perícia médica, por não aceitar o acidente como sendo de trabalho.
Na PI que apesentou, o A. alegou o que já havia alegado, acrescentando ainda, em síntese, que o local onde ocorreu o despiste fica situado no trajecto normalmente utilizado pelo A. no seu regresso a casa após o período de trabalho, sendo que no dia do acidente saiu do local de trabalho por volta das 17h40, tendo terminado a sua jornada de trabalho às 17h30.
Alegou ainda que a R. não lhe pagou as despesas que efectuou para realização de consultas e exames de diagnóstico clínico em consequência do acidente.
Terminou pedindo que fosse declarado que o acidente dos autos é um acidente de trabalho e que, em consequência, fosse a R. condenada a pagar ao A.:
- a pensão anual e vitalícia remível que lhe for devida a partir de 31-12-2013;
- o montante de €5.682,05 a título de ITA desde 13-08-2013 a 30-09-2014;
- o montante de €312,80 relativo a despesas com deslocações para exames e diagnósticos clínicos e idas a tribunais obrigatórias;
- juros de mora, vencidos e vincendos sobre a quantia em dívida, à taxa legal, e até integral pagamento;
- custas e procuradoria condigna e demais encargos até final.
A R. apresentou contestação, pedindo, a final, que a acção fosse julgada improcedente, devendo ser absolvida do pedido, com as consequências legais.
Em síntese, alegou que não aceita qualquer responsabilidade pela reparação das consequências do acidente, em virtude de este não poder ser caracterizado como acidente de trabalho, visto que, no dia em questão, o A. terminou o seu período de trabalho pelas 17h00 e saiu das instalações da empresa cerca das 17h15, tendo, nessa altura, se dirigido a Loulé, às instalações da empresa M…, Lda, sitas na …, para falar com um amigo que aí trabalhava, onde permaneceu cerca de 20 minutos, altura em que iniciou a deslocação, conduzindo o seu veículo automóvel, para São Brás de Alportel, onde pretendia depositar dinheiro numa caixa automática de uma dependência bancária nessa localidade, e foi nessa deslocação que o referido veículo se despistou, cerca das 18h00, invadindo a berma direita da faixa de rodagem e embatendo numa ponte aí existente, resultando, desse embate, as lesões sofridas pelo A..
Alegou, por fim, que atendendo à hora a que ocorreu o acidente de viação, à actividade desenvolvida pelo sinistrado na hora que o antecedeu e ao propósito da sua deslocação, não pode esse acidente ser caracterizado como acidente de trabalho, quer por não ter ocorrido no tempo e lugar do trabalho, quer por não ter ocorrido no trajecto entre o seu local de trabalho e a sua residência, quer porque o sinistrado nem sequer se dirigia para a sua residência e nem provinha do seu local de trabalho.
O A. foi inicialmente convidado a aperfeiçoar a sua PI, de forma a descrever qual o percurso habitual que fazia de casa para o trabalho e do trabalho para casa, bem como as razões do percurso que fez no dia do acidente, e ainda para concretizar os dias em que realizou consultas e exames de diagnóstico clínico, bem como o número de quilómetros de ida e volta e locais onde os realizou, tendo na primeira PI que apresentou narrado o segundo dos apectos solicitados, pelo que foi novamente convidado a descrever o primeiro dos aspectos, o que veio a fazer na segunda PI aperfeiçoada que apresentou. Nesta última PI. o A. alegou ainda ter feito um pequeno desvio ao trajecto normal por determinação da entidade patronal.
A R. impugnou ambas as PI aperfeiçoadas, mais alegando que os factos apresentados na última PI, por serem factos inteiramente novos, não podiam ser admitidos.
Proferido despacho saneador, foi rejeitada a admissão dos factos novos constantes da última PI apresentada, foi discriminada a factualidade assente, bem como a base instrutória controvertida, tendo sido determinado que o valor da causa seria fixado a final.
Após a realização da audiência de discussão e julgamento, foi dada resposta em 23-11-2018 à matéria de facto e em 21-12-2018 foi proferida sentença, com a decisão seguinte:
Nestes termos e por tudo o exposto, julga-se improcedente a presente acção e, em consequência, absolve-se a R. Companhia de Seguros … de tudo o peticionado.
Fixa-se o valor da causa em € 5.000,01.
Sem custas.
Não se conformando com a sentença, veio o A. interpor recurso de Apelação, terminando as suas alegações com as conclusões que se seguem:
A. O douto Tribunal ad quo decidiu pela não qualificação do acidente ocorrido no dia 13 de Agosto de 2013, na Estrada Nacional N." 270, pelas 18:00h, ao Km 36,5, no Sítio de Apra, freguesia de S. Clemente, concelho de Loulé, sofrido pelo ora Recorrente, como acidente de trabalho in itinere, alegando, para tanto e em síntese, que, atendendo ao facto de o Recorrente haver interrompido o seu percurso por cerca de 20 minutos para conversar com um amigo, não poderia ser-lhe atribuída tal qualificação.
B. Sucede que, ao decidir neste sentido, cometeu o tribunal de que ora se recorre, salvo o devido respeito e melhor opinião, um verdadeiro erro de julgamento, consubstanciado numa deficiente aplicação do Direito aos factos dados como provados.
