Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
742/10.2TBELV-A.E1
Relator: FLORBELA MOREIRA LANÇA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REJEIÇÃO
CRÉDITO AO CONSUMO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
OPOSIÇÃO À PENHORA
Data do Acordão: 11/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I. Para que as vicissitudes de um contrato de compra e venda influenciem ou possam influenciar o contrato de crédito é necessário que o contrato de mútuo tenha sido concluído no contexto de uma colaboração planificada entre o mutuante e o vendedor;
II. Para que o consumidor possa opor ao financiador o incumprimento do fornecedor do serviço, é necessária a existência de um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor e que o crédito em concreto tenha sido obtido pelo consumidor no âmbito desse acordo
III. A invocação de que os bens penhorados pertencem em parte ou na sua totalidade a terceiro, não configura, na lei vigente, fundamento de oposição à penhora por parte do executado, ao contrário do que acontecia anteriormente à revisão do Código Processo Civil de 1995.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I. Relatório
AA deduziu oposição à execução que lhe foi movida por BB, SA, em que esta última pretende a cobrança coerciva da quantia de € 13.402,11, titulada por uma livrança da subscrição do primeiro e de CC, requerendo a extinção da execução.
Para tanto alegou, em síntese, que não recebeu qualquer quantia da exequente nem recebeu a viatura ou os respectivos documentos, sendo que a aquisição foi financiada pela Exequente e originou o crédito exequendo.
Opôs-se, ainda à penhora realizada, alegando que o bem imóvel penhorado nos autos não é propriedade plena do executado, porquanto o mesmo foi objecto de doação ao executado por parte dos seus pais, mas tal doação excede em muito as quotas disponíveis dos doadores, pelo que deve-se concluir que o referido bem imóvel é actualmente propriedade do executado e dos seus irmãos, não podendo ser penhorado na totalidade.
A exequente contestou, pugnado pela improcedência da oposição deduzida, alegando que, por contrato de crédito celebrado em 4 de Agosto de 2008, o exequente concedeu ao oponente e a CC, crédito no valor de €10.873,47 para aquisição de um veículo de matrícula …-AV-… e que em 19 de Fevereiro de 2009 o contrato de crédito foi objecto de pedido de adenda de forma a que o proponente trocasse a referida viatura pelo veículo de matrícula …-BM-…, o que foi aceite pela exequente desde que fossem regularizadas as prestações que se encontravam em atraso. Porém, o executado não pagou as prestações em atraso já vencidas e não pagas naquela data.
Mais alega a Exequente que desconhece se o executado recebeu a viatura em causa, mas que a entrega da viatura e dos respectivos documentos competia à vendedora do veículo financiado e não à Exequente e que o bem imóvel penhorado na acção executiva encontra-se registado a favor do oponente, pelo que, deveriam ser os irmãos do oponente a reagir à manutenção da penhora.
Foi dispensada a realização de audiência prévia e, admitidos os requerimentos probatórios, foi realizada a audiência final.
Foi proferida sentença, julgando-se a oposição improcedente.
Inconformado com a decisão proferida, o opoente dela interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
A.º
O executado não recebeu qualquer quantia da exequente.
B.º
A exequente entregou a referida quantia à Sociedade J. Carmo Unipessoal Lda., para aquisição do veículo matrícula …-AV-…, marca HIUNDAi por parte do executado aquela sociedade.
C.º
O executado nunca recebeu plenamente a propriedade da referida viatura, pois nunca recebeu os documentos registados em seu nome nem chegou a ser efectuada a correspondente reserva de propriedade do veiculo a favor da exequente.
D.º
O executado não pode pois ser responsabilizado por uma divida de um valor que nunca recebeu, nem de um bem que nunca teve na sua posse nem usufruiu, nada deve por conseguinte o executado à exequente.
E.º
A prova testemunhal confirma todos os factos articulados pelo executado.
F.º
A douta sentença não tem fundamentação de facto nem de direito sustentáveis na prova produzida.
G.º
O imóvel objecto de penhora com o artigo matricial n.º … da freguesia de Caia e S. Pedro em Elvas, não é propriedade plena do executado o referido imóvel foi objecto de uma doação ao executado por parte dos seus pais DD e de EE, não obstante a referida doação excede e muito as suas quotas disponíveis do doador, visto tratar – se do seu único bem, o que consiste num total abuso de direito, anulável pelos demais herdeiros.
