Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1024/21.0T8TNV.E1
Relator: ANA PESSOA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Muito embora sejam distintas as ações de demarcação e de reivindicação poderão cada uma delas em determinadas situações ser utilizadas integradamente na resolução dum mesmo litígio, onde para o pedido de restituição ser procedente seja necessário circunscrever determinada propriedade aos seus justos e claros limites.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA

I. Relatório

AA e BB intentaram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e DD, pedindo que os Réus sejam condenados a:

“(i) Ver demarcados os prédios identificados em 1.º, 2.º e 20.º da petição inicial pela linha delimitadora cadastral definida pelas coordenadas fornecidas pela Direção Geral do Território e melhor indicadas no levantamento topográfico junto.

(ii) Reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre os prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da P.I. até à linha delimitadora indicada pelos AA., ou, a que vier a ser fixada, abstendo-se consequentemente de praticar qualquer ato que, de qualquer modo impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito dos AA. sobre os prédios até à linha delimitadora;

(iii) Demolirem e retirarem tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar os prédios dos AA., no prazo de 15 dias, entregando-o aos AA. completamente livres e desocupados.

(iv) Pagarem aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 100,00, por cada dia além dos 15 dias referidos, que demorarem a limpar e desocupar o prédio destes.

(v) Pagarem as custas e demais encargos do processo.”.

O Réu CC, excecionou na contestação a ineptidão da petição inicial, por considerar que a ação se funda em pedidos substancialmente incompatíveis e cujos efeitos se repelem, peticionando simultaneamente e, com fundamento no direito de propriedade, a condenação dos réus no seu reconhecimento e na restituição da área indevidamente ocupada, pedindo ainda que retirem o muro e demais construções e, por outro lado, a condenação dos réus a contribuir para a demarcação dos dois prédios identificados nos artigos 1.º, 2.º e 20.º da petição inicial, com as áreas do levantamento topográfico junto aos autos.

Conclui que a ação se estriba na ocupação indevida pelo réu e a sua ex cônjuge de uma parcela de terreno que pertence aos prédios dos Autores e a respetiva restituição da mesma bem como da demolição das construções feitas, formulando assim pedidos de uma ação de reivindicação cumulados com um pedido de demarcação das estremas e dessa forma, pela verificação de pedidos incompatíveis o que, entende, gera a ineptidão da petição inicial.

Os Autores responderam, pugnando pela improcedência da exceção, porquanto os réus interpretaram corretamente a petição inicial, impugnando a factualidade alegada, referindo que o pedido não se encontra em contradição com a causa de pedir nem foram deduzidos pedidos incompatíveis já que a ação foi fundamentada na existência da confinância e de extremas duvidosas, não estando em causa o título de aquisição nem o domínio dos prédios, efetuando pedidos claros de demarcação e reconhecimento do direito de propriedade sobre os prédios identificados nos autos até à linha delimitadora indicada ou a que vier a ser fixada.

Fixado o valor da ação por Acórdão proferido por este Tribunal da Relação, veio a ser proferida decisão com o seguinte dispositivo:

“Pelo que, em face do exposto e nos termos das disposições legais supra citadas, julga-se procedente a exceção de ineptidão da petição inicial por cumulação de causas de pedir e de pedidos substancialmente incompatíveis e, em consequência, declara-se a nulidade de todo o processo e absolvem-se os réus da instância, em conformidade com o disposto nos artigos 186.º, ns.º 1 e 2, alínea c) e n.º 4, 576.º, ns.º 1 e 2, 577.º, alínea b) e 578.º todos do Código de Processo Civil.

Custas pelos Autores, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.”

*

Inconformados com a decisão prolatada, os Autores dela interpuseram recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso interposto da Sentença que julgou “procedente a exceção da ineptidão da petição inicial por cumulação de causas de pedir e de pedidos substancialmente incompatíveis e, em consequência, declarar-se a nulidade de todo o processo e absolvem-se os Réus da instância, em conformidade com o disposto nos artigos 186 n.º 1 e 2, alínea c) e n.º 4, 576 n.º 1 e 2, 577 alínea b) e 78 todos do Código de Processo Civil.”

II. Conclui a Sentença que “a petição inicial padece de ineptidão, por incompatibilidade substancial entre os pedidos formulados nos pontos (i) e nos pontos (ii), (iii) e (iv) nos termos e para os efeitos do artigo 186.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil”, dando assim como procedente a ineptidão da petição inicial fundada na cumulação ilegal de pedidos.

III. Ora, entendemos não ter razão o Tribunal “a quo”,

IV. Os AA. peticionam que os réus sejam condenados a:

” (i) Ver demarcados os prédios identificados em 1.º, 2.º e 20.º da petição inicial pela linha delimitadora cadastral definida pelas coordenadas fornecidas pela Direção Geral do Território e melhor indicadas no levantamento topográfico junto.

(ii) Reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre os prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da P.I. até à linha delimitadora indicada pelos AA., ou, a que vier a ser fixada, abstendo-se consequentemente de praticar qualquer ato que, de qualquer modo impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito dos AA. sobre os prédios até à linha delimitadora;

(iii) Demolirem e retirarem tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar os prédios dos AA., no prazo de 15 dias, entregando-o aos AA. completamente livres e desocupados.

(iv) Pagarem aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 100,00, por cada dia além dos 15 dias referidos, que demorarem a limpar e desocupar o prédio destes.

(v) Pagarem as custas e demais encargos do processo.”

V. Veio o Réu CC, em sede de contestação, invocar a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, por considerar que a acção se funda em pedidos substancialmente incompatíveis e cujos efeitos se repelem, peticionando simultaneamente e, com fundamento no direito de propriedade, a condenação dos réus no seu reconhecimento e na restituição da área indevidamente ocupada, pedindo ainda que retirem o muro e demais construções e, por outro lado, a condenação dos réus a contribuir para a demarcação dos dois prédios identificados nos artigos 1.º, 2.º e 20.º da petição inicial, com as áreas do levantamento topográfico junto aos autos.

