Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2017/21.2T8STR.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
CULPA DO CÔNJUGE
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Fora dos casos de alteração das faculdades mentais do cônjuge que não pretendeu o divórcio, a Lei n.º 61/2008, ao eliminar a apreciação da culpa do âmbito da acção de divórcio, terminou com a especial responsabilidade por danos não patrimoniais, decorrentes da própria dissolução do casamento.
2 – Os actos dos cônjuges ou ex-cônjuges serão irrelevantes pela qualidade dos sujeitos e apenas relevantes enquanto actos de cidadãos que violam direitos de personalidade e direitos fundamentais de outros cidadãos.
3 – Não existe no actual quadro «uma sanção organizada para o não cumprimento dos deveres familiares» e, ao abrigo do artigo 1792.º do Código Civil, apenas há lugar à atribuição de uma indemnização fundada na violação da esfera da personalidade do cônjuge que não se esgote no cometimento do ilícito conjugal.
4 – A proporção, a adaptação às circunstâncias, a objectividade, a razoabilidade e a certeza objectiva são as linhas motrizes de actuação da equidade e a indemnização a atribuir não pode afastar-se das linhas jurisprudenciais directoras em casos semelhantes.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2017/21.2T8STR.E1
Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central ... – J...
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
Na presente acção declarativa com processo comum proposta por AA contra BB, o Réu veio interpor recurso da sentença proferida.
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A Autora pediu que o Réu fosse condenado a pagar-lhe:
a) a quantia de € 45.000,00, a título de danos não patrimoniais ou, na eventualidade de não ser possível apurar o exacto valor destes danos, que se relegue esse apuramento para execução de sentença.
b) o valor mínimo de € 6.000,00, correspondente a metade do valor que suportou com a amortização total do mútuo bancário.
c) as quantias de € 857,74 e € 1.135,16, que correspondem a metade do valor que suportou com o Imposto Municipal sobre Imóveis e despesas de condomínio.
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Para tanto, a Autora invocou que foi casada com o Réu, tendo o divórcio sido decretado por sentença de 07/05/2013 e que, a partir de 1995, este deixou de contribuir para as despesas domésticas, incluindo a amortização do empréstimo bancário e as despesas com o Imposto Municipal sobre Imóveis e o condomínio.
Para além da matéria relacionada com o suporte de todos os custos inerentes à vida familiar, a Autora afirma que o Réu a desprezou e que, por força do seu comportamento, sofreu diversos problemas de saúde.
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Realizada a citação, o Réu apresentou contestação, negando a factualidade contida na petição inicial e afirmou que o direito de indemnização do cônjuge por danos causados pelo outro cônjuge não existe quando se trate de divórcio por mútuo consentimento.
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Foi proferido despacho saneador que fixou o valor da acção, bem como o objecto do litígio e os temas da prova.
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Realizada a audiência final, o Tribunal a quo decidiu julgar parcialmente procedente o pedido, condenando o Réu BB a pagar à Autora AA a quantia global de € 40.530,92 (quarenta mil e quinhentos e trinta euros e noventa e dois cêntimos).
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O recorrente não se conformou com a referida decisão e o articulado de recurso continha as seguintes conclusões, aliás extensas e prolixas na relação de proporcionalidade com o corpo do recurso apresentado e que representam praticamente a transcrição do corpo do mesmo, com sucessivas repetições do mesmo argumentário [1] [2] [3] [4] [5]:
«I – O presente recurso vem interposto da douta Sentença, proferida no processo em epígrafe, que julgou a presente ação parcialmente procedente, e em consequência condenou o Réu, aqui Apelante:
a) A pagar à Autora AA a quantia global de € 40.530,92 (quarenta mil, quinhentos e trinta euros e noventa e dois cêntimos);
b) Nas custas do processo na proporção de 4/5, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
II – Por despacho saneador de 22.03.2022 foi fixado o objeto do litígio: “Cumprindo-se o disposto no artigo 596.º, n.º 1, do CPC, dir-se-á que o objecto do processo é constituído por duas questões: apurar se existe um direito de crédito da Autora por ter liquidado, na constância do matrimónio, dívidas comuns usando dinheiro exclusivamente seu; determinar se a Autora tem direito a receber uma indemnização por danos morais, por factos ocorridos na vigência do casamento que contraiu com o Réu e que já se encontra dissolvido.
Consideram-se desde já provados os factos alegados nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º da petição inicial. Encontram-se igualmente provados os factos alegados nos artigos 5.º, 14.º, 15.º, 17.º e 19.º da petição inicial, com o enquadramento constante do artigo 1.º da contestação.
Todos os demais factos alegados na petição inicial, atinentes ao objecto da causa supra identificado, integram os temas da prova.
III – A Apelada, alega que o Apelante, a partir de 1995 deixou de contribuir para as despesas domésticas, incluindo a amortização do empréstimo bancário, Imposto Municipal sobre Imóveis e condomínio, que suportou sozinha todos os custos inerentes à vida familiar; que o Réu a desprezou e sobrecarregou com tais encargos, violando os deveres conjugais e causando-lhe problemas de saúde.
III (1)[6] – Devendo o Réu ser condenado no pagamento de € 45.000,00, a título de danos não patrimoniais; o valor mínimo de € 6.000,00, (metade do valor que suportou com a amortização total do mútuo bancário); as quantias de € 857,74 e € 1.135,16, (metade do valor que suportou com o Imposto Municipal sobre Imóveis e despesas de condomínio).
Dos Danos patrimoniais:
IV – Autora e o Réu contraíram casamento, em .../.../1970, em 05.03.2013 foi proposta acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, em 07.05.2013 em sede de tentativa de conciliação foi o divórcio convolado para divórcio por mútuo consentimento tendo transitado em julgado em 06.06.2013 (Ponto 1 a 4 dos Factos Provados).
V – Na pendência do matrimónio, em 1990, Autora e o Réu, contraíram um mútuo bancário junto da Caixa (…), o qual ficou totalmente pago em 2015 (Ponto 7 e 17 dos Factos Provados).
VI – Na conferência realizada em 07.05.2013, Autora e Réu, aqui Apelada e Apelante, acordaram na atribuição da casa de morada de família fica à Ré, aqui Autora e que os bens comuns do casal eram constituídos pelo “activo, o bem constante da caderneta predial (…) e pelo passivo, empréstimo para aquisição do prédio referido no activo, sendo credora a Caixa, no montante de € 2.128,53” (Doc. n.º 1 e 2 junto aos presentes autos, pela Autora aquando da Petição Inicial).
VI (1)[7] – Em 27.01.2021, foi proferido despacho no processo de inventário tendo os interessados Autora e Réu remetidos para os meios comuns (Doc.º 1 junto pelo Réu no requerimento datado de 15.02.2022) – (Ponto 29. dos Factos)
VII – Em 18.10.2021, foi proferido Despacho Saneador, no qual o único bem a partilhar entre os interessados Autora e Réu seria o imóvel relacionado nos autos – Processo de Inventário – (Doc.º 2 junto pelo Réu no requerimento datado de 15.02.2022).
VIII – Em 10.01.2022, foi alcançado acordo na Conferência de Interessados, adjudicando-se a respectiva meação, preenchida, cada uma das meações, por metade do produto da venda do bem comum (Doc.º 3 junto pelo Réu no requerimento datado de 15.02.2022 e Certidão extraída do Processo de Inventário, com nota do trânsito em julgado, junta aos autos em 04.04.2022).
IX – O referido mútuo ficou totalmente pago em 2015 (Ponto 17. dos Factos Provados).
X – Mal andou o Tribunal a quo ao condenar o Réu no pagamento de uma compensação de € 10.530,92 (dez mil, quinhentos e trinta euros) – € 8.838.02 (referente ao mútuo bancário); € 857,74 (referente a IMI) e € 1.135,16 (referente a despesas de condomínio) à Autora por danos não patrimoniais.