C. Violou, assim, o tribunal ad quo, o disposto no artigo 9° da Lei n° 98/2009, de 04 de Setembro, pela sua incorrecta interpretação e consequente não aplicação aos factos dados como provados, como, salvo melhor entendimento, se impunha.
D. Na verdade, da análise da factualidade dada como assente, retira-se que o ora Recorrente era trabalhador da empresa Transportadora …, prestando serviços de motorista profissional de automóveis pesados de mercadorias, e que, na data e hora do acidente, se encontrava em deslocação para casa, vindo do local de trabalho, utilizando um trajecto habitual.
E. Ficou, igualmente, provado, que o Recorrente, à data do acidente, havia saído mais cedo do local de trabalho (cerca das 17:15h) e que o acidente ocorreu cerca de 45 minutos depois, não se tendo esgotado, ainda, o período de tempo habitualmente gasto por si na viagem trabalho-casa/casa-trabalho (50/55 minutos).
F. Por outro lado, deu o tribunal como assente que o Recorrente, antes da ocorrência do acidente em causa, havia interrompido o percurso que tomava até casa, durante 20 minutos, para conversar com um amigo.
G. Ora, atendendo a tal interrupção no percurso, entendeu o mesmo tribunal que não se aplicaria, ao caso dos autos, a extensão do conceito de acidente de trabalho plasmada no artigo 9.° da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, por, em suma, ter considerado que a mesma não consubstanciava a satisfação de uma necessidade atendível do trabalhador ora Recorrente.
H. Não concordando com tal veredicto, apresenta o Apelante o presente recurso, no qual apresenta as razões da sua discordância, que se poderão sintetizar como segue:
I. Estipula o artigo 9°, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do referido diploma que se consideram acidentes de trabalho in itinere aqueles que sucedam no percurso de ida para o local de trabalho ou no regresso deste e que se verifiquem nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador.
J. Destarte, a lei prevê dois requisitos cumulativos para que um acidente de trabalho in itinere possa caracterizar-se como tal: o requisito do trajecto normalmente utilizado e o requisito do tempo habitualmente gasto.
K. Prima facie, da factualidade dada como assente resulta, como bem conclui o douto tribunal ad quo, que o caminho percorrido pelo Recorrente na data do acidente, se afigura como um trajecto normal utilizado pelo mesmo, em alternativa a um outro, sendo que despendia, tanto num como noutro, aproximadamente o mesmo período temporal.
L. Assim, o percurso que o Recorrente levava na data do acidente era, de acordo com a douta sentença, um dos dois percursos alternativos de que dispunha para se deslocar das instalações da empregadora até à sua casa e, bem assim, desta última àquelas primeiras.
M. O douto tribunal recorrido entendeu, porém, que o facto de o trabalhador Recorrente ter parado para conversar com um amigo, durante 20 minutos (que acabaria, na sua interpretação, por significar um aumento do tempo gasto na deslocação), não se afigurou como uma interrupção do percurso para satisfação de uma sua qualquer necessidade atendível, pelo que afastou a aplicação ao caso concreto dos n.os 2 e 3 do artigo 9° do referido diploma legal.
N. Assim, fundamenta a sua decisão final, concluindo: "(...) Deste modo, ao tempo normal da deslocação não se pode fazer acrescer o tempo da interrupção do trajecto, uma vez que a interrupção do trajecto não se pode dier que tenha sido para satisfação de necessidades atendíveis e reflecte-se sobre o tempo do percurso percorrido que é interrompido. Pode comparar-se o tempo do percurso normal das deslocações do sinistrado entre a residência e o seu local de trabalho, 50 a 55 minutos} e determinar o tempo da interrupção como tendo sido 20 minutos, para se afirmar que o acidente ocorreu fora do tempo da deslocação (...)".
O. No que diz respeito àquele afastamento, considera o Apelante que a matéria dada como provada e, bem assim, aquela que se não logrou provar, impunha decisão diversa.
Senão, vejamos:
P. Atenta a factualidade assente, designadamente, sob as designações A), B), F), N), O), T), W), X), AA), BB), CC) e GG), não poderia, senão por mera suposição, afirmar, o douto tribunal ad quo, que o acidente ocorreu fora do tempo da deslocação.
Q. Na verdade, como se deu como provado, o tempo habitualmente gasto pelo Recorrente na viagem do trabalho para casa era de 50/55 minutos, pelo que, considerando que se deu como igualmente provado que o acidente ocorreu cerca de 45 minutos depois de aquele ter abandonado o local de trabalho, apenas se poderá afirmar, com certeza, que ainda se não havia esgotado todo o tempo geralmente gasto até casa.
R. Assim, objectivamente, o acidente ocorreu dentro do período de tempo habitualmente gasto pelo Recorrente no caminho do trabalho para casa e num trajecto por si habitualmente usado, razão por que não se compreende a decisão de que ora se recorre de afastar a aplicabilidade do artigo 9.°, n." 2, da referida lei dos acidentes de trabalho.
S. Destarte, parece-nos, salvo o devido respeito, que o tribunal ad quo se pronunciou em violação das regras da interpretação e aplicação das normas do Direito, pois que se impunha, no caso dos autos, atendendo à factualidade assente, a qualificação jurídica do acidente dos autos como acidente de trabalho in itinere, uma vez cumpridos os requisitos cumulativos referidos supra.