VI. Refere a Sentença de que ora se recorre, “do confronto entre a causa de pedir e os pedidos constantes na petição inicial, constata-se que os Autores reivindicam, para si, uma parcela do prédio, de que se arrogam proprietários e, nessa medida peticionam que os Réus sejam condenados a restituir-lhes a posse integral do seu prédio, desocupando-o, isto é, retirando as construções efectuadas e existentes no prédio dos primeiros mas, simultaneamente, e por estarem em desacordo com os Réus acerca dos limites dos prédios em presença nos autos, requerem a demarcação dos mesmos.

Ora, face a isto, forçoso é concluir que, ou bem que os Autores estão certos das confrontações do seu prédio (como parece resultar da alegação contida nos artigos 3.º, 5.º, 6.º, 7.º 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º 17.º, 18.º, 24.º 25.º, 26.º, 27.º, 28.º 29.º, 30.º, 33.º, 35.º e 36.º da petição inicial) e pretendem reivindicar, para si, a parcela de terreno em causa nos autos, em virtude de a mesma ser parte integrante do aludido imóvel, ou bem que não estão certos sobre os limites do seu prédio, pretendendo, por isso, demarcar o mesmo, para pôr fim à incerteza ou controvérsia sobre a linha divisória entre os dois prédios.

O que não pode suceder, em nossa modesta opinião, é simultaneamente, tal como fizeram, os Autores deduzirem um pedido de demarcação das estremas entre o seu prédio e o prédio dos Réus (que pressupõe a incerteza, por dúvida ou controvérsia, da linha divisória entre os dois prédios), cumulativamente com o pedido de reivindicação da parcela de terreno em causa nos autos, que se encontra alegadamente ocupada pelos Réus, por considerarem que integra o seu prédio, porquanto este último pedido tem como pressuposto a certeza por parte dos Autores da exacta localização e confrontações do seu prédio.

Assim, tais pedidos são substancialmente incompatíveis entre si, uma vez que, na ação de reivindicação é pressuposto da mesma a certeza sobre os limites do prédio, ao passo que na ação de demarcação, pelo contrário, é pressuposto a incerteza sobre os limites entre os dois prédios, por haver dúvidas ou controvérsia sobre os mesmos.

Deste modo, entendemos que, atentos os fundamentos aduzidos, existe verdadeira incompatibilidade material entre o pedido de demarcação e o pedido de reivindicação, pelo que discordamos do entendimento vertido pelos Autores na réplica apresentada.”

VII. A doutrina e a jurisprudência têm esclarecido que existe autonomia e distinção entre esta acção de demarcação e a acção de reivindicação. Os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, Volume III, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 199, indicam como critério para distinguir as duas acções a diferença entre um conflito acerca do título e um conflito de prédios. Se as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa ou sobre uma parte dela, porque a adquiriu por usucapião, por sucessão, por compra, por doação, etc., a acção é de reivindicação. Está em causa o próprio título de aquisição. Se, pelo contrário, se não se discute o título, mas a relevância dele em relação ao prédio, como, por exemplo, se o autor afirma que o título se refere a varas e não a metros ou discute os termos em que deve ser feita a medição, ou, mesmo em relação à usucapião, se não se discute o título de aquisição do prédio de que a faixa faz parte, mas a extensão do prédio possuído, a acção é já de demarcação. Esta é, pois, como dizem os autores, uma acção de acertamento ou de declaração da extensão da propriedade, sem que estejam em causa os títulos de aquisição.

VIII. Os AA. fundamentam a sua ação no facto da existência de prédios confinantes (dos AA. e dos RR.), de proprietários distintos (dos AA. e dos RR.) e de estremas incertas e duvidosas.

IX. Não está em causa o domínio da propriedade dos prédios, nem o título de aquisição (já aceite e reconhecido pelos RR.).

X. Por outro lado, os pedidos efetuados pelos AA. são muito claros:

- ver demarcados os prédios identificados em 1.º, 2.º (dos AA.) e 20.º (dos RR)

- reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre os prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da P.I. até à linha delimitadora indicada pelos AA., ou, a que vier a ser fixada…

XI. O que se pretende com a presente ação é exclusivamente a demarcação e colocação de marcos que limitem as estremas dos prédios confinantes de AA. e RR..

XII. O reconhecimento do direito de propriedade, neste âmbito, corresponde apenas a uma pretensão de fundo, que não define o litígio. O que o define é o pedido de demarcação dos prédios dos AA. e RR., devido a uma zona de conflito.

XIII. Na petição os AA. invocam como causa de pedir mediata, o serem donos e legítimos possuidores de determinados prédios (um urbano e um rústico onde aquele se mostra implantado), posse essa que proveio dos antecessores, vendedores de ambos os prédios aos AA e, o registo de propriedade a seu favor.

XIV. Invocam como causa de pedir imediata a confinância dos prédios, a diversa titularidade do respetivo direito de propriedade e a incerteza e controvérsia sobre a localização da respetiva linha divisória.

XV. Entendemos assim, que o pedido dos AA. que, de forma direta e imediata diz respeito à resolução do litígio, é o que indicam à cabeça do seu petitório: a condenação dos RR (i) a verem demarcados os prédios identificados em 1.º, 2.º e 20.º da petição inicial pela linha delimitadora cadastral definida pelas coordenadas fornecidas pela Direção Geral do Território e melhor indicadas no levantamento topográfico junto aos autos.

XVI. Entendemos não se verificar a exceção de ineptidão da petição inicial por cumulação de causas de pedir e de pedidos substancialmente incompatíveis, tendo incorrido o Tribunal “a quo” em erro.

XVII. Entendemos que, mesmo na situação de pedidos substancialmente incompatíveis, não deveria o Tribunal, em consequência, declarar a nulidade de todo o processo absolvendo os RR. da instância, antes sim, devia o Tribunal convidar os AA. a esclarecer qual é o pedido inconciliável que pretendem ver apreciado, aplicando depois por analogia a tramitação do artigo 38 do C.P.C.