XI – Decorre das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 1789°, que os efeitos patrimoniais do divórcio retrotraem-se à data da propositura da acção, salvo se, estando a separação de facto provada no processo, qualquer dos cônjuges requerer que os efeitos do divórcio retroajam à data, que a sentença terá de fixar, em que a separação tenha começado.
XII – A possibilidade de fazer retroagir os efeitos patrimoniais do divórcio à data da separação de facto só no divórcio litigioso pode ocorrer, dependentes da data da separação de facto (a qual tem de estar provada no processo de divórcio); qualquer dos cônjuges haja requerido que os efeitos do divórcio retroajam a essa data, e que tal data seja fixada na sentença que decreta o divórcio.
XIII – No processo de divórcio entre a Autora e o Réu iniciou-se sob a forma litigiosa, posteriormente convolado em mútuo consentimento, e decretado sob essa forma, não estando provado nos autos do divórcio a data da separação de facto, pelo o Réu não poderá ser responsabilizado, pelo pagamento das quantias peticionadas pela Autora, anteriores a 05.03.2013 – data da propositura da acção.
XIV – Assim, quanto às prestações pagas até à propositura do divórcio, 05.03.2013 nos termos dos artigos 1789.º, n.º 1, parte final, e 1697.º, n.º 1, nada tem a Autora a haver do Réu, porquanto o divórcio entre ambos, produziu os seus efeitos os patrimoniais à data da proposição da acção de divórcio.
XV – Assim, apenas poderá o Réu, ora apelante ser responsável pelo pagamento à Autora, na proporção de metade das quantias despendidas desde 05.03.2013 e no que respeita ao pagamento do mútuo bancário, IMI e despesas com o condomínio.
XVI – Não assistindo direito à Autora, em reaver os montantes relativos aos pagamentos feitos anteriormente, à data da propositura da acção de divórcio – 05.03.2013.
XVII – Não obstante, o aresto em crise fundamentar que a factualidade inserta nos Pontos 9, 12, 13, 14, 15, 19, 20 e 21 dos Factos Provados, constituem, por parte do Réu, uma violação grave, reiterada, ilícita e dolosa dos deveres de coabitação, cooperação e assistência, e atentam contra os direitos de personalidade da Autora, enquanto mãe e mulher, com o devido respeito, não partilhamos da mesma opinião.
XVIII – O Douto Tribunal a quo considerou provado que “Em 1995 o Réu deixou de contribuir com qualquer valor para os encargos da vida familiar, levando à acumulação de sucessivos atrasos no pagamento das mensalidades para amortização do empréstimo bancário.”, que seu filho BB “(…) viu-se obrigado a contrair um empréstimo bancário em nome pessoal, tendo como fiador um primo, cujo montante entregou à mãe para que esta pudesse pagar as prestações à Caixa em atraso e evitar a resolução do contrato de mútuo e CC, também sua filha não pôde continuar a estudar, vendo-se na necessidade de procurar emprego aos 16 anos de idade como operária numa fábrica têxtil” (Pontos 9, 13 e 14 dos Factos Provados).
XIX – Mais entendendo que “A Autora pagou ao longo dos anos a prestação mensal ao Banco, até à amortização total do referido mútuo” (Ponto 19 dos Factos Provados). “Fê-lo com dinheiro proveniente exclusivamente do seu trabalho e com a ajuda dos filhos” (Ponto 20 dos Factos Provados) e bem ainda, ”Também só com o seu salário e a ajuda dos filhos, que lhe emprestavam dinheiro, a Autora pagou, ao longo de 26 anos, o Imposto Municipal sobre Imóveis, no valor de € 1.715,48, e as despesas de condomínio, no valor de € 2.270,32” (Ponto 21 dos Factos Provados).
XX – Fundamentou o Tribunal a quo que a factualidade inserta nos Pontos 9, 12 a 15 e 19 a 21 dos Factos Provados resulta dos depoimentos das testemunhas BB, CC, DD e EE.
XXI – Em nosso entendimento das declarações prestadas por todas as testemunhas resultou apenas que os as testemunhas BB e CC auxiliaram a sua mãe com o pagamento das despesas, em nada resultando que seu pai, Réu, ora apelante não contribuísse para tais despesas.
BB (testemunha)
CD – 20220706095338_2961068_287169 aos Minutos 03.01; 03.08; 03.34; 03.37;03.49; 04.01; 05.10; 05.18; 05.21;06.08; 06.14; 06.24; 06.34; 06.44; 06.50; 11.52; 12.02;12.09; 12.11; 15.04; 15.08;15.21; 16.55;17.01;17.05;17.08;17.17-22.52;23.08*
CC (testemunha)
CD – 20220706102039_2961068_2871696 aos Minutos 02.34;02.47;03.46; 03.50; 03.56;04.02; 05.03; 05.11; 05.51; 05.59; 07.13; 07.24; 11.15; 11.29*
DD (testemunha)
CD – 20220706103545_2961068_2871696 aos Minutos 05.40;05.48;06.30; 06.35; 06.50; 07.08 *
EE (testemunha)
CD – 20220706104946_2961062_2871696 aos Minutos 03.32; 03.36** Depoimentos / Declarações supra transcritos e que aqui se dão integralmente por reproduzidos
XXII – Resulta do depoimento da testemunha BB que seu pai “(…) o meu pai a maior parte das vezes não contribuía com as despesas (…)”, não resulta do seu depoimento, que o Réu não contribui para o pagamento quer do empréstimo bancário, IMI e despesas com o condomínio, mas tão só que ambas as testemunhas contribuíam e auxiliavam sua mãe.
XXIII – Mal andou o Tribunal a quo ao ter dado como provado o Ponto 9 “Em 1995 o Réu deixou de contribuir com qualquer valor para os encargos da vida familiar, levando à acumulação de sucessivos atrasos no pagamento das mensalidades para amortização do empréstimo bancário”; O Ponto 13 “O filho BB, que, entretanto, conseguiu emprego, viu-se obrigado a contrair um empréstimo bancário em nome pessoal, tendo como fiador um primo, cujo montante entregou à mãe para que esta pudesse pagar as prestações à Caixa em atraso e evitar a resolução do contrato de mútuo”. O Ponto 14 “A filha CC não pôde continuar a estudar, vendo-se na necessidade de procurar emprego aos 16 anos de idade como operária numa fábrica têxtil”. O Ponto 15 “Só com esta ajuda foi possível evitar que a Autora perdesse a habitação e a família ficasse na rua”. O Ponto 19 “A Autora pagou ao longo dos anos a prestação mensal ao Banco, até à amortização total do referido mútuo”. O Ponto 20 “Fê-lo com dinheiro proveniente exclusivamente do seu trabalho e com a ajuda dos filhos”. O Ponto 21 “Também só com o seu salário e a ajuda dos filhos, que lhe emprestavam dinheiro, a Autora pagou, ao longo de 26 anos, o Imposto Municipal sobre Imóveis, no valor de € 1.715,48, e as despesas de condomínio, no valor de € 2.270,32”.
XXIV – Tais factos não permitiam ao Tribunal, só por si, concluir que o Réu a partir de 1995 deixou de contribuir com qualquer valor para os encargos da vida familiar e que a Autora pagou ao longo de 26 anos e com dinheiro proveniente exclusivamente do seu trabalho a prestação mensal ao Banco, o Imposto Municipal sobre Imóveis, e as despesas de condomínio, no valor de € 2.270,32.