T. De outra banda, ao não qualificar como necessidade atendível o facto de o Recorrente ter interrompido o percurso para conversar com um amigo, durante 20 minutos, também o douto tribunal cometeu, salvo melhor entendimento, um erro de julgamento.
U. Em primeiro lugar, porque não consta, da factualidade dada como provada, qualquer referência ao conteúdo ou motivação de tal conversa que pudesse levar a concluir pela desnecessidade de o Recorrente ter interrompido o percurso para a ter.
V. Em segundo, porque, mesmo que a conversa se tivesse consubstanciado numa mera conversa de circunstância (o que se não logrou provar), os condicionalismos em que o Recorrente prestava o trabalho à sua entidade empregadora, nomeadamente o horário de trabalho, que lhe deixava poucas horas livres, devido ao tipo de serviço prestado (motorista de automóveis pesados de mercadorias), exigiam que a sua gestão das relações familiares e sociais sofresse consideráveis restrições, o que, na esteira do defendido pelo Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/12/2018, supra citado e que merece o nosso aplauso, poderia e deveria classificar como "necessidade atendível" para o ora Recorrente o facto de parar, quando livre, em deslocação para casa, para ver e conversar com um seu amigo próximo.
W. Com efeito, como bem sublinha o referido aresto, "(…) Uma tal organização dos tempos de trabalho, que permite ao empregador manter a laboração 24h/24h é objetivamente condicionadora da vivência pessoal dos trabalhadores pela mesma abrangidos e esse condicionamento não pode deixar de ser ponderado na apreciação das interrupções e desvios que sejam efetuados nos trajetos dos trabalhadores de e para o trabalho(...)". Cfr. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa, de 05112/2018, Processo N.O 4899116.0T8LRS.Ll, Relator: Sérgio Almeida, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
X. Acresce que, como oportunamente se expôs, a amplitude concedida ao conceito de acidente de trabalho in itinere ao longo das diversas alterações legislativas, como bem reconhece a douta sentença de que se recorre, se radica na ideia do risco económico ou de autoridade, i. e, na ideia de que a reparação dos danos causados ao trabalhador por conta da prestação de trabalho não deverão cingir-se àqueles resultantes da sua prestação directa, incluindo também aspectos já não directamente ligados a ela, tais como os acidentes de trajecto.
Y. Nesta senda, pretendeu o legislador, ao alargar o âmbito de aplicação do artigo 9.0 referido a situações fácticas diversas, - incluindo certos casos em que existem interrupções de trajecto para satisfação de necessidades consideradas, em face do caso concreto, como atendíveis - conferir uma maior protecção ao trabalhador aquando da prestação de trabalho, quer seja antes, durante ou depois dessa mesma prestação directa.
Z. Ora, tendo admitido tudo isto, não poderá reputar-se senão como contraditória a decisão tomada pelo douto tribunal ad quo, ao não considerar protegido pelo âmbito de aplicação material daquela norma o caso dos autos.
AA. Por tudo quanto se expendeu, considera o ora Apelante que o douto tribunal de que se recorre incorreu, ao não subsumir o acidente dos autos ao previsto no artigo 9°, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, num verdadeiro erro de julgamento, tendo-se violado, portanto, a letra e o espírito deste normativo legal.
Termos em que, deve o presente recurso proceder, revogando-se a decisão absolutória, substituindo-se por outra que condene a Recorrida a reconhecer como acidente de trabalho in itinere o dos autos, com todas as legais consequências.
A R. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, devendo a sentença recorrida ser integralmente mantida.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, e, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso, devendo ser mantida na íntegra a decisão recorrida.
Oferecida resposta ao parecer pelo A., veio o mesmo pugnar pela procedência do recurso.
Tendo sido mantido o recurso, foram colhidos os vistos legais, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objecto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo de Trabalho, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Preenchimento dos requisitos previsto na lei para que se considere um acidente de trabalho in itinere;
2) Necessidade atendível; e
3) Legais consequências de ser um acidente de trabalho in itinere.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
A) No dia 13 de Agosto de 2013, pelas 18.00 horas, na Estrada Nacional Nº. 270, ao km 36,5, no Sítio de Apra, freguesia de S. Clemente, concelho de Loulé, o A. conduzia a sua viatura particular, ligeiro de passageiros, no sentido Loulé – S. Brás de Alpoertel, quando se despistou, tendo ido embater com a viatura na parede de uma ponte existente no local;
B) O A. prestava funções de motorista profissional de automóveis pesados de mercadorias sob as ordens, direcção e fiscalização de Transportadora …, com sede no Sítio do Patacão;
C) O A. prestava serviço para a Transportadora …, no Sítio do Patacão, freguesia de S. Pedro, concelho de Faro;
D) O A. morava no Sitio da …, freguesia de Ameixial, concelho de Loulé;
E) Auferia nessa data a retribuição anual de € 584,00, por 14 meses, acrescida de € 113,00 relativo a subsídio de alimentação, num total de € 9.419,00 anual;