H.º
O referido bem é desta forma actualmente propriedade do executado e dos seus irmãos, cabendo apenas ao executado a mais que os seus irmãos o direito á liberalidade pela quota disponível.
I.º
Não pode por conseguinte o referido bem ser penhorado na totalidade pois não é o mesmo como referido propriedade do executado.
Termos em que, se requer a V. Ex.ª a reapreciação da prova gravada e o provimento do recurso apresentado pelo executado, absolvendo-o dos pedidos, sendo que desta forma farão V. Ex.ªs”
O recorrido não contra-alegou.
Providenciados os vistos por meios electrónicos e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
II. Objecto do recurso
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões (art.ºs 608.º, nº 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC), importa decidir as seguintes questões:
a) se deve ser alterada a resposta à matéria de facto
b) se assiste ao executado o direito de invocar perante o financiador (exequente) que este não lhe entregou a quantia prevista no acordo que com ele celebrara, bem como a não entrega do veículo e dos respectivos documentos;
c) se assiste ao executado o direito de invocar perante o financiador (exequente) os alegados vícios do contrato de compra e venda do veículo financiado;
d) Da impenhorabilidade do imóvel penhorado nos autos por se tratar de um bem doado ao executado, excedendo alegadamente a quota disponível do doador.
III. Fundamentação
1. De Facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. Com data do dia 4 de Agosto de 2008 foi celebrado entre os executados e a exequente o acordo escrito denominado “contrato n.º 80003043085”, conforme resulta do documento junto a fls. 125/127, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
2. O referido contrato de crédito destinava-se ao financiamento para aquisição pelos executados de um veículo automóvel, marca Hyundai Getz Van, de matrícula …-AV-…, sendo o fornecedor do bem a FF Automóveis Unipessoal, Lda.;
3. Nos termos desse acordo escrito os executados obrigaram-se a pagar à exequente o montante do referido empréstimo, no valor de € 10.873,47, em 96 prestações mensais fixas de €181,08;
4. No âmbito do referido contrato, para garantia do cumprimento do contrato, os executados assinaram uma livrança em branco, autorizando que a mesma fosse preenchida pela exequente, nela apondo as datas de emissão, vencimento, local de pagamento e respectivo valor até ao limite da responsabilidade assumida pelos executados;
5. A referida livrança foi preenchida e apresentada como título executivo pela exequente, conforme resulta de fls. 104 destes autos e de fls. 5 do processo principal;
6. Em 19 de Fevereiro de 2009, o contrato referido em 1., foi objecto de uma adenda, para troca da viatura de matrícula …-AV-… pela viatura de matrícula …-BM-…, cuja proposta foi aceite pela Exequente na condição de serem pagas as prestações em atraso;
7. Os executados pagaram apenas três prestações mensais do contrato referido em 1.;
8. O executado/opoente era funcionário da empresa FF Automóveis Unipessoal, Lda.;
9. A exequente não entregou ao executado o valor do crédito referido em 3.;
10. Em 17 de Fevereiro de 1993, por doação de DD e de EE, a propriedade do prédio descrito sob o n.º … da Conservatória do Registo Predial de Elvas, freguesia de Caia e São Pedro, com o artigo matricial …, foi inscrita a favor do Executado AA, livre de quaisquer ónus ou encargos.
Foi, por seu turno, considerada não provada a seguinte factualidade:
A. O executado não recebeu a viatura de matrícula …-AV-…, marca Hiundai;
B. O executado não sabe se a viatura foi paga pela Exequente à sociedade FF Automóveis Unipessoal, Ld.ª e se foi registada a reserva de propriedade;
C. O executado nunca teve na sua posse os documentos do referido veículo;
D. A doação referida em 10. dos Factos Provados excede a quota disponível dos doadores.
Por via do presente recurso pretende o apelante a reapreciação da prova gravada.
Ora, quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição (art.º 640.º, n.º 1, als. a) a c), e n.º 2, al. a), do CPC), ou seja, cabe ao recorrente especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas quanto aos indicados pontos da matéria de facto;
d) com exactidão, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
O cumprimento do ónus a cargo do recorrente previsto no n.º 2, al. a) do art.º 640.º do CPC tem sido objecto de inúmeros arestos do STJ, que tem entendido ser tal ónus “um ónus secundário”, que deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade.