XVIII. Sabemos que a solução que tem vindo a ser tradicionalmente aceite pela nossa jurisprudência e doutrina vai no sentido de que tal vício constituir uma nulidade insanável, importando, necessária e automaticamente, a nulidade de todo o processado.

XIX. Seguimos, no entanto, os que entendem que tal ponderação deverá ser reavaliada face à revisão do CPC de 2013 e ao espírito que lhe subjaz ao nível de preocupações de economia processual e do reforço dos poderes processuais do juiz. Neste sentido acórdão da Relação de Évora datado de 21.05.20220 (relator José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho) o qual acertadamente refere o seguinte: No novo regime processual civil foi reforçada a ideia que sustentava que a actividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de meritis.

XX.Pelo que, entendendo o Tribunal “a quo” que os pedidos formulados pelos AA. são substancialmente incompatíveis, deveria o Tribunal convidar os AA. a esclarecer qual o pedido inconciliável que pretende ver apreciado, aplicando depois por analogia a tramitação prevista no artigo 38 do CPC.

XXI. Foram violados, além de outros, os artigos 186 n.º 1 e 2 al. c) e n.º 4, 576 n.º 1 e 2, 577 al. b), 578 e 38 todos do CPC.

Terminaram pedindo que seja revogada a sentença de primeira instância, e determinado o prosseguimento da ação, pois que, não se verifica a exceção de ineptidão da petição inicial por cumulação de causas de pedir e de pedidos substancialmente incompatíveis; ou caso se entenda estar verificada tal exceção, que o Tribunal convide os Autores a esclarecer qual o pedido inconciliável que pretendem ver apreciado.

*

O Réu respondeu ao recurso, apresentando a seguinte síntese conclusiva:

I. Vêm os Recorrentes, por via do presente recurso manifestar a sua discordância relativamente ao despacho saneador / sentença proferida no âmbito dos presentes autos, a qual julgou procedente a excepção de ineptidão da petição inicial alegada pelo Recorrido, por cumulação de causas de pedir e de pedidos substancialmente incompatíveis e, em consequência, declarou a nulidade de todo o processo absolvendo os Réus da Instância (cfr. artigos 186º, n.ºs 1 e 2, alínea c) e n.º 4, 576, n.ºs 1 e 2, 577º, alínea b) e 578º todos do CPC).

II. Alegam, em síntese, os Recorrentes que consideram que, o pedido estes formulado na PI se circunscreve a:

(i) “Ver demarcados os prédios identificados em 1.º, 2.º e 20.º da petição inicial pela linha delimitadora cadastral definida pelas coordenadas fornecidas pela Direção Geral do Território e melhor indicadas no levantamento topográfico junto.

(ii) Reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre os prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da P.I. até à linha delimitadora indicada pelos AA., ou, a que vier a ser fixada, abstendo-se consequentemente de praticar qualquer ato que, de qualquer modo impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito dos AA. sobre os prédios até à linha delimitadora;

(iii) Demolirem e retirarem tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar os prédios dos AA., no prazo de 15 dias, entregando-o aos AA. completamente livres e desocupados.

(iv) Pagarem aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de €100,00, por cada dia além dos 15 dias referidos, que demorarem a limpar e desocupar o prédio destes.

(v) Pagarem as custas e demais encargos do processo.”

III. Baseando-se os Recorrentes, meramente, no pedido que se transcreveu no número anterior, defende, que presente processo é “exclusivamente a demarcação e colocação de marcos que limitem as extremas dos prédios confinantes de AA. e EE.” – cfr. n.º XI das Conclusões.

IV. Pugnam, ainda, os Recorrentes pela posição sufragada pela jurisprudência minoritária, no sentido de que devem ser permitida a cumulação de pedidos (posição contrária à sufragada pelo tribunal a quo) – cfr. n.º XIX das Conclusões.

V. Culminam, grosso modo, concluindo que o douto tribunal a quo violou “além de outros” (sem especificar quais), os artigos 186 n.º 1 e 2 al. c) e n.º 4, 576º, n.º 1 e 2. 577º al. b), 578º e 38º todos do CPC – cfr. n.º XXI das Conclusões.

VI. Salvo o devido respeito, que é muito, entende o Recorrido que não assiste qualquer razão aos Recorrentes. Vejamos:

VII. Em primeiro lugar, salvo melhor e mais douta opinião, consideramos que o douto tribunal a quo fez uma correcta interpretação / leitura do artigos 3.º, 5.º, 6.º, 7.º 8.º,9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º 17.º, 18.º, 24.º 25.º, 26.º, 27.º, 28.º 29.º, 30.º, 33.º, 35.º e 36.º todos da petição inicial, de onde resulta claro que os Recorrentes estão seguros das confrontações do seu prédio e que pretendem, outrossim, reivindicar, para si, uma parcela de terreno alegadamente ocupada pelo Recorrido.

VIII. Cogitamos que a preocupação dos Recorrentes em alegarem que estão convictos de que a o prédio tem a configuração e delimitação deve-se ao facto de pretenderem invocar factos não só atinentes à reivindicação da propriedade mas também, de alguma forma, salvaguardar o reconhecimento da sua propriedade (para além da

informação constante do registo predial).

IX. Porventura essa preocupação deriva do facto do prédio dos Recorrentes não estar registado enquanto prédio misto (vide docs. 3. 4 e 5 juntos aos autos com a PI) e 1354º, n.º 1 do CC.

X. No entanto vêm, agora, os Recorrentes alegar que, contrariamente à interpretação do Recorrido e do tribunal a quo, o que pretendem é tout court uma acção de demarcação pois consta do pedido que a presente acção é proposta com vista ao reconhecimento da linha delimitadora indicada pelos AA “ou a que vier a ser fixada…”.

