Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
850/22.7T8FAR-C.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
MOMENTO DE OFERECIMENTO DA PROVA
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O artigo 598.º não se aplica à prova documental, uma vez que esta está sujeita a um regime próprio de apresentação.
2 – Independentemente da faculdade de alteração do requerimento probatório relativamente aos restantes meios de prova, a prova documental está sujeita a um regime particular quanto ao seu momento de apresentação, que é provisionado nos artigos 423.º a 425.º do Código de Processo Civil.
3 – Os documentos devem ser apresentados, em princípio, com os articulados em que são alegados factos, embora ainda possam ser juntos, sem outros entraves, até 20 dias antes da audiência final, sujeitando-se a parte apenas ao pagamento de uma multa, tal resulta do texto do n.º 2 do artigo 423.º do Código de Processo Civil.
4 – Fora deste limite temporal a respectiva admissão não sancionada tem de resultar de superveniência objectiva ou subjectiva ou por via de necessidade de ocorrência posterior ou da circunstância de o suporte documental ainda não estar constituído àquela data e, bem assim, da sobreposição dos princípios da gestão processual, da cooperação ou do inquisitório.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 850/22.7FAR-C.E1
Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central ... – J...
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção de condenação proposta por AA contra BB e CC, a Autora veio interpor recurso do despacho que a condenou no pagamento de uma multa por apresentação tardia de documentação.
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A Autora apresentou requerimento probatório com a petição inicial, protestando juntar prova documental.
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Em 15/03/2022 a parte apresentou requerimento em que pediu a junção de diversos documentos, dizendo que «completa assim a junção de documentos protestados juntar na p.i., não tendo mais documentos a juntar nesta fase processual».
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Em 11/07/2022 realizou-se a audiência prévia e a Autora requereu a junção de novos documentos.
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Na parte que aqui releva o despacho recorrido tem o seguinte conteúdo: «Admito a junção aos autos dos documentos apresentados na audiência prévia pela autora, já admitidos liminarmente nessa sede. Porém, uma vez que não foi feita prova de que os mesmos não pudessem ser oferecidos com a petição inicial determino a condenação da apresentante em multa que se fixa no mínimo legal (artigo 423.º, n.º 2, do C.P.C.).
Notifique».
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A recorrente não se conformou com a referida decisão e o articulado de recurso continha as seguintes conclusões:
«A) A A. apresentou requerimento probatório com a p.i. que apresentou em Juízo.
B) A A. requereu a junção de documentos na audiência prévia, os quais se mostraram necessários em consequência da defesa apresentada pelos RR.
C) A A. praticou este último ato no local e no momento próprio da tramitação processual, porquanto a alteração do requerimento probatória prevista no n.º 1 do artigo 598.º do C.P.C., não conhece restrições como se afirma naquele aresto.
D) O despacho recorrido, ao condenar a A. em multa violou o disposto no n.º 1 do artigo 598.º do C.P.C..
E) Consequentemente, o despacho recorrido deve ser revogado.
Assim, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência deve a condenação em multa constante do despacho recorrido ser revogada».
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Não houve lugar a resposta.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da questão da aplicação da multa sancionatória pela apresentação de prova documental.
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III – Dos factos:
Os factos interesse para a justa resolução do caso são aqueles que constam do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
O presente recurso está sustentado na diferente interpretação quanto à disciplina aplicável ao momento da apresentação da prova por documentos, face ao disposto no artigo 423.º[1] do Código de Processo Civil, na sua relação interactiva com o artigo 598.º[2] do mesmo diploma.
O Tribunal a quo entendeu que, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 423.º do diploma sub judice, havia lugar ao pagamento de multa, por a documentação em causa não ter sido junta com o articulado respectivo.
Nesta óptica, os documentos devem ser apresentados, em princípio, com os articulados em que são alegados factos, embora ainda pudessem ser juntos, sem outros entraves, até 20 dias antes da audiência final, sujeitando-se a parte apenas ao pagamento de uma multa, tal resulta do texto do n.º 2 do artigo 423.º do Código de Processo Civil. Fora deste limite temporal a respectiva admissão tem de resultar de superveniência objectiva ou subjectiva ou por via de necessidade de ocorrência posterior[3].
