Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
53/10.3GCODM.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: DENÚNCIA CALUNIOSA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
DIFAMAÇÃO
INSTITUIÇÃO PRIVADA DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A denúncia caluniosa deve imputar um ou mais crimes, contraordenações ou infrações disciplinares de natureza pública (só as infrações disciplinares que sejam perseguidas por uma autoridade pública são subsumíveis ao tipo da denúncia caluniosa).
II - A denúncia caluniosa de infrações disciplinares que não sejam perseguidas por uma autoridade pública está sujeita à incriminação geral da difamação.
Decisão Texto Integral:

I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, da Comarca do Alentejo Litoral, Odemira, Juízo de Competência Genérica, em que MJCVG se constituiu assistente e deduziu pedido cível contra a arguida MJBA, esta respondeu, acusada de ter cometido:
-- Um crime de difamação agravada, p. e p. pelos art.º 180.°, n.° 1, 184.°, 132.°, n.° 2 al.ª l) e 386.°, n.° 1 al. d), do Código Penal; e
-- Um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.°, n.º 1 e 2, do Código Penal.
Realizado o julgamento, a arguida foi absolvida da prática daquele crime de difamação agravada e condenada pela prática daquele crime de denúncia caluniosa, na pena de 50 dias de multa, à razão diária de 7,00 €, num total de 350,00 €, ou 33 dias de prisão subsidiária, caso não pague voluntária ou coercivamente, e a pagar à demandante a quantia de 750,00 € a título de danos não patrimoniais, mais juros.
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Inconformado com o assim decidido, a arguida interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1.A Sentença Proferida pelo Tribunal "à quo" foi desproporcional e inadequada à realidade factual, que no entender da Recorrente não foi suficiente e cuidadosamente apreciada, tendo sido criada uma realidade fáctica como dramática e manifestamente exagerada para o que aconteceu, de facto.
2.Na sua apreciação a Recorrente entende que não praticou qualquer conduta ilícita no momento em que se dirigiu à Instituição em que a Recorrida prestava as suas funções de Motorista. Tendo apenas oportunamente se dirigido à Instituição e na pessoa de direito, Directora Técnica, manifestado a sua revolta, como um "desabafo", que já havia acumulado há algum tempo, por algumas situações similares àquela naquele dia, até porque, referiu muitas vezes as palavras, Instituição, pessoas de Odemira, utentes e poucas vezes se referiu a motoristas. Apenas o tendo feito para chamar à atenção daquela situação em concreto, sem no entanto, se tendo referido à motorista pelo seu nome, nada tinha contra aquela pessoa em concreto. Mas, sim quanto à situação, que para si causava algum alarmismo social e cuja situação em concreto movida pelo facto de estarmos perante pessoas "especiais" deficientes, que merecem uma protecção redobrada, de quem cuida de si e também, por todos os que os rodeiam socialmente, tendo todo este circunstancialismo a ter movido a dirigir-se directamente à Instituição.
3.Em momento algum, o que está assente em matéria probatória, a Recorrente pretendeu com a sua chamada de atenção, criar alguma situação de perigo concreto para a trabalhadora, no sentido de por em causa a sua liberdade profissional, que pudesse comprometer as funções até então desempenhadas por esta, até porque fez questão de dizer que não queria apresentar queixa por escrito, não tendo fomentado ou provocado alguma situação que pudesse levar a efeito a instauração de um procedimento disciplinar ou criminal contra a recorrente.
4.Assim, como também o elemento objectivo do crime pelo qual foi condenada, o da "falsidade" das informações prestadas existe. Na verdade o que a Recorrente pretendeu alertar, os factos que relatou, como a motorista se encontrava a falar com outra pessoa; os utentes estavam dentro do veículo; as duas senhoras estavam a tapar a sua passagem, eram factos verdadeiros e correspondiam à realidade. O que permite concluir que não existiu qualquer falsidade, nem sequer intenção, em descrever uma situação que não correspondesse à verdade. O objectivo era precisamente que não se voltasse a repetir.
5.A trabalhadora/recorrida não viu qualquer alteração na sua vida profissional, além de não ter sido alvo de qualquer procedimento disciplinar ou criminal, não viu alterada a competência que lhe sempre foi atribuída, a de motorista, continuando a desempenhar as mesmas funções. Apenas diminuiu as funções de voluntariado por sua iniciativa.
6.A Recorrente não praticou qualquer conduta, ilegal, ilícita ou até menos correta, que mereça a censura penal, pois não estão preenchidos quer os elementos objectivos, quer os subjectivos do tipo legal de crime pelo qual foi condenada "Denuncia Caluniosa". Sentindo-se sim a mesma injustiçada, quando deveria ter sido a sua conduta louvada por perpetuar a favor de pessoas, que de alguma forma são especiais e merecem a atenção de todos os cidadãos em geral.
7.Assim, como não pode a mesma ser responsável pelo pagamento cível de que foi condenada a pagar à Recorrida, o qual não aceita como sendo sua responsabilidade. Não desenvolveu nenhuma conduta que pudesse por em causa a saúde e a integridade moral e social da trabalhadora/Recorrida.
8.Pelo que, com reapreciação da prova gravada, pede a absolvição do crime pelo qual foi condenada pela douta sentença da qual se recorre, de "Denúncia Caluniosa" previsto e punido pelo art.236.º do Código Penal, assim como a absolvição do pedido cível, no montante de €750,00, que considera desprovido de qualquer razoabilidade e fundamento, bem como da taxa de justiça e custas.