Assim, quanto às alegações da Recorrente, esta forneceu a indicação dos depoimentos, que pretende ver reapreciados, a localização da integralidade de cada um dos depoimentos, pelo que se poderia entender que estaria suficientemente cumprido o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes.
Assim, embora exista um cumprimento insuficiente, quanto ao ónus previsto na al. c) do n.º 2 do art.º 640.º do CPC, mas, ainda assim, eventualmente passível de permitir a reapreciação, o que se verifica é um efectivo incumprimento pela Recorrente dos ónus previstos no n.º 1 do citado normativo, designadamente do ónus de se especificar os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados (al. a) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC).
Recai, pois, sobre o recorrente o ónus de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso indicando concreta e claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento, ou seja, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com referência aos depoimentos que, em seu entendimento, impõem decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo, alegando as razões da sua discordância com o julgamento de facto, cuja reapreciação se pede por via de recurso, explicando em que é que os depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido, designadamente afastando os demais meios de prova em que o julgador firmou a sua convicção.
“Para modificar a decisão da 1.ª instância, por enfermar de erro de julgamento, necessário se torna, sob pena de rejeição, que se especifiquem os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, alegando o porquê da discordância, explicando em que é que os depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido, designadamente afastando os demais meios de prova em que o julgador firmou a sua convicção.
Note-se que esta exigência não visa apenas que o Tribunal de recurso avalie concretamente o pretendido pelo recorrente, sendo também imposta pelo princípio do contraditório que enforma todo o processo civil, ou seja, pela necessidade que a parte contrária tem de conhecer os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, designadamente para os poder contrariar, salientando outros meios de prova em sentido diverso do indicado que infirmem as conclusões do recorrente, tudo como previsto no n.º 2, alínea b), do citado artigo.
Ora, com o disposto no supra citado preceito legal, o que se visa é circunscrever a reapreciação do julgamento efectuado a pontos concretos da matéria controvertida, isto porque os poderes da Relação, quanto à reapreciação da matéria de facto, não visam a realização de um segundo julgamento de toda a matéria de facto, nem a reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos, devendo consequentemente recusar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto.” (Ac. RE de 06.10.2016, Relatora Albertina Pedroso, acessível em www.dgsi.pt).
Face à omissão da Recorrente quanto ao cumprimento, desde logo, do primeiro ónus imposto pela al. a) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, impõe-se a imediata rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto
Destarte rejeita-se o recurso apresentado pelo apelante quanto à impugnação da matéria de facto.
Contudo, sempre se dirá que caso a pretensão do apelante fosse a de serem considerados provados os factos julgados não provados sob A a C, a verdade é que a dar-se como provados esses factos, por si só e tal como alegados pelo apelante, não determinariam decisão diversa, como abaixo melhor se explicitará.
2. O Direito
A oposição à execução constitui um processo declarativo instaurado pelo executado contra o exequente, que corre por apenso à execução, fundamentando-se num vício que afecta a execução, sendo que, caso seja julgada procedente, a acção executiva desse ser julgada extinta, no todo ou em parte (art.º 732.º, n.ºs. 1 e 4 do CPC).
Fundando-se a presente execução em título executivo cambiário, pode a oposição à execução basear-se na invocação pelo opoente de qualquer causa que lhe fosse lícito deduzir como defesa no processo de declaração, nos termos previstos no art.º 732.º do CPC, alegando o executado matéria de impugnação ou de excepção relativamente à pretensão executória contra si formulada pelo exequente com base no título executivo (neste sentido vide, entre outros, Ac. STJ de 14.07.2009, acessível em www.dgsi.pt).
No que tange ao ónus da prova dos factos invocados como fundamento da oposição à execução, cabe ao opoente a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos que opõe à pretensão do exequente e a este a prova dos factos constitutivos do direito exequendo (art.º 342.º do Cod. Civil).