A recorrente discorda deste entendimento e invoca que se está perante uma alteração do requerimento probatório, a qual se situa no momento temporal admissível, não podendo assim a parte ser sancionada nos termos em que o foi.
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A lei estabelece um ónus de apresentação do requerimento probatório com a alegação do facto a provar, prescrevendo o dever de o apresentar em determinado momento processual, admitindo a sua alteração nos casos previstos no n.º 1 do artigo 598.º do Código de Processo Civil.
Miguel Teixeira de Sousa entende que os requerimentos probatórios apresentados pelas partes podem ser alterados na audiência prévia, quer quando esta se realize nos termos da lei, quer quando ela seja imposta potestativamente por qualquer das partes[4].
Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro pugnam também que a alteração do requerimento probatório pressupõe que já tenha sido apresentado um requerimento que então se altera. Dizem que «essa modificação pode, todavia, ser da mais diversa ordem, desde a ampliação do rol de testemunhas – dentro dos limites fixados por lei –, até à apresentação de diferentes meios de prova, passando pelo requerimento de notificação das testemunhas já arroladas»[5].
De acordo com a visão de Paulo Pimenta a alteração prevista no n.º 1 do artigo 598.º do Código de Processo Civil, «não parece conhecer restrições, apenas se exigindo que a parte tenha apresentado inicialmente requerimento probatório, condição para se falar em alteração»[6].
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre referem igualmente que as partes podem alterar na audiência prévia, por substituição ou ampliação, a proposição da prova constituenda[7].
No seu comentário Lopes do Rego também realça que o regime precedente assentava numa tendencial imutabilidade dos requerimentos probatórios, que se apresentava como excessivamente restritivo, amarrando as partes, sem justificação plausível, a provas que foram indicadas com enorme antecedência[8].
Como resulta da jurisprudência pioneira neste domínio, «convém estabelecer desde já a distinção entre as duas situações. Uma coisa é alterar o requerimento probatório, que pode abranger prova pericial, documental, testemunhal, etc., outra coisa, bem mais limitada, é alterar ou aditar o rol de testemunhas, que é apenas um dos segmentos do requerimento probatório.
Também os tempos de apresentação desses pedidos são diferentes. Enquanto a alteração do requerimento probatório pode ocorrer na audiência prévia, quando a esta haja lugar, o rol de testemunhas pode ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final»[9] [10].
É indiscutível que as partes podem substituir as testemunhas constantes do rol que apresentaram no momento próprio ou aditar testemunhas a esse mesmo rol, sem que se lhes exija qualquer justificação para a substituição ou para o aditamento, ao abrigo do disposto no artigo 598.º do Código de Processo Civil.
Também é aceite que a alteração do requerimento probatório pode ter razões de diversa ordem, que passam tanto pela ampliação do rol de testemunhas como pela apresentação de diferente meio de prova[11].
Na alteração prevista naquele preceito inclui-se a hipótese de a parte requerer meios de prova não indicados inicialmente, pelo que constitui lícita alteração de requerimento probatório a circunstância de vir arrolar testemunhas ou requerer perícia, quando, com a petição inicial ou com a contestação, apenas havia apresentado documentos para prova dos fundamentos da acção ou defesa[12].
Na sequência de ter apresentado requerimento probatório com a petição inicial, a parte activa não está impedida de, face à contestação apresentada e ao modo como os temas de prova foram enunciados, apresentar outros meios de prova meios de prova distintos ou complementares.
Efectivamente, o aditamento ou a alteração é balizada em função de dois parâmetros fundamentais: a necessidade de actuação da regra do contraditório e a salvaguarda da realização da audiência no tempo programado[13].
Esse direito de apresentação de novos documentos foi exercitado e os meios de prova foram admitidos, não existindo aqui qualquer violação ao exercício do direito à prova. Aliás, a Meritíssima Juíza de Direito concluiu que a apresentação de novos documentos constituía uma lícita alteração de requerimento probatório, tal como o fez o acórdão que fundamenta o recurso interposto, embora este noutro enquadramento[14].