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O Ex.mo Procurador-Adjunto do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1- Vem a arguida interpor recurso da douta sentença em que foi condenada na pena de 50 dias de multa, à razão de 7 euros diários, num total de 350 €, pela prática do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365° n.º 1 e 2 do Código Penal do Código Penal.
2- A arguida/recorrente questiona na sua motivação de recurso a forma como o Tribunal a quo, levou em consideração os depoimentos de três das testemunhas, nomeadamente da assistente MJCVG, da testemunha CGPSC bem como da testemunha AMCTM, transcrevendo para o efeito as concretas passagens de parte dos seus depoimentos, entendendo que a sua correcta análise levasse à absolvição.
3- Relativamente ao depoimento da assistente MJCVG, do seu depoimento conclui-se que a mesma afirmou de forma objectiva que "os utentes não estavam dentro da carrinha expostos ao sol, uma vez que naquele local, naquele momento, havia sombra."
4- Relativamente ao depoimento da testemunha CGPSC o seu depoimento é claro ao referir " Naquela hora já batia a sombra e as crianças estavam à sombra. ".
5- Relativamente ao depoimento da testemunha AMCTM, a mesma confirma que a arguida dirigindo-se a si, directora da Instituição que empregava a assistente, e referindo-se à assistente terá dito "Que instituição é esta que deixa uma motorista com os utentes, com uma carrinha ao sol, enquanto está a conversar com as pessoas. ". Mais adiantou a testemunha que informou a arguida que face ao seu relato " iria abrir um procedimento interno onde registamos a situação. Mesmo sem haver reclamações no livro podia haver processo disciplinar se fosse grave. ".
6- O que se extrai da prova produzida é que a arguida imputou de facto uma falsidade à assistente, ou seja que os utentes, pelos quais era a mesma responsável ficaram expostos dentro de uma carrinha ao sol e que tal imputação iria ter consequências internas e disciplinares para a assistente.
7- Refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/2/2012, relator Maria Pilar Oliveira que: "indubitável é que para o preenchimento do crime de denúncia caluniosa é necessário que o agente denuncie factos que saiba serem falsos, com intenção de fazer desencadear procedimento, seja criminal, contra-ordenacional ou disciplinar contra o denunciado, o que pressupõe desde logo a falsidade objectiva do que foi denunciado."
8- Considerando o que foi dito pelas três testemunhas ora indicadas pela recorrente, manifestamos o nosso total acordo com a sentença a quo quando fundamenta a consubstanciação do crime, referindo que " atenta a factualidade apurada não restam dúvidas que a arguida imputou falsidades relativamente á actuação da assistente, dirigiu-se à Direcção da APCO, entidade patronal daquela, descrevendo-a concretamente, de modo a que pudesse ser identificada. Nem o facto de, após uma hora de queixas contra os profissionais da APCO e a população de Odemira em geral, a arguida ter referido que não queria formalizar a sua participação no livro de reclamações, a mesma teve conhecimento que iria ser levantado um procedimento interno de acção correctiva preventiva e continuou a insinuar a gravidade do ocorrido ".
9- Da prova produzida, nomeadamente da prova testemunhal, é manifesto que a arguida descreveu factos falsos da assistente (que teria deixado os utentes da instituição para que trabalhava dentro da carrinha ao sol enquanto conversava) à sua entidade patronal, tendo noção que por via dessas imputações seria imposto procedimento interno disciplinar contra esta, não tendo deixado de actuar.
10- Concordamos na íntegra com a convicção e justificação do Tribunal Recorrido, considerando que a arguida preencheu com a sua conduta os elementos objectivos e subjectivos do tipo, adequando-se à conduta da mesma a medida da pena escolhida — 50 dias de multa á razão de 7 € diários, num total de 350 € - pela prática do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365° n° 1 e 2 do Código Penal, decisão essa que deverá ser mantida na íntegra.
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Também a assistente respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A) - Bem esteve o Mmo. Juiz do Tribunal "a quo" ao considerar provados os pontos 9), 10), 11), 12), 17) e 18).
B) - Não existe qualquer erro na apreciação da prova.
C) - As práticas doutrinal e jurisprudencial têm entendido que apenas se verifica erro na apreciação da prova em circunstâncias muito especificas, sendo certo que o erro não se pode confundir com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova , que no seu entendimento foi produzida.
D) - Somente se verifica erro na apreciação da prova quando o conteúdo da decisão, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, espelhe, de modo a que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida .
E) - O erro notório consiste num erro, de fácil deteção , resultante do texto decisório, onde se mostre notoriamente errado, algo ilógico e violador das regras da experiência.
F) - O que não sucedeu no caso vertente.
G) - A recorrente não cumpriu o disposto no art. 412°, n° 4 do C.P. Penal.
H) - A recorrente indicou concretamente as passagens em que fundou a sua
impugnação, mas não as especificou por referência ao consignado em acta.

