Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3587/16.2T8ENT.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: CONTAS BANCÁRIAS
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Por um lado, a obrigação de prestação de contas filia-se no amplo dever de informação que onera aquele que gere o que não é seu, que o obriga a dar informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada dos documentos justificativos; e, por outro, o direito de exigir que outrem lhe preste contas provém do facto desse terceiro estar investido na administração de bens que lhe não pertencem, podendo resultar da lei ou dos próprios termos do negócio celebrado, assentando na ideia básica de que quem administra os bens estará em posição de saber e provar quais os créditos e as despesas da sua administração.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3587/16.2T8ENT.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Inst. Local do Entroncamento - Secção de Competência Genérica

I. Relatório
(…), casada, residente no lugar de Alto da (…), (…), n.º 8, no Entroncamento, instaurou contra (…), casado, residente no Edifício (…), Rua de (…), n.ºs 83 e 87, em Fátima, e (…), casado, a residir na Rua (…), n.º 1-C, Entroncamento, acção declarativa, a seguir o processo especial de prestação de contas, pedindo a final a citação dos RR nos termos “dos artigos 941.º e seguintes do Código de Processo Civil para, em trinta dias, apresentarem as contas ou contestarem a acção, sob pena de não poderem deduzir oposição às que a autora apresente”, devendo ainda “ser condenados a entregar à autora o saldo que as contas apresentarem, o qual deve vencer juros de mora à taxa legal desde a data da citação”.
Alegou para tanto e em síntese ser casada com o réu (…) desde 8 de Agosto de 2008, casamento celebrado sob o regime imperativo da separação de bens, sendo o 2.º R filho do cônjuge marido. A solicitação do Réu seu marido outorgou três procurações, conferindo a este e também ao R. (…) poderes para movimentar as contas bancárias que identificou, todas elas abertas no ano de 2012, das quais é a única titular.
Mais alegou que à data da outorga das aludidas procurações as identificadas contas bancárias apresentavam saldos que no seu conjunto ascendiam a quantia superior a € 1.000.000,00, dinheiro que lhe pertencia em exclusivo, tendo outorgado as procurações por lhe ter sido garantido pelo 1.º R. que administraria os referidos saldos sempre no interesse da mandante, em favor de quem reverteria o proveito resultante da administração que fizesse.
Fazendo uso das procurações os RR foram movimentando as contas e administrando os respectivos saldos, fazendo diversas aplicações, tudo sem informarem a demandante, a quem não deram conta dos resultados da gestão.
A. e R. vieram posteriormente a separar-se, correndo termos processo de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge instaurado pela primeira, tendo tomado entretanto conhecimento de que as contas bancárias se encontram praticamente saldadas, sobrando apenas escassas dezenas de euros. Interpelados, os RR recusam-se a prestar informação sobre o destino do dinheiro e dos proveitos que produziu a administração que vinham levando a cabo em representação da demandante, o que fundamenta a presente acção, devendo ser condenados a prestar contas de todas as operações que realizaram e a fazer entrega dos saldos que, a final, resultaram dos actos de administração praticados.
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Citados os RR, contestaram ambos e, tendo alegado que nunca foram pela autora interpelados para prestar contas, acrescentaram que não têm qualquer obrigação de o fazer uma vez que, conforme esta bem sabe, nenhuma das quantias depositadas nas contas bancárias identificadas lhe pertencia, mas antes ao R. (…), que pretendeu evitar que as mesmas passassem pelas contas de sociedades por si geridas, onde corriam o risco de ficar retidas, pelo que actua em claro abuso de direito, excepção que expressamente invocaram.
Tendo o R. (…) acrescentado que não ter feito uso de nenhuma das procurações, concluíram ambos pela improcedência da acção, mais tendo peticionado a condenação da demandante como litigante de má-fé.
A autora respondeu, reiterando que foram depositadas nas contas em referência quantias superiores a € 1.000.000,00 que lhe pertenciam, o que sempre haveria de se presumir considerando que é a única titular das mesmas, tal como os contestantes reconhecem, pelo que tem o direito de exigir a prestação de contas, impondo-se a improcedência da excepção aduzida.
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Tendo a Mm.ª juíza determinado que os autos prosseguissem segundo a forma do processo comum, conforme prevenido pelo art.º 942º do CPC, seu n.º 3, 2.ª parte, teve lugar audiência prévia, com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida douta sentença que, na parcial procedência da acção, decretou a absolvição do R. (…) e condenou o R. (…) a prestar contas à A. relativamente às contas bancárias indicadas em 1.3 dos factos provados.