XXV – Referindo-se, que em 29.09.2017, apresentada reclamação à relação de bens no âmbito do processo de inventário, a Autora, afirma no item 2 do seu articulado que “(…) desde 2005, ano em que o cabeça de casal abandonou a casa (…)” e no item 17 do seu articulado que “Desde que o Requerente saiu de casa no ano de 2005, a Requerida teve de assumir pessoalmente e sem a ajuda do Requerente as prestações de empréstimo da casa até integral pagamento” (documento junto aos autos pelo Réu em 17.12.2021).
XXVI – Dos factos provados não resulta que a Autora tenha pago todas as prestações do mútuo bancário, IMI e Condomínio referidas no Ponto 19 e Ponto 21 dos Factos Provados, com dinheiro próprio ou sendo comum em que percentagem participou em tal pagamento.
XXVII –Tanto mais que impendia sobre a Autora, a prova da dívida comum, da satisfação do valor que reclama e que usou bens próprios para pagamento dessa divida comum.
XXVII – Importa, pois, julgar procedente o recurso, revogar a sentença recorrida, determinando-se que os efeitos patrimoniais do divórcio se retrotraem à data da propositura da acção de divórcio – 05.03.2013.
XXIX – Não sendo admissível retroagir os efeitos patrimoniais ao caso vertente nos autos, nem ao ano de 1995, como ora pretende a Autora, nem ao ano de 2005, como a mesma invoca em sede do supra referido processo de inventário.
XXX – Para o Tribunal a quo, os factos resultaram provados pelos depoimentos de todas as testemunhas, e pela documentação junta aos autos com a Petição Inicial a fls. 13, 13 verso, 14, 14 verso, 15, 15 verso, 89 a 90 e Doc. n.º 4 junto aos autos pela Autora com a Petição Inicial.
XXXI – Com todo o respeito, os documentos de fls. 13, 13 verso, 14, 14 verso, 15, 15 verso, 89 a 90 dos autos não permitiam ao Tribunal a quo concluir que o Réu não tenha contribuído para as despesas e encargos do lar e que tenha sido a Autora com dinheiro exclusivamente seu, a suportar, todos esses encargos (Ponto 9, 19, 20 e 21 dos Factos Provados).
XXXII – Destes meios probatórios resulta, inequivocamente, não demonstrado o pagamento pela Autora dos encargos e despesas com dinheiro exclusivamente seu, e cujos depoimentos não foram corroborados pela prova documental.
XXXIII – Nenhum documento junto aos autos veio corroborar, inclusivamente, o Ponto 13 “O filho BB, que, entretanto, conseguiu emprego, viu-se obrigado a contrair um empréstimo bancário em nome pessoal, tendo como fiador um primo, cujo montante entregou à mãe para que esta pudesse pagar as prestações à Caixa em atraso e evitar a resolução do contrato de mútuo”.
XXXIV – Do depoimento da Testemunha BB, resulta que contraiu empréstimo bancário para pagamento das prestações bancárias do mútuo contraído por seus pais no decurso da acção que lhe foi movida pela Caixa, três quatro anos antes de 1997.
XXXV – Ora, do documento junto aos autos pela Autora como Doc. n.º 4 aquando da Petição Inicial, resulta que tal acção foi proposta apenas em 1998 (Ponto 10 dos Factos Provados).
XXXVI – Impunha-se, assim, decisão sobre a matéria de facto diversa da decisão recorrida, por não se poder concluir, dos elementos probatórios dos autos que: “(…) a partir de 1995 o Réu deixou de contribuir para as despesas da vida familiar, o que obrigou a Autora a ter de as suportar sozinha com recurso ao seu salário e à ajuda de seus filhos; Ao ter agido desta forma o Réu incumpriu os deveres de comunhão de mesa e habitação, de participar na guarda, sustento e educação dos filhos, de contribuir economicamente para os encargos da vida familiar e de socorrer e auxiliar os filhos e a Autora como cônjuge. (…) que tudo isto causou na Autora forte sofrimento, ansiedade, estados de nervosismo e de esgotamento, que ainda hoje se mantêm, tendo inclusive padecido de várias úlceras que, por terem rebentado, necessitaram de tratamento hospitalar”.
XXXVII – Acrescenta-se que o Tribunal a quo, na sua decisão de que ora se recorre, não valorizou como meio de prova a Certidão Judicial junta aos autos pelo Réu com o requerimento de 17.12.2021.
XXXIX – Pelo que, o Tribunal ad quem deverá considerar por não provados os Pontos 9, 13, 19, 20 e 21 dos Factos Provados.
Dos Danos não patrimoniais (compensação):
XL – Pretende, a Autora ser ressarcida dos danos não patrimoniais que o Réu lhe causou, por ter desprezado a Autora, violando culposamente os deveres conjugais e causando-lhe problemas de saúde.
XLI – Dispõe o n.º 1 do artigo 1792.º do Código Civil “O cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns”, contudo, pressupõe-se que os cônjuges não tenham optado pelo divórcio por mútuo consentimento.
XLII – A Lei n.º 61/2008, de 31.10 ao eliminar a apreciação da culpa do âmbito da acção de divórcio, eliminou, naturalmente, a especial responsabilidade por danos não patrimoniais, decorrentes da própria dissolução do casamento, responsabilidade essa que, impende sobre o cônjuge declarado único culpado ou principal culpado pelo divórcio.
XLIII – Ora, o divórcio entre Autora e Réu, foi decretado por mútuo consentimento (Factos provados no Ponto 3). Pelo que, mal andou o Tribunal a quo ao condenar o Réu no pagamento de uma compensação de € 30.000,00 (trinta mil euros) à Autora por danos não patrimoniais.
XLIV – Mais, pretendeu a Autora, ora apelada, obter a condenação do Réu pelos danos não patrimoniais pelos factos ilícitos violadores dos deveres conjugais de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, factos esses, que salvo melhor entendimento, apenas se podem provar por documento com força probatória plena, designadamente, a sentença que decretou o divórcio das partes, ex-casal.
XLV – Sendo, a vontade das partes ineficaz para produzir o efeito jurídico que se pretende obter decorrente do pedido de condenação do Réu no pagamento à Autora de indemnização pelos danos não patrimoniais causados e baseado este pedido em factos alusivos à violação culposa dos deveres conjugais por parte do aqui Réu, tendo sido, como resulta dos factos provados no Ponto 3, decretado o divórcio entre ambos em divórcio por mútuo consentimento.
XLVI – Além do mais, não obstante, o aresto em crise fundamentar que a factualidade inserta nos Pontos 9, 12, 16, 26 (in fine) e 27 dos Factos Provados, constituem, por parte do Réu, uma violação grave, reiterada, ilícita e dolosa dos deveres de coabitação, cooperação e assistência, e atentam contra os direitos de personalidade Autora, enquanto mãe e mulher, não partilhamos da mesma opinião.
XLVII – Entendendo-se que a Autora deve ser ressarcida dos danos não patrimoniais que o Réu lhe causou, dir-se-á que a responsabilidade civil entre cônjuges intervirá, somente, quando as violações dos deveres conjugais implicarem também ofensas dos direitos de personalidade do lesado.
XLVIII – O douto Tribunal a quo considerou provado que os factos supra descritos nos Pontos 9, 13, 14, 15, 19 a 21 constituem violação grave, reiterada, ilícita e dolosa dos deveres de coabitação, cooperação e assistência, atentam contra os direitos de personalidade da Autora enquanto mãe e mulher merecendo a tutela do direito.
XLIX – O direito de personalidade é um direito subjetivo abrangendo o direito à vida, à integridade física, à imagem ou ao nome, cabendo ao homem, enquanto pessoa, que constitui o fundamento da tutela do artigo 70.º Código Civil, de acordo com o previsto na Constituição da República Portuguesa que baseia a dignidade humana.