I) - Os depoimentos das testemunhas permitem demonstrar que a arguida relatou à Sra. Directora Técnica da APCO factos que sabia não serem verdadeiros.
J) - Permitem igualmente demonstrar que a arguida pretendia que fosse instaurado processo disciplinar contra a assistente, pois relatava factos que a revelarem-se verdadeiros - eram graves do ponto de vista laboral.
K) - Da análise da prova documental (fls. 146) se retira a prova que permitiu dar como provado o constante em 17) dos factos provados.
L) - Os depoimentos das testemunhas são suficientes para que se desse como provado o elencado em 18) dos factos provados.
Perante tudo o que se expôs deverá ser mantida a decisão recorrida, fazendo-se
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Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1) A Associação de Paralisia Cerebral de Odemira (APCO) é uma instituição particular de solidariedade social, sem fins lucrativos, reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública (publicação em DR III Série, de 20.04.2005).
2) MJCVGM era funcionária da aludida instituição, onde exerceu as funções de motorista desde Junho de 2003, com zelo e competência, sem que, até à prolação da acusação, contra ela tenha sido formalizada qualquer reclamação ou instaurado processo disciplinar.
3) No dia 4 de Junho de 2010, pelas 16:35, no exercício das suas funções, MJCVGM deslocou-se ao Bairro do Simplício, em Odemira, para aí entregar um utente da instituição.
4) MJCVGM estacionou o veículo da instituição e a sua colega CGPSC aproximou-se para cumprimentar os utentes.
5) Entretanto, surge a arguida MJBA conduzindo o seu veículo automóvel e, impaciente, buzinou.
6) Após, a arguida dirigiu-se às instalações da APCO onde disse à senhora Directora Técnica da instituição, a Dra. AMCTM, que:
- MJCVGM estava a conversar com outra senhora no meio da rua, bloqueando a passagem do seu veículo, pelo que teve que buzinar para que se afastassem;
- MJCVGM fez um gesto com a mão para a insultar;
- As referidas senhoras continuaram a falar mal de si;
- MJCVGM costumava ficar no meio na rua a conversar enquanto quando os utentes estavam dentro da carrinha expostos ao sol;
- e acrescentou que tinha tirado fotografias à carrinha como prova.
7) Perante tais afirmações, a Dra. AMCTM sugeriu à arguida que apresentasse a sua reclamação no livro próprio, o que esta recusou.
8) Então, a Dra. AMCTM registou a ocorrência e averiguou o sucedido, sem que tenha havido lugar a processo disciplinar contra MJCVGM.
9) A arguida dirigiu-se à senhora Directora Técnica da APCO e narrou-lhe factos descritos em 6), que sabia não corresponderem à verdade.
10) Sabia a arguida que, por narrar tais factos falsos, poderia ser instaurado processo disciplinar contra MJCVGM, o que quis, mas não conseguiu por razões alheias à sua vontade.
11) A arguida MJBA sabia que MJCVGM era funcionária da referida instituição e se encontrava no exercício das suas funções, tendo actuado da forma descrita, precisamente, por isso.
12) No que diz respeito ao crime de denúncia caluniosa, a arguida agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
13) A assistente não costumava recolher ou entregar utentes ao Bairro do Simplício, uma vez que tal volta era feita pelo colega FT.
14) Que, no dia em causa, não estava de serviço.
15) A assistente não conhecia a arguida de parte alguma, nunca tendo visto ou falado com a mesma.
16) A assistente estava, na altura dos factos, a finalizar um tratamento para a depressão, tomando a medicação uma vez por semana.
17) Após o sucedido a assistente teve de voltar ao início do tratamento, passando a tomar um comprimido para a depressão, todos os dias.
18) Após o sucedido a assistente começou a ter dificuldades em dormir, a isolar-se e passou a andar mais calada e a não se disponibilizar para fazer na APCO outras tarefas e actividades (em regime de voluntariado), como antes fazia.
19) A arguida MJBA é casada, não lhe sendo conhecida actividade profissional.
20) A arguida vive com o filho de 15 anos e com o marido, oficial de justiça que provém ao sustento familiar.
21) A arguida tem o 4° ano de escolaridade.
22) O agregado familiar da arguida reside em casa própria, adquirida mediante empréstimo bancário e dispondo de boas condições de habitabilidade.
23) A arguida sofre de doença bipolar, sendo alvo de acompanhamento clínico.
24) Do C.R.C. da arguida, junto em fls. 258, nada consta.
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-- Factos não provados:
a) Que, na sequência do mencionado em 5), a MJCVGM tivesse pedido à arguida para que tivesse calma.
b) Que a arguida tenha reagido dizendo "tenha calma o quê, todos os dias a mesma coisa, sempre no meio da rua a conversar".
c) Que a arguida tivesse insinuando que MJCVGM era incompetente, bem sabendo que desse modo denegria a imagem e bom nome profissionais da assistente, o que quis e conseguiu.
d) Que, no que diz respeito ao crime de difamação agravada, a arguida tenha agido sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
e) Que, nesse ano, a assistente nem tenha conseguido acabar o 12° ano por ter ficado sem condições psicológicas para o fazer.
f) O Que a ofendida se tenha sentido tão ofendida com as acusações feitas pela arguida que só tivesse vontade de chorar, tivesse vergonha de andar na rua e vergonha das pessoas da instituição e sentisse que as pessoas a olhassem de maneira diferente.
g) Que toda a situação tenha provocado muita ansiedade na assistente.
h) Que a Directora Técnica da APCO tivesse ficado com reserva para com a assistente e sempre que falava com esta dissesse "... veja lá que vieram aqui fazer queixa de si".
i) Que a assistente tivesse ficado revoltada e humilhada.
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Fundamentação da decisão de facto:
Antes de mais, há a esclarecer que, nos termos do disposto no n.° 2 do art.° 374° do C.P.P., o Tribunal deve indicar os "motivos, de facto e de direito, que fundamentam a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção (...) ".
Por outro lado, no que diz respeito à valoração da prova, rege o princípio da livre apreciação da prova do art. 127° do C.P.P. que estabelece que "(…) a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente ". Ou seja, o Tribunal fundamenta a análise dos factos na íntima convicção que formou a partir do exame e ponderação das provas produzidas.
Assim, a antecedente decisão fáctica baseou-se na análise crítica:

III.1 – Nas declarações prestadas pela assistente MJCVG (já não, M, uma vez que, entretanto, se divorciou) a qual, de forma serena e objectiva, confirmou o teor das supra transcritas alíneas 1) a 5) e 13) a 15) dos factos provados, no resto, quanto à actuação da arguida nas instalações da APCO, a assistente apenas teve conhecimento da mesma através das informações prestadas pelas colegas que receberam e ouviram as palavras proferidas por MJBA.
A assistente foi peremptória ao afirmar que não fez qualquer gesto com a mão para insultar a arguida, que nunca falaram mal dela e que os utentes não estavam dentro da carrinha expostos ao sol, uma vez que naquele local, naquele momento, havia sombra.
No início do seu depoimento referiu que está emigrada na Bélgica, onde trabalha numa empresa de legumes.

III.2 — Nas declarações prestadas por CGPSC, na altura colega da assistente e que, estando de baixa médica, saiu à rua para cumprimentar os utentes que vinham na carrinha e trocar algumas palavras com a MJCVG. Com o seu depoimento, a testemunha transmitiu o teor das supra transcritas alíneas 1) a 5), 13), 14) e 18) dos factos provados.
Confirmou, também, que a assistente não fez qualquer gesto com a mão para insultar a arguida, que nunca falaram mal dela e que os utentes não estavam dentro da carrinha expostos ao sol, uma vez que naquele local, naquele momento, havia sombra.
Transmitiu, ainda, que a assistente sempre foi muito considerada entre as colegas, superiores hierárquicos e utentes, muito comunicativa e activa e que, após os factos, passou a isolar-se (“ficava dentro da carrinha a ler") e a andar constrangida.
Quanto ao modo de vida actual da assistente, a testemunha confirmou que esta se encontra emigrada, vivendo do seu trabalho, não sendo uma pessoa muito abastada.

III.3 — Nas declarações prestadas por AMCTM, Directora Técnica da APCO que, de modo natural e credível, explicitou o que vivenciou naquele dia 4 de Junho de 2010. Nomeadamente, o modo como a arguida entrou na Associação, referindo querer "falar com alguém responsável pelo transporte dos utentes".
A testemunha confirmou que a arguida proferiu, na íntegra, o teor da 6ª alínea dos factos provados.
Perante as queixas da arguida, a testemunha colocou ao seu dispor o livro de reclamações, porém, esta disse que não iria escrever no livro de reclamações, “porque sabia o que fazer pois tinha um familiar a trabalhar no Tribunal". Não obstante tal, a testemunha informou a arguida que, tendo em consideração o teor da sua queixa (que, pormenorizadamente, descreveu a assistente e a colega CGPSC) iria ser aberto um procedimento interno de averiguações (denominado "pedido de acção correctiva preventiva").
Apesar da Direcção da APCO, após ter feito algumas diligências, não ter considerado que tivesse ocorrido nada de muito grave (senão, teria havido um processo disciplinar), a assistente acabou por ser alvo de uma comunicação/advertência por parte da Presidente da Direcção (conf. fotocópias juntas pela testemunha no dia da inquirição).
A testemunha referiu, ainda, que a assistente, ao princípio, desvalorizou a situação mas que, passados um dia ou dois, disse-lhe que não estava a conseguir dormir, nem comer e que disse que iria apresentar uma queixa na G.N.R. Sem poder afirmar com grandes certezas até que ponto a assistente tivesse ficado atingida (v.g. não soube referir se foi por causa desta situação que a assistente tomava medicação), apenas referiu que a assistente ficou "perturbada".

III.4 — Nas declarações prestadas por NSGPG, escriturária da APCO que aí se encontrava quando chegou a assistente. A testemunha confirmou o teor do que já declarara nos 3° e 4° parágrafos de fls. 46 dos presentes autos, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
Mais acrescentou a testemunha que esta situação causada pela arguida, fez com que a assistente deixasse de andar tão alegre e divertida, tendo-se afastado do voluntariado.

III.5 — Nas declarações prestadas por MCSV (escriturária da APCO) e FT (motorista da APCO) os quais, em suma, referiram que esta situação criada pela arguida afectou a assistente, que era uma motorista querida por utentes e colegas e que se passou a isolar mais (ficava mais dentro da carrinha, "morreu um bocadinho"), porém, não demonstraram saber assim tanto da vida da assistente, nomeadamente, que já antes dos factos, a assistente vinha tratando uma depressão (cfr. declaração médica de fls. 146 dos presentes autos).
FT, condutor habitual da carrinha em causa e que costuma fazer o trajecto pelo Bairro do Simplício, referiu que, em Junho, o Sol não incide sobre aquela porque "há uma casa que esconde o Sol".

III.6 — Na prova documental constituída por:

- Declarações, em fls. 27 e 28;
Pedido de acção correctiva preventiva, em fls. 72, 364 e 365;
Declaração médica, em fls. 146;
Documentos juntos pela assistente, em fls. 114 a 131.

Quanto às condições de vida da arguida, teve-se em consideração o relatório social, em fls. 329 e ss.

Os antecedentes criminais da arguida MJBA mostram-se certificados em fls. 258 dos presentes autos.
Para a determinação da factualidade não provada, o Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, tomando em consideração, designadamente, o facto de não ter sido confirmado, por qualquer testemunha ou documento, o teor das alíneas a) a i) dos factos não provados.
Com efeito, as duas testemunhas arroladas pela arguida (já que as testemunhas AF e RB foram dispensadas), inquiridas em audiência, não puderam ser muito valoradas, uma vez que AR referiu não ter assistido a nada do que se trata neste autos e VR (marido da arguida) só tinha conhecimento dos factos através do que lhe fora transmitido pela arguida.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
1.ª – Que foi por ter avaliado mal a prova testemunhal produzida em julgamento que o tribunal a quo deu como provada a matéria de facto como tal descriminada na sentença recorrida; e
2.ª – Que, de qualquer forma, não estão preenchidos quer o elemento objectivo, quer o subjectivo, do crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo art.º 364.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.
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Vejamos:
No tocante à 1.ª das questões postas, a arguida impugna a matéria de facto assente como provada nos pontos 9 a 12 e 17-18, com base no teor dos depoimentos em julgamento prestados pela assistente, MJCVG, e pelas testemunhas CGPSC, na altura colega da assistente, e AMCTM, Directora Técnica da APCO.
Aqueles pontos 9 a 12 e 17-18 têm o seguinte teor:
9) A arguida dirigiu-se à senhora Directora Técnica da APCO e narrou-lhe factos descritos em 6), que sabia não corresponderem à verdade.
10) Sabia a arguida que, por narrar tais factos falsos, poderia ser instaurado processo disciplinar contra MJCVGM, o que quis, mas não conseguiu por razões alheias à sua vontade.
11) A arguida MJBA sabia que MJCVGM era funcionária da referida instituição e se encontrava no exercício das suas funções, tendo actuado da forma descrita, precisamente, por isso.
12) No que diz respeito ao crime de denúncia caluniosa, a arguida agiu sempre de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

17) Após o sucedido a assistente teve de voltar ao início do tratamento, passando a tomar um comprimido para a depressão, todos os dias.
18) Após o sucedido a assistente começou a ter dificuldades em dormir, a isolar-se e passou a andar mais calada e a não se disponibilizar para fazer na APCO outras tarefas e actividades (em regime de voluntariado), como antes fazia.