Inconformado, apelou o R. condenado e, tendo desenvolvido em alegações as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“a) Nos termos do disposto no artigo 941.º do C. P. Civil “a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”;
b) A prestação de contas parte de um princípio basilar, que se traduz na existência de uma relação jurídica entre dois sujeitos, um o titular de bens administrados, outro o respectivo administrador;
c) Foram dados como factos não provados – pontos 2.1 e 2.2 – que os saldos das contas (referidas em 1.5. a 1.7. dos factos provados) apresentassem, em conjunto, um saldo de mais de € 1.000.000,00, como também que os valores indicados em 1.9. dos factos provados pertencessem à aqui Recorrida;
d) Muito embora não se dê como provado que todos os valores movimentados nas contas fossem pertença do ora Recorrente, certo é que se dá como não provado que tais valores eram propriedade da aqui Recorrida;
e) O Tribunal a quo não deu como provado que as contas bancárias em causa apresentassem um saldo no valor de € 1.000.000,00 antes de passar as procurações a favor da Recorrida, pertencendo-lhe tal montante;
f) O Tribunal a quo não deu como provado que posteriormente à emissão das mesmas [procurações], tivesse a Recorrida aportado a tais contas bancárias valores de que era titular;
g) A sentença proferida pelo Tribunal a quo, tendo em consideração os factos dados como provados e não provados, está em contradição com os seus fundamentos (alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º);
h) A sentença proferida pelo Tribunal “a quo” estava obrigada a identificar, em concreto, quais os valores que eram propriedade da Recorrida;
i) Face aos documentos juntos pelas entidades bancárias, o Tribunal “a quo” não podia deixar de se pronunciar, em concreto, sobre a titularidade dos valores cuja prova aí se encontra plasmada;
j) Não o tendo feito incorreu na violação da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C., primeira parte;
k) O conjunto de documentos enviados pelas entidades bancárias, no contexto em que foram solicitados, têm um valor probatório reforçado;
l) O cheque mencionado em 1.13 [dos factos provados], junto pela entidade bancária competente, encontra-se emitido e assinado pelo Recorrente, não tendo sido suscitada, em sede de audiência de julgamento, qualquer dúvida quanto a tal facto, pelo que devia constar dos factos provados;
m) O cheque mencionado em 1.15 [dos factos provados], junto pela entidade bancária competente, encontra-se emitido e assinado pelo Recorrente, não tendo sido suscitada, em sede de audiência de julgamento, qualquer dúvida quanto a tal facto, pelo que devia constar dos factos provados;
n) A sentença proferida pelo Tribunal “a quo” viola a alínea b) do n.º 2 do artigo 616.º do C.P.C.;
o) Impondo ao Recorrente a obrigação de prestar contas à Recorrida, o Tribunal a quo tinha que fixar, em concreto, o objecto dessa mesma prestação, designadamente a conta e saldo;
p) A sentença ora recorrida não esclarece/designa a conta/saldo objecto da prestação de contas, refugiando-se na ambiguidade de um saldo existente no todo das contas bancárias em apreço;
q) A sentença recorrida é ambígua quanto a esta matéria e, consequentemente, ininteligível nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º, 2.ª parte, do C.P.C.;
r) A obrigação de prestação de contas por parte do Recorrente também não encontra a sua sustentabilidade nos artigos 512.º e seguintes do Código Civil;
s) É o próprio Tribunal a quo que afasta a presunção que decorre do artigo 516.º do Código Civil, ao dar como não provado que a Recorrida seja titular de qualquer dos valores depositados nas contas bancárias em apreço;
t) O regime que decorre do artigo 512.º e seguintes do Código Civil apenas é aplicável caso tivesse sido provada a titularidade de qualquer montante por parte da Recorrida, o que não ficou provado;
u) Não tendo ficado provado que o Recorrente estava a administrar valores propriedade da Recorrida, por maioria de razão, não se pode presumir que os mesmos valores se encontravam em comparticipação;
v) As procurações conferidas pela Recorrida ao Recorrente eram no exclusivo interesse deste último;
w) Não existe uma relação jurídica entre a Recorrida e o Recorrente, conquanto aquela não é titular dos bens que foram administrados por aquele;
x) A Recorrida carece de legitimidade activa para exigir a prestação de contas ao Recorrente.
Com os aludidos fundamento requer a final seja revogada a sentença recorrida, com a consequente absolvição do recorrente.
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Contra alegou a apelada e, reconhecendo que a sentença apresenta o vício da contradição entre os fundamentos e a decisão, sustenta todavia que tal não importa erro de julgamento, devendo ser mantido o julgado.
A Mm.ª juíza pronunciou-se no sentido de não se verificarem as arguidas nulidades.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, impõe-se que este Tribunal se pronuncie sobre as seguintes questões:
- das nulidades da sentença recorrida e do pedido de reforma;
- do erro de julgamento quanto aos fundamentos da obrigação de prestar contas.
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i. das nulidades da sentença recorrida
O réu recorrente diz ser a sentença nula nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, als. c) e d), do CPC i. dada a existência de contradição entre os fundamentos e a decisão; ii. por ser ambíguo e ininteligível o dispositivo; iii. por ter sido omitida pronúncia sobre questões suscitadas pelas parte, requerendo finalmente a sua reforma nos termos do disposto na al. b) do n.º 2 do art.º 616.º do mesmo diploma legal, em ordem a contemplar os factos que indica os quais, em seu entender, se encontram documentalmente demonstrados.
Para o que aqui releva, dispõe o convocado art.º 615.º que “É nula a sentença quando:
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”.
No entender do recorrente, tendo o Tribunal apurado que à data em que as procurações foram outorgadas não existia qualquer valor de que a recorrida fosse titular, e não tendo resultado provado que, posteriormente à emissão das mesmas, tivesse aportado a tais contas quaisquer valores, é manifesto que não há lugar a prestação de contas, o que pressupunha que a apelada fosse a titular dos valores monetários e o recorrente os tivesse administrado.
A apontada contradição encontra-se em seu dizer evidenciada pelo segmento da sentença impugnada no qual a Mm.ª juíza fez constar “Revertendo para o caso dos autos, a A. entende que a obrigação de prestar contas que imputa aos RR. emerge da concessão de poderes pela própria para a administração dos saldos das contas bancárias das contas pela mesma indicadas e que, à data das procurações, somaria valor superior a € 1.000.000,00. É desse saldo existente à data das procurações e subsequente movimentação que pretende lhe sejam apresentadas contas decorrentes das movimentações efectuadas pelos RR., e não de outros valores que pela mesma tenham sido entregues àqueles RR. para alimentar tais contas, já que quanto a isso nada alega.
Ou seja, a prestação de contas cinge-se ao saldo das contas à data da emissão das procurações e não a outro património que tenha sido confiado pela A. aos RR. Aliás, a própria A. afirma no seu requerimento de fls. 97 e ss. não saber se os RR. fizeram passar pelas suas contas “o que não deviam fazer passar”, do qual resulta clara a existência do apontado vício.
