Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3673/21.7T8FAR-D.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
NORMAS DE CONFLITOS
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O Reino Unido é configurado como um ordenamento jurídico plurilegislativo, mas no referido sistema normativo não há um conjunto de regras unificadas de direito interlocal nem existem regras de conflito que prevejam a existência de regime supletivo de bens e inventário pós-divórcio.
2 – O extinto casal escolheu estabelecer-se e residir com carácter de permanência e estabilidade e, em função disso, face à impotência da lex patriae em resolver o problema, considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual.
3 – Em processo de inventário realizado em Portugal, todos os bens devem ser considerados para a partilha subsequente ao divórcio que correu termos em Portugal, em função do princípio da unidade e universalidade da partilha.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3673/21.7T8FAR-D.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Família e Menores de Faro – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
Na presente acção de inventário para separação de meações proposta por (…) contra (…), a requerida veio interpor recurso do despacho que considerou a lei portuguesa aplicável ao presente caso.
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Após a apresentação da petição inicial, em 09/02/2023, o Tribunal a quo solicitou ao requerente que esclarecesse qual a nacionalidade dos ex-cônjuges e que juntasse aos autos devidamente traduzida a lei pessoal das partes em matéria de regime de bens e inventário pós-divórcio.
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Em 27/02/2023, o requerente respondeu, dizendo que tanto o requerente como a requerida são nacionais do Reino Unido, pois, apesar de nascido na Irlanda, o visado é naturalizado, enquanto a ex-esposa nasceu na Inglaterra.
Procedeu ainda à junção da documentação requerida.
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Em 01/06/2023, foi o requerente foi nomeado cabeça de casal e foi determinada a citação da requerida.
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Na parte mais relevante, a decisão recorrida têm o seguinte conteúdo: «revertendo ao caso dos presentes autos, verificando-se que inexiste, no direito interno do Reino Unido, normas que fixem, em cada caso, o sistema aplicável (normas de direito internacional privado) e, igualmente, que inexistem normas de direito interlocal, importa atender ao disposto no artigo 20.º, n.º 2, do Código Civil, que prevê que “2. Na falta de normas de direito interlocal, recorre-se ao direito internacional privado do mesmo Estado; e, se este não bastar, considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual.”
Assim sendo, na hipótese de falharem os dois expedientes descritos no artigo 20.º, n.º 1 e n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil, a aplicação da lei nacional do interessado é substituída pela lei da residência habitual, ainda que esta não coincida com o Estado de que aquele é nacional.
(…)
Não sendo aplicável, in casu, nenhum dos expedientes descritos no artigo 20.º, n.º 1 e n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil, entendemos que à presente causa deve ser aplicável a lei da residência habitual do ex-cônjuges, enquanto a sua lei pessoal.
Resultando dos presentes autos que os ex-cônjuges vivem em Portugal desde 2019, haverá, assim, que concluir que a lei aplicável ao presente inventário para partilha dos bens comuns do ex-casal é a lei portuguesa.
Salienta-se, por fim, que a tal não obsta o facto de, do acervo hereditário mobiliário e imobiliário do ex-casal, existirem bens localizados fora de Portugal, em particular, em território britânico.
(…)
Atendendo às considerações acima tecidas, ao abrigo do disposto no artigo 20.º, n.º 2, do Código Civil, inexistindo normas de direito internacional privado e de direito interlocal aplicáveis, tendo os ex-cônjuges residência habitual em Portugal, é manifesto que a lei aplicável ao presente inventário é a lei portuguesa».
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A recorrente não se conformou com a referida decisão e as alegações continham as seguintes conclusões:
«A – Antes de mais, importa desde logo referir que, ao contrário do que consta do despacho recorrido o Apelado (…) não é cidadão Inglês, mas sim Irlandês, conforme resulta das certidões de nascimento juntas aos autos principais de divórcio e do seu documento de identificação (Passaporte) indicado no requerimento inicial do Inventário, tendo por isso o despacho recorrido, assentou num pressuposto errado, de que, o ex-cônjuge marido tem nacionalidade Inglesa.
B – A Apelante tem nacionalidade Inglesa e o Apelado Irlandesa, pelo que não tem qualquer aplicabilidade o disposto no artigo 20.º do Código Civil, citado no despacho recorrido.