XI. Destarte entendemos que pelo facto dos Recorrentes indicarem na PI uma linha delimitadora é sinal que não têm dúvidas quando às extremas dos prédios e respectiva delimitação.

XII. Aliás tanto a matéria alegada como os pedidos subsidiários resulta a interpretação de que os Recorrentes consideram que o Recorrido se encontram a ocupar uma faixa de terreno que lhes pertence e que estes pretendem reclamar como sua no presente processo.

XIII. Caso os Recorrentes tivessem dúvidas quando à demarcação dos prédios não teriam indicado qualquer linha limitadora, daí que seja de subscrever o entendimento perfilhado pelo douto tribunal a quo.

XIV. Os Recorrentes tinham de escolher um iter:

- ou sabem qual a extrema do seu terreno e nessa sequência reclamam para si a parcela de terreno indevidamente ocupada pelo Recorrido; ou

- porque não estão seguros quanto à delimitação dos imóveis requerem que essa delimitação seja feita pelo tribunal;

XV. Reiteramos que da leitura da PI (no que tange à causa de pedir e pedido) não conseguimos inteligir que os Recorrentes pretendam somente uma demarcação da propriedade (tanto mais que tanto a PI como a catalogação do sistema informático Citius é omissa quanto a que tipo de acção de processo comum que os Recorrentes pretenderam instaurar).

XVI. Face ao exposto, entendemos que o despacho saneador / sentença não padece de qualquer mácula, tanto quanto ao entendimento que faz da matéria factual assim como a solução de direito preconizada.

XVII. Neste conspecto, em nosso modesto entendimento, deverá continuar a seguir-se o entendimento jurisprudência maioritário no sentido de:

- existir incompatibilidade material entre os pedidos própria da ação de reivindicação e da ação de demarcação; e

- um convite ao aperfeiçoamento não pode obstar à inconciliabilidade entre os pedidos formulados na petição inicial;

XVIII. Entendemos, deste modo, que o douto tribunal a quo se limitou a aplicar o direito aos factos alegados na PI, numa decisão devidamente fundamentada, designadamente invocando a jurisprudência ínsita no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08-03-2022, processo n.º 1008/20.5T8PVZ.P1 (ANABELA DIAS DA SILVA), no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15-02-2022, processo n.º 768/21.0T8CVL.C1 (FALCÃO DE MAGALHÃES), no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21-10-2021, processo n.º 467/19.3T8ALB.P1 (ISOLETA DE ALMEIDA COSTA), no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25-03-2021 (MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES) processo n.º 3279/19.0T8BRG-B.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt) e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 30-06-2011, processo n.º 360/08.5TBVVC-C.E1, (BERNARDO DOMINGOS), acessível in www.dgsi.pt).

XIX. Em conclusão, a argumentação dos Recorrentes em nada abala a Jurisprudência acima mencionada, nem a interpretação factual que efectuada pelo tribunal a quo, não padecendo o despacho saneador / sentença recorrido de qualquer mácula, razão pela qual bem andou o douto tribunal ao decidir como decidiu devendo, por esse facto, o douto tribunal ad quem manter na íntegra a decisão recorrida.

*

Também a Ré respondeu ao recurso, apresentando, após alegações, as seguintes conclusões:

I- Os Recorrentes não se conformaram com a decisão julgou procedente a exceção de ineptidão da petição inicial por cumulação de causas de pedir e de pedidos substancialmente incompatíveis e, em consequência, declarou-se a nulidade de todo o processo, absolvendo-se os réus da instância, em conformidade com o disposto nos artigos 186.º, ns.º 1 e 2, alínea c) e n.º 4, 576.º, ns.º 1 e 2, 577.º, alínea b) e 578.º todos do Código de Processo Civil.

II- Sumariamente, alegaram os Recorrentes que a acção proposta contra os Recorridos é exclusivamente de demarcação e colocação de marcos nas estremas dos prédios a que correspondeu a formulação dos seguintes pedidos:

“(i) Ver demarcados os prédios identificados em 1.º, 2.º e 20.º da petição inicial pela linha delimitadora cadastral definida pelas coordenadas fornecidas pela Direção Geral do Território e melhor indicadas no levantamento topográfico junto.

(ii) Reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre os prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da P.I. até à linha delimitadora indicada pelos AA., ou, a que vier a ser fixada, abstendo-se consequentemente de praticar qualquer ato que, de qualquer modo impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito dos AA. sobre os prédios até à linha delimitadora;

(iii) Demolirem e retirarem tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar os prédios dos AA., no prazo de 15 dias, entregando-o aos AA. completamente livres e desocupados.

(iv) Pagarem aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 100,00, por cada dia além dos 15 dias referidos, que demorarem a limpar e desocupar o prédio destes.

(v) Pagarem as custas e demais encargos do processo.”

III- Competia aos Recorrentes alegar e provar os factos constitutivos da sua pretensão, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 342º do Código Civil.

IV- Contudo, os Recorrentes para além de não revelarem qualquer incerteza ou desconhecimento sobre a localização das estremas, na linha divisória entre os prédios confinantes (factos alegados na PI - 3º, 5º, 15º, 17º, 18º, 24º a 30º, 33º, 35º e 36º), pediram o reconhecimento do direito de propriedade sobre os prédios que lhes pertencem (factos alegados na PI – artigo 1º a 19º - a que correspondeu o pedido (ii) Reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre os prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da P.I. até à linha delimitadora indicada pelos AA., ou, a que vier a ser fixada, abstendo-se consequentemente de praticar qualquer ato que, de qualquer modo impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito dos AA. sobre os prédios até à linha delimitadora), bem como a condenação dos Recorridos a restituírem livre e desocupado de tudo o que esteja a ocupar os prédios daqueles (factos alegados na PI – artigo 24º a 27º, 33º e 35º - a que correspondeu o pedido (iii) Demolirem e retirarem tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar os prédios dos AA., no prazo de 15 dias, entregando-o aos AA. completamente livres e desocupados) e no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.