L – Assim, tendo ocorrido uma ofensa ilícita, a lei admite que possa, haver lugar à responsabilidade civil caso se verifiquem os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos, designadamente a culpa e a existência de um dano (artigo 70.º, n.º 2, em ligação com o artigo 483.º do Código Civil).
LI – O Douto Tribunal a quo considerou provado que “Entre 1987 e 1992 a Autora foi seguida em consultas externas no Hospital ... por apresentar um quadro ango-depressivo, tendo-lhe sido prescrita vária medicação” período este anterior a 1995, data que o douto tribunal a quo considerou que o Réu deixou de contribuir com qualquer valor para os encargos da vida familiar (Pontos 9 e 25 dos Factos Provados).
LII – Entendeu o Douto Tribunal a quo que o Réu com a sua conduta causou forte sofrimento, ansiedade, estados de nervosismo e de esgotamento que ainda hoje se mantém (Ponto 26, in fine, dos factos provados) e que a Autora sofreu várias úlceras, necessitando de tratamento hospitalar (Ponto 27 dos Factos Provados).
LIII – Da análise dos documentos, verifica-se a inexistência de qualquer nexo de causalidade entre o facto provado no Ponto 26, como inexistem quaisquer comprovativos que justifiquem a sua atual fragilidade psicológica desde a data da última consulta até á data da entrada da presente acção em 03.08.2021, já que também nenhuma testemunha era ou foi psicólogo da Autora, para dar conhecimento de que forma tais estados se mantêm até hoje.
LIV – Por outro lado, e quanto ao Ponto 27 dos factos provados, e da análise dos documentos a fls. 91 a 95, não podia o Tribunal a quo deixar de constatar, a inexistência de supostas úlceras, a inexistência de prescrição médica, administração de tratamento por fármacos, ou Internamento.
LV – Não existirem registos de internamentos no Centro Hospitalar ... em ..., referentes à ora Apelada, conforme documento junto aos autos em 13.04.2022 (fls. 91 a 95), não se extraindo de que elemento de prova (documental), com valor de ciência, que corroborasse o depoimento das testemunhas, se socorreu o tribunal a quo, para considerar como facto provado o Ponto 27.
LVI – Existe, sim, um evidente desfasamento temporal em toda a prova documental que, por não se ter provado, leva à conclusão da inexistência de qualquer nexo de causalidade entre a conduta do Réu e a produção dos danos não patrimoniais da Autora.
LVII – Da análise criteriosa dos documentos junto aos autos, não podia o Tribunal a quo concluir que a Apelada padeceu de qualquer doença, causada pelo Réu ou exclusivamente por este.
LVIII – Os factos, constantes nos pontos 26 (in fine) e 27, têm de ser corrigidos por não corresponderem à informação clínica junta autos e por não terem sido corretamente articulados, devendo ser considerados como não provados.
LIV – Também, dos depoimentos prestados pelas testemunhas, demostrarem a forte ligação familiar á Autora e um forte sentimento de revolta, não foram corroborados pela documentação clínica junta aos autos, não poderia terem sido dados como provados os factos dados como provados no Ponto 26 (in fine) e 27 “(…) o que lhe causou forte sofrimento, ansiedade, estados de nervosismo e de esgotamento”. “A Autora sofreu ainda várias úlceras que, por terem rebentado, necessitaram de tratamento Hospitalar”, não se vislumbrando qualquer nexo de causalidade entre o facto e o dano provocado pelo Réu à Autora.
BB (testemunha)
CD – 20220706095338_2961068_287169 aos Minutos 09.17; 09.39* CC (testemunha)
CD – 20220706102039_2961068_2871696 aos Minutos 02.31;02.37; 08.21;08.43;09.24; 09.55*
*Depoimentos/Declarações supra transcritos e que aqui se dão integralmente por reproduzidos
LV – Correlacionado o depoimento das testemunhas e a documentação clínica junta aos autos a fls. 91 a 95, não logrou a Autora caracterizar e provar as suas patologias, como alegado, nem se avistando, no recorte factual apurado, que tal situação se tivesse vindo a agravar ao longo do tempo, não demonstrando, a natureza definitiva dos danos causados.
LVI – A prova não permitia, pois, ao Tribunal dar como provado que: “o Réu com a sua conduta (…) causou forte sofrimento, ansiedade, estados de nervosismo e de esgotamento, que ainda hoje se mantêm” e que a “A Autora sofreu ainda várias úlceras que, por terem rebentado, necessitaram de tratamento Hospitalar”.
LVII – Em face do exposto, não estão reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente, não há culpa do Réu, para que lhe possam ser assacadas responsabilidades pelos danos não patrimoniais, nos termos do artigo 496.º do Código Civil, pelo que se impunha, decisão sobre a matéria de facto diversa da decisão recorrida.
LVIII – Por não se poder concluir dos elementos probatórios dos autos que “o Réu com a sua conduta (…) causou forte sofrimento, ansiedade, estados de nervosismo e de esgotamento, que ainda hoje se mantêm” e que a “A Autora sofreu ainda várias úlceras que, por terem rebentado, necessitaram de tratamento Hospitalar”.
LIX – Pelo que o Tribunal ad quem deverá considerar por não provados os Ponto 26 (in fine) e 27 dos Factos Provados, determinando a absolvição do Réu na compensação em que foi condenado no valor de € 30.000,00.
LX – No entanto, à cautela, perante tais circunstâncias e atentas ainda as situações económicas do Réu e considerando o suposto estado psíquico em que ficou a Autora, sem que se tenha logrado caracterizar uma grave patologia de saúde, como alegado, nem se divisando, no recorte factual apurado, que tal situação se tivesse vindo a agravar ao longo do tempo, admitindo-se, por mera hipóteses académica, o abalo da Autora, não se pode acompanhar a decisão do tribunal a quo em calcular o montante compensatório, taxativamente, em € 30.000,00.
LXI – Ao não decidir em conformidade com o supra exposto, violou a douta sentença recorrida o disposto nos artigos 1688.º, 1697.º, 1789.º, 1792.º, 483.º e 496.º do Código Civil.
Nestes termos e nos demais de Direito doutamente supridos por V. Excelências, concedendo provimento ao presente recurso, alterando-se a resposta aos quesitos 9, 13, 19 a 21, 26 (in fine) e 27 para “não provado”, revogando a decisão que condena o Réu a pagar à Autora a quantia de € 40.530,92 (quarenta mil, quinhentos e tinta euros e noventa e dois cêntimos) cumprirão Vossas Excelências, Ilustres Desembargadores, a Lei, assim fazendo a costumada e sã Justiça!».
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A parte contrária apresentou resposta ao recurso.
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Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro:
a) na fixação da matéria de facto.
b) na subsunção jurídica realizada, tendo em consideração os factos apurados, quanto ao preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Matéria de facto provada
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. Autora e Réu contraíram entre si casamento católico no dia (…) de 1970.
2. Em 5 de Março de 2013, o Réu propôs contra a Autora acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, que correu termos pelo ... Juízo Tribunal Judicial ....
3. Em sede de tentativa de conciliação realizada no dia .../.../2013 foi aquela acção convolada para divórcio por mútuo consentimento.
4. Por sentença ali proferida na mesma data, transitada em julgado no dia .../.../2013, foi decretado o divórcio entre a Autora e o Réu.
5. Do património comum do ex-casal faz parte o seguinte prédio: fracção autónoma, designada pela letra ..., do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., na ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo n.º ...30 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...73.
6. Este imóvel foi comprado em 1990, pelo então casal, à Câmara Municipal ..., no âmbito do regime de habitação social, na altura vigente no município.