Entrando na apreciação da nulidade invocada, decorrente do vício da contradição entre os fundamentos e a decisão, importa reter que, conforme vem sendo reiteradamente afirmado pelos nossos Tribunais[1], na esteira do entendimento defendido a propósito da antes vigente alínea c) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, com conteúdo idêntico à al. c) do n.º 1 do art.º 615.º em vigor, que a previsão normativa pressupõe real antagonismo entre a parte dispositiva da sentença ou do acórdão e os respectivos fundamentos.
A nulidade em causa “...pressupõe um erro lógico na ponta final da argumentação jurídica: os fundamentos invocados apontam num sentido, e, inesperadamente, contra a conclusão decisória que dos mesmos, e dentro da linha de raciocínio adoptada, se esperava, veio-se a optar afinal pela solução adversa”[2].

No caso em apreço, afigura-se que, efectivamente, a considerar a Mm.ª juíza, como parece decorrer do excerto transcrito, que a obrigação dos RR prestarem contas decorria do facto de lhes ter sido pela A. confiada, por meio das procurações emitidas, a administração dos saldos então existentes nas contas bancárias identificadas, no alegado valor de € 1.000.000,00, tendo-se apurado, ao invés, que à data da outorga das mesmas procurações apenas uma conta se mostrava provisionada e com a quantia de € 100,00, parece que aqueles só estariam obrigados a prestar contas deste montante. Todavia, conforme a Mm.ª juíza considerou – bem ou mal, irreleva para este efeito – e deixou consignado, a titularidade exclusiva das contas seria fundamento da presunção legal de que todos os valores nelas depositados depois da outorga das procurações pertenciam em exclusivo à autora, pelo que o R. condenado devia prestar contas de todos os movimentos bancários registados, tal como havia aquela havia peticionado, sem embargo de admitir que na fase subsequente fosse feita prova de que tais montantes não lhe pertenciam ou não lhe pertenciam exclusivamente. Deste modo, admitindo a existência de erro de julgamento, afigura-se que a fundamentação da decisão, considerada no seu todo, não repele o dispositivo, donde, não padecer do apontado vício.

Sustenta também o recorrente que a sentença é ainda nula por omissão de pronúncia, uma vez que não identificou quais os valores, em concreto, que eram propriedade da recorrida, questão que aliás constituía um dos temas da prova.
A nulidade por omissão de pronúncia prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º inquina a sentença na qual não foi dado cumprimento ao disposto no art.º 608.º, n.º 2 do mesmo diploma, designadamente quando impõe ao juiz que resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas que cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. E resolver todas as questões é dar resposta aos pedidos deduzidos pelo autor ou reconvinte, apreciar as várias causas de pedir invocadas (quando mais do que uma, em relação de subsidiariedade, funde o pedido), bem como as excepções peremptórias que hajam sido deduzidas pelo réu ou autor reconvindo[3].
No caso em apreço, uma única questão foi submetida à apreciação da Mm.ª juíza: saber se os RR estavam ou não obrigados a prestar contas à autora. E isso mesmo foi decidido. Se os factos apurados não preenchem a fattispecie normativa aplicável ao caso, verifica-se erro de julgamento e a decisão é errada ou mesmo injusta, mas não padece da referida nulidade. Se a matéria de facto apurada é insuficiente para a decisão, o Tribunal de recurso, no uso dos seus poderes mitigados de cassação, poderá/deverá anular, mesmo oficiosamente, a decisão em ordem a determinar a ampliação da matéria de facto (cfr. art.º 662.º, n.º 2, al. c), na parte final), situação que, todavia, também não se reconduz ao vício da omissão de pronúncia.

Alega o recorrente que, ainda a ser tida por correcta a conclusão de que se encontrava obrigado a prestar contas, não podia o Tribunal a quo deixar de fixar o objecto dessa mesma prestação, indicando o saldo e a conta – ou contas – a que dizia respeito, ponto que não é esclarecido na sentença impugnada, o que acarreta a nulidade da mesma por ambiguidade que a torna ininteligível.
Prevê-se na al. c) n.º 1 do art.º 615.º do CPC como causa da nulidade da sentença a existência de “alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”. Resulta do assim preceituado que eventual ambiguidade ou obscuridade de que a sentença padeça só a tornam nula se, por via daquelas, não for possível apreender o seu conteúdo.
Conforme esclarecia o Prof. Alberto dos Reis, escrevendo embora no âmbito de vigência do CPC de 1939, mas com plena actualidade[4], “(…) a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso, não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro, hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade; se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo qual o pensamento do juiz”.
No mesmo sentido, sublinhou o STJ[5], que “Só existe, com efeito, obscuridade quando o tribunal proferiu decisão cujo sentido um tal destinatário não possa alcançar. A ambiguidade só relevará se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que do respectivo texto ou contexto não se torne possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se reclama de ambíguo. Se dessa reclamação ressaltar à evidência que o reclamante compreendeu bem os fundamentos da decisão e apenas com os mesmos não concordou, bem como com o sentido decisório final, não ocorre a reclamada obscuridade/ambiguidade (…).”.
É ainda pertinente referir que no que se refere à interpretação da sentença judicial cremos pacífico o entendimento de que, constituindo um verdadeiro acto jurídico, são-lhe aplicáveis as normas reguladoras dos negócios jurídicos, ex vi do disposto no art.º 295.º do CC. E a interpretação correcta do dispositivo pressupõe a análise dos pressupostos que a determinaram, ou seja, exige que se tome em consideração a fundamentação (cf. aresto do STJ de 5/11/2009, processo 4800/05.TBAMD-A.S1, acessível em www.dgsi..pt).