F) A Transportadora …, tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a Ré …. mediante acordo de seguro titulado pela apólice n.º 201469064, relativamente à retribuição anual de € 584,00, por 14 meses, acrescida de € 113,00 relativo a subsídio de alimentação, num total de € 9.419,00;
G) O referido em A) foi participado pela Transportadora …. à R. no dia 16 de Agosto de 2013;
H) A R. prestou assistência médica ao A.;
I) Como consequência do referido em A), o A. esteve internado durante 15 dias no Hospital Distrital de Faro, com perda de consciência (coma) durante 10 dias;
J) O A. recebeu alta dos serviços médicos da R. em 31,12,2013;
K) No exame a que foi submetido no Gabinete Médico-Legal de Faro, em 16 de Dezembro de 2016, o Exmº. Perito médico atribuiu ao A. uma incapacidade Parcial Permanente de 2% a partir da data em que teve alta, 31 de Dezembro de 2013;
L) Na tentativa de conciliação realizada no dia 11 de Julho de 2017, a Ré não reconheceu a existência e caracterização do acidente como de trabalho, nem o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, não aceitando a responsabilidade nem o resultado da perícia médica efectuada;
M) O A. nasceu a 05 de Outubro de 1966;
N) No dia em que ocorreu o referido em A), o A. havia saído do trabalho, no Sítio do Patacão, após a sua jornada de trabalho;
O) Como consequência necessária e directa do referido em A), o A. sofreu politraumatismos com rotura do fígado e baço, tendo sido operado ao baço e fígado no Hospital Distrital de Faro;
P) O A. esteve de baixa médica e com ITA desde o ocorrido em A) até 31 de Dezembro de 2013;
Q) Após a alta ocorrida em 31.12.2013, o A. ficou afectado de incapacidade permanente parcial;
R) Em deslocações obrigatórias que teve de fazer ao Tribunal gastou o A. € 46,80;
S) O A. só recomeçou a trabalhar em Outubro de 2014, pois até essa data não tinha equilíbrio;
T) O A. cumpria um horário de trabalho das 08:00h às 13:30h e das 15:30h às 18:00h sempre que se encontrava nas instalações da entidade patronal, sitas em Patacão, Faro;
U) Sendo diverso o seu horário quando se encontrava no exterior dessa instalações, conduzindo veículos pesados, e definido por forma a cumprir tempos de condução e repouso;
V) No dia 13 de Agosto de 2013, o A. apresentou-se nas instalações da Transportadora …, ainda da parte da manhã, depois de ter cumprido o tempo de repouso subsequente à condução que efectuara na véspera à noite e que se prolongara pela madrugada desse dia;
W) Da parte da tarde desse dia, e porque não estava prevista a realização de qualquer outro trabalho, o A. foi autorizado a sair mais cedo, terminando o seu período de trabalho pelas 17h e saindo das instalações da empresa, cerca das 17:15h;
X) Depois de sair das instalações da Transportadora …, o A. dirigiu-se a Loulé, às instalações da empresa “M…, Lda.”, sitas na Rua da Marroquia, para falar com um amigo (JM…) que aí trabalhava;
Y) Depois de conversar com esse amigo, nas referidas instalações e durante cerca de 20 minutos, o A. iniciou a deslocação, conduzindo o seu veículo automóvel, para São Brás de Alportel, onde pretendia depositar dinheiro numa caixa automática de uma dependência bancária desta localidade;
Z) E foi nessa deslocação que o veículo conduzido pelo sinistrado se despistou, cerca das 18:00h, invadindo a berma direita da faixa de rodagem e embatendo numa ponte aí existente, ao Km 36,500 da Estrada Nacional 270 (sentido Loulé > São Brás de Alportel);
AA) A casa do A. fica situada em Ameixial num paralelo a cerca de 50km a Norte do paralelo correspondente ao seu local de trabalho, que se situa no Patacão;
BB) O A., de casa para o trabalho e do trabalho para casa, seguia dois percursos;
CC) O percurso que fazia no dia do referido em A) e que passava pela Estrada Nacional Nº. 125 e Municipal 125-4, do Patacão até Loulé; Estrada Nacional 270, de Loulé até São Brás de Alportel e E.N. nº 2, de São Brás de Alportel até ao Ameixial;
DD) O percurso alternativo passava pela E.N. 125 e Municipal 125-4, do Patacão até Loulé; E.N. 396, de Loulé a Eira da Cevada; E.N. 124 de Eira da Cevada ao Barranco Velho e E.N. nº 2 do Barranco Velho ao Ameixial;
EE) De casa para o trabalho fazia o A. os mesmos percursos só que no sentido inverso;
FF) O percurso referido em CC), supra tem 58 km e o percurso mencionado em DD) supra tem 52 km;
GG) O A. gasta, sensivelmente, o mesmo tempo, em ambos os percursos, ou seja, entre 50 e 55 minutos, tanto quando os inicia em casa como quando os inicia no local de trabalho;
HH) No percurso que o A. seguia aquando do acidente dos autos, são utilizadas quatro estradas (125; 125-4; 270 e 2), no outro alternativo são utilizadas cinco (125; 125-4; 396; 124 e 2);
II) No percurso que o sinistrado fazia no dia do acidente em causa, embora com cerca de 6 km mais, gasta-se, normalmente, menos um pouco de tempo, dado que tem que utilizar menos estradas e consequentes cruzamentos e entroncamentos.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) se mostram preenchidos os requisitos previstos na lei para que se considere um acidente de trabalho in itinere; (ii) se existiu uma necessidade atendível; e (iii) no caso de estarmos perante um acidente de trabalho, quais são as legais consequências.