7. Para pagamento deste imóvel, que passou a ser a casa de morada da família, a Autora e o Réu contraíram na Caixa um mútuo bancário, no valor aproximado de € 9.000,00 com garantia de hipoteca, ao qual a referida instituição bancária atribuiu o n.º ...19.
8. O casal tinha três filhos, todos muito novos.
9. A Autora era empregada no ....
9. Em 1995 o Réu deixou de contribuir com qualquer valor para os encargos da vida familiar, levando à acumulação de sucessivos atrasos no pagamento das mensalidades para amortização do empréstimo bancário.
10. Em 1998 a Caixa instaurou contra a Autora e o Réu execução ordinária para cobrança da dívida proveniente do empréstimo bancário, que correu termos pelo Tribunal Judicial ... com o n.º 129/....
11. Nesse momento, o montante do mútuo e dos juros vencidos ascendia a € 12.095,00.
12. Confrontados com as dificuldades da Autora para suportar sozinha todas as despesas da família, visto que apenas recebia o salário mínimo, os filhos BB e CC decidiram ajudar a mãe.
13. O filho BB, que, entretanto, conseguiu emprego, viu-se obrigado a contrair um empréstimo bancário em nome pessoal, tendo como fiador um primo, cujo montante entregou à mãe para que esta pudesse pagar as prestações à Caixa em atraso e evitar a resolução do contrato de mútuo.
14. A filha CC não pôde continuar a estudar, vendo-se na necessidade de procurar emprego aos 16 anos de idade como operária numa fábrica têxtil.
15. Só com esta ajuda foi possível evitar que a Autora perdesse a habitação e a família ficasse na rua.
16. O Réu ainda se manteve a residir na casa de morada de família durante mais uns anos, embora em separação de cama, acabando por sair definitivamente em 2005.
17. O mútuo só ficou totalmente pago em 2015, pelo que o capital e os juros que a Autora pagou ultrapassam de longe os € 12.000,00.
18. À data da liquidação do empréstimo bancário, ocorrida no dia 11 de Junho de 2015, foi paga a quantia de € 17.076,05.
19. A Autora pagou ao longo dos anos a prestação mensal ao Banco, até à amortização total do referido mútuo.
20. Fê-lo com dinheiro proveniente exclusivamente do seu trabalho e com a ajuda dos filhos.
21. Também só com o seu salário e a ajuda dos filhos, que lhe emprestavam dinheiro, a Autora pagou, ao longo de 26 anos, o Imposto Municipal sobre Imóveis, no valor de € 1.715,48, e as despesas de condomínio, no valor de € 2.270,32.
22. Em 2006, dadas as dificuldades sentidas pela Autora, várias destas despesas estavam em atraso, o que levou a administração do condomínio a instaurar uma acção judicial para cobrança da dívida, que correu termos pelo ... Juízo do Tribunal de … sob o n.º 34/06...., e que culminou na penhora de parte do salário da Autora.
23. Como o imóvel se encontra inscrito na matriz em nome do Réu, os avisos de cobrança do IMI passaram a ser enviados para o domicílio fiscal que aquele entretanto criou de novo.
24. Como o Réu nada pagava, a Autora viu-se obrigada a solicitar no Serviço de Finanças a emissão de uma nota de cobrança autónoma (2.ª via) para que a dívida não entrasse em relaxe e o prédio não acabasse penhorado.
25. Entre 1987 e 1992 a Autora foi seguida em consultas externas no Hospital ... por apresentar quadro ango-depressivo, tendo-lhe sido prescrita vária medicação.
26. Em consequência da conduta do Réu e das dificuldades para suportar os encargos familiares, a Autora viu-se na iminência de perder o lar, o que lhe causou forte sofrimento, ansiedade, estados de nervosismo e de esgotamento, que ainda hoje se mantêm.
27. Eliminado[8].
28. O Réu ausentava-se frequentemente de casa para exercer a sua profissão de alcatifador, deslocando-se em trabalho de norte a sul do país.
29. Por despacho de 27 de Janeiro de 2021, proferido no processo de inventário n.º 563/..., a correr termos pelo Juízo de Família e Menores ..., foram os aí interessados e ora Autora e Réu remetidos para os meios comuns quanto à questão de saber se o dinheiro despendido pela Autora para pagar as prestações do crédito à habitação, o condomínio e o IMI era unicamente daquela.
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3.2 – Matéria de facto não provada:
Para a boa decisão da causa, não se provaram os demais factos alegados pelas partes, nomeadamente:
a) Que o Réu sempre cultivou a estabilidade do lar.
b) Que os filhos decidiram começar a trabalhar por vontade própria e não para ajudarem a mãe.
c) Que o Réu sempre contribuiu para as despesas do lar.
d) Que por ser alcatifador e estar ausente bastante tempo de casa, o Réu entregava à Autora todo o seu vencimento, que o geria, fazendo os pagamentos e a gestão do lar.
f) Que nunca a Autora pagou a prestação mensal ao Banco com dinheiro exclusivamente proveniente do seu trabalho.
g) A Autora sofreu ainda várias úlceras que, por terem rebentado, necessitaram de tratamento hospitalar[9].
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IV – Fundamentação:
4.1 – Modificação da matéria de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de Primeira Instância que deu como provados (e não provados) certos factos pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
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O Autor pretende a alteração dos pontos 9[10], 13[11], 19[12], 20[13], 21[14], 26[15] (in fine) e 27[16] dos factos provados, passando os mesmo a integrar o elenco dos factos não provados.
O Tribunal a quo considerou o facto identificado em 19 provado no despacho proferido a 22/03/2022, sendo que esta decisão não foi alvo de qualquer reclamação ou impugnação.
Os demais factos foram decifrados através da análise dos depoimentos das testemunhas BB e CC, filhos da Autora e do Réu. Esta testemunhas esclareceram «as condições em que os pais viviam, a falta de contribuição do Réu para as despesas da família, a saída de casa deste, as dificuldades económicas que a mãe sentia para suportar todos os encargos apenas com o seu salário, o tipo de ajuda que lhe têm prestado ao longo dos anos e o seu estado físico e psíquico». E, num segundo patamar, através do testemunho de DD, sobrinho das partes, que «também referiu as dificuldades que a tia atravessou porque era a única que suportava as despesas da família, tendo sido fiador do seu primo BB num empréstimo que este contraiu».
Tanto esta testemunha como EE, nora, percepcionaram igualmente «a precária situação económica da sogra e das dificuldades que esta tinha para cuidar dos filhos e da casa, tendo esclarecido em que termos é que tem vindo a ser ajudada e quais os problemas de saúde que a vêm afectando».
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A discordância do Réu estriba-se igualmente neste conjunto de prestações probatória e ainda em prova documental.
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A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto «não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)»[17].
A apreciação da prova deve ocorrer sob o signo da probabilidade lógica – de evidence and inference –, ou seja, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis.
O sistema judicial nacional combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, posto que, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão e as provas produzidas, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada[18].
A jurisprudência mais avalizada firma o entendimento que a «prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, há-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido»[19].
Neste enquadramento jurídico-existencial, a credibilidade concreta de um meio individualizado de prova tem subjacente a aplicação de máximas de experiência comum que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objectiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjectiva da sua realidade[20].
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Ouvida toda a prova, o Tribunal de Recurso também tem de considerar que as testemunhas acima referenciadas depuseram com isenção, objectividade e conhecimento pessoal e directo dos factos. Em contraponto, as declarações do Réu surgem como proteccionistas da sua posição, pouco sustentadas e não lograram infirmar por qualquer modo a prova acima relatada.
Aliás, o relato dos familiares directos é de tal forma avassalador que não existe a mínima réstia de dúvida relativamente à factualidade atinente às dificuldades experimentadas pela Autora e ao pagamento exclusivo das prestações dos empréstimos bancários, dívidas fiscais e despesas de condomínio no período aqui em discussão, mostrando-se parte desta dívidas devidamente documentadas.