No caso que nos ocupa, vistos os termos do dispositivo, não se vê que suscite qualquer dúvida interpretativa. Com efeito, aí se condena o R. ora recorrente a prestar contas à A. “relativamente às contas bancárias indicadas em 1.3. dos factos provados”, contemplando assim inequivocamente a decisão as três contas bancárias ali identificadas. Acresce que, em sede de fundamentação, a Mm.ª juíza deixou expresso que “(…) apenas sobre o R. (…) impende aquele dever de prestação de contas decorrente da concessão de poderes pela A. para movimentar as contas em questão nos moldes consignados sob os pontos 1.5. a 1.7. dos factos demonstrados. No cumprimento de tal dever ao mesmo caberá justificar as movimentações ali efectuadas subsequentes à concessão de tais poderes, nada obstando a que se demonstre que nem todos os fundos depositados naquele exercício pertenciam à A.” (é nosso o destaque).
Verifica-se assim que, acertadamente ou não, o R. foi inequivocamente condenado a dar conta de cada um dos movimentos efectuados nas três contas bancárias identificadas no ponto 1.3 da matéria de facto, sentido decisório que claramente apreendeu, pois contra ele se insurgiu com alegação competente.
Improcede, em suma, a arguição da nulidade da sentença com fundamento neste derradeiro vício.
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Requereu finalmente o recorrente a reforma da decisão nos termos da al. b) do n.º 2 do art.º 616.º do CPC, porquanto, face ao conjunto de documentos remetidos ao processo pelas instituições bancárias solicitadas, aos quais, em seu entender, deverá ser reconhecido “um valor probatório reforçado”, impõe-se a consideração de que o facto consignado em 2.16 como não provado se encontra na verdade demonstrado.
Pois bem, face à redacção do art.º 616.º, dele resulta claramente que a reforma da decisão com fundamento na existência de documentos ou outro meio de prova plena constantes do processo e que, por si só, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida, só pode ser requerida caso da sentença não caiba recurso, o que não é aqui o caso.
Por outro lado, afigura-se que a alegação do recorrente consubstancia antes a imputação à decisão de erro no julgamento dos factos, pois o que pretende é a modificação do referido ponto da matéria de facto, pretensão que de seguida se apreciará.
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Impugnação da matéria de facto
O apelante diz ter sido erradamente julgado como não provado o facto vertido no ponto 2.16., uma vez que os cheques mencionados em 1.13 e 1.15 [dos factos provados], foram emitidos e assinados pelo Recorrente, o que os documentos juntos comprovam, além de não ter sido suscitada, em sede de audiência de julgamento, qualquer dúvida quanto a tal facto.
A Mm.ª juíza justificou a inclusão dos factos descritos em 2.15 e 2.16 no elenco dos não provados justificando a decisão com a ausência de prova, tendo acrescentado, no que se refere ao ponto 2.16, que das cópias dos cheques juntas aos autos não é possível extrair com segurança a identificação do seu emitente.
A este respeito, e antes de mais, cumpre esclarecer que no ponto 1.15 não se faz referência a nenhum cheque, mas antes ao documento comprovativo de um depósito de valores na conta titulada pela autora no Banco (…), cuja cópia se encontra a fls. 172.
Parece ainda apertinente acrescentar que para aquilo que se discute nos autos não parece assumir relevância saber quem efectuou o depósito em causa, subscrevendo o respectivo talão, ou quem emitiu o cheque cuja cópia consta de fls. 177, uma vez que em relação a este último foi indubitavelmente sacado sobre conta titulada pela própria autora. De todo o modo a autora alegou que a movimentação das 3 contas foi assegurada pelos RR pelo que, tendo resultado indemonstrado que o R. (…) tenha feito uso da procuração emitida a seu favor, sobra para o efeito sobra o R. (…), ora recorrente. Deste modo, porque estão em causa movimentos efectuados nas contas tituladas pela autora, não tendo sido esta a realizá-los materialmente, é de imputar ao procurador a sua prática, dando-se assim por assente quanto consta do ponto 2.16, sendo procedente a impugnação.
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II. Fundamentação
De facto
Estabilizada, é a seguinte a matéria factual a considerar:
1. Factos provados
1.1. A A. (…) casou civilmente com o R. (…) em 8 de Agosto de 2008, sob o regime imperativo de separação de bens – art. 1º da petição inicial.
1.2. O R. (…) é filho do R. (…) – art. 2º da petição inicial.
1.3. A A. é a titular única das contas bancárias:
- conta n.º (…), aberta na agência do Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A., do Entroncamento;
- conta com o NIB (…), aberta na agência do Banco Popular Portugal, S.A., de Torres Novas;
- conta com o NIB (…), aberta na agência do Banco Santander Totta, S.A., do Entroncamento – art. 3º da petição inicial.
1.4. As contas referidas em 1.3. foram abertas no ano de 2012 – art. 4º da petição inicial.
1.5. No dia 26 de Janeiro de 2012, no Cartório de Cristina Maria Conceição, sito na Rua Luís Falcão Sommer, n.º 63, Entroncamento, pelo escrito denominado “Procuração Irrevogável”, a A. declarou que: “pelo presente instrumento constitui bastantes procuradores seu referido marido, (…), e, (…), a quem concede os poderes necessários para movimentar, a débito e a crédito, a conta bancária número (…) da qual é titular no «Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A.» - Agência do Entroncamento, requerendo e assinando cheques, cartões de débito e de crédito, constituindo aplicações, adquirindo produtos financeiros, podendo e devendo a referida conta ser movimentada única e exclusivamente por uma das seguintes formas: com a assinatura do procurador (); com as assinaturas conjuntas da mandante e do procurador (…); com as assinaturas conjuntas da mandante e do procurador (…);
E, bem assim, requerer, assinar e praticar tudo o que para os fins previstos neste instrumento, se revele necessário.
Esta procuração é passada no interesse dos mandatários e apenas pode ser revogada com o seu acordo e não caduca por morte, interdição ou inabilitação da mandante, sendo assim irrevogável, nos termos dos artigos 261º, 265º/3, 1170º/2 e 1175º, todos do Código Civil.
(…)
Esta procuração foi lida à outorgante e à mesma explicado o seu conteúdo, em voz alta e na sua presença” – art. 5º da petição inicial.