Porém, nenhum dos acórdãos ou dos contributos doutrinais acima chamados à colação trata da questão que constitui o objecto do presente recurso. Todos eles se pronunciam sobre a matéria da admissibilidade de novos meios prova em sede de audiência prévia, mas não se debruçam quanto ao regime específico da junção de documentos. Estas alternativas correspondem a questões conceptualmente distintas.
Aquilo que se pergunta nesta sede é se a junção de nova prova documental nos termos em que foi operacionalizada pode ser sancionada com o pagamento de multa?
O artigo 598.º do Código de Processo Civil não tem como efeito directo desacreditar ou retirar eficácia à previsão normativa do artigo 423.º do mesmo diploma e a inversa é igualmente verdadeira.
Com efeito, o artigo 598.º não se aplica à prova documental, uma vez que esta está sujeita a um regime próprio de apresentação, como bem salientam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[15]. E esta posição é partilhada por Abrantes Geraldes que menciona a necessidade de compatibilização quanto à prova documental e prestação de declarações de parte[16].
Na realidade, independentemente da faculdade de alteração do requerimento probatório relativamente aos restantes meios de prova – igualmente excepcionado para o requerimento de prova por declarações de parte nos termos do artigo 466.º[17] do Código de Processo Civil –, a prova documental está sujeita a um regime particular quanto ao seu momento de apresentação, que é provisionado nos artigos 423.º a 425.º do diploma em análise.
É certo que as regras sancionatórias do convocado artigo 423.º do Código de Processo Civil podem não ser aplicáveis por via da sobreposição dos princípios da gestão processual, da cooperação ou do inquisitório (exemplificando, quando o Tribunal determina posteriormente que uma das partes ou um terceiro junte um determinado suporte) e, bem assim, sempre que a incorporação subsequente nos autos seja justificada pela impossibilidade objectiva ou subjectiva de apresentação, o documento se reporte a ocorrência posterior susceptível de integrar um articulado superveniente ou da circunstância de o suporte documental ainda não estar constituído àquela data.
Neste caso particular, o apresentante do documento não apresentou qualquer justificação para apresentação tardia nem solicitou a dispensa de pagamento de multa por qualquer dos fundamentos legalmente admissíveis. E, assim, ainda que prevaleça um critério de aplicação formal, o Tribunal de Primeira Instância estava legitimado a decidir nos termos em que o fez e os argumentos recursivos não impõem a revogação daquela decisão.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso apresentado, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 30/03/2023
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Alves Simões


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[1] Artigo 423.º (Momento da apresentação):
1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2 - Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
[2] Artigo 598.º (Alteração do requerimento probatório e aditamento ou alteração ao rol de testemunhas):
1 - O requerimento probatório apresentado pode ser alterado na audiência prévia quando a esta haja lugar nos termos do disposto no artigo 591.º ou nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 593.º.
2 - O rol de testemunhas pode ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade, no prazo de cinco dias.
3 - Incumbe às partes a apresentação das testemunhas indicadas em consequência do aditamento ou da alteração ao rol previsto no número anterior.
[3] Para melhor compreensão, pode ser consultado o comentário de José Lebre de Freitas e de Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 238-241.
[4] Miguel Teixeira de Sousa em “Questões sobre matéria da prova no nCPC”, publicado em 01/03/2014 no blog do IPPC.
[5] Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 519.
[6] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 296, nota 679.
[7] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3.ª edição, Almedina, págs. 644-645.
[8] Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. I, 2ª ed., pág. 448.
[9] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12/05/2015, cujo texto pode ser encontrado em www.dgsi.pt.
[10] Formulação esta replicada no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/10/2019, pesquisável em www.dgsi.pt.
[11] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/06/2020, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[12] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/11/2019, consultável em www.dgsi.pt.
[13] Neste sentido, pode ser consultado o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/12/2015, publicitado em www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/04/2019, pesquisável em www.dgsi.pt.
[15] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 676.
[16] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I (Parte Geral e Processo de Declaração), 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 758.
[17] Artigo 466.º (Declarações de parte):
1 - As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.
2 - Às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.
3 - O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.