E aquele conjunto de testemunhos é também incontestado quanto ao estado psicossomático da AA e às perturbações que surgiram por via e na sequência do divórcio. Neste último parâmetro, a situação clínica mostra-se igualmente documentada e a interligação entre as duas fontes probatórias permite claramente dar como assente a parte final daquilo que foi exarado na parte final do ponto 26 dos factos provados.
Aliás, as prestações probatórias convocadas no articulado de recurso não viabilizam a alteração das respostas àquela matéria, sendo que, quanto aos trechos transcritos, os mesmos surgem descontextualizados e desfocados daquilo que foi o sentido global das prestações probatórias tiradas aos visados.
Na verdade, todo este acervo probatório, em coligação com as regras da experiência e da normalidade social, permite concluir que não existe motivo para modificar os pontos 9, 13, 19, 20, 21 e 26 dos factos provados.
Nesta ordem de ideias e repristinando tudo aquilo que atrás se deixou exarado, a prova produzida não impõe decisão diversa (n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil) e que, assim sendo, nesta vertente, os pontos relacionados com a impugnação promovida pelo recorrente não merece acolhimento e a decisão de facto corresponde à realidade processualmente adquirida.
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Quanto à circunstância de a Autora ter sofrido várias úlceras que, por terem rebentado, necessitaram de tratamento hospitalar não se vislumbra a existência de qualquer prova que sustente a factualidade inscrita no ponto 27 dos factos provados.
Na realidade, face à gravidade daqueles eventos e à alegada necessidade de tratamento hospitalar, entende-se que a prova em causa dependia da junção de documentação clínica de suporte, o que não aconteceu.
É indubitavelmente que a prova testemunhal aponta nesse sentido, mas estamos num domínio em que as declarações probatórias em questão não são auto-suficientes para credibilizarem a existência da referida patologia e da extensão das lesões, da sintomatologia e da necessidade de intervenção médica hospitalar.
Neste segmento, deveria existir prova documental, pericial ou testemunhal tecnicamente habilitada (testemunho de médicos ou profissionais da área da medicina) que avalizasse a tese da deslocação ao hospital e ao estado de saúde. Mais, a documentação hospitalar junta aos autos não atesta essa realidade.
Nestes termos, neste ponto, julga-se improcedente a pretensão de alteração da decisão de facto, passando o facto 27) a integrar o acervo dos factos não provados.
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4.2 – Do erro de direito:
A discordância relativamente ao mérito da decisão recorrida comporta duas componentes, uma associada ao pagamento de despesas que deveriam ser partilhadas pelo extinto casal e outra que está indexada à faculdade de reparação de danos acolhida no artigo 1792.º[21] do Código Civil.
À data da liquidação do empréstimo bancário, ocorrida no dia 11 de Junho de 2015, a Autora procedeu ao pagamento da quantia de € 17.076,05. A este valor acrescem as despesas de condomínio e a dívidas fiscais que, de igual modo, foram liquidadas pela cônjuge mulher sem qualquer contributo do Réu.
Neste enquadramento, não merece qualquer censura a decisão recorrida quando determinou que o Réu estava vinculado a proceder ao pagamento da quantia de € 10.530,92, de forma a igualizar o contributo de ambos para a garantia do pagamento de dívidas comuns do casal[22].
E a compensação devida pelo pagamento de dívidas do casal[23] é aqui concretizável, por força do despacho de 27/07/2021, proferido no processo de inventário n.º 563/..., do Juízo de Família e Menores ....
Nessa decisão, foram as partes remetidas para os meios comuns quanto à questão de saber se o dinheiro despendido pela Autora para pagar as prestações do crédito à habitação, o condomínio e o IMI e a mesma compensação foi reclamada no decurso da partilha de bens.
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A evolução histórica do enquadramento legal, os pressupostos teleológicos da concessão da indemnização por ruptura do casamento e os fundamentos teóricos da opção legislativa estão amplamente escrutinados na decisão recorrida, aderindo este Tribunal de Recurso à fundamentação ali explanada, tornando-se assim desnecessário replicar ou completar a argumentação jurídica incorporada na decisão da Primeira Instância.
Fora dos casos de alteração das faculdades mentais do cônjuge que não pretendeu o divórcio, a Lei n.º 61/2008 e a alteração de redacção do artigo 1792.º do Código Civil, ao eliminar a apreciação da culpa do âmbito da acção de divórcio, terminou com a especial responsabilidade por danos não patrimoniais, decorrentes da própria dissolução do casamento[24].
No entanto, ainda assim floresceu o entendimento que subsistia o direito de reparação de danos não patrimoniais pelo cônjuge “lesado” no divórcio, a deduzir nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns[25].
Nos demais casos, porque a dissolução do casamento por divórcio corresponde ao exercício de um direito potestativo, na falta de previsão legal expressa a estatuir a obrigação de compensação desses danos com base em facto lícito, tais danos não patrimoniais derivados da dissolução do casamento não são compensáveis[26].
A lei de 2008 exprimiu assim a tendência de retraimento do legislador na regulação da intimidade[27] e, ao ser eliminada a concepção da culpa no plano do divórcio e ao ser valorizada a ideia do favor divorcie, a amplitude do artigo 1792.º do Código Civil é a de sublinhar que apenas são indemnizáveis as violações de direitos absolutos.
Todavia, tal não significa que a violação dos deveres conjugais não continue a merecer a tutela do direito, em acção judicial de responsabilidade civil para reparação de danos, casos os mesmos possam ser autonomizados dos fundamentos constitutivos do pedido de divórcio.
Aliás, neste campo, a nosso ver, a razão está com Guilherme de Oliveira quando afiança que o sentido do artigo 1792.º do Código Civil «é o de afirmar que apenas são indemnizáveis as violações de direitos absolutos, nos tribunais comuns da responsabilidade civil extracontratual; os actos cônjuges ou ex-cônjuges serão irrelevantes pela qualidade dos sujeitos e apenas relevantes enquanto actos de cidadãos que violam direitos de personalidade e direitos fundamentais de outros cidadãos»[28].
Esta solução é perfilhada por Brito Pereira Coelho[29] que também assume que não será a mera violação dos deveres conjugais que autonomamente pode fundamentar uma obrigação de indemnizar, tendo em conta os elementos histórico, sistemático e a ratio normativa que são editados no contexto da dessacralização do casamento e da perda da acuidade da protecção reforçada do interesse na integridade da sociedade conjugal.
A queda da doutrina da fragilidade da garantia é um argumento habitualmente utilizado nesta sede (o princípio contempla o entendimento que as regras gerais da responsabilidade civil não são aplicáveis à violação dos direitos familiares pessoais) [30] [31] [32] [33] e os apologistas da tese sustentam que é passível a indemnização por razões associadas à violação de direitos da personalidade, uns por via da aplicação do regime da responsabilidade contratual, outros de responsabilidade extracontratual[34].
Neste conspecto e face à evolução do direito matrimonial, é assim perfeitamente válida a interpretação que a aplicabilidade do dispositivo contempla apenas os danos que resultem da violação de direitos de personalidade[35] [36], em virtude da eliminação da declaração de culpa no seio do direito levada a cabo pela Lei n.º 61/2008, de 31/10.
É certo que não existe um princípio de imunidade dos cônjuges[37] [38], mas da alteração havida decorre que o cônjuge que se sinta lesado e pretenda pedir o pagamento da respectiva indemnização terá de alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil previstos no artigos 483.º[39] do Código Civil[40].