1 – Preenchimento dos requisitos previsto na lei para que se considere um acidente de trabalho in itinere
De acordo com as conclusões formuladas pelo Apelante, o tribunal a quo fez uma incorrecta aplicação do disposto no art. 9.°, n.º 1, al. a) e n.º 2, da LAT, uma vez que tal disposição legal considera acidentes de trabalho in itinere aqueles que sucedam no percurso de ida para o local de trabalho ou no regresso deste e que se verifiquem nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, ou seja, desde que se mostrem verificados dois requisitos cumulativos (i) o trajecto normalmente utilizado e (ii) o tempo habitualmente gasto.
Mais alegou que, no caso concreto, resultou provado que o percurso em que se deu o acidente era um dos dois percursos alternativos de que o Apelante dispunha para se deslocar das instalações da empregadora até à sua casa e vice-versa e que o mesmo se deu no tempo habitualmente gasto pelo Apelante na viagem de regresso do trabalho para casa, visto levar, nesse trajecto, entre 50 a 55 minutos e o acidente ter ocorrido cerca de 45 minutos após ter saído do seu local de trabalho.
Alegou, por fim, que mostrando-se cumpridos os dois requisitos previstos no art. 9.º da LAT, a sentença recorrida deveria ter qualificado o presente acidente como de acidente de trabalho in intinere.
Dispõe o art. 9.º da LAT (Lei n.º 98/2009, de 04-09) que:
1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência;
e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito;
g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso;
h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.
2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 - No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.

Cumpre apreciar.
Na realidade, os mencionados requisitos (o trajecto normalmente utilizado no regresso do trabalho a casa e o tempo habitualmente gasto nesse trajecto) estabelecem uma presunção ilidível (iuris tantum) de que, quando verificados, ocorreu um acidente de trabalho in itinere, e não uma presunção inilidível (iuris et de iure), sendo que competirá sempre à parte contrária efectuar prova suficiente e cabal para ilidir essa presunção.
Dito de outro modo, o que a lei protege é o trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, no percurso normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador desde que inexistam interrupções, sendo que, quando estas ocorram, não deixa de se considerar acidente de trabalho se as interrupções ou desvios tiverem sido determinados para satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito (n.º 3 do art. 9.º da LAT).
Cita-se sobre esta matéria o acórdão do TRG[2], proferido em 09-05-2019, no âmbito do processo n.º 5813/16.9.T8GMR.G1, consultável em www.dgsi.pt:
III - Nestas circunstâncias existe a necessária ligação ao trabalho, ou seja o acidente ocorreu durante o trajecto realizado pelo sinistrado de forma contínua e ininterrupta no regresso do trabalho para a sua residência habitual, quando ao que tudo indica tinha terminado o seu dia de trabalho.

No caso em apreço, tendo a Apelada feito prova de que o Apelante efectuou um desvio no seu percurso habitual, o acidente de que este veio a padecer apenas poderá ser considerado de trabalho in itinere se tal desvio for considerado como tendo sido determinado pela satisfação de necessidades atendíveis, o que seguidamente analisaremos.
E, a ser assim, nesta parte, improcede a pretensão do Apelante.
2 – Necessidade atendível
Nas suas conclusões, o Apelante invoca que a sentença recorrida errou ao não qualificar como necessidade atendível o facto de o Apelante ter interrompido o percurso para conversar com um amigo, durante 20 minutos, em primeiro lugar, porque não consta da factualidade dada como provada qualquer referência ao conteúdo ou motivação de tal conversa que pudesse levar a concluir pela desnecessidade de o Apelante ter interrompido o percurso para a ter; e, em segundo lugar, porque, mesmo que a conversa se tivesse consubstanciado numa mera conversa de circunstância (o que se não logrou provar), os condicionalismos em que o Apelante prestava o trabalho à sua entidade empregadora, nomeadamente o horário de trabalho, que lhe deixava poucas horas livres, devido ao tipo de serviço prestado (motorista de automóveis pesados de mercadorias), exigiam que a sua gestão das relações familiares e sociais sofresse consideráveis restrições.
A sentença recorrida sobre este assunto teceu as seguintes considerações:
Assim, a paragem que o sinistrado efectuou para falar com um amigo não pode deixar de se considerar como uma interrupção do trajecto normal do sinistrado.
Acresce que a lei não delimita o relevo das interrupções do trajecto em função da sua duração, mas dos motivos que as justificam.
A circunstância de o sinistrado ir falar com um amigo nas instalações da empresa onde o mesmo trabalhava não deve considerar-se como satisfação de uma necessidade atendível, já que não resultou provada relação com a sua actividade laboral nem se prende intimamente com a sua vida familiar e com o complexo de valores em que a mesma assenta.
Serão necessidades atendíveis, desde logo, as necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador.
A nossa lei não exige que tais necessidades sejam urgentes ou de satisfação imprescindível, mas não entendemos que seja atendível ou sequer uma necessidade o facto do A. ter ido conversar com um amigo, nada se tendo provado sobre o teor dessa conversa.
Deste modo, ao tempo normal da deslocação não se pode fazer acrescer o tempo da interrupção do trajecto, uma vez que a interrupção do trajecto não se pode dizer que tenha sido para satisfação de necessidades atendíveis e reflecte-se sobre o tempo do percurso percorrido que é interrompido.
