Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2130/17.0T8EVR-B.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
PERÍCIAS
Data do Acordão: 01/18/2021
Votação: RELATOR
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Só devem ser admitidos aos autos documentos para fazer prova de fundamentos da acção ou da defesa e não quaisquer outros irrelevantes para a boa decisão da causa.
2 – A admissão de documentos é baseada num juízo de prognose abstracto e o que importa nessa avaliação é que os elementos juntos tenham potencial relevância para prova de factos objecto do litígio.
3 – Os documentos devem ser apresentados, em princípio, com os articulados em que são alegados factos, embora ainda possam ser juntos, sem outros entraves, até 20 dias antes da audiência final, sujeitando-se a parte apenas ao pagamento de uma multa, tal resulta do texto do n.º 2 do artigo 423.º do Código de Processo Civil. Fora deste limite temporal a respectiva admissão tem de resultar de superveniência objectiva ou subjectiva ou por via de necessidade de ocorrência posterior.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2130/17.0T8EVR-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Juízo Central Cível e Criminal de Évora – J3
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Decisão nos termos dos artigos 652.º, n.º 1, alínea c) e 656.º do Código de Processo Civil:
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I – Relatório:
Nesta acção de condenação proposta por “(…) – Empreendimentos Imobiliários, Lda.” contra (…) e outro, o Réu (…) veio interpor recurso do despacho que admitiu a junção de diversa documentação por parte da Autora.
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Foi realizada prova pericial e em 23/09/2020 foi remetido a juízo o segundo relatório pericial.
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Nessa sequência, a Autora apresentou diversa documentação. *
O Réu (…) veio requerer o desentranhamento da referida documentação.
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Por despacho datado de 15/10/2020, o Juízo Central Cível e Criminal de Évora decidiu admitir a junção aos autos dos documentos, «por a necessidade da sua junção ter resultado do teor do relatório pericial, não se condenando em multa atento o atrás afirmado, artigo 423.º, n.º 3, do CPC».
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O recorrente não se conformou com a referida decisão e o articulado de recurso continha as seguintes conclusões:
«1 – Resulta do artigo 388º do CC que a função dos peritos é a percepção, a apreciação ou valoração de factos.
2 – Os trabalhos – alegadamente – realizados A., que não fossem possíveis de percepcionar pelos Senhores Peritos, nunca poderiam constituir objecto de qualquer perícia, designadamente, a ora em apreço.
3 – Tal aplicar-se-á, inexoravelmente, aos ditos “custos gerais não directos à execução física da empreitada”, assim como, aos “custos relacionados com obras específicas para o jogo Portugal – Cabo Verde” – Cfr. Relatório Pericial.
4 – Pelos motivos e razões supra expendidas, os documentos carreados para os autos pela A., não deveriam ter sido admitidos, por total e absolutamente irrelevantes para o objecto da perícia.
5 – O Tribunal violou o correcto entendimento dos preceitos legais invocados na presente peça recursiva».
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Não houve lugar a resposta.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da questão da admissão da prova documental apresentada.
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III – Dos factos:
Os factos interesse para a justa resolução do caso são aqueles que constam do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
Do princípio do Estado de Direito deduz-se, sem dúvida, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e do processo, a Constituição contém alguns princípios e normas designados por garantias gerais de procedimentos e de processo[1].
Neste conspecto, na parte que interessa ao presente dissídio, «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos» (n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa) e «todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo (n.º 4 do referido artigo).
Na doutrina constitucional são habitualmente identificados como direitos fundamentais processuais os seguintes: direito de acesso aos tribunais, à igualdade no processo, à independência e imparcialidade do tribunal, direito à publicidade do processo, à fundamentação das decisões, ao contraditório, direito à prova, ao recurso, à prolação de uma decisão dentro de um prazo razoável; direito à efectividade material e à estabilidade da decisão judicial.
O direito à prova é assim é um direito fundamental processual e a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova, tal como resulta da letra do artigo 410.º do Código de Processo Civil.
A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial, face á norma constante do artigo 388.º do Código Civil.
Manuel de Andrade escreveu que esta prova «traduz-se na percepção por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legitima susceptibilidade) das pessoas em que se verificam tais factos»[2].
A força probatória das respostas dos peritos, quer em primeira perícia, quer em segunda perícia (a segunda perícia não invalida a primeira), é fixada livremente pelo Tribunal, sendo, pois, apreciada em conjunto com as demais provas segundo a livre convicção do julgador[3], à luz do disposto nos artigos 389.º[4] do Código Civil e 489.º[5] do Código de Processo Civil.
Os peritos podem socorrer-se de todos os meios necessários ao bom desempenho da sua função, tal como ressalta da lei do artigo 481.º[6] do Código de Processo Civil. A este direito amplo só se põe o limite ali sublinhado: não podem, sem autorização do juiz, destruir, alterar ou inutilizar as coisas submetidas à sua inspecção[7]. Os peritos podem solicitar a realização de diligências, a prestação de esclarecimentos, requerer o que entendam por conveniente relativamente ao objecto do processo ou o acesso a elementos do processo, podendo juntar ao relatório os elementos que serviram de base às respostas dadas.
A prova pericial realizada pronunciou-se também sobre a questão dos custos específicos relacionados com as obras específicas para o jogo Portugal – Cabo Verde, bem como os custos gerais não directos à execução física da empreitada e o recorrente sustenta que as referidas inovações não foram percepcionadas pelos peritos, não deveriam integrar o objecto da perícia e estava assim vedada a junção de documentação relacionada com a realização do referido evento desportivo.