Temos pois que ir ouvir as gravações da prova produzida em julgamento, designadamente a indicada pelo recorrente, para aferir o que se passou.
Não olvidando o ensinamento de Germano Marques da Silva, in Fórum Justitiae, Ano 1, n.º 0, pág. 22, de que «o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância».
Acreditar num depoente e não acreditar noutro é uma questão de convicção. Essencial é que a explicação do tribunal porque é que acredita naquele e já não acredita no outro seja racional e tenha lógica.
E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova.
Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.
Aliás, segundo recentes pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação presencial, apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra, sendo que o tom de voz e a fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder – vide Lair Ribeiro, “Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14. Ora se a audição de uma gravação permite fruir com fidelidade aqueles 7% de capacidade de influência exercida através da palavra e ainda, mas nem sempre, os 38% referentes ao tom de voz, sobram os 55% referentes à fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, a que o tribunal de 2.ª Instância nunca terá acesso.
É que há sempre coisas que os juízes de julgamento viram enquanto ouviam e não ficaram na gravação e das quais, por isso, o tribunal de recurso nunca se aperceberá, sendo por vezes precisamente essas que fazem a diferença e levam o tribunal a quo a tombar para o lado do provado em vez do não provado ou vice-versa.
Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a oralidade e a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.
A prova testemunhal não é, pois, para ser avaliada aritmeticamente. Ou como se o depoimento de uma testemunha fosse para ser considerada com o rigor de uma escritura de um notário.
Por isso é que o art.º 127.º, do Código de Processo Penal, dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente; salvo quando a lei dispuser diferentemente, o que não é o caso.
Conforme refere o Prof. Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, II-27) as regras ou normas da experiência "são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto, sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade” e a livre convicção "é um meio da descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores".
Certo que a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objectivável e motivável – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-11-98, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, III-201.
Mas quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum – acórdãos do STJ de 6-3-02, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.002, II-44 e da Relação de Évora de 25-5-04, Colectânea de Jurisprudência, 2.004, III-258.
No caso dos autos e em última análise, o que o recorrente pretende é substituir a convicção do tribunal pela sua. Mas não basta que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal "a quo" por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção ‘era possível’. Exige-se-lhe que indique a prova que imponha uma outra convicção.
De resto, do que o art.º 412.º, n.º 3 al.ª b), do Código de Processo Penal, fala é da indicação pelo recorrente das provas que imponham uma decisão diversa da recorrida, não de provas que eventualmente também permitam outra decisão de facto.
Na verdade, e no tocante às imputações descritas no ponto 6 – que a arguida não nega que tenha feito à assistente – e ao teor dos pontos 9 a 12 dos factos provados, a testemunha AMCTM, Directora Técnica da APCO, contou em tribunal que a arguida se lhe dirigiu e, referindo-se à assistente, disse: Que instituição é esta que deixa uma motorista com os utentes, com uma carrinha ao sol, enquanto está a conversar com as pessoas. Mais adiantou a testemunha ter informado a arguida que face ao seu relato iria abrir um procedimento interno onde registamos a situação. Mesmo sem haver reclamações no livro podia haver processo disciplinar se fosse grave.
E a testemunha CGPSC declarou:
M.P. – "Relativamente a esta situação, a assistente, a MJCVG – como se referiu – fez algum gesto, nesta altura quando houve as buzinadelas?"
CGPSC – "Sim, ela disse, mas o que é que se passa com aquela senhora? Foi isto que ela..."
M.P. – "E disse-lhe alguma ela, à senhora? A senhora estava dentro do carro, a outra estava cá fora. Trocaram algumas palavras?"
CGPSC: "Não, não."
M.P. – "Alguma vez constatou, aquela carrinha transportava pessoas com deficiência, que a carrinha quando fosse estacionada e a senhora estivesse na conversa consigo que as crianças ficavam apostas ao sol?"
CGPSC: "Não. Porque aquilo eram, portanto, para já a MJCVG não fazia aquela volta. Foi substituir um colega. E além disso aquilo foi à tarde e já batia lá sombra, não estavam ao sol."
(…)
Advogada da assistente: "E a carrinha, quando a MJCVG a estacionou, estava a impedir a passagem dos carros?"
CGPSC: "Não, não, não!"
Advogada da assistente: "Ela passou?"
CGPSC: "Passou".
Advogada da assistente: "E passou pela estrada ou teve que subir por cima de algum passeio?"
CGPSC: "Não, não, não. Ela passou porque a carrinha da MJCVG estava junto mesmo ao passeio mesmo junto à parede da minha casa e as outras casas estavam a fazer sombra à própria carrinha."

E FT (o motorista que no dia dos factos a assistente estava a substituir):
Mmo. Juiz: "Onde o senhor costuma estacionar a sua carrinha, por volta desta hora à tarde, bate ali o sol na carrinha ou não?
(…)
FT: "Não bate o sol porque a outra casa encobre o sol."
Mmo. Juiz: "Há uma casa que encobre o sol?"
FT: "Sim."