Pode comparar-se o tempo do percurso normal das deslocações do sinistrado entre a residência e o seu local de trabalho, 50 a 55 minutos, e determinar o tempo da interrupção como tendo sido 20 minutos, para se afirmar que o acidente ocorreu fora do tempo da deslocação.
Não pode considerar-se que estejamos perante um acidente de trabalho, por não se enquadrar no disposto no artigo 9º, da Lei 98/2009.
Improcede, nestes termos, a presente acção.

Apreciemos, então.
No caso em apreço, com relevo para a presente apreciação, resultou provado que:
- No dia 13 de Agosto de 2013, pelas 18.00 horas, na Estrada Nacional nº. 270, ao km 36,5, no Sítio de Apra, freguesia de S. Clemente, concelho de Loulé, o A. conduzia a sua viatura particular, ligeiro de passageiros, no sentido Loulé – S. Brás de Alportel, quando se despistou, tendo ido embater com a viatura na parede de uma ponte existente no local (facto A);
- O A. prestava funções de motorista profissional de automóveis pesados de mercadorias sob as ordens, direcção e fiscalização de Transportadora …, com sede no Sítio do Patacão, concelho de Faro, e prestava serviços também na sua sede (factos B e C);
- O A. morava no Sitio da Cerca da Achada, freguesia de Ameixial, concelho de Loulé (facto D);
- A Transportadora …, tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a Ré … mediante acordo de seguro titulado pela apólice n.º 201469064, relativamente à retribuição anual de €584,00, por 14 meses, acrescida de €113,00 relativo a subsídio de alimentação, num total de €9.419,00 (facto F);
- No dia em que ocorreu o referido acidente, o A. havia saído do trabalho, no Sítio do Patacão, após a sua jornada de trabalho (facto N);
- O A. cumpria um horário de trabalho das 08:00h às 13:30h e das 15:30h às 18:00h sempre que se encontrava nas instalações da entidade patronal, sitas em Patacão, Faro, sendo diverso o seu horário quando se encontrava no exterior dessas instalações, conduzindo veículos pesados, e definido por forma a cumprir tempos de condução e repouso (factos T e U);
- No dia 13 de Agosto de 2013, o A. apresentou-se nas instalações da “Transportadora ...”, ainda da parte da manhã, depois de ter cumprido o tempo de repouso subsequente à condução que efectuara na véspera à noite e que se prolongara pela madrugada desse dia (facto V);
- Da parte da tarde desse dia, e porque não estava prevista a realização de qualquer outro trabalho, o A. foi autorizado a sair mais cedo, terminando o seu período de trabalho pelas 17h e saindo das instalações da empresa, cerca das 17:15h (facto W);
- Depois de sair das instalações da Transportadora … o A. dirigiu-se a Loulé, às instalações da empresa “M…, Lda.”, sitas na Rua da Marroquia, para falar com um amigo, o JM…, que aí trabalhava (facto X);
- Depois de conversar com esse amigo, nas referidas instalações e durante cerca de 20 minutos, o A. iniciou a deslocação, conduzindo o seu veículo automóvel, para São Brás de Alportel, onde pretendia depositar dinheiro numa caixa automática de uma dependência bancária desta localidade (facto Y);
- E foi nessa deslocação que o veículo conduzido pelo sinistrado se despistou, cerca das 18:00h, invadindo a berma direita da faixa de rodagem e embatendo numa ponte aí existente, ao Km 36,500 da Estrada Nacional 270, no sentido Loulé > São Brás de Alportel (facto Z);
- A casa do A. fica situada em Ameixial num paralelo a cerca de 50km a Norte do paralelo correspondente ao seu local de trabalho, que se situa no Patacão (facto AA);
- O A., de casa para o trabalho e do trabalho para casa, seguia dois percursos, sendo um deles o percurso que fazia no dia do referido acidente e que passava pela Estrada Nacional Nº. 125 e Municipal 125-4, do Patacão até Loulé; Estrada Nacional 270, de Loulé até São Brás de Alportel e E.N. nº 2, de São Brás de Alportel até ao Ameixial, tendo este percurso 58 Km (factos BB, CC e FF); e
- O A. gasta, sensivelmente, o mesmo tempo, em ambos os percursos que utiliza, ou seja, entre 50 e 55 minutos, tanto quando os inicia em casa como quando os inicia no local de trabalho (facto GG).

Resulta, assim, da factualidade apurada que o Apelante, no dia do acidente, depois de ter saído do seu local de trabalho e no caminho de regresso à sua casa, fez um desvio em Loulé para ir encontrar-se com um amigo, com quem esteve cerca de 20 minutos, tendo depois regressado ao seu percurso habitual e sofrido um acidente na Estrada Nacional 270, ao km 36,5, quando se deslocava de Loulé até São Brás de Alportel.
Resulta ainda de tal factualidade que o Apelante, quando chegasse a São Brás de Alportel, o que não veio a acontecer devido ao acidente, pretendia efectuar um novo desvio para depositar dinheiro numa caixa automática de uma dependência bancária dessa localidade.
Importa, assim, apurar se o primeiro desvio pode ou não ser considerado determinado pela satisfação de uma necessidade atendível do Apelante e se a intenção de efectuar um segundo desvio, antes de chegar a casa, poderá ter alguma implicação jurídica.