Foi dada à execução uma livrança, que, quando foi entregue ao exequente, subscrita pelo oponente, não tinha preenchidos, nomeadamente, os campos referentes à data de vencimento, data de vencimento e importância (livrança em branco), sendo certo que, quando foi “dada” à execução, tinha inscrita como datas de emissão e de vencimento os dia 28.05.2010 e 10.06.2010 e como importância o montante de € 13.411,02, sendo que o executado/opoente, em abono da sua pretensão, alega que não recebeu qualquer quantia da exequente, tendo esta feito a entrega da quantia mutuada a FF Unipessoal Lda., para aquisição do veículo matrícula …-AV-…, marca HIUNDAI por parte do executado àquela sociedade, não tendo o executado nunca recebido plenamente a propriedade da referida viatura, pois nunca recebeu os documentos registados em seu nome nem chegou a ser efectuada a correspondente reserva de propriedade do veiculo a favor da exequente, pelo que não pode pois ser responsabilizado por uma divida de um valor que nunca recebeu, nem de um bem que nunca teve na sua posse nem usufruiu, nada deve por conseguinte o executado à exequente.
Na espécie resultou provado que exequente e opoente celebraram entre si, em 04.08.2008, um contrato em que aquela emprestou a este uma determinada quantia em quantia, destinada à aquisição de uma viatura automóvel. Com efeito, o crédito, que seria pago em 96 prestações mensais, no valor total de € 17.383,68, destinou-se à aquisição de uma viatura automóvel (Hyundai Getz van, matrícula …-AV-…) a FF Automóveis Unipessoal, Ld.ª, e foi concedido pela exequente, sob a forma de mútuo, reduzido a escrito e assinado pelos contraentes.
A tal contrato de mútuo é aplicável o Dec.-Lei n.º 359/91 de 21 de Setembro, na redacção introduzida pelos Decretos-Lei n.º 101/200, de 2 de Junho e n.º 82/2006, de 30 de Maio, vigente à data da celebração do contrato em causa.
Assim, estamos no âmbito do chamado “crédito ao consumo”, previsto no ordenamento jurídico português no Dec.-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro, que transpôs as Directivas 87/102/CEE, de 22 de Dezembro de 1986 e 90/88/CEE, de 22 de Fevereiro de 1990, cujo objectivo foi o de estabelecer regras, que tutelam de modo efectivo e substancial os interesses do consumidor a crédito, quer em relação ao vendedor, quer em relação à instituição de crédito, esclarecendo as especiais implicações decorrentes da ligação funcional entre o mútuo e a aquisição do bem.
O contrato de crédito ao consumo trata-se de um contrato, por meio do qual, um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante (art.º 2.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro).
Em virtude da concessão de crédito, o consumidor consegue adquirir o bem mediante o pagamento em prestações; por sua vez, o vendedor obtém desde logo o preço, que é pago por aquele que concede o crédito.
Deste modo, conciliam-se as necessidades do consumidor interessado na aquisição de certo bem, mas que não tem capacidade económica de pagar o preço de uma só vez, com a necessidade do comerciante, interessado em vender mas, mediante pronto pagamento (cfr. Fernando de Gravato Morais, Do Regime Jurídico do Crédito ao Consumo, in Scientia Jurídica, XLIX, 2000, n.ºs 286/288).
Estamos pois, perante um contrato comummente denominado de “crédito ao consumo”, nele coexistindo um contrato de compra e venda e um contrato de crédito, em que o crédito serve para financiar o pagamento do bem, objecto do contrato de compra e venda, in casu, de um veículo automóvel
Alega o apelante que não recebeu qualquer quantia da exequente e que esta entregou a quantia, objecto do mútuo, à Sociedade FF Unipessoal Lda., para aquisição do veículo matrícula …-AV-…, marca HIUNDAI por parte do executado aquela sociedade, pelo que não tendo recebido tal quantia não pode ser responsabilizado “por uma divida de um valor que nunca recebeu”.
Existe no litígio em causa uma situação contratual complexa, em que o crédito foi concedido para financiar o pagamento de um bem vendido – automóvel – tendo sido o montante mutuado entregue pela exequente directamente ao fornecedor do bem, conforme consta do contrato de financiamento assinado pelo opoente.
Com efeito, consta do contrato (n.º 80003043085) junto aos autos e dado como reproduzido na decisão da matéria de facto, que: “Declarações do(s) Consumidore(s): Declaro(amos) para os devidos efeitos legais autorizar o BB a utilizar o crédito que me (nos) é concedido para entrega por pagamento directamente `Entidade Vendedora do Bem/Serviço, adquirido no âmbito do presente Contrato, em conta de depósitos por esta indicada (cfr. fls. 125 v.).