V- É manifesto que os Recorrentes pretenderam discutir o título aquisitivo e a restituição da posse da coisa da qual estão privados (para além de pretenderem a condenação dos Réus em sanção pecuniária compulsória).

VI- É pacífico o entendimento da jurisprudência e doutrina que “ (…) a acção de reivindicação funda-se na existência do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e na posse ou detenção desta pelo reivindicado, ou seja, no direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e na violação desse direito pelo possuidor ou mero detentor dessa coisa” e a que corresponderá o “pedido de reconhecimento do direito de propriedade”. - Citação do Acs. STJ. de 25/09/2000, BMJ, 499º, págs. 294 a 294; RG. de 17/11/2004, CJ, t. 5º, págs. 279 a 283; 01/06/2005, Proc. 980/05-2; 13/10/2014, Proc. 2201/12.0TBFAF.G1, estes in base de dados da DGSI”

VII- E que a causa de pedir na acção de demarcação pressupõe que se alegue a confinância dos prédios, a titularidade do respectivo direito de propriedade na pessoa do demandante e demandado e inexistência, incerteza, controvérsia ou tão o desconhecimento sobre a localização da respectiva linha divisória e cujo seu pedido é a necessidade de fixação das estremas, ou seja, da linha divisória entre os prédio confinantes, cuja linha divisória é incerta ou tornou-se duvidosa.

VII- Constituindo a qualidade de proprietário mera condição de legitimidade e não a uma pretensão, como foi alegado pelos Recorrentes.

VIII- Os Recorrentes tiveram várias oportunidades processuais, em que foram confrontados com a arguição da excepção dilatória de nulidade do processado por ineptidão da petição inicial, atenta a cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, de optar por uma vertente daquilo que cumulativamente peticionaram.

IX- E sempre mantiveram o propósito de fazerem valer todos os pedidos que formularam.

X- É também pacífico o entendimento dos Tribunais Superiores sobre a impossibilidade de sanação da incompatibilidade substancial de pedidos (a título exemplificativo indica-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 12/07/2018, no proc. nº 1706/16.8T8LRS.L1-6).

XI – Ainda neste conspecto, entendem os Recorrentes que deveria o Tribunal a quo ter convidado os Recorrentes a esclarecer qual o pedido inconciliável que pretende ver apreciado, por aplicar-se o disposto no artigo 186º, n.º do CPC conciliado com o artigo 38º do mesmo diploma.

XII- Todavia, o nº 4 do artº 186º, do NCPC, no caso da alínea c) do n.º 2 deste mesmo artigo, dispõe que a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo. (sublinhado nosso)

XIII- Nesse sentido vai a decisão do Ac. do Tribunal de Coimbra de 15/02/2022, no proc. 768/21.0T8CVL.C1:

“Este nº 4, a nosso ver, não deve ser entendido como admitindo a sanação da nulidade nos outros casos de incompatibilidade que não os referidos no preceito, mas antes para clarificar, que mesmo nos casos em que um dos pedidos fique sem efeito - por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo – a nulidade permanece.

Entende-se, por outro lado, que a disciplina expressamente prevista no artº 38º do NCPC, não é aplicável à nulidade resultante da ineptidão da petição inicial por cumulação de causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis, arredada que está a analogia pelos termos do artº 186º do mesmo código, que só afastou expressamente a ineptidão na hipótese prevista nº 3 deste artigo.”

E também no caso dos presentes autos, “ante a manifesta incompatibilidade substancial de pedidos, outra opção não restava ao Tribunal “a quo” senão entender verificar-se a ineptidão da petição inicial, que, gerando a nulidade de todo o processado, traduzia-se numa excepção dilatória que obstava ao conhecimento do mérito da causa e que dava lugar à absolvição do Réus da instância (cfr. art.ºs 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. b) do CPC).”

XIII- Pelo que não restava ao Tribunal a quo outra opção senão a de julgar procedente a excepção de ineptidão da petição inicial por cumulação de causas de pedir e de pedidos substancialmente incompatíveis e, em consequência, declarar-se a nulidade de todo o processo, absolvendo-se os réus da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 186.º, ns.º 1 e 2, alínea c) e n.º 4, 576.º, ns.º 1 e 2, 577.º, alínea b) e 578.º todos do Código de Processo Civil.

XIV- Devendo, por isso, manter-se, na íntegra a decisão do Tribunal a quo.

*

II. Objecto do Recurso

Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC), não sendo o recurso meio para obter decisões novas, no caso, importa apreciar e decidir, por ordem lógica, das seguintes questões:

- Da inexistência de incompatibilidade substancial entre os pedidos deduzidos em primeiro e segundo lugar e o pedido formulado em último lugar; e no caso de improcedência desta questão,

- Da possibilidade de sanação da ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial de pedidos.

***

III. Fundamentação

III.1. De facto.

Os factos a considerar resultam do Relatório supra.

*

III.2 De Direito.

O Tribunal Recorrido entendeu que:

“(…)do confronto entre a causa de pedir e os pedidos constantes na petição inicial, constata-se que os Autores reivindicam, para si, uma parcela do prédio, de que se arrogam proprietários e, nessa medida peticionam que os Réus sejam condenados a restituir-lhes a posse integral do seu prédio, desocupando-o, isto é, retirando as construções efectuadas e existentes no prédio dos primeiros mas, simultaneamente, e por estarem em desacordo com os Réus acerca dos limites dos prédios em presença nos autos, requerem a demarcação dos mesmos.