Maria Margarida Silva Pereira[41] afina pelo mesmo diapasão, citando Dethloff, acompanha o pensamento deste, dizendo que «se o ilícito conjugal produziu verdadeiros danos no corpo ou na saúde, podem fazer-se valer pretensões de indemnização. Mas não há lugar a um dever de indemnizar quando a violação da esfera da personalidade do cônjuge se esgota no ilícito conjugal […]. É indemnizável um dano, que resulta de um comportamento, mas que não se fundamenta na violação de um dever matrimonial enquanto tal»[42].
Em síntese, não existe no actual quadro «uma sanção organizada para o não cumprimento dos deveres familiares»[43] e, ao abrigo do artigo 1792.º do Código Civil, apenas há lugar à atribuição de uma indemnização fundada na violação da esfera da personalidade do cônjuge que não se esgote no cometimento do ilícito conjugal.
Cada um dos cônjuges está obrigado a não lesar física ou moralmente o outro – não atentar contra a saúde, a integridade física, a honra e o bom nome do outro[44]e o incumprimento de tais obrigações conjugais pode fazer incorrer o cônjuge em responsabilidade civil.
É assim admissível a defesa daquela tutela de acordo com o padrão e os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito nos termos do n.º 1 do artigo 496.º[45] do Código Civil. E, assim, pelo menos em caso de concomitância de violação dos deveres conjugais pessoais e dos direitos de personalidade do cônjuge lesado, impõe-se reconhecer a admissibilidade do direito a indemnização com base nos termos gerais da responsabilidade civil[46].
A circunstância de o divórcio ser por mútuo consentimento não obsta a atribuição de qualquer indemnização, ao contrário daquilo que advoga o recorrente. Estamos num nível da esfera pessoalíssima em que os cônjuges não estão vinculados a divulgar o motivo da quebra do vínculo e onde o consenso na extinção do vínculo se pode sobrepor a outros interesses próprios.
Existe um cenário de quebra da coabitação e da residência separada no mesmo lar, mas os autos não fornecem pistas sobre a responsabilidade de qualquer dos cônjuges na deterioração a esse nível da relação matrimonial.
Na situação vertente, o fundamento básico da causa de pedir e da própria decisão assenta na violação do dever de cooperação proclamado no artigo 1674.º do Código Civil e que importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram e das consequências que daí derivaram para a saúde e bem-estar da requerente da indemnização.
Estamos numa zona de fronteira entre o incumprimento de um dever conjugal e a violação de um direito absoluto de personalidade, mas ainda assim é possível admitir que existe «um dano sofrido por um ex-cônjuge que emerge como dano pessoal»[47].
Lida a matéria de facto, verifica-se que este dever de solidariedade, colaboração e partilha de responsabilidades foram postergados pelo Réu. Neste particular, está demonstrado que, em consequência da conduta do Réu (violação das obrigações de participação nas despesas domésticas) e das dificuldades para suportar os encargos familiares, a Autora viu-se na iminência perder o lar, o que lhe causou forte sofrimento, ansiedade, estados de nervosismo e de esgotamento, que ainda hoje se mantêm.
Em contraponto, no sentido de existir uma predisposição para fenómenos ango-depressivos importa considerar que, entre 1987 e 1992 – logo, em momento anterior aos problemas relacionais relatados na matéria de facto assente –, a Autora foi seguida em consultas externas no Hospital ....
Além disso, um dos pontos factuais relevantes na definição do quantum indemnizatório faliu na reapreciação da prova (A Autora sofreu ainda várias úlceras que, por terem rebentado, necessitaram de tratamento hospitalar) e este era um facto estruturante na definição da responsabilização do Réu, pois era aqui implicitamente apontada uma relação de causa-efeito entre o comportamento do Réu e os problemas de saúde registados a esse nível.
O juízo de equidade a que lei faz menção determina que o julgador tome «em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida»[48].
A equidade na visão de Menezes Cordeiro visa ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas[49]. E está limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal[50].
O juízo de equidade das instâncias, essencial à determinação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.
Aliás, estamos num domínio em que claramente não nos devemos afastar dos padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, «procurando – até por uma questão de justiça relativa – uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8.º[51] do Código Civil, por forma a evitar exacerbações subjectivas»[52].
Neste campo, a proporção, a adaptação às circunstâncias, a objectividade, a razoabilidade e a certeza objectiva são as linhas motrizes de actuação da equidade e a indemnização atribuída no valor de € 30.000,00 (trinta mil euros) afasta-se das linhas jurisprudenciais directoras em casos semelhantes[53] [54] [55] [56].
Em conformidade com os princípios de razoabilidade e justiça do caso concreto[57], seguindo um critério situado dentro do arco de decisões próximas, o bom senso determina que os danos morais sofridos pelo Autor sejam dignos de protecção legal e que neste parâmetro a indemnização seja fixada em € 4.000,00 (quatro mil euros).
Não foram peticionados juros e o referido acessório é independente da obrigação de capital, não podendo assim, por força do princípio do dispositivo, atribuí-los, os quais, aliás, acertadamente, também não foram objecto de condenação por parte da Primeira Instância.
Nestes termos, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto, revogando-se em parte a sentença recorrida na parte em que atribui uma indemnização por danos não patrimoniais.
*
V – Sumário:
(…)
*
VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto, condenando-se o Réu BB a pagar à Autora AA a quantia de 14.530,92 (quatorze mil, quinhentos e trinta euros e noventa e dois cêntimos).
Custas a cargo dos apelantes na proporção do respectivo decaimento, ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Notifique.
*
Processei e revi.
*
Évora, 30/03/2023
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Alves Simões

__________________________________________________
[1] Artigo 639.º (Ónus de alegar e formular conclusões):
1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.
[2] Na visão de Abrantes Geral, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, Almedina, Coimbra 2016, pág. 130, «as conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o n.º 1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inocuidade) ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados».
[3] No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 137/97, de 11/03/1997, processo n.º 28/95, in www.tribunalconstitucional.pt é dito que «A concisão das conclusões, enquanto valor, não pode deixar de ser compreendida como uma forma de estruturação lógica do procedimento na fase de recurso e não como um entrave burocrático à realização da justiça».
[4] O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2013, in www.dgsi.pt assume que «o recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida)».
[5] No caso concreto, não se ordena a correcção das conclusões ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 639.º do Código de Processo Civil por que, na hipótese vertente, tal solução apenas implicaria um prolongamento artificial da lide e, infelizmente, no plano prático, a actuação processual subsequente constitui na generalidade dos processos uma mera operação de estética processual que não se adequa aos objectivos do legislador e do julgador.
[6] Por existir repetição do ponto III das conclusões o Tribunal da Relação aditou o ponto III (1).
[7] Por existir repetição do ponto VI das conclusões o Tribunal da Relação aditou o ponto VI (1).
[8] O ponto 27 dos factos provados foi eliminado por via da operação de reavaliação da prova realizada na secção 4.1 do presente acórdão.
[9] A alínea g) dos factos não provados resulta da operação de reavaliação da prova realizada na secção 4.1 do presente acórdão.
[10] (9) Em 1995 o Réu deixou de contribuir com qualquer valor para os encargos da vida familiar, levando à acumulação de sucessivos atrasos no pagamento das mensalidades para amortização do empréstimo bancário.
[11] (13) O filho BB, que, entretanto, conseguiu emprego, viu-se obrigado a contrair um empréstimo bancário em nome pessoal, tendo como fiador um primo, cujo montante entregou à mãe para que esta pudesse pagar as prestações à Caixa em atraso e evitar a resolução do contrato de mútuo.
[12] (19) A Autora pagou ao longo dos anos a prestação mensal ao Banco, até à amortização total do referido mútuo.
[13] (20) Fê-lo com dinheiro proveniente exclusivamente do seu trabalho e com a ajuda dos filhos.