É, pois, manifesto, que a quantia foi entregue pela exequente à vendedora, FF Unipessoal, Ld.ª. em cumprimento do contrato outorgado entre aquela e o apelante, pelo que o facto da quantia mutuada não ter sido entregue ao executado não o desobriga do pagamento de tal quantia, sendo certo que não foi tão-pouco invocado que o contrato de mútuo padecesse de qualquer vício.
Alega ainda o apelante que nunca recebeu plenamente a propriedade da referida viatura, pois nunca recebeu os documentos registados em seu nome nem chegou a ser efectuada a correspondente reserva de propriedade do veículo a favor da exequente, pelo que “não pode pois ser responsabilizado por uma divida de um valor que nunca recebeu, nem de um bem que nunca teve na sua posse nem usufruiu, nada deve por conseguinte o executado à exequente”.
Sendo certo que o opoente não logrou provar, cujo ónus lhe competia, a factualidade por si alegada – ou seja que a viatura e os respectivos documentos não lhe foram entregues pelo fornecedor da viatura – a verdade é que, ainda que lograsse provar tal factualidade, tal não resultaria na extinção da obrigação do pagamento do crédito.
Com efeito, a relação de interdependência entre o contrato de compra e venda e o contrato de mútuo e o vínculo substancial que influencia o regime normal desses contratos está patente, designadamente, na disciplina prevista no art.º 12.º do citado Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro.
Dispõe o n.º 2 do art.º 12.º do Dec.-Lei n.º 359/91 que “O consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:
1) Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último;
2) Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior”.
O apelante podia opor as vicissitudes do contrato de compra e venda à entidade financiadora, apelada, desde que se verificasse a existência entre credor e o vendedor, (de) um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último e que o crédito tenha sido obtido pelo consumidor na vigência desse “acordo prévio”.
A repercussão das vicissitudes do contrato de compra e venda sobre o contrato de crédito ao consumo está, pois, dependente da colaboração de financiador e vendedor, mas apenas daquela que conduza, entre eles, a um acordo prévio de exclusividade, por via do qual este último se obriga a direccionar os seus clientes para aquele com vista à concessão do crédito necessário à aquisição dos bens que ele, vendedor, fornece e que tal concessão tenha lugar na vigência do referenciado acordo (Ac. STJ de 24.04.2007, acessível em www.dgsi.pt.). Ou seja, para que as vicissitudes de um contrato de compra e venda influenciem ou possam influenciar o contrato de crédito é necessário que o contrato de mútuo tenha sido concluído no contexto de uma colaboração planificada, exclusiva, entre o mutuante e o vendedor.
Para que o consumidor possa opor ao financiador o incumprimento do fornecedor do serviço, é necessária a existência de um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor e que o crédito em concreto tenha sido obtido pelo consumidor no âmbito desse acordo (neste sentido, vide, inter alia, Acs. STJ de 07.01.2010 e de 26.09.2013, acessíveis em www.dgsi.pt).
Ora, na espécie, não se apurou factualidade que demonstrasse ter existido essa colaboração exclusiva, tanto mais que o opoente tão-pouco a alegou, pelo que as invocadas vicissitudes do contrato de compra e venda, ao contrário do alegado pelo opoente, não podem ter qualquer influência no contrato de crédito no sentido de o extinguir.
Como se refere no Ac. do STJ de 14.02.2008, acessível em www.dgsi.pt, “Subsistente o contrato de financiamento, subsistentes estão as obrigações que dele derivam”, nomeadamente, o pagamento das prestações devidas pelo crédito concedido e peticionadas, pelo que ao exequente era lícito o preenchimento da livrança, tanto mais que consta do contrato sub judice “Declarações do(s) Consumidore(s): (….) e declaro(amos) autorizar expressamente o Credibom a preencher qualquer livrança por mim (nós) subscrita e não integralmente preenchida, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos seus valores, até ao limite das responsabilidades assumidas por mim (nós) perante o BB, acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos”.