Ora, face a isto, forçoso é concluir que, ou bem que os Autores estão certos das confrontações do seu prédio (como parece resultar da alegação contida nos artigos 3.º, 5.º, 6.º, 7.º 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º 17.º, 18.º, 24.º 25.º, 26.º, 27.º, 28.º 29.º, 30.º, 33.º, 35.º e 36.º da petição inicial) e pretendem reivindicar, para si, a parcela de terreno em causa nos autos, em virtude de a mesma ser parte integrante do aludido imóvel, ou bem que não estão certos sobre os limites do seu prédio, pretendendo, por isso, demarcar o mesmo, para pôr fim à incerteza ou controvérsia sobre a linha divisória entre os dois prédios.

O que não pode suceder, em nossa modesta opinião, é simultaneamente, tal como fizeram, os Autores deduzirem um pedido de demarcação das estremas entre o seu prédio e o prédio dos Réus (que pressupõe a incerteza, por dúvida ou controvérsia, da linha divisória entre os dois prédios), cumulativamente com o pedido de reivindicação da parcela de terreno em causa nos autos, que se encontra alegadamente ocupada pelos Réus, por considerarem que integra o seu prédio, porquanto este último pedido tem como pressuposto a certeza por parte dos Autores da exacta localização e confrontações do seu prédio.

Assim, tais pedidos são substancialmente incompatíveis entre si, uma vez que, na ação de reivindicação é pressuposto da mesma a certeza sobre os limites do prédio, ao passo que na ação de demarcação, pelo contrário, é pressuposto a incerteza sobre os limites entre os dois prédios, por haver dúvidas ou controvérsia sobre os mesmos.

Deste modo, entendemos que, atentos os fundamentos aduzidos, existe verdadeira incompatibilidade material entre o pedido de demarcação e o pedido de reivindicação, pelo que discordamos do entendimento vertido pelos Autores na réplica apresentada.

Quanto às consequências da dedução de pedidos incompatíveis, entendemos que não cabe ao Tribunal substituir-se à parte e escolher apenas um deles, em detrimento do outro, e igualmente não se vislumbra que um convite ao aperfeiçoamento possa obstar à inconciliabilidade entre os pedidos formulados na petição inicial, uma vez que e tal como referido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 30-06-2011, processo n.º 360/08.5TBVVC-C.E1, (BERNARDO DOMINGOS), acessível in www.dgsi.pt: “I O despacho de aperfeiçoamento destina-se apenas a permitir às partes suprir irregularidades (n.º 2 do art. 508.º do CPC) «deficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada (n.º3) ou o «esclarecimento ou correcção» dessa matéria (n.º 4) mas já não tem aplicação nas situações mais graves, como é o caso dos autos, em que o vício da petição inicial corresponde a uma situação de ineptidão prevista no art. 193.º, n.º 2, al. c), do CPC e que conduz necessariamente à nulidade de todo o processo e à absolvição do Réu da instância.”

Por outro lado, sempre se refira que não assiste razão aos Autores quando referem que os Réus contestaram e entenderam o teor da petição inicial, não devendo, por essa via, a excepção ser declarada procedente. De facto tal consequência apenas se aplica aos casos em que a ineptidão tenha sido invocada por falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedido, o que não se verifica, tendo sido invocada a contradição entre pedido e causa de pedir e dedução de pedidos substancialmente incompatíveis.

Assim atentos os fundamentos acima aduzidos, concluímos que a petição inicial padece de ineptidão, por incompatibilidade substancial entre os pedidos formulados nos pontos (i) e nos pontos (ii), (iii) e (iv) nos termos e para os efeitos do artigo 186.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil.”

Os autos espelham a já longa controvérsia jurisprudencial acerca da existência de incompatibilidade substancial de pedidos ou de causas de pedir próprios da ação de reivindicação e de demarcação, geradora de ineptidão da petição inicial.

O Tribunal Recorrido definiu com acerto os contornos da questão, pelo que aqui apenas diremos que tendo sido acolhida maioritariamente a tese acolhida na decisão recorrida, ultimamente, como bem se refere no recente Acórdão da Relação do Porto de 09.01.2023[1] que aqui seguimos de perto:

“(…)a ação de reivindicação permite ao titular do direito de propriedade ou de outro direito real exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa de que é titular o reconhecimento do seu direito e a consequente restituição da coisa que lhe pertence ou sobre a qual tem outro direito real que não o direito de propriedade (artigos 1311º, nº 1 e 1315º, ambos do Código Civil).

Na eventualidade de ser reconhecido o direito de propriedade ou outro direito real, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei (artigo 1311º, nº 2, do Código Civil), isto é, desde que exista norma legal que permita ao possuidor ou detentor a manutenção da posse ou detenção, não obstante o reconhecimento do direito de propriedade ou outro direito real de gozo ao reivindicante.

No entanto, na realidade diária e, além do mais, dadas as limitações do nosso sistema registral quanto à precisa e inequívoca definição da composição, área e limites dos imóveis descritos[6], é frequente o reconhecimento do direito de propriedade sem a concomitante imposição do dever de restituição da coisa a que respeita o direito reconhecido.

Enquanto meio de defesa de um direito real, a ação de reivindicação pressupõe a precisa identificação e delimitação da coisa reivindicada[7].

Porém, por variadas vicissitudes, como seja a ignorância dos limites dos prédios e a identidade dos confrontantes, seja em consequência do crescente afastamento das pessoas da terra, seja ainda em decorrência de encobertas ações de usurpação, nem sempre a delimitação dos imóveis se acha definida de forma inequívoca e indiscutida, com a existência de marcos respeitados pelos confinantes ou com outros sinais igualmente respeitados, como sejam muros, fragas, ribeiros, etc…

Nesta eventualidade, em ordem a dissipar as dúvidas existentes quanto aos limites dos prédios, o proprietário tem o direito potestativo de exigir aos proprietários confinantes que concorram para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles (artigo 1353º, do Código Civil).

De forma sintética, pode dizer-se que enquanto a ação de revindicação pressupõe a definição precisa da coisa imóvel reivindicada, nomeadamente dos seus limites[8], operando a restituição dentro desses limites, a ação de demarcação implica necessariamente uma situação de incerteza ou dúvida quanto a uma ou várias estremas do imóvel a demarcar, destinando-se precisamente à definição precisa das linhas que permitem a determinação dos limites dos prédios em que se regista essa incerteza.