C – Doutro Passo, olvidou o Tribunal recorrido do disposto no artigo 53.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Civil, de aplicação não cumulativa, pelo que tudo aponta para que a seja, a Lei Inglesa a aplicável ao presente Inventário.
D – Ademais, sendo consabido, que na Lei Inglesa não existe regime de bens de casamento, conforme resulta da Lei do Casamento Inglesa “ato de 1949”, e se depreende das Lei das Causas Matrimoniais Inglesa de 1973, fica então por saber, qual o regime de bens pelo qual o Tribunal Português iria realizar esta partilha!?
E – Além do mais, a decisão recorrida nem sequer esta fundamentada no que diz respeito à questão essencial, que é saber se existe ou não algum tratado ou convenção em vigor sobre esta matéria, celebrada entre Portugal, Inglaterra e República da Irlanda.
F – Sendo manifesto, que tudo até indica que o Tribunal Inglês seja competente para a realização desta partilha, uma vez que no Tribunal Central Family Court, High Holborn, Londres, caso n.º (…), está já em curso um processo destinado a obter a permissão para a manutenção provisória enquanto se aguarda a resolução do pedido substantivo ou principal que é a partilha entre Apelante e Apelado de todos os bens pertencentes ao casal situados em Inglaterra e Portugal com vista a uma divisão justa e razoável – cfr. doc. 1, devidamente traduzido, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
G – Fica também por explicar como é possível o Tribunal Português proceder à aplicação de uma Lei inglesa no âmbito da jurisdição Portuguesa, onde nem sequer está previsto a existência de um regime de bens para o casamento, facto esse, que obviamente irá ter repercussões para a apreciação e decisão, relativa ao quinhão que cabe a cada um dos interessados e da forma pela qual a partilha dos bens poderá ser operada de forma equitativa.
H – Mas mais, como procederão os interessados, caso haja necessidade, remessa dos interessados para os meios comuns, com vista ao apuramento da existência dos bens e/ou da sua titularidade, quanto aos bens situados em Inglaterra!?
I – Se é verdade, que o inventário é caracterizado pelo princípio da universalidade, sendo o seu objetivo a partilha de todos os bens e direitos que integram essa comunhão, seja hereditária ou conjugal, uma só vez, visando-se, desse modo, uma partilha igualitária, não deixa de ser também verdade que tal principio admite desvios e terá de ser postergado, quando não esteja assegurada, por convenção ou tratado, a eficácia da partilha efectuada pelo Tribunal Português de bens situados em país estrangeiro – neste sentido vide Ac. Relação de Coimbra de 13-05-2008, processo n.º 380-B/1999.C1 da relatora Sílvia Maria Pires, consultável em jurisprudencia.pt/acordao/119345/pdf/.
J – Assim sendo, mal andou o tribunal ao ter-se julgado competente bens existentes no estrangeiro (Inglaterra), estribando-se na Lei da nacionalidade dos ex-cônjuges para julgar competente o Tribunal Português quando na realidade o que está em causa não é a lei da nacionalidade, mas outrossim a lei da Territorialidade dos bens a partilhar.
L – Salvo melhor opinião, o que o Tribunal Português, poderia partilhar são os bens existentes em Portugal e não os existentes em Inglaterra, até porque se assim não for, poderá estar em causa a litispendência e a existência de decisões contraditórias e de jurisdição.
M – Na ausência de dispositivo na lei inglesa regulador do regime de bens de casamento ou do escolhido pelos cônjuges para vigorar no casamento celebrado em Inglaterra, terá o Tribunal se for competente para fazer esta partilha, que perscrutar no regime jurídico inglês como são qualificados para efeitos de partilha os bens que foram adquiridos antes, após e na constância do casamento, pois só assim será possível à luz da Lei portuguesa proceder à partilha equitativa dos bens comuns do casal.
N – Deve pois, ser revogado o despacho recorrido e ser substituído por outro, que julgue incompetente o Tribunal Português para proceder à partilha dos bens comuns do dissolvido casal sitos em Inglaterra, em detrimento dos Tribunais Ingleses, sendo certo que o Tribunal recorrido ao ter decidido de forma diferente violou o disposto nos artigos 17.º, 20.º, 31.º, 52.º e 53.º do Código Civil, e 62.º e 63.º do Código de Processo Civil.