No tocante ao teor dos factos 17-18 dos factos provados, a testemunha CGPSC declarou:
Era uma pessoa muito comunicativa, muito activa e depois daí ela começou a ficar ... ela até ia sempre à sala, ajudar-nos das actividades com eles, apesar de ser motorista, e ela depois já não fazia isso tão frequentemente porque ela isolava-se, tentava-se isolar e ficava dentro da carrinha a ler ou prontos, não sei. E não ia lá ajudar tantas vezes como ia dantes. ( ..) Vi que ela ficou mais, prontos, constrangida com esta situação.
E FT:
FT - "A partir disto ela começou a ser diferente. Diferente nela, não para os clientes".
Advogada da assistente: "Explique-me lá senhor FT o que é que notou e se ela lhe explicava a si porque é que ... então explique-me lá se faz favor."
FT: "Ela isolava-se na carrinha e depois pensava só nisto e que tinha uma reclamação na instituição que poderia lhe fazer mal, para o trabalho dela, não se sentia bem e começou a dizer que se calhar tinha que deixar e pensava muito naquilo. Eu às vezes ia, falava com ela e ela punha-se a ler livros.(...) Ela dizia-me às vezes que estava duas, três noites sem conseguir dormir só pensando nesta senhora que lhe foi fazer aquela reclamação no trabalho dela que não tinha motivo para o fazer.
(…)-
FT – " Ela levou ali muito tempo a isolar-se na carrinha, quando não tinha nada para fazer, e a não queria convívio quase com ninguém".
Além de que o teor dos aludidos pontos 17-18 dos factos provados se encontra também corroborado pela declaração médica de fls. 146.
Quanto ao aspecto relacionado com as dificuldades em dormir, que só assistente sabe porque ninguém dormia consigo, aceitou o tribunal "a quo" as declarações da própria a esse respeito como credíveis – o que fez ao abrigo da sua livre convicção e das regras da experiência da vida.

Assim, ouvida a prova, designadamente a indicada pela arguida, não alcança este tribunal "ad quem" aonde é que as testemunhas aludidas pela arguida na motivação do seu recurso infirmam a matéria de facto assente como provada que a recorrente agora impugna.
De resto, se a arguida ouviu a mesma prova que nós ouvimos, nem se percebe como foi recorrer da matéria de facto que impugnou.
Pelo que, analisando o conteúdo das gravações da prova testemunhal produzida em julgamento, conjugada entre si e com as regras da experiência e da normalidade, nada se pode criticar à matéria de facto assente como provada.
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No tocante à 2.ª das questões postas, a de que, de qualquer forma, não estão preenchidos quer o elemento objectivo, quer o subjectivo, do crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo art.º 364.º, n.º 1 e 2, do Código Penal:
Recorde-se que a arguida vinha acusada de ter cometido:
-- Um crime de difamação agravada, p. e p. pelos art.º 180.°, n.° 1, 184.°, 132.°, n.° 2 al.ª l) e 386.°, n.° 1 al. d), do Código Penal; e
-- Um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.°, n.º 1 e 2, do Código Penal.
Realizado o julgamento, a arguida foi absolvida da prática daquele crime de difamação agravada e condenada pela prática daquele crime de denúncia caluniosa.
Para chegar a tal resultado, o tribunal "a quo" expendeu os seguintes considerandos de direito:

IV – ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS
IV.1 – DO CRIME DE DENÚNCIA CALUNIOSA
Vem a arguida, para além do mais, acusada da prática, como autora material, de factos susceptíveis de integrarem um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365°, n.°s 1, e 2, do C.P.
Se bem que não seja uma questão pacífica, somos de parecer que o bem jurídico protegido pela incriminação em apreço tem uma estrutura complexa, o interesse na boa realização da justiça e o interesse dos acusados contra o prejuízo resultante de imputações maliciosas (vide Manuel da Costa Andrade in "Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Artigos 308° a 386°"; Coimbra Editora, Março de 2001, pág. 529).
"O tipo objectivo consiste na denúncia ou no lançamento de suspeita da prática de crime, contra-ordenação ou infracção disciplinar contra determinada pessoa, perante autoridade ou publicamente. (...)
O tipo subjectivo só admite o dolo directo, uma vez que se exige a «consciência da falsidade da imputação» (essa foi a vontade expressa da comissão de revisão do C.P. de 1966, in ACTAS C.P./EDUARDO CORREIA, 1979: 460). O tipo inclui ainda um elemento subjectivo adicional: a intenção que se instaure contra o visado procedimento criminal, contra-ordenacional ou disciplinar, consoante os casos. É irrelevante o que o denunciante quer em relação ao desfecho do procedimento."[1]
Atenta a factualidade apurada não restam dúvidas que a arguida MJBA imputou falsidades relativamente à actuação da assistente, dirigiu-se à Direcção da APCO, entidade patronal daquela, descrevendo-a concretamente, de modo a que pudesse ser identificada. Nem o facto de, após uma hora de queixas contra os profissionais da APCO e a população de Odemira em geral, a arguida ter referido que não queria formalizar a sua participação no livro de reclamações, a mesma teve conhecimento que iria ser levantado um procedimento interno de "[a]cção correctiva preventiva" e continuou a insinuar a gravidade do ocorrido, pois iria recorrer ao marido, que trabalhava no Tribunal, para punir os infractores.
Acrescente-se que "[a] denúncia é caluniosa mesmo que seja parcialmente verdadeira. A inclusão numa denúncia de factos verdadeiros e de factos falsos, bem como a omissão numa denúncia de factos verdadeiros de outros factos, também verdadeiros, que excluem a responsabilidade criminal do visado, constituem condutas ilícitas. "[2]
Sobre o direito dos cidadãos a participar criminal e disciplinarmente, e os seus limites, veja-se o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Abril de 2012 (processo n.° 4797/07.9TVLSB.L2.S1, in www.dgsi.pt).
A arguida agiu livre e voluntariamente, com a consciência de que a sua conduta era proibida por lei.
Da matéria de facto apurada não se afigura existir qualquer circunstância que exclua a ilicitude ou a culpa da arguida.
Em suma, a arguida preencheu, com a sua apurada conduta, os elementos objectivo e subjectivo do tipo; pelo que cometeu, assim, um dos crimes pelo qual se encontra acusada.