Tem sido jurisprudência constante[9], ao menos à luz da jurisprudência publicada, a afirmação de que existe incompatibilidade substancial de pedidos no caso de cumulação real de pedido de reivindicação e de demarcação[10].

No entanto, recentemente, alguma doutrina tem questionado essa jurisprudência[11], com argumentos ponderosos do ponto de vista dogmático e de uma adequada e eficiente gestão dos instrumentos processuais, sendo de admitir desenvolvimentos futuros na jurisprudência, aderindo ou criticando essas posições doutrinais.

Pela nossa parte, não cremos que exista uma verdadeira incompatibilidade de efeitos jurídicos entre o pedido de reivindicação e de demarcação, pois que também a reivindicação, na sua vertente de restituição, implica a prévia definição precisa dos limites do imóvel a restituir e, por outro lado, da definição das estremas entre os prédios em ação de demarcação pode resultar demonstrada uma violação desses limites, nomeadamente com a realização de construções dentro dos limites determinados em sede de ação de demarcação.(…)”

Este entendimento tem sido perfilhado, como referido, por alguma doutrina, por se entender que:

“[é] claro que os fundamentos de cada um dos pedidos são distintos. No entanto, isto não chega para entender que há uma incompatibilidade substancial entre o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação. Se o prédio for reivindicado ao proprietário de um prédio confinante, não é impossível entender que o reivindicante pode formular não só o pedido de reivindicação, mas também o de demarcação.

A incompatibilidade substancial entre os pedidos ocorre quando ambos se excluem mutuamente. Não é o caso do pedido de reivindicação e do pedido demarcação. Em vez de se excluírem mutuamente, esses pedidos completam-se entre si, dado que o que se reivindica é o que resulta da demarcação a realizar entre os prédios confinantes.

“Coloca-se uma pergunta muito simples: o que deve fazer alguém que se considera proprietário de um terreno, mas que tem dúvidas quanto à sua demarcação perante o terreno vizinho de que é titular o demandado? (…)

Segundo uma outra orientação, o reivindicante deve reivindicar o prédio contra o vizinho e, porque tem dúvidas quanto às estremas dos respectivos prédios, não deixar de, de acordo com uma litigância aberta e clara, as referir e, em consequência, cumular o pedido de demarcação. Porque esta solução é muito mais transparente, não pode deixar de ser esta a solução preferível.”

Resta acrescentar que não há nenhuma incompatibilidade substantiva entre o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação: a reivindicação define a titularidade de prédio; a demarcação define, quando tal seja necessário, a extensão do prédio. Assim, é perfeitamente admissível reivindicar o que resultar da demarcação.” [2].

Neste sentido se decidiu ainda no recente Acórdão desta Secção de 09.02.2023, que:

“Importa ter presente que a presunção de propriedade que emerge do registo predial e que legitima a ação de reivindicação, não abrange os limites, as confrontações, a área e demais elementos próprios da identificação física do prédio. O registo predial tem como finalidade essencial conferir publicidade à situação jurídica imobiliária, de modo a garantir a segurança nas operações de natureza predial. Não define os limites.

Pode, por isso, acontecer que os proprietários confinantes estejam em desacordo quanto a esses limites, tenham inclusivamente edificado sobre parte que o outro reclama como sua e, nessa medida, o proprietário lesado necessite para o integral reconhecimento do seu direito de propriedade e restituição da parte indevidamente ocupada, a delimitação precisa das áreas de que é titular.

Ora esse reconhecimento de propriedade é legitimador do pedido seguinte: de demarcação. Não prejudica este, porque o reconhecimento de propriedade com base nos títulos não é suficiente, por si só, para estabelecer os limites e confrontações, mas, confere justificação a este segundo pedido delimitador. E, por sua vez este pedido de demarcação legitima objetivamente o pedido de restituição da parte indevidamente “ocupada” uma vez que a linha divisória se venha a demonstrar violada.

Complementam-se, assim, os pedidos de reconhecimento de propriedade – demarcação – restituição.

Ou seja, muito embora sejam distintas as ações de demarcação e de reivindicação poderão cada uma delas em determinadas situações ser utilizadas integradamente na resolução dum mesmo litígio, onde para o pedido de restituição ser procedente seja necessário circunscrever determinada propriedade aos seus justos e claros limites.”

Perfilhamos este entendimento, acrescendo, em nosso entender, que se vigência do Código de Processo Civil de 1961, antes da Reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, se podia argumentar que as formas de processo eram diferentes - a um pedido de reivindicação correspondia a forma de processo comum, um pedido de demarcação obrigava à forma de processo especial (artigo 1052.º) – o que por si só impedia a cumulação dos referidos pedidos, atualmente, desaparecido tal óbice, apenas haverá que atender ao caso concreto para descortinar se, perante os articulados, existe alguma incompatibilidade.

Nada impede, pois, que depois de ter ficado assente a titularidade do direito de propriedade dos Autores sobre uma parte de um determinado prédio, e depois de o possuidor do mesmo ter sido condenado a proceder à sua restituição, se proceda à colocação de marcos para definir as estremas entre aquele prédio e um outro pertencente aos Réus. E ainda que se utilize para efeito de definição da estrema dos dois prédios e para a colocação de marcos, as conclusões a que se chegou na parte da reivindicação, quanto à área abrangida pelo prédio pertencente aos Autores. E vice versa.

Ora, no caso dos autos, assiste razão aos Apelantes, quando entendem que tal incompatibilidade não se verifica, nem entre os pedidos nem entre as causas de pedir, o que resulta da interpretação dos mesmos articulados e das pretensões formuladas.