(…)
Termos em que deve merecer provimento o recurso e consequentemente ser: Revogado o despacho liminar recorrido, e ser substituído por outro, que julgue incompetente o Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Família e Menores de Faro, (Juiz 1) para proceder à partilha dos bens comuns do dissolvido casal (…) e (…) sitos em Inglaterra, limitando-se a competência deste Tribunal à partilha dos bens existentes em Portugal, segundo a Lei Inglesa».
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Foi apresentada resposta ao recurso, pugnando pela manutenção do despacho recorrido. *
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento universal que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro de direito, na dimensão da lei aplicável ao litígio.
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III – Dos factos apurados:
Da documentação junta aos autos e da aceitação recíproca de factos, a factualidade com interesse para a justa resolução do recurso é a seguinte:
3.1 – A 20/11/2008 (…) e (…) contraíram casamento, sem convenção antenupcial, em Inglaterra.
3.2 – Ambas as partes têm nacionalidade inglesa, ele por via de naturalização, ela por via do local de nascimento.
3.3 – Requerente e requerida vivem em Portugal, conjuntamente com três filhos menores, desde 14/01/2019.
3.4 – Requerente e requerida encontraram-se divorciados, por sentença proferida nos autos principais, cujo trânsito ocorreu em 16/05/2022.
3.5 – As partes manifestam o interesse em continuarem a residir em Portugal e celebraram um regime de guarda partilhada dos filhos menores, na base da permanência de uma semana com cada progenitor.
3.6 – Relativamente à casa de morada de família, que se situa em Portugal, o direito de uso e de habitação foi atribuído a ambos os ex-cônjuges até à venda ou partilha, onde permanecem actualmente ambos os ex-cônjuges.
3.7 – O extinto casal possui bens móveis e imóveis adquiridos após o casamento e é detentor de contas bancárias abertas, quer em Portugal, quer fora do país.
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IV – Fundamentação:
Como ponto de partida importa asseverar que não existe tratado, convenção ou instrumento internacional sobre a matéria em discussão que seja aplicável ao caso concreto. Designadamente, não existe qualquer convenção celebrada entre os Estados dos cidadãos interessados na presente disputa, nem, em função do Brexit, o Regulamento (EU) n.º 1259/2010 do Conselho, de 20/12/2010, que cria uma cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial tem aplicação no Reino Unido e o mesmo sucede com outros instrumentos de cooperação reforçada a este propósito editados. A convenção de Haia de 1902 para regular os conflitos de leis e de jurisdição em matéria de divórcio e de separação de pessoa também não tem aqui alcance prático.
De seguida, de forma preliminar, importa rejeitar a tese da recorrente que se está perante um cenário de ausência de nacionalidade britânica relativamente a ambos ex-cônjuges. Na verdade, de acordo com a documentação disponibilizada, apesar de nascido na Irlanda, o requerente goza de cidadania no Reino Unido.
Assim, a questão central do presente recurso assenta na operação de determinação da lei pessoal e o Tribunal de Família e Menores de Faro entendeu que a lei aplicável ao inventário é a portuguesa.
A condição jurídica dos estrangeiros encontra-se regulada nos artigos 15.º[1] da Constituição da República Portuguesa e 14.º[2] do Código Civil, emergindo aqui a regra que os estrangeiros são equiparados aos nacionais quanto ao gozo de direitos civis.
Nos termos da Lei Fundamental os estrangeiros e apátridas que se encontrem em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português. E, no capítulo da questão da qualificação, é necessário ter presente que, no sistema português, à luz do princípio da localização, é suficiente para se afirmar a competência, ainda que potencial, de um ordenamento jurídico, para regular uma situação absolutamente internacional, a existência de uma conexão espacial desse ordenamento com a referida situação[3].
Segundo a lição de Ferrer Correia «uma qualquer situação da vida poderia logicamente ser regulada pela lei de qualquer país, na medida em que essa lei se contêm nas normas que se referem, de um ou doutro modo, à respectiva factualidade. Todavia, do conjunto das leis estaduais logicamente aplicáveis, destacam-se logo uma ou várias leis como únicas “interessadas”: aquela ou aquelas com as quais a situação da vida, o “caso”, tenha alguma das conexões que o direito de conflitos refere como relevantes[4].