IV.2 — DO CRIME DE DIFAMAÇÃO AGRAVADA

Vem, ainda, a arguida acusada da prática, como autora material, de factos susceptíveis de integrarem um crime de difamação agravada.
No que diz respeito a tal, in casu, o Ministério Público considerou serem de aplicar os seguintes artigos:
"180°
Difamação
1 – Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.".
Artigo 184.°
Agravação
As penas previstas nos artigos 180. 0, 181.° e 183. ° são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea 1) do n.° 2 do artigo 132. °, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.
Artigo 132.º
Homicídio qualificado
2 — E susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(..)
1) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão de governo próprio das Regiões Autónomas, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ou ministro de culto religioso, juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas; ' .
Artigo 386.° Conceito de funcionário
1 Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
(…)
d) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.

De acordo com a doutrina tradicional, a ofensa à honra é "a ofensa a esse sentimento da própria dignidade e do decoro que toda a gente, no seu íntimo, põe acima de todas as coisas (honra subjectiva) e a esse património moral de estima e de reputação, junto dos outros, que qualquer pessoa adquira e de que goze vivendo em sociedade (honra objectiva), os quais podem ser ofendidos por meio de actos ou de palavras de outra pessoa''.[3]
Por outro lado, já se sustentou que "o interesse jurídico que a lei protege (..) refere-se ao bem material da honra, entendida esta, quer como o sentimento da nossa dignidade própria (honra interna, honra subjectiva), quer como o apreço e respeito de que somos objecto ou nos tornamos merecedores perante os nossos concidadãos (honra externa, honra objectiva, boa reputação, boa fama). Assim como o Homem tem direito à integridade do seu corpo e do seu património económico, tem-no igualmente à indemnidade do seu amor-próprio (...) e do seu património moral (...) a honra é um bem precioso, pois a ela está necessariamente condicionada a tranquila participação do indivíduo nas vantagens da vida em sociedade”.[4]
Na previsão legal do crime de difamação fala-se em ofensa à honra ou consideração. A honra refere-se à supra citada "honra subjectiva", ao passo que a consideração será a reputação da pessoa, a estima que o homem soube, pelos seus actos, conquistar ("honra objectiva")[5] – cfr. na distinção destes conceitos, Lopes da Silva Araújo in "Crimes Contra a Honra", Coimbra Editora, 1957, págs. 90 a 97.
Apesar de haver jurisprudência que propugne a ocorrência de uma situação de concurso efectivo entre os crimes de denúncia caluniosa e de difamação, tal não é da aplicação automática a todas as situações, isto porque "toda a participação ou queixa criminal contém, em regra, objectivamente, uma ofensa à honra, por comunicar a prática de factos configuradores de um comportamento criminoso. A denúncia de um crime, quando identificado o seu autor ou o suspeito de o ter cometido, objectivamente, atinge a honra do denunciado. Apesar disso, é evidente que ninguém pode ser impedido de participar um facto delituoso" (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2010, proc. n.° 1/09.3YGLSB.S2, in www.dgsi.pt).
O Prof. Costa Andrade, por exemplo, considera que, em princípio estamos perante uma situação de concurso aparente: "também os problemas do concurso resultam em boa medida prejudicados logo ao nível do bem jurídico. A adopção de um bem jurídico individual predetermina, desde logo, as relações com os crimes contra a honra (arts. 180° e ss.), por princípio subsumíveis na figura e no regime do concurso aparente" (in "Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Artigos 308°a 386°"; Coimbra Editora, Março de 2001, pág. 554).
Com efeito, como acima se transcreveu, todo o cidadão que deduz uma participação contra um determinado funcionário por, alegadamente, ter praticado uma infracção disciplinar (v.g. deixar os utentes dentro de uma carrinha, a ser fustigada pelo Sol, enquanto vai falar com uma colega), tem ínsita a consideração de que a denunciada é incompetente para a função para a qual foi contratada, porém, a intenção do agente não é afectar a honra e consideração da visada, mas sim, e apenas, que mesma seja sujeita a processo disciplinar e, eventualmente, castigada por uma determinada atitude.
Perante o que fica dito, não consideramos que seja ofensivo da honra e consideração, da assistente, o facto de a arguida ter dito à Directora Técnica da APCO que aquela "costumava ficar no meio da rua a conversar enquanto os utentes estavam dentro da carrinha expostos ao Sol".
Por todo o acima exposto, no que a este segundo crime diz respeito, consideramos que a arguida deve ser absolvida do mesmo.