A lei não define o que seja “necessidade atendível” do trabalhador, pelo que se terá de recorrer a um critério de adequação social, atendendo a regras de razoabilidade.
Conforme bem refere Júlio Gomes em O acidente de trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização[3], que:
Quanto às necessidades atendíveis, parece-nos claro que serão, desde logo, necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador que a nossa Lei, aliás, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível. Podem tratar-se de necessidades fisiológicas, de tomar um café ou um pequeno-almoço no caminho para o trabalho ou de almoçar findo o trabalho e antes de regressar a casa, de comprar medicamentos numa farmácia ou enviar uma carta registada, de levar ou de ir buscar os filhos à escola ou ao jardim-de-infância.

Refira-se ainda como necessidades atendíveis, de acordo com a jurisprudência dos nossos tribunais, a compra de um presente para oferecer a um afilhado[4] ou as compras a realizar em supermercado[5].
Na realidade, o que importa apurar é se, no concreto contexto, segundo um critério de adequação social, atendendo a regras de razoabilidade, se tratou de uma necessidade compreensível e ainda com conexão com a relação laboral.
Cita-se a este propósito o acórdão deste Tribunal, proferido em 26-04-2018, no âmbito do processo n.º 1052/078TTSTB.E3, consultável em www.dgsi.pt:
Ora, no caso, o sinistrado havia terminado um dia de trabalho na Herdade do … e teria ainda que realizar outro trabalho, tendo em conta as funções de caseiro, na Herdade das ….
Tem-se por medianamente assente, face às regras da normalidade e da experiência comum, que a residência numa Herdade (“Monte”) acarreta algum isolamento para quem aí vive.
Por isso se compreenderá ou, se se quiser, se aceitará que o sinistrado tivesse parado no trajecto para confraternizar, conviver e beber cervejas! (quanto a estas bebidas, dada a expressão utilizada, “beber cervejas”, significa que tanto podiam ser duas como mais…mas essa é outra questão, referente à negligência e estado de alcoolemia, que se analisará infra).
Isto, sublinhe-se, quando o sinistrado tinha tido um dia de trabalho e ao chegar à sua residência ainda tinha mais trabalho para realizar.
É neste contexto que terá que se analisar a paragem do sinistrado num estabelecimento, na Mimosa: não se pode exigir a um homem/ser humano que seja, permita-se-nos a expressão, “uma máquina”, que terminado o trabalho numa Herdade se deslocasse, de imediato e sem paragens, para a outra Herdade, onde tinha a sua residência e ia continuar o trabalho (agora como caseiro): o convívio social faz parte da essência humana[6].
Assim, cremos que no concreto circunstancialismo, designadamente atendendo ao tipo de actividade desenvolvida pelo trabalhador/sinistrado e à sua residência numa Herdade – o que, pelo menos, dificultará a possibilidade de confraternizar com amigos – a paragem no local em causa e para os fins em vista deve ser considerada para satisfação das (suas) necessidades atendíveis, pelo que tal facto não afasta a tutela infortunístico-laboral do acidente ocorrido.

Conforme se mostra expressamente mencionado no acórdão citado, e com o qual inteiramente concordamos, o convívio social faz parte da essência humana, não se podendo exigir a um ser humano que aja como se fosse uma “máquina”, ou seja, como mero cumpridor de horários e sem procurar satisfazer as mais elementares necessidades de convívio social. E sendo o convívio social uma necessidade incontornável do ser humano, para que essa necessidade seja atendível nos termos do n.º 3 do art. 9.º da LAT, torna-se indispensável que, na concreta situação em análise, ela se mostre justificável e compreensível.
No caso em apreço, importará atender que não se trata simplesmente de um trabalhador que, no final do seu horário de trabalho, resolveu fazer um pequeno desvio no seu percurso habitual de regresso a casa, para ir ter com um amigo, a fim de conversar com ele cerca de 20 minutos, sendo de relevar que, no dia anterior, esse mesmo trabalhador efectuara, à noite, para a sua entidade patronal, a condução de um veículo pesado de mercadorias, condução essa que se prolongara pela madrugada desse dia, razão pela qual apenas se veio a apresentar nas instalações da sua entidade patronal em hora incerta da parte da manhã do dia 13-08-2013, após ter cumprido o tempo de repouso necessário, e justificou a sua saída uma hora mais cedo relativamente ao seu horário de trabalho normal.
Efectivamente, o Apelante, na véspera, trabalhara até de madrugada e, decorridas as necessárias horas de descanso, regressara para o local de trabalho, pelo que é evidente que estamos perante um trabalhador com défice de períodos de repouso e, sobretudo, de lazer, dos quais faz parte o convívio social, pelo que, neste específico contexto, o desvio que o Apelante efectuou para conversar com um amigo, durante cerca de 20 minutos, ou seja, durante um curto período de tempo, não só manteve a conexão com a relação laboral havida, como se revela determinado para satisfação de uma necessidade perfeitamente compreensível e adequada, pelo que, atendível.
Nesta conformidade, e contrariamente ao expendido na sentença recorrida, deve tal desvio ser considerado para satisfação das necessidades atendíveis do sinistrado, não afastando tal facto a tutela infortunístico-laboral do acidente ocorrido.