A efectiva aplicação pelos Tribunais portugueses dessas leis potencialmente aplicáveis depende do reconhecimento dessa competência através de elementos de conexão previamente inscritos nas regras de conflitos.
E, em sede de relações de família e dos efeitos de dissolução de casamento, o âmbito da lei pessoal é definido nos termos dos artigos 25.º[5], 31.º[6], 52.º[7] e 55.º[8] do Código Civil, sendo que a interpretação e a averiguação do direito estrangeiro está sujeito à disciplina do artigo 23.º[9] do mesmo diploma.
De todo este complexo normativo resulta que tanto a lei da nacionalidade como a lei da residência habitual podem desempenhar um papel na definição do estatuto pessoal, ainda que, neste segundo caso, a título subsidiário.
In casu, os ex-cônjuges são súbditos britânicos e, assim, tratando-se de estrangeiros, estabelece a lei portuguesa que a partilha de bens deverá ser regulada pela sua lei pessoal, logo, a lei inglesa.
De acordo com as disposições aplicáveis, é ao ordenamento complexo que compete fixar o sistema de direito interno aplicável (através, nomeadamente, do sistema unitário de direito interlocal); não existindo, deve aplicar-se aos conflitos de leis interlocais o direito internacional privado unificado; e na falta de ambos, atende-se à lei da residência habitual.
O Reino Unido é configurado como um ordenamento jurídico plurilegislativo[10], mas no referido sistema normativo não há um conjunto de regras unificadas de direito interlocal nem existem regras de conflito que prevejam a existência de regime supletivo de bens e inventário pós-divórcio.
Como se diz em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça editado a propósito de tema distinto, mas com repercussões próximas, «face à impotência da lex patriae em resolver o problema que ela própria gerou, tudo se passa como se o interessado não tivesse nacionalidade, ou como se a nacionalidade dele fosse de averiguação impossível»[11].
Para determinar a conexão mais estreita há que atender, nas palavras de Luís Lima Pinheiro, a todos os laços objectivos e subjectivos que exprimam uma ligação entre a pessoa em causa e um dos sistemas vigentes no ordenamento complexo[12].
Tal como é aceite por recorrente e recorrido e reconhecido pela Meritíssima Juíza de Direito, por falta de preenchimentos dos dois critérios principais, esta última premissa obriga ao recurso à solução prevista na parte final do n.º 2 do artigo 20.º do Código Civil.
Em função disso, considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual, mas no plano conceptual, a interpretação deste normativo não é unânime.
Para a Escola de Coimbra, a parte final do artigo aplica-se, mesmo que a lei da residência habitual se situe fora do Estado da nacionalidade, uma vez que se esgotaram as possibilidades de determinação do direito competente no interior do Estado da nacionalidade. Neste enquadramento, o direito português seria indubitavelmente aplicável.
Por seu turno, a Escola de Lisboa sufraga o entendimento que só releva a residência habitual dentro do Estado da nacionalidade, existindo uma lacuna resultante de uma interpretação restritiva da parte final do referido n.º 2 do artigo 20.º, que deve ser integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita.
Não obstante essa divergência conceptual, no plano prático, resulta que, da análise dos factos provados, os ex-cônjuges não mantêm residência em Inglaterra e a única ligação substancial existente com aquele território assenta apenas no vínculo da nacionalidade. E, mais do que isso, a densidade dos elementos de conexão existentes (domicílio conjunto, guarda partilhada dos filhos e sede central da vida privada) estão relacionadas com a ordem jurídica portuguesa, donde se retira que o domicílio relevante para os efeitos da aplicação lei se situa em território nacional, por se tratar da conexão mais estreita.
Por outras palavras, o extinto casal escolheu estabelecer-se e residir com carácter de permanência e estabilidade em Portugal, a que se alia a mencionada inexistência de normas jurídicas de direito britânico aplicáveis ao inventário, posto que, na ausência de outro factor de conexão, a partilha deve ser efectivada com recurso ao direito português.
Para além disso, a nosso ver, face aos elementos carreados na fase de recurso, os valores e princípios que conformam a Ordem Pública Internacional do Estado da nacionalidade não são atingidos de forma grave com a opção de aplicação do direito interno português.