1.6. No dia 7 de Março de 2012, no Cartório de Cristina Maria Conceição, sito na Rua Luís Falcão Sommer, n.º 63, Entroncamento, pelo escrito denominado “Procuração Irrevogável”, a A. declarou que:
pelo presente instrumento constitui bastantes procuradores seu referido marido, (…), e, (…) a quem concede os poderes necessários para movimentar, a débito e a crédito, a conta bancária com o NIB (…), da qual é titular no «Banco Popular Portugal, S.A.», requerendo e assinando cheques, cartões de débito e de crédito, constituindo aplicações, adquirindo produtos financeiros, podendo e devendo a referida conta ser movimentada única e exclusivamente por uma das seguintes formas: com a assinatura do procurador (…); com as assinaturas conjuntas da mandante e do procurador (…); com as assinaturas conjuntas da mandante e do procurador (…);
E, bem assim, requerer, assinar e praticar tudo o que para os fins previstos neste instrumento, se revele necessário.
Esta procuração é passada no interesse dos mandatários e apenas pode ser revogada com o seu acordo e não caduca por morte, interdição ou inabilitação da mandante, sendo assim irrevogável, nos termos dos artigos 261º, 265º/3, 1170º/2 e 1175º, todos do Código Civil.
(…)
Esta procuração foi lida à outorgante e à mesma explicado o seu conteúdo, em voz alta e na sua presença” – art. 5º da petição inicial.
1.7. No dia 7 de Março de 2012, no Cartório de Cristina Maria Conceição, sito na Rua Luís Falcão Sommer, n.º 63, Entroncamento, pelo escrito denominado “Procuração Irrevogável”, a A. declarou que:
pelo presente instrumento constitui bastantes procuradores seu referido marido, (…), e, (…), a quem concede os poderes necessários para movimentar, a débito e a crédito, a conta bancária com o NIB (…), da qual é titular no «Banco Santander Totta, S.A.» – Agência do Entroncamento, requerendo e assinando cheques, cartões de débito e de crédito, constituindo aplicações, adquirindo produtos financeiros, podendo e devendo a referida conta ser movimentada única e exclusivamente por uma das seguintes formas: com a assinatura do procurador (…); com as assinaturas conjuntas da mandante e do procurador (…); com as assinaturas conjuntas da mandante e do procurador (…);
E, bem assim, requerer, assinar e praticar tudo o que para os fins previstos neste instrumento, se revele necessário.
Esta procuração é passada no interesse dos mandatários e apenas pode ser revogada com o seu acordo e não caduca por morte, interdição ou inabilitação da mandante, sendo assim irrevogável, nos termos dos artigos 261.º, 265.º/3, 1170.º/2 e 1175.º, todos do Código Civil.
Esta procuração foi lida à outorgante e à mesma explicado o seu conteúdo, em voz alta e na sua presença” – art. 5º da petição inicial.
1.8. O R. (…) movimentou as contas indicadas em 1.3 – art. 25º da petição inicial.
1.9. Na data referida em 1.5 a conta n.º (…) apresentava um saldo de € 100,00; na data referida em 1.6 a conta n.º (…) apresentava um saldo de € 0,00; na data referida em 1.7 a conta n.º (…) apresentava um saldo de € 0,00 – art. 6º da petição inicial.
1.10. A conta referida em 1.5 (com o n.º …, sediada na agência do Entroncamento do Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A.) foi aberta em 13 de Janeiro de 2012 mediante uma transferência de € 100,00 – art. 17º da contestação de fls. 31 e ss.
1.11. No dia 18 de Janeiro de 2012 a referida conta foi alimentada mediante depósito de um cheque no valor de € 200.000,00 – art. 18º da contestação de fls. 31 e ss.
1.12. Em 24 de Janeiro de 2012 foi ordenada a transferência do montante de € 200.000,00 para outra conta – art. 20º da contestação de fls. 31 e ss.
1.13. A conta referida em 1.6 (a que corresponde o NIB …, do então Banco Popular Portugal, S.A.) foi aberta em 6 de Março de 2012 e nela foi, em 12 de Março de 2013, efectuado depósito no valor de € 200.000,00, mediante cheque desse valor sacado sobre a conta (…) – art. 23º da contestação de fls. 31 e ss.
1.14. O montante referido em 1.14[6] transitou para um depósito a prazo – art. 24º da contestação de fls. 31 e ss.
1.15. A conta referida em 1.5[7] foi aberta em data não concretamente apurada; em 12 de Março de 2012 foi alimentada mediante depósito múltiplo no valor de € 150.000,00 – art. 27º da contestação de fls. 31 e ss.
1.16. O cheque referido em 1.13, cuja cópia se encontra a fls. 177 dos autos, foi emitido pelo R. (…), tendo sido sacado sobre a conta titulada pela autora no Banif, tendo sido efectuado pelo mesmo R. o depósito a que se reporta o talão de fls. 172.
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2. Factos não provados
2.1. Nas datas referidas em 1.5 a 1.7 as contas indicadas em 1.3 apresentavam em conjunto um saldo de mais de € 1.000.000,00.
2.2. Os valores indicados em 1.9 pertenciam à A. – arts. 7º e 30º da petição inicial.
2.3. A iniciativa para a emissão das procurações foi do R. (…) – art. 8.º da petição inicial.
2.4. O R. (…) convenceu a A. dizendo que ele tinha mais conhecimentos e experiência para administrar saldos fazendo, por isso, aplicações mais vantajosas – art. 9º da petição inicial.
2.5. (…) garantiu à A. que administraria os saldos sempre no interesse dela e que seria dela todo o proveito decorrente da administração que fizesse – art. 10º da petição inicial.
2.6. O R. (...) pediu também à A. que o seu filho (…) ficasse como procurador para o ajudar, pois que poderia também ele contactar com os bancos quando fosse conveniente e ele estivesse em situação de não poder fazê-lo prontamente – art. 11º da petição inicial.