Não se cuida aqui de saber se o objecto da perícia corresponde àquele que foi requisitado pelas partes e determinado pelo Tribunal «a quo» – e, caso assim não seja, se tiver sido extravasado esse âmbito, é claro que os elementos agora juntos poderão perder a sua pertinência. E, de igual modo, neste recurso em separado, também não compete ao Tribunal da Relação de Évora pronunciar-se sobre o valor probatório da referida documentação em ordem a formular o juízo de convicção do julgador de Primeira Instância, pois a eventual discordância sobre a decisão de facto e a respectiva motivação poderá ser objecto de impugnação recursal autónoma.
A questão é simples: poderia ter sido admitida a documentação em causa? A resposta terá de ser segmentada em dois pontos: o do momento e o do interesse.
O presente recurso está sustentado na diferente disciplina aplicável ao momento da apresentação da prova por documento, face ao disposto no artigo 423.º[8] do Código de Processo Civil.
De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 423.º do diploma sub judice, se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
Por seu turno, para além do limite temporal acima referido, por via da aplicação do nº 3 do dispositivo em análise, a lei admite a junção posterior de documentação cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como daquela cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Em síntese intercalar, os documentos devem ser apresentados, em princípio, com os articulados em que são alegados factos, embora ainda possam ser juntos, sem outros entraves, até 20 dias antes da audiência final, sujeitando-se a parte apenas ao pagamento de uma multa, tal resulta do texto do n.º 2 do artigo 423.º do Código de Processo Civil. Fora deste limite temporal a respectiva admissão tem de resultar de superveniência objectiva ou subjectiva ou por via de necessidade de ocorrência posterior[9].
Feita a análise da dinâmica e da evolução da tramitação processual, no plano da respectiva apresentação, não existe qualquer entrave à correspondente incorporação nos autos, por a mesma se integrar na esfera de previsão do n.º 3 do artigo 423.º do Código de Processo Civil. E a única questão controvertida poderia radicar na dispensa da aplicação de multa por apresentação tardia. Todavia, esta questão não faz parte do thema decidendum.
Resta assim apurar se existe qualquer utilidade na junção da referida documentação.
A força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Todavia, daí não resulta que os factos nelas compreendidos se tenham de considerar como provados, maxime quando sobre os mesmos incida prova testemunhal ou outro meio de prova susceptível de contradizer as referidas declarações incorporadas no documento.
Na verdade, diferentemente do documento autêntico, que provém duma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito[10].
Só devem ser admitidos aos autos documentos para fazer prova de fundamentos da acção ou da defesa e não quaisquer outros irrelevantes para a boa decisão da causa. Porém, na actual conformação do Código de Processo Civil, a actividade de instrução não se limita aos factos alegados pelas partes, podendo dela se extraírem factos instrumentais, segundo o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do referido diploma e ainda factos complementares e concretizadores daqueles que hajam sido alegados pelas partes.
A admissão de documentos é baseada num juízo de prognose abstracto enquanto a motivação da decisão de facto é sustentada numa avaliação concreta da pertinência de determinado dado probatório para a formação da convicção do julgador. Aquilo que importa nesse juízo de prognose é que os elementos juntos tenham potencial relevância para prova de factos objecto do litígio.
Segundo o artigo 341.º[11] do Código Civil, a prova destina-se à demonstração da realidade dos factos. E, neste enquadramento, em tese, afastando-nos aqui de qualquer juízo crítico sobre a prova e a subsequente construção do correspectivo silogismo judiciário, a junção da documentação não é lesiva dos eventuais interesses processuais do recorrente e a mesma está ainda abrangida pelo alcance dos temas da prova e das questões a decidir.
Ou seja, numa apreciação perfunctória, na prefigurada dimensão abstracta, a junção dos aludidos documentos não se nos afigura impertinente nem dilatória em face dos temas da prova, à luz do pedido e da causa de pedir em discussão na presente lide.
Em adição, na dinâmica processual, não existe qualquer sinal que, a ser utilizada a referida documentação, em sede de julgamento, não será concedida à parte contrária a possibilidade de debater e de contrariar o conteúdo da referida documentação, seja directamente enquanto fonte probatória autónoma, seja no âmbito do acto pericial requerido, infirmando o respectivo sentido probatório ou afastando a respectiva utilidade para a decisão de facto.
Por tudo isto, confirma-se a decisão recorrida, devendo a referida documentação permanecer nos autos.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso apresentado, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 18/01/2020
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
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[1] Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, pág. 388.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, pág. 135.
[3] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 360.
[4] Artigo 389º (Força probatória):
A força probatória das respostas aos peritos é fixada livremente pelo Tribunal.
[5] Artigo 489º (Valor da segunda perícia):
A segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciada pelo tribunal.
[6] Artigo 481.º (Meios à disposição dos peritos):
1 - Os peritos podem socorrer-se de todos os meios necessários ao bom desempenho da sua função, podendo solicitar a realização de diligências ou a prestação de esclarecimentos, ou que lhes sejam facultados quaisquer elementos constantes do processo.
2 - Se os peritos, para procederem à diligência, necessitarem de destruir, alterar ou inutilizar qualquer objeto, devem pedir previamente autorização ao juiz.
3 - Concedida a autorização, fica nos autos a descrição exata do objeto e, sempre que possível, a sua fotografia, ou, tratando-se de documento, fotocópia devidamente conferida.
[7] Regime este que já existia no direito processual civil do pretérito, como ressalta do contributo de José Albertos dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 243.
[8] Artigo 423º (Momento da apresentação):
1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2 - Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
[9] Para melhor compreensão, pode ser consultado o comentário de José Lebre de Freitas e de Isabel Alexandre, Código de processo Civil anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 238-241.
[10] José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, Coimbra, 1984, págs. 55 e 56.
[11] Artigo 341.º (Função das provas):
As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.