É certo que no direito inglês não existe um regime supletivo de casamento, apesar de os cônjuges poderem fazer convenções antenupciais, mesmo após a celebração do casamento. E esta realidade aponta para o regime da compropriedade. Em sede de direito interno, a solução é a de aplicar o regime da comunhão de adquiridos, estruturado na ideia da comunhão e a partilha de bens é concretizada com uma partilha judicial ou extrajudicial de bens.
Todavia, em ambos os cenários, cada um dos membros do extinto casal é dono dos seus bens próprios. E, quanto ao bens comuns, apesar de tendencialmente cada um dos ex-consortes ter direito a uma quota ideal de 50%, tanto no regime da separação de bens como no da comunhão existem mecanismos correctivos que permitem a realizar a discussão do quantum concreto da quota parte individual de cada um deles, em caso de participação diversa na aquisição, potenciando assim uma equivalência entre aquela que seria a aplicação do direito inglês e os resultados da opção pelo recurso ao direito interno português. Consequentemente, as partes não estão inibidas de contestar a natureza dos bens como próprios ou comuns ou de discutir outros problemas com influência na partilha.
Dito de outra forma, de antemão, a aplicação do direito português não é susceptível de, em abstracto, motivar uma qualquer partilha discriminatória, desfavorecendo um dos membros do casal relativamente ao outro, em função do regime jurídico aplicável. E se, por acaso, tal acontecesse, por subversão do tal regime da compropriedade potencialmente aplicado no sistema plurilegislativos local, reitera-se que existem meios no direito interno de alcançar uma divisão de bens equânime e justa.
Noutro registo também carece de razão a recorrente quando afirma que ao tribunal nacional não está deferida a competência para a partilha de bens não situados em território português. Neste âmbito, também acompanhamos o entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal de Justiça, segundo o qual em processo de inventário realizado em Portugal, todos os bens devem ser considerados para a partilha subsequente ao divórcio que correu termos em Portugal, em função do princípio da unidade e universalidade da partilha. Sendo indiferente, para este efeito, que: 1) os bens se situem no estrangeiro; 2) exista a possibilidade de conflito de jurisdições ou de falta de reconhecimento no estrangeiro da sentença que vier a ser proferida pelo Tribunal português, por inexistência de tratado ou convenção que assegure a eficácia da partilha[13].
A questão da litispendência é uma questão nova, que não foi submetida à apreciação do Tribunal a quo e, embora a mesma possa ser conhecida oficiosamente, estamos apenas no domínio de uma simples previsão ou expectativa que, desde já e de acordo com os elementos disponibilizados, não permite solucionar a questão de imediato, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 580.º do Código de Processo Civil [14] [15].
Na verdade, apenas se for deferida a permissão para a manutenção provisória e se inicie subsequentemente o pedido substantivo ou principal de partilha dos bens pertencentes ao casal situados em Inglaterra junto da jurisdição inglesa é que o Tribunal Português estará em condições de pronunciar sobre as consequências da pendência duma acção com objecto parcialmente coincidente em Tribunal estrangeiro, tendo em atenção os elementos de aferição que se mostram consignados nos artigos 579.º[16], 580.º[17], 581.º[18], 980.º, alínea b)[19] e 272.º, n.º 1[20], do Código de Processo Civil, sem prejuízo da existência de regulamentos e convenções aplicáveis que ressalvem entendimento diverso.
Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida, sem prejuízo do conhecimento posterior da matéria da litispendência e do caso julgado.
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V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso apresentado, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 19/03/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Anabela Luna de Carvalho
Vítor Sequinho dos Santos


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[1] Artigo 15.º (Estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus):
1. Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.
2. Exceptuam-se do disposto no número anterior os direitos políticos, o exercício das funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses.
3. Aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa com residência permanente em Portugal são reconhecidos, nos termos da lei e em condições de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso aos cargos de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Presidentes dos tribunais supremos e o serviço nas Forças Armadas e na carreira diplomática.
4. A lei pode atribuir a estrangeiros residentes no território nacional, em condições de reciprocidade, capacidade eleitoral activa e passiva para a eleição dos titulares de órgãos de autarquias locais.