2.7. O R. (…) garantiu à A. que tudo o que fizesse relativamente aos saldos das contas seria no interesse exclusivo da A. e que a intenção era, tão só, ajudá-la a rentabilizar os saldos das contas – art. 12º da petição inicial.
2.8. A A., que então vivia em harmonia com o marido, no qual tinha toda a confiança, acedeu ao seu pedido e emitiu as procurações – art. 13º da petição inicial.
2.9. Foi o A. (…) a fixar os termos e conteúdo das procurações, limitando-se a A. a assiná-las, não tendo falado com o R. (…) sobre as procurações – art. 14º da petição inicial.
2.10. A A. fala e entende o português de forma significativamente deficiente, tendo dificuldade em entender tudo o que lhe dizem e em fazer-se entender – artigo 16º da petição inicial.
2.11. A A. não se apercebeu do exacto alcance das expressões constantes das procurações referidas em 1.5 a 1.7 no que toca a serem emitidas no interesse dos mandatários, a não poderem ser revogadas e a não caducarem – artigo 17º da petição inicial.
2.12. Subjacente à emissão das procurações referidas em 1.5 a 1.7 não existia à data em que foram emitidas qualquer negócio entre a A. e os procuradores – artigo 34º da petição inicial.
2.13. Os RR. foram constituídos mandatários com o simples objectivo de, sem qualquer contrapartida, gerirem os saldos das contas por conta e no exclusivo interesse da A. – artigo 35º da petição inicial.
2.14. Nenhuma das procurações referidas em 1.5. a 1.7. teve outra causa para a sua emissão a não ser o pedido do R. (…) com quem a A. tinha uma relação de confiança e, por isso, nem sequer questionou a razão pela qual lhas pediu – art. 42º da petição inicial.
2.15. O cheque referido em 1.11 não foi emitido pela A. – art. 19º da contestação de fls. 31 e ss.
2.16. Eliminado.
2.17. O R. (…) movimentou as contas referidas em 1.3 – art. 25º da petição inicial.
2.18. A A. sabe que o R. (…) lhe pediu para abrir as contas em seu nome unicamente para permitir que algumas transacções comerciais não passassem por contas de empresas de que é sócio-gerente, porquanto corriam o risco de ficar retidas – art. 38º e 39º da contestação de fls. 31 e ss.
2.19. A A. compreendeu a situação referida em 2.18. e aceitou de livre e espontânea vontade outorgar as procurações referidas em 1.5. e 1.7. - art. 40º da contestação de fls. 31 e ss.
2.20. Todos os depósitos efectuados nas contas referidas em 1.3 à data das procurações mencionadas em 1.5 a 1.7 foram assegurados com dinheiro do R. (…) – art. 17º da contestação de fls. 51 e ss.
2.21. A A. sabia do referido em 2.18 e 2.19 – art. 50º e 51º da contestação de fls. 31 e ss..
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De Direito
Da obrigação de prestar contas
A autora, como vimos, alegando ter estabelecido com os RR uma relação de mandato, pediu ao tribunal que os condenasse a prestar contas da administração que fizeram das contas bancárias que identificou, e a entregar-lhe o saldo que a final vier a ser apurado, obrigação que a final foi decidido recair apenas sobre o R. (…), aqui recorrente.
Interessa referir a título prévio que tendo sido invocada pela autora que a administração exercia pelo cônjuge marido se fundou em mandato não é aplicável o regime regra previsto no n.º 1 do art.º 1681.º do CC, ficando o cônjuge administrador que também é mandatário obrigado a prestar contas, conforme prevê o n.º 2 do preceito, ainda que com o limite temporal ali consagrado.
Isto dito, importa relembrar que nos termos do art.º 941.º do CPC a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las, tendo por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
Face ao dispositivo da lei, têm legitimidade para instaurar a acção de prestação de contas quer o onerado com a sua prestação, quer aquele que tem o direito de as exigir, sendo seu pressuposto a administração de bens alheios de que tenha resultado a realização de receitas e a obtenção de despesas, e tendo por finalidade o apuramento de um saldo que é desconhecido.
A obrigação de prestar contas, conforme a nosso ver com acerto se observou na decisão apelada, decorre de uma obrigação de carácter mais geral e que é a obrigação de informação consagrada genericamente no art.º 573.º do CC, concordando doutrina e jurisprudência que “a constituição dessa obrigação de informação exige a verificação cumulativa de dois pressupostos: a dúvida fundada, do titular de um direito, sobre a sua existência ou o seu conteúdo; a existência de outrem em condições de prestar as informações necessárias (art.º 573.º do Código Civil)” – (ac. do TRC de 14 de Maio de 2013, proferido no processo 9-B/1999, em www.dgsi.pt).
Face ao que se deixou dito pode ter-se por assente, por um lado, que a obrigação de prestação de contas se filia no amplo dever de informação que onera aquele que gere o que não é seu, que o obriga a dar informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada dos documentos justificativos (cf. art.º 944.º) e, por outro, que o direito de exigir que outrem lhe preste contas provém do facto desse terceiro estar investido na administração de bens que lhe não pertencem, podendo resultar da lei ou dos próprios termos do negócio celebrado, assentando na ideia básica de que quem administra os bens estará em posição de saber e provar quais os créditos e as despesas da sua administração.
O mandatário tem o dever, que decorre da lei, de prestar contas findo o mandato ou quando o mandante o exigir (cfr. art.º 1161.º, al. d), do CC). Todavia, procuração e mandato são negócios jurídicos distintos, sendo a primeira um negócio unilateral e o segundo um contrato. Do mesmo passo, enquanto no mandato o mandatário tem o dever de o exercer, praticando os actos nele compreendidos segundo as instruções do mandante (cfr. al. a) do citado art.º 1161.º), na procuração trata-se tão-somente de um poder (mas não já de um verdadeiro dever).