Como se havia já entendido no Acórdão proferido por este Tribunal da Relação e Secção nestes autos, no âmbito do qual se escalpelizaram os pedidos e os fundamentos invocados pelos Autores, análise para a qual remetemos e que aqui nos dispensamos reproduzir:

“A Mmª Juíza, porém, entendeu que “um dos pedidos formulados pelos autores corresponde precisamente ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre os prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da petição inicial até à linha delimitadora indicada pelos mesmos ou a que vier a ser fixada, abstendo-se, consequentemente, de praticar qualquer ato que, de um qualquer modo, impeça, dificulte ou diminua o exercício do direito de propriedade dos autores sobre os prédios até à linha delimitadora. (…) Nesta medida, considerando os elementos dos autos, importa fixar à ação o valor de €67.492,43 (€67.002,99 + €489,44) e à reconvenção o valor de €2.000,00”.

Sendo os valores de €67.002,99 e de €489,44, os que resultam das respetivas cadernetas prediais, respetivamente urbana e rústica.

Tal decisão assenta no pressuposto de que os AA. formularam pedidos cumulativos : o de reivindicação de propriedade e o de demarcação. Sendo o primeiro, de reconhecimento de propriedade e sujeito à norma do art. 302º nº 1 do CPC: « 1 - Se a ação tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa», - aquele que deve predominar.

Sucede que, o valor patrimonial dos prédios em causa têm em conta toda a área dos prédios dos AA (urbano e rústico) com todas as construções e edificações nele existentes. E não apenas a parte em litígio.

O reconhecimento do direito de propriedade, neste âmbito, corresponde apenas a uma pretensão de fundo, que não define o litígio. O que o define é o pedido de demarcação dos prédios de AA. e RR., devido a uma zona de conflito.

Por isso a doutrina tem entendido que, quando o que verdadeiramente está em causa é apenas uma parcela daquele todo, o valor da ação se deverá determinar com referência ao valor da parcela em litígio. Nesse sentido, Salvador da Costa, “Os Incidentes da Instância”, Almedina, 4ª ed., pág. 45.

Também a jurisprudência adere a esse entendimento.

«I - Na ação de demarcação o valor da causa deve ser fixado em atenção ao valor da faixa de terreno em litígio e não em atenção ao valor dos prédios confinantes.»

Também o Ac. TRG, P.527/17 .5T8BCL -A.G1, datado de 18-12-2017 (Maria Purificação Carvalho):

« - Numa ação em que se pretende fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa o seu valor processual corresponde ao valor real da coisa, a determinar por referência ao respetivo rendimento ou, se o não produzir, ao que derivar de um juízo relativo à respetiva matéria, utilidade e estado de conservação ou de manutenção o que não se confunde com o respetivo valor matricial.

- Mas se estiver em causa apenas uma parte de uma coisa, ainda que se peça a declaração do direito de propriedade sobre toda ela, é o valor da parte em litígio que define o valor processual da causa.»

Importa reter que o pedido dos AA. que diretamente se conforma com a resolução do litígio é o que indicaram à cabeça do seu petitório: a condenação dos RR (i) a verem demarcados os prédios identificados em 1.º, 2.º e 20.º da petição inicial pela linha delimitadora cadastral definida pelas coordenadas fornecidas pela Direção Geral do Território e melhor indicadas no levantamento topográfico junto aos autos.” (o sublinhado é nosso).

Atentando na integralidade da petição inicial, conclui-se, efetivamente, que a pretensão principal dos Autores é a de demarcação do seu prédio do prédio dos réus, indicando para tanto, por remissão para um levantamento topográfico e em função daquilo que considera título para efeitos de demarcação, a linha divisória dos referidos imóveis e apenas por efeito da linha divisória que reputa ser a correta surgem os pedidos de reivindicação – “reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre os prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da P.I. até à linha delimitadora abstendo-se consequentemente de praticar qualquer ato que, de qualquer modo impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito dos AA. sobre os prédios até à linha delimitadora” e “demolirem e retirarem tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar os prédios dos AA., no prazo de 15 dias, entregando-o aos AA. completamente livres e desocupados.”

Assim, não só não existe qualquer incompatibilidade substancial de pedidos como nem sequer se verificam causas de pedir contraditórias, na medida em que as pretensões de reivindicação dos Autores definida pela linha divisória que a mesma indica surgem como mera decorrência da procedência da pretensão de demarcação e no pressuposto que a linha divisória vem a ser fixada nos termos indicados pelos autores.

Assim sendo, não se verifica a incompatibilidade substancial de pedidos que o tribunal recorrido entendeu existir, não enfermando deste modo a petição inicial de ineptidão e ficando prejudicado o conhecimento da questão enunciada para ser conhecida em segundo lugar.

Deve, pois, ser revogada a decisão recorrida que julgou verificada a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial e consequentemente absolveu os réus da instância, devendo os autos prosseguir os seus termos, salvo se se verificar alguma outra circunstância que a tanto obste.

*

As custas serão suportadas, porque vencidos, pelos Apelados (n.ºs 1 e 2 do art.º 527.º do CPC).

*

IV. Dispositivo

Pelo exposto, acordam em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelos Autores, e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus termos, salvo se a tanto qualquer circunstância não apreciada, a isso obstar.

Custas pelos Apelados.

Registe e notifique.

Notifique.

Évora, 2023-03-30

Ana Pessoa

José António Moita

Maria da Graça Araújo


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[1] Proferido no âmbito do processo n.º 41/21.4T8BAO.P1, acessível em www.dgsi.pt
[2] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, in Blog do IPPC, 25.10.2021, comentário ao Acórdão da Relação de Guimarães de 25/3/2021, proferido no processo 3279/19.0T8BRG-B.G1. e 30.03.2022, Comentário ao Acórdão da Relação do Porto de 13/7/2021, proferido no processo n.º 500/20.6T8ALB.P1.; Cf. ainda Urbano Lopes Dias, em “Da não incompatibilidade entre os pedidos de reivindicação e de demarcação Breve comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo 768/21.0T8CVL.C1, em 15/02/2022.