[14] (21) Também só com o seu salário e a ajuda dos filhos, que lhe emprestavam dinheiro, a Autora pagou, ao longo de 26 anos, o Imposto Municipal sobre Imóveis, no valor de € 1.715,48, e as despesas de condomínio, no valor de € 2.270,32.
[15] (26) Em consequência da conduta do Réu e das dificuldades para suportar os encargos familiares, a Autora viu-se na iminência de perder o lar, o que lhe causou forte sofrimento, ansiedade, estados de nervosismo e de esgotamento, que ainda hoje se mantêm.
[16] (27) A Autora sofreu ainda várias úlceras que, por terem rebentado, necessitaram de tratamento hospitalar.
[17] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra, pág. 191.
[18] Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 435-436.
[19] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência de 21/06/2016, in www.dgsi.pt.
[20] Sobre esta matéria ver, em sentido próximo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 19/05/2016, in www.dgsi.pt, que realça que «a prova dos factos assenta na certeza subjectiva da sua realidade, ou seja, no elevado grau de probabilidade de verificação daquele, suficiente para as necessidades práticas da vida, distinguindo-se da verosimilhança que assenta na simples probabilidade da sua verificação».
[21] Artigo 1792.º (Reparação de danos)
1 - O cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns.
2 - O cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alínea b) do artigo 1781.º deve reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento; este pedido deve ser deduzido na própria acção de divórcio.
[22] Artigo 1691.º (Dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges):
1. São da responsabilidade de ambos os cônjuges:
a) As dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro;
b) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges, antes ou depois da celebração do casamento, para ocorrer aos encargos normais da vida familiar;
c) As dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração;
d) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens;
e) As dívidas consideradas comunicáveis nos termos do n.º 2 do artigo 1693.º.
2. No regime da comunhão geral de bens, são ainda comunicáveis as dívidas contraídas antes do casamento por qualquer dos cônjuges, em proveito comum do casal.
3. O proveito comum do casal não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar.
4. (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro).
[23] Artigo 1697.º (Compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal):
1. Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.
2. Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha.
[24] Amadeu Colaço, Novo Regime do Divórcio, 2008, págs. 95 a 97.
[25] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/01/2012, publicitado em www.dgsi.pt.
[26] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/09/2016, consultável em www.dgsi.pt.
[27] Guilherme de Oliveira, Responsabilidade civil por violação dos deveres conjugais, «Lex Familiæ», Revista portuguesa de Direito da Família, ano 16, n.º 31-32, 2019, pág. 33.
[28] Guilherme de Oliveira, Responsabilidade civil por violação dos deveres conjugais, 2017, Coimbra, pág. 23.
[29] F. M. de Brito Pereira Coelho, Deveres Conjugais e responsabilidade civil – estatuto matrimonial e estatuto pessoal (não matrimonial) dos cônjuges, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Set-Out, ano 147.º, n.º 4006, 2017, págs. 41-67.
[30] Rita Lobo Xavier, Recentes alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades parentais, Almedina, Coimbra, 2009.
[31] Ewald Heinrich Hörster, A responsabilidade civil entre os cônjuges, In Foram Felizes para Sempre? Uma análise Crítica do Novo Regime Jurídico do Divórcio (coord. Maria Clara Sottomayor e Maria Teresa Féria de Almeida), Coimbra Editora, Coimbra, 2010, págs. 91-112.
[32] Cristina M. Araújo Dias, Uma análise do Novo Regime Jurídico do Divórcio, Almedina, Coimbra, 2009.
[33] Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2016.
[34] Mafalda Barbosa Miranda, Família e Responsabilidade Civil: uma relação possível? Brevíssimo Apontamento, Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, ano 10, n.º 20, Jul.-Dez. de 2013.
[35] Artigo 70.º (Tutela geral da personalidade):
1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.
[36] Mesmo aqueles que defendem uma visão mais ampla da possibilidade não prescindem do critério da violação dos direitos de personalidade, tal como pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/01/2017, pesquisável em www.dgsi.pt, que entende que: «é legítimo ao cônjuge cuja lesão decorra da prática, pelo outro cônjuge, na constância do matrimónio, de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, que consubstanciem também a violação dos seus direitos de personalidade, demandar o cônjuge lesante, peticionando indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais da responsabilidade civil aquiliana».
[37] Jorge Duarte Pinheiro, O núcleo intangível da comunhão conjugal – os deveres sexuais, Almedina, Coimbra, 2004, com a nota que esta publicação é anterior à revisão do regime jurídico do divórcio.
[38] Ângela Cristina da Silva Cerdeira, Da responsabilidade civil dos cônjuges entre si, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, com a nota que esta publicação é anterior à revisão do regime jurídico do divórcio.
[39] Artigo 483.º (Princípio geral):
1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.
[40] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/03/2021, divulgado em www.dgsi.pt.
[41] Maria Margarida Silva Pereira, Temas de Direito da Família e das Sucessões, AAFDL, Lisboa, 2020, págs. 96-104.
[42] Dethloff, Familienrecht, pág. 59.
[43] Francisco Pereira Coelho, Curso de Direito de Família – Direito matrimonial, Atlântida Editora, Coimbra, 1965, pág. 21.
[44] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/07/2017, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[45] Artigo 496.º (Danos não patrimoniais):
1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.
4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.
[46] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/05/2016, divulgado em www.dgsi.pt.
[47] Maria Margarida Silva Pereira, Temas de Direito da Família e das Sucessões, AAFDL, Lisboa, 2020, pág. 102.
[48] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, Almedina, Coimbra, pág. 605, nota 4.
[49] Menezes Cordeiro, “O Direito”, n.º 122º, pág. 272.
[50] Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, Almedina, Coimbra, 1987, págs. 107/110.
[51] Artigo 8.º (Obrigação de julgar e dever de obediência à lei):
1. O tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio.
2. O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo.
3. Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.
[52] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/11/2014, que pode ser igualmente lido na plataforma www.dgsi.pt.
[53] Baseado em abandonos do lar conjugal, relacionamentos com outras mulheres, no desprezo pelo acompanhamento e crescimento das filhas e na falta de colaboração financeira, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/05/2016, in www.dgsi.pt, considerou-se equitativo fixar uma indemnização de € 15.000,00, quando a Primeira Instância tinha atribuído € 3.000,00 por ano durante todo o período de 11 anos.
[54] Fundado na violação sucessiva do dever de respeito, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/07/2017, in www.dgsi.pt, entendeu adequado atribuir uma compensação actualizada no valor de € 3.000,00 – pelo que os juros se contarão apenas desde esta decisão e até efectivo pagamento.
[55] Os factos ofenderam a Autora na sua pessoa, na sua integridade física e psíquica, e bem assim na sua liberdade e privacidade (referimo-nos à “invasão” do quarto da Autora). Tais factos chegaram à violência física (empurrão da Autora contra uma porta de vidro, que se partiu e onde a Autora se cortou) e à ameaça muito grave (exibição de uma faca de cozinha contra a Autora, que tinha o filho mais novo ao colo) e foram indemnizados em € 6.000,00, tal como resulta da leitura do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/10/2021, in www.dgsi.pt.
[56] Perante a matéria de facto provada, atendendo, v.g., que o Réu, com frequência, se dirige à Autora chamando-a de “badameca, meia-leca, não prestas para nada”, que lhe “deu um pontapé com o pé descalço, atingindo-a na zona dos glúteos”, que o casamento durou 26 anos, que os problemas se situam nos últimos 5 anos, afigura-se-nos equitativamente adequada, equilibrada e justa uma compensação no valor de € 2.500,00, como ressalta da leitura do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/03/2021, in www.dgsi.pt.
[57] Armando Braga, A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual, pág. 229.