5. A lei pode ainda atribuir, em condições de reciprocidade, aos cidadãos dos Estados membros da União Europeia residentes em Portugal o direito de elegerem e serem eleitos Deputados ao Parlamento Europeu.
[2] Artigo 14.º (Condição jurídica dos estrangeiros):
1. Os estrangeiros são equiparados aos nacionais quanto ao gozo de direitos civis, salvo disposição legal em contrário.
2. Não são, porém, reconhecidos aos estrangeiros os direitos que, sendo atribuídos pelo respectivo Estado aos seus nacionais, o não sejam aos portugueses em igualdade de circunstâncias.
[3] Sofia Oliveira Pais, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pág. 69.
[4] Ferrer Correia, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 136, pág. 48.
[5] Artigo 25.º (Âmbito da lei pessoal):
O estado dos indivíduos, a capacidade das pessoas, as relações de família e as sucessões por morte são regulados pela lei pessoal dos respectivos sujeitos, salvas as restrições estabelecidas na presente secção.
[6] Artigo 31.º (Determinação da lei pessoal)
1. A lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo.
2. São, porém, reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente.
[7] Artigo 52.º (Relações entre os cônjuges):
1. Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei nacional comum.
2. Não tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, é aplicável a lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.
[8] Artigo 55.º (Separação judicial de pessoas e bens e divórcio):
1. À separação judicial de pessoas e bens e ao divórcio é aplicável o disposto no artigo 52.º
2. Se, porém, na constância do matrimónio houver mudança da lei competente, só pode fundamentar a separação ou o divórcio algum facto relevante ao tempo da sua verificação.
[9] Artigo 23.º (Interpretação e averiguação do direito estrangeiro)
1. A lei estrangeira é interpretada dentro do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nele fixadas.
2. Na impossibilidade de averiguar o conteúdo da lei estrangeira aplicável, recorrer-se-á à lei que for subsidiariamente competente, devendo adoptar-se igual procedimento sempre que não for possível determinar os elementos de facto ou de direito de que dependa a designação da lei aplicável.
[10] Artigo 20.º (Ordenamentos jurídicos plurilegislativos):
1. Quando, em razão da nacionalidade de certa pessoa, for competente a lei de um Estado em que coexistam diferentes sistemas legislativos locais, é o direito interno desse Estado que fixa em cada caso o sistema aplicável.
2. Na falta de normas de direito interlocal, recorre-se ao direito internacional privado do mesmo Estado; e, se este não bastar, considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual.
3. Se a legislação competente constituir uma ordem jurídica territorialmente unitária, mas nela vigorarem diversos sistemas de normas para diferentes categorias de pessoas, observar-se-á sempre o estabelecido nessa legislação quanto ao conflito de sistemas.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/05/2018, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[12] Luís de Lima Pinheiro, em Direito Internacional Privado, Vol. I, Introdução e Direito de Conflitos – Parte Geral, 2015, 3ª ed. refundida, págs. 526-527.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/10/2012, consultável em www.dgsi.pt.
[14] Sobre a pendência de causa concorrente em Tribunal estrangeiro, pode ser consultado o Código de Processo Civil Anotado, vol. I (Parte geral e processo de declaração), 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 711.
[15] Também pode ser lido o comentário do Código de Processo Civil anotado, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, vol. II, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 590-591.
[16] Artigo 581.º (Requisitos da litispendência e do caso julgado)
1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
[17] Artigo 580.º (Conceitos de litispendência e caso julgado):
1 - As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.
2 - Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
3 - É irrelevante a pendência da causa perante jurisdição estrangeira, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais.
[18] Artigo 582.º (Em que ação deve ser deduzida a litispendência)
1 - A litispendência deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar.
2 - Considera-se proposta em segundo lugar a ação para a qual o réu foi citado posteriormente.
3 - Se em ambas as ações a citação tiver sido feita no mesmo dia, a ordem das ações é determinada pela ordem de entrada das respetivas petições iniciais.
[19] Artigo 980.º (Requisitos necessários para a confirmação):
Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
[20] Artigo 272.º (Suspensão por determinação do juiz ou por acordo das partes):
1 - O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
2 - Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.
3 - Quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixa-se no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância.
4 - As partes podem acordar na suspensão da instância por períodos que, na sua totalidade, não excedam três meses, desde que dela não resulte o adiamento da audiência final.