Outro traço distintivo entre os dois negócios é a essencialidade da atribuição voluntária de poderes na procuração, ao passo que o mandato pode ser acompanhado da outorga de poderes representativos (mandato com representação, a que se reportam os art.ºs 1178.º e 1179.º) ou desacompanhado da outorga de tais poderes (mandato sem representação – cfr. artigo 1180.º). Todavia, sendo a procuração o acto pelo qual alguém confere a outrem, voluntariamente, poderes de representação, se o procurador celebrar o negócio ou acto jurídico para cuja conclusão lhe foram dados esses poderes, aqueles produzem os seus efeitos na esfera jurídica do representado (vide art.ºs 262.º, n.º 1 e 258.º). E tratando-se, também aqui, da administração de bens alheios, existe a obrigação de prestar contas, independentemente da caracterização como mandato representativo do acordo celebrado. Ademais, "se ao representante foram, pela procuração, atribuídos poderes representativos, não deixa o procurador de ser mandatário e, como tal, de ser titular dos direitos e obrigações do mandatário/representante (1161.º e 1178.º CC)" [8].
No caso que nos ocupa a apelada outorgou a favor (também) do aqui apelante as procurações identificadas nos pontos 1.5, 1.6 e 1.7, conferindo-lhe poderes para movimentar as contas bancárias pela mandante tituladas, identificadas no ponto 1.3. E do elenco dos factos provados resulta inequívoco que o R. (…) efectuou diversos movimentos a débito e crédito nessas mesmas contas. Constatando tal facto e considerando a Mm.ª juíza que a autora, sendo titular exclusiva das contas movimentadas, beneficiava da presunção da propriedade das quantias nelas depositadas, foi consequente a condenação do R. a prestar contas de tal movimentação, solução que agora vem contestada, alegando o recorrente que não administrou quaisquer bens que pertencessem à apelada, donde não se encontrar obrigado a prestar contas.
É inequívoco que a autora era a única titular das contas, mas subsiste a questão de saber se desta titularidade nasce a presunção de titularidade dos saldos.
A abertura de conta é um contrato celebrado entre o banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos relativos a diversas práticas bancárias. Correspondendo a um negócio tipicamente bancário, “opera como um acto nuclear, cujo conteúdo constitui, na prática, o tronco comum dos diversos actos bancários subsequentes[9].
Quanto à titularidade, a conta pode ser individual ou colectiva, consoante seja aberta em nome de uma ou de várias pessoas[10], estando demonstrado que as contas dos autos eram, todas elas, individuais.
A abertura de conta prevê desde logo um quadro para a constituição de depósitos, que o banqueiro se obriga a receber.
“O depósito bancário, em sentido próprio, é um depósito em dinheiro, constituído junto de um banqueiro”, tratando-se de operação associada a uma abertura de conta[11]. Numa outra formulação, “é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, o qual dela poderá livremente dispor, obrigando-se a restitui-la mediante solicitação, e de acordo com as condições estabelecidas[12]. O contrato assim celebrado caracteriza-se por uma dupla disponibilidade: o banco, por um lado, adquire a propriedade dos fundos depositados, deles podendo livremente dispor, sem ter de prestar contas ao depositante; este, por seu turno, conserva a disponibilidade dos mesmos fundos, podendo exigir a sua restituição ou deles dispor livremente em favor de um terceiro.
Vindo a ser discutida a natureza jurídica do depósito bancário, inclinam-se todavia a doutrina e jurisprudência maioritárias para a sua caracterização como contrato de depósito irregular -na medida em que o banco depositário adquire a propriedade das quantias e terá unicamente de restituir coisas da mesma qualidade e quantidade- entendimento do qual não vemos razões fundamentadas para divergir e que, de resto, aqui assume escassa relevância[13].
Tendo o recorrente actuado sempre em representação da autora, os depósitos e levantamentos efectuados pelo recorrente produziram os seus efeitos na esfera jurídica desta, donde, perante os bancos depositários era a apelada a credora do saldo que as mesmas contas em cada momento apresentaram. Ademais, tratando-se, como era o caso, de contas de depósito individuais, só a sua titular, ainda que por intermédio de representante, tinha a faculdade de exigir dos bancos o reembolso de tais saldos bancários; porém, daqui não decorre, nem a lei presume, que fosse a “proprietária dos fundos”[14], o que é coisa diversa, já que nada obsta a que o titular de uma conta receba entregas de terceiros para depositar, assumindo o encargo de restituir tais “fundos” quando lhe forem solicitados (conforme os RR de resto alegaram ter ocorrido no caso em apreço, ainda que não tenham provado que era o R. … o “dono” dos saldos que as contas em cada momento apresentavam).
De todo o modo, e conforme se referiu, o fundamento da obrigação de prestação de contas é a gestão de bens alheios, donde recair sobre a autora o ónus de provar que o R. tinha administrado bens seus. E foi por isso que a apelada alegou que à data em que emitiu as procurações as contas bancárias por si tituladas apresentavam um saldo – que disse pertencer-lhe em exclusivo – de valor superior a € 1.000.000,00. Alegou mas não provou, uma vez que à data da outorga das procurações em causa apenas uma das contas se encontrava provisionada, apresentando um saldo positivo de € 100,00, que nem sequer se provou ser sua pertença (cfr. pontos 2.1 e 2.2), tal como não provou que lhe pertencia qualquer um dos saldos que as contas foram apresentando (sendo certo que muitos dos movimentos registados reflectem transferências de umas contas para as outras). E não tendo a demandante feito prova de que os saldos bancários registados nas contas lhe pertenciam, não está igualmente demonstrado que o Réu recorrente, que comprovadamente movimentou as aludidas contas em nome daquela, administrou bens alheios, ónus que a nosso ver recaía sobre a recorrida por se tratar de factos constitutivos do seu direito a serem-lhe prestadas contas (cfr. art.º 342.º, n.º 1). Admitir, conforme se referiu na sentença recorrida, que o R. condenado pudesse vir a demonstrar, na fase subsequente do processo, que os saldos das contas que movimentou não pertenciam em exclusivo -ou não pertenciam de todo- à autora, seria abrir a porta à conclusão de que afinal não tinha a obrigação de prestar contas depois de ter sido condenado a fazê-lo.