Importa, então, apreciar se a intenção de efectuar um segundo desvio, antes de chegar a casa, a fim de depositar dinheiro numa caixa automática de uma dependência bancária em São Brás de Alportel, afasta tal tutela.
Ora, para além deste segundo desvio não ter chegado a ocorrer, tendo o acidente ocorrido no trajecto habitualmente utilizado pelo sinistrado no seu caminho de regresso a casa, sempre se dirá que um pequeno desvio, nesse caminho de regresso a casa, para depositar dinheiro que o trabalhador tem na sua posse, actividade essa que não pode exercer nem no seu local de trabalho, nem na sua residência, revela-se igualmente atendível, por se mostrar, segundo critérios de razoabilidade, perfeitamente aceitável e compreensível.
Pelo exposto, por o acidente sofrido pelo Apelante, no dia 13 de Agosto de 2013, pelas 18.00 horas, na Estrada Nacional nº. 270, ao km 36,5, no Sítio de Apra, freguesia de S. Clemente, concelho de Loulé, se tratar, nos termos do art. 9.º, nºs. 1, al. a), 2, al. b) e 3, da LAT, de um acidente de trabalho in itinere, procede a pretensão do Apelante, sendo a sentença recorrida revogada.
2 – Legais consequências de ser um acidente de trabalho in itinere
O Apelante terminou as suas conclusões solicitando a revogação da sentença absolutória, substituindo-se por outra que condene a Apelada a reconhecer como acidente de trabalho in itinere o dos autos, com todas as legais consequências.
Na sua PI, o Apelante tinha solicitado a condenação da Apelada a pagar-lhe a pensão anual e vitalícia remível que lhe for devida a partir de 31-12-2013; o montante de €5.682,05 a título de ITA desde 13-08-2013 a 30-09-2014; o montante de €312,80 relativo a despesas com deslocações para exames e diagnósticos clínicos e idas a tribunais obrigatórias; e os juros de mora, vencidos e vincendos sobre a quantia em dívida, à taxa legal, e até integral pagamento.
Em face da matéria de facto que foi dada como provada, resulta que o Apelante esteve de baixa médica e com ITA desde o acidente ocorrido em 13-08-2013 e 31-12-2013 (facto provado P), pelo que o período de ITA sofrido pelo Apelante foi de 140 dias; e que, após a data de alta, foi-lhe fixada uma IPP de 2% (facto provado K).
Deverão, assim, ser concedidas ao Apelante as seguintes prestações decorrentes do acidente por ele sofrido no dia 13-08-2013:
- uma indemnização, nos termos dos arts. 48.º, n.º 3, al. d) e 71.º, n.º 1, ambos da LAT, no montante de €2.528,94 (€9.419,00 : 365 x 0,70 x 140), pelo período sofrido, num total de 140 dias; e
- o capital de remição da pensão anual vitalícia de €131,87 (€9.419,00 x 0,70 x 0,02), com efeitos a partir de 01-01-2014, relativa à IPP de 0,02% fixado ao Apelante, nos termos do art. 48.º, n.º 3, al. c) e 75.º, n.º1, da LAT.
Nos termos do art. 25.º, n.º 1, al. f), da LAT, compete ainda à Apelada pagar ao Apelante o transporte para comparência a actos judiciais, tendo resultado provado (facto provado R) que o Apelante gastou, nesse tipo de despesas, a quantia de €46,80.
Nesta conformidade, apenas resta concluir pela procedência do recurso.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso totalmente procedente, e, em consequência:
1) Revoga-se a sentença recorrida;
2) Declara-se o acidente sofrido pelo Apelante no dia 13-08-2013, pelas 18.00 horas, na Estrada Nacional nº. 270, ao km 36,5, como acidente de trabalho in itinere;
3) Condena-se a Apelada a pagar ao Apelante, com efeitos a partir de 01-01-2014, o capital de remição correspondente à pensão anual vitalícia de €131,87, bem como a quantia €2.528,94 a título de ITA e a quantia de €46,80 a título de despesas com deslocações, sendo todos estes valores acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde tal data e até integral e efectivo pagamento.
Fixa-se, nos termos do art. 120.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho e da Portaria n.º 11/2000, de 13-01, à acção o valor de €4.457,52 (131,87 x 14,270 + €2.528,94 + €46,80).
Custas pela Apelada.
Notifique.
Évora, 12 de Junho de 2019
__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Moisés Silva; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho.

[2] No mesmo sentido, ainda que no âmbito da legislação anterior, mas que se mantém relevante, vejam-se o acórdão do TRE, proferido em 26-04-2018, no âmbito do processo n.º 1052/078TTSTB.E3; e o acórdão do TRE, proferido em 11-10-2011, no âmbito do processo n.º 412/05.3TTFAR.E1, consultáveis em www.dgsi.pt.

[3] Coimbra editora, 2013, p. 188-190.

[4] Acórdão do TRL, proferido em 05-12-2018, proferido no âmbito do processo n.º 4899/16.0T8LRS.L1, consultável em www.dgsi.pt.

[5] Acórdão do TRE, proferido em 26-04-2018, proferido no âmbito do processo n.º 2477/15.0T8PTM.E1, consultável em www.dgsi.pt.

[6] Sublinhado nosso.