O sublinhado precedente é do ora relator.
Em resumo: o tribunal "a quo" considerou que a matéria de facto assente como provada integrava a prática pela arguida de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.°, n.º 1 e 2, do Código Penal – e condenou-a.
E considerou que a matéria de facto assente como provada não integrava a prática pela arguida de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos art.º 180.°, n.° 1, 184.°, 132.°, n.° 2 al.ª l) e 386.°, n.° 1 al. d), do Código Penal – e absolveu-a.
Com tal decisão se conformou o M.º P.º e a assistente.
De tal decisão recorreu apenas a arguida.
Acontece que Paulo Pinto de Albuquerque, no seu "Código Penal Anotado", pág. 855 – de resto citada na nota de rodapé 2 da decisão recorrida, embora que não na parte que segue –, diz o seguinte, na anotação 8, e que sufragamos inteiramente:
A denúncia deve imputar um ou mais crimes, contra-ordenações ou infracções disciplinares de natureza pública. Isto é, só as infracções disciplinares que sejam perseguidas por uma autoridade pública são subsumíveis ao tipo da denúncia caluniosa, dada a inserção sistemática deste nos crimes contra a autoridade pública (também assim, COSTA ANDRADE, anotação 62.ª ao artigo 365.°, in CCCP [6], 2001, com o argumento teleológico assente na "danosidade particularmente qualificada" da incriminação. A denúncia caluniosa de infracções disciplinares que não sejam perseguidas por uma autoridade pública está sujeita à incriminação geral da difamação.
E também Costa Andrade, em "Comentário Conimbricence do Código Penal", 2001, tomo III, a pág. 546-547, nas anotações 62.ª e 63.ª ao artigo 365.°, expende, num entendimento que também acompanhamos por inteiro, que estando a tipificação dos crimes e das contra-ordenações sujeita a princípios de legalidade, não se suscitarão dificuldades quanto à determinação dos comportamentos relevantes como crimes ou contra-ordenações para efei­tos de denúncia caluniosa. Já será diferente do lado da falta disciplinar, con­ceito que abrange um espectro extenso e diversificado de possíveis ilícitos dis­ciplinares. Que vão desde o ilícito disciplinar no núcleo mais restrito da administração estadual, até às formas mais periféricas de organização social (v. g., no âmbito da empresa, de um clube recreativo ou cultural).
O intérprete e aplicador da lei terá de fazer caminho buscando soluções de equilíbrio entre duas ordens antagónicas de exigências. Por um lado, a natu­reza do bem jurídico típico e o subjacente programa político-criminal de pro­tecção das pessoas contra todas as manifestações de agravo ou compressão injusta da sua liberdade, a reclamar a maximização do universo de ilícitos disciplinares relevantes para efeito de Denúncia caluniosa. Por outro lado e inversamente, resulta líquido que a incriminação tem implícito um juízo de danosidade particularmente qualificada: a perseguição de inocentes no âmbito de relações de poder e autoridade. O que aponta para a restrição da tipicidade ao ilícito disciplinar que desencadeia sanções de natureza pública (…).

§ 63 Cremos assim que só assumirá relevo típico o ilícito disciplinar no âmbito da administração pública, no seu sentido mais compreensivo. Abran­gendo tanto a administração estadual como regional ou local. E tanto a admi­nistração directa como a administração indirecta (através de institutos públi­cos, as Universidades, etc.) ou a administração autónoma, como as associações públicas.[7] Onde se incluem seguramente as faltas disciplinares da competên­cia das associações profissionais de natureza pública e particularmente as "Ordens" (v. g., dos médicos, advogados ou engenheiros). O mesmo valerá ainda para o ilícito disciplinar no âmbito da administração independente, como o Provedor de Justiça ou os Conselhos das Magistraturas. Já não assu­mirão relevo típico as faltas disciplinares da competência das organizações reli­giosas, políticas (v. g., partidos), sindicais, patronais, desportivas, etc. A sua denúncia infundada terá, por isso, de ser equacionada no âmbito dos crimes contra a honra.[8]
Ora, de acordo com o ponto 1 dos factos provados, a Associação de Paralisia Cerebral de Odemira (APCO), a cuja directora a arguida foi denunciar a assistente, é uma instituição particular de solidariedade social, sem fins lucrativos, reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública (publicação em DR III Série, de 20.04.2005).
Segundo o art.º 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25-2, e de acordo com a sua actualização pelos diplomas legais posteriores até à data da ocorrência dos factos a que se reportam estes autos, são instituições particulares de solidariedade social as pessoas coletivas, sem finalidade lucrativa, constituídas exclusivamente por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de justiça e de solidariedade, contribuindo para a efetivação dos direitos sociais dos cidadãos, desde que não sejam administradas pelo Estado ou por outro organismo público.
E de acordo com o estatuído no art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7-11, são pessoas colectivas de utilidade pública as associações ou fundações que prossigam fins de interesse geral, ou da comunidade nacional ou de qualquer região ou circunscrição, cooperando com a administração central ou a administração local, em termos de merecerem da parte desta administração a declaração de utilidade pública.
Assim, a Associação de Paralisia Cerebral de Odemira (APCO) não tem a natureza de autoridade pública que emana da administração, quer directa, quer indirecta, estadual, regional ou local, necessária a que uma denúncia falsa efectuada perante si seja considerada para lá do âmbito da difamação para integrar o ilícito da denúncia caluniosa.
Logo, a arguida não cometeu o crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.°, n.º 1 e 2, do Código Penal – pelo qual a 1.ª Instância a condenou.
O ilícito que poderia ter sido cometido seria o de difamação agravada, p. e p. pelos art.º 180.°, n.° 1, 184.°, 132.°, n.° 2 al.ª l) e 386.°, n.° 1 al. d), do Código Penal – pelo qual a 1.ª Instância a absolveu.
Mas como só a arguida recorreu, o resultado é a absolvição total desta.
IV
Termos em que se concede total provimento ao recurso e em consequência se absolve a arguida e recorrente MJBA do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.°, n.º 1 e 2, do Código Penal, pelo qual fora condenada na 1.ª Instância.
Não é devida tributação (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Évora, 16-06-2015
(elaborado e revisto pelo relator)

João Martinho de Sousa Cardoso

Ana Maria Barata de Brito
_________________________________________________
[1] Vide Paulo Pinto de Albuquerque in "Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem", Universidade Católica Editora, Lisboa, Dezembro de 2008, págs. 855 e 856.
[2] Vide Paulo Pinto de Albuquerque in "Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem", Universidade Católica Editora, Lisboa, Dezembro de 2008, págs. 855.
[3] Vide Borciani in "As Ofensas à Honra", tradução portuguesa, 1950, Coimbra, pág. 5.
[4] Vide Nelson Hungria in "Comentários ao Código Penal", vol. VI, 4a edição, Rio de Janeiro, 1958, pág. 39.
[5] Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Fevereiro de 1996 in C.J., XXI, tomo 1, 156: "I – A difamação pode definir-se como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social. II – A difamação, segundo a lei, compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém. III – Por honra deverá entender-se o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja, a dignidade de cada um. IV – Por consideração deverá entender-se o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública".
[6] Que é o "Comentário Conimbricence do Código Penal".
[7] Os sublinhados são do ora relator.
[8] No mesmo sentido: Código Penal Anotado e Comentado por Víctor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, 2008, Quid Juris, pág. 884, anotação 13.