Por outro lado, conforme ensinam os Profs. Pires de Lima e A. Varela[15], ensinamento que vem sendo seguido pelo STJ, “a obrigação de prestação de contas (al. d)) só tem interesse para o mandante quando haja, em relação às partes, créditos e débitos recíprocos. Não parece de aceitar a doutrina ensinada em Itália, sob a influência de autores alemães e franceses, de que a prestação de contas, neste caso, existe, mesmo que o acto não tenha tido, nas relações entre mandante e mandatário, reflexos patrimoniais. (…)”[16].
Tal como se assinala no aresto do mesmo STJ de 9/2/2006[17], versando situação com algumas semelhanças, “a prestação de contas visa a definição de um quantitativo como saldo e tal finalidade pode sempre alcançar-se por uma conta de receitas e despesas, sempre que esta forneça os elementos que permitam conhecer da origem das primeiras e do destino das segundas.
Por isso, em nosso entender, não havendo qualquer reciprocidade de créditos e débitos que justifiquem o presente processo especial, restará à autora (como aliás é apontado já na sentença da 1.ª instância) intentar uma acção de condenação, visando o reconhecimento de que o dinheiro levantado fazia parte da herança aberta por morte da DD e, consequentemente, a sua reposição ao acervo hereditário.
Com efeito, no caso concreto não ficou provado, nem podia ficar porque a autora o não alegou, que houve uma administração dos valores levantados, da qual tenham resultado créditos e débitos recíprocos entre a falecida DD e o réu marido, limitando-se a matéria provada a evidenciar levantamentos efectuados pelo réu, razão pela qual não tem qualquer fundamento o pedido de prestação de contas deduzido”.
E isto mesmo se verifica no caso que nos ocupa, não resultando do acervo factual apurado, nem que os saldos pertencessem à autora (nem por via de presunção judicial se chegou à conclusão que era a titular), nem que o R. condenado tivesse praticado actos de administração dos mesmos susceptíveis de gerarem receitas e importarem despesas, dos quais resultasse a obrigação de prestar contas em ordem a apurar um saldo de que aquela fosse credora. A sentença não pode por isso subsistir.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso interposto pelo R. (…), que vai absolvido do pedido.
Custas nestas e na 1.ª instância a cargo da Autora.
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Évora, 27 de Junho de 2019

Maria Domingas Simões

Vítor Sequinho Santos

José Manuel Barata

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[1] Jurisprudência que não tem, claramente, merecido a atenção de muitos dos fls. Mandatários, dada a frequência com que são, sem fundamento, invocadas nulidades da sentença.
[2] Acórdão do STJ de 26/4/95, citado no aresto do mesmo STJ de 21/11/2002, processo 02B3271, acessível em www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, Prof. Lebre de Freitas, “A acção declarativa comum à luz do Código Revisto”, 2.ª edição, págs. 302-302, escrevendo embora no âmbito de vigência do CPC cessante.
[4] Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1984, reimpressão, pág. 151.
[5] Acórdão de 13/11/2002, proferido no processo n.º 02B2381,acessível em www.dgsi.pt
[6] Trata-se de manifesto lapso, evidenciado pelo contexto, reportando-se ao ponto 1.13.
[7] Trata-se de lapso manifesto, evidenciado pelo confronto com o facto provado 1.11, querendo a Mm.ª juíza referir-se à conta identificada em 1.7, que foi creditada com os € 150.000,00 a que se reporta o talão de depósito de valores cuja cópia consta de fls. 172, impondo-se a eliminação do segmento final do ponto 1.15.
[8] Acs. do STJ de 01/07/2003, no Proc. 1913/03, 6ª secção, e de 9/2/2006, processo 05B4061, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Prof. Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3.ª edição, págs. 411-412.
[10] As contas colectivas, por seu turno, podem ainda ser solidárias – aquelas em que qualquer dos titulares pode movimentar sozinho e livremente a conta, exonerando-se o banqueiro, no limite, pela entrega da totalidade do depósito a um único dos titulares; conjuntas, quando a sua movimentação só pode ser feita por todos os seus titulares, em simultâneo; e mistas – aquelas em que alguns dos titulares podem movimentar a conta em conjunto com outros (cfr. autor e ob. cit., págs. 441-442).
[11] Prof. Menezes Cordeiro, ob. cit., págs. 470 e seguintes, “maxime” 480 a 482.
[12] Paula Ponches Camanho, “Do contrato de depósito bancário”, 1998, pág. 93.
[13] V., por todos, autora e ob. cits. na nota anterior, págs. 145 e seguintes, embora a autora acabe por optar pela sua caracterização como mútuo. No sentido de que se trata de depósito irregular, Prof. A. Varela, RLJ, ano 101, pág. 369 e na jurisprudência, ac. STJ de 24/3/2004, processo n.º 04A3101, no citado sítio.
[14] Alertando para a incorrecção da designação, pese embora reconheça tratar-se de uma formulação sugestiva. Menezes Cordeio, ob. cit., pág. 442, alertando para o facto de, em rigor, a distinção visar a titularidade da conta e a titularidade dos saldos das respectivas contas.
[15] CC Anotado, 4.ª ed., nota 5 no comentário ao art.º 1161º.
[16] Ac. STJ de 1/7/2003, proferido no processo 03A1913, em www.dgsi.pt.
[17] Proferido no processo 05B4061, também acessível em www.dgsi.pt.