Invoca, ainda, o apelante, que o imóvel objecto de penhora com o artigo matricial n.º … da freguesia de Caia e S. Pedro em Elvas, não é propriedade plena do executado o referido imóvel foi objecto de uma doação ao executado por parte dos seus pais DD e de EE, não obstante a referida doação excede e muito as suas quotas disponíveis do doador, visto tratar- se do seu único bem, o que consiste num total abuso de direito, anulável pelos demais herdeiros, pelo que tal imóvel é propriedade do executado e dos seus irmãos, cabendo apenas ao executado a mais que os seus irmãos o direito à liberalidade pela quota disponível, pelo que não pode o referido bem ser penhorado na totalidade pois não é propriedade do executado.
A oposição à penhora constitui o meio específico de impugnação da penhora, baseando-se num fundamento que releva da violação dos limites objectivos desse acto (art.º 784.º n.º 1 do CPC) e, caso seja julgada procedente, importa o levantamento, no todo ou em parte, dessa penhora.
A acção executiva visa assegurar ao credor a satisfação da prestação que o devedor não cumpriu voluntariamente, seja através do produto da venda executiva de bens ou direitos patrimoniais daquele devedor ou da realização, por terceiro devedor, em favor da execução, da prestação (art.ºs 10.º n.º 3 do CPC e 817.º do Cód. Civil), procedendo-se à apreensão, nomeadamente, de bens de modo a que se proceda posteriormente à venda executiva daqueles bens (art.ºs. 601.º do Cód. Civil e 735.º n.º 1 do CPC).
Contudo, o acto de penhora pode revelar-se objectiva ou subjectivamente excessivo.
A penhora é objectivamente excessiva quando atinge bens ou direitos que, embora pertencentes ao executado, não devam responder pela satisfação do crédito exequendo, sendo a penhora subjectivamente excessiva quando tiver por objecto bens ou direitos que não são do executado.
A oposição à penhora pode ser deduzida nas situações previstas no art.º 784.º, n.º 1 do CPC:
a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada;
b) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondem pela dívida exequenda;
c) Incidência da penhora sobre bens que não respondam, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda.
Como resulta do articulado de oposição o executado não invoca em seu benefício nenhum circunstancialismo factual que possa ser integrado em nenhuma das situações supra referenciadas e legalmente delimitadas.
A invocação de que os bens penhorados pertencem em parte ou na sua totalidade a terceiro, que não ao executado, não configura, na lei vigente, fundamento de oposição à penhora por parte do executado, ao contrário do que acontecia anteriormente à revisão do Código Processo Civil de 1995, em que o disposto no art.º 1037.º n.º 2 possibilitava a dedução de embargos de terceiro pelo próprio executado, “quanto aos bens que pelo título da sua aquisição ou pela qualidade em que os possuir, não devam ser atingidos pela diligência ordenada”.
Na espécie, perante os fundamentos invocados pelo executado, não se vislumbra que este se mostre afectado pela realização da penhora em bens que alegadamente não são seus, mas de terceiros, tanto mais que o imóvel está registralmente inscrito a seu favor. A estes terceiros é que o legislador conferiu legitimidade para reagirem à penhora, caso, assim, o entendam, tendo em vista a salvaguarda dos seus direitos relativos ao bem penhorado (cfr. artºs 342.º e 343.º do CPC).
Impunha-se, assim, não ao executado, mas aos terceiros, que segundo o opoente seriam os seus irmãos, que no caso de se sentirem lesados accionassem os meios adequados que a lei lhes concede, o que não fizeram.
Mantem-se, pois, a decisão recorrida, embora com diferentes fundamentos, improcedendo, consequentemente a presente apelação.
Sumário:
I. Para que as vicissitudes de um contrato de compra e venda influenciem ou possam influenciar o contrato de crédito é necessário que o contrato de mútuo tenha sido concluído no contexto de uma colaboração planificada entre o mutuante e o vendedor;
II. Para que o consumidor possa opor ao financiador o incumprimento do fornecedor do serviço, é necessária a existência de um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor e que o crédito em concreto tenha sido obtido pelo consumidor no âmbito desse acordo
III. A invocação de que os bens penhorados pertencem em parte ou na sua totalidade a terceiro, não configura, na lei vigente, fundamento de oposição à penhora por parte do executado, ao contrário do que acontecia anteriormente à revisão do Código Processo Civil de 1995.
IV. Decisão
Pelo exposto, nos termos referidos, decide-se julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão impugnada.
Custas pelo apelante.
Registe.
Notifique.

Évora, 17 de Novembro de 2016
Florbela Moreira Lança
Bernardo Domingos
Silva Rato