Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
725/15.6T8PTM.E1
Relator: JOÃO NUNES
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
TRABALHADOR ESTRANGEIRO
CLÁUSULA ACESSÓRIA
ABANDONO DE TRABALHO
Data do Acordão: 05/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: i. É válido o acordo verbal celebrado entre a empregadora e a trabalhadora, aquando da celebração pelas mesmas de contrato de trabalho escrito com trabalhador estrangeiro, nos termos do qual a empregadora forneceria à trabalhadora transporte entre a residência desta e o local da prestação do trabalho, o que se verificou desde o inicio da vigência do contrato, em 12-07-2007, até Dezembro de 2014;
ii. não se verifica abandono do trabalho por parte da trabalhadora no circunstancialismo em que se apura que a partir desta última data a empregadora deixou de fornecer transporte à trabalhadora, bem sabendo que a existência do transporte era essencial para esta lhe prestar trabalho, que não mais lhe prestou desde a retirada do transporte;
iii. por isso, configura despedimento ilícito a carta datada de 13-02-2015 da empregadora à trabalhadora a comunicar-lhe a cessação do contrato de trabalho, por abandono de trabalho, por ter faltado ao trabalho desde o dia 01-01-2015.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 725/15.6T8PTM.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
B… (NIF…, residente no …), com o benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e ainda de nomeação e pagamento da compensação de patrono, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra C…, Lda. (NIPC…, com sede em…), pedindo a condenação desta a reintegrá-la no posto de trabalho, com a garantia de transporte, ou a pagar-lhe:
a) a quantia de € 1.010,00 referente a proporcionais de subsídios de Natal e férias, acrescida de juros de legais desde a citação até integral pagamento;
b) a quantia de € 505,00 a título de salários em atraso, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento;
c) a quantia de € 6.817,50 a título de indemnização calculada nos termos do n.º 1 do art. 396.º do CT, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento.
Alegou para o efeito, em síntese, que no inicio de Maio de 2005, mediante a celebração de um contrato de trabalho a termo, passou a exercer a actividade de trabalhadora agrícola sob a direcção e fiscalização da Ré, auferindo ultimamente a retribuição mensal de € 505,00, acrescida de subsídio de refeição.
Além disso, pese embora não tivesse sido consignado no contrato de trabalho escrito que celebraram, a Ré sempre expressou verbalmente, desde o início do contrato e até Dezembro 2014, que fornecia transporte à Autora para e do local de trabalho, sendo essa uma condição essencial para a Autora aceitar trabalhar para a Ré.
E foi em execução desse acordo verbal que a Autora sempre se dirigiu ao local de trabalho e voltou para sua casa em transporte (veículo automóvel) da Ré, sem despender qualquer quantia.
Todavia, em Dezembro de 2014 (a Autora refere o ano de 2015, mas trata-se de evidente lapso, tendo em conta o que resulta dos autos e que a acção foi intentada em 11 de Março de 2015), após a licença de maternidade, a Ré informou-a que não lhe iria mais fornecer transporte ou, sequer, atribuir-lhe um subsídio para esse fim, o que impediu a Autora de se poder deslocar para o trabalho.
E em Fevereiro de 2015 a Ré pôs termo ao contrato de trabalho com fundamento em abandono do trabalho por parte da Autora desde 01-01-2015, situação, que face ao relatado, configura um despedimento, ilícito, por não se verificar o abandono do trabalho, pedindo as consequências legais do despedimento.

Tendo-se procedido à audiência de partes e não se tendo logrado obter o acordo das partes, foi a Ré notificada para, querendo, contestar a acção, o que veio a fazer, alegando, também em síntese, que em Maio de 2005 celebrou um contrato de trabalho com a Autora, o qual cessou em 09-08-2007, por despedimento com justa causa.
No entanto, em 12-10-2007 celebrou um novo contrato de trabalho com a Autora, agora a termo incerto, onde apenas acordou o pagamento de uma retribuição mensal de € 403,00, acrescida de subsídio de refeição por cada dia de trabalho no valor de € 5,93.
Mas nunca acordou com a Autora suportar os custos de transporte, tendo esta usado o serviço de transporte da Ré até Dezembro de 2014 por mera tolerância, já que tal resultava de uma prática da antiga gerência da Ré, na qual um dos seus trabalhadores que usufruíam do transporte conduzia o veículo e a Ré facultava o uso do mesmo – e desde que houvesse lugar disponível na carrinha de transporte – a outros trabalhadores.
A partir de 22 de Dezembro de 2014, a Ré deixou de ter um trabalhador que se disponibilizasse a conduzir a carrinha e que transportasse os demais colegas, pelo que comunicou aos trabalhadores que eram transportados na referida carrinha que a partir de tal data deixava de assegurar o transporte.
Após um período de baixa por doença, a Autora apresentou-se ao trabalho e trabalhou até 31 de Dezembro de 2014, sem que lhe fosse fornecido o transporte pela Ré, mas a partir de 02 de Janeiro de 2015 não mais compareceu ao trabalho, em razão do que em 29 de Janeiro de 2015 lhe enviou uma carta a solicitar para comparecer ao trabalho, sob pena de lhe instaurar processo disciplinar: e como a Autora não compareceu, em 13 de Fevereiro de 2015 comunicou-lhe a cessação do contrato por abandono do trabalho.
Em conformidade concluiu pela existência de fundamento para a cessação do contrato, por abandono do trabalho, e, por consequência, pela improcedência da acção.

Foi dispensada a realização da audiência preliminar, proferido despacho saneador stricto sensu, fixado valor à causa (€ 8.332,50) e dispensada a selecção da matéria de facto assente e controvertida (fls. 90-92).

Os autos prosseguiram os termos legais, tendo-se procedido em 11-06-2015 à audiência de julgamento (fls. 118-122), que prosseguiu em 18-06-2015, com resposta à matéria de facto (fls. 126-138 e 153).
Na mesma data foi proferida sentença, que julgou a acção procedente, sendo a parte decisória do seguinte teor:
«Nestes termos e por tudo o exposto, decide-se julgar a acção totalmente procedente e, em consequência, reconhecendo-se o despedimento ilícito, condena-se a ré “C…, Lda.” a reintegrar a autora B… com a garantia do transporte desta entre a sua residência e o local de trabalho e deste para a sua residência e a pagar a esta as retribuições que se venceram desde 13/02/2015 até ao trânsito em julgado da presente sentença».

Inconformada com o assim decidido, a Ré interpôs recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as conclusões (iniciadas sob o n.º 80) que se transcrevem:
«80. A Recorrente dá por integralmente reproduzido os factos dados como Provados pelo tribunal a quo (Factos n.ºs 1 a 23), ressalvando quanto ao Facto n.º 6: entre as partes não foi verbalmente acordado que a autora beneficiaria de transporte fornecido pela ré.
81. Pela prova não se demonstrou um acordo verbal entre as partes, somente, que a autora desde o início da relação entre as partes a autora foi abrangida pelo transporte em causa nas condições acima identificadas de “boleia” fornecida pelo colega de trabalho que conduzia o veículo.
82. O contrato de trabalho de trabalhador estrangeira, segundo a ordem jurídica está sujeito à forma escrita tendo exigências especiais, estando associado a direitos e deveres específicos.
83. Aplica-se a regras do artigo 221º do C. Civil em [que] as estipulações verbais acessórias anteriores ao documento legalmente exigido para a declaração negocial, ou contemporâneos dele, são nulas, salvo quando razão determinante da forma lhes não seja aplicável e se prove que correspondem à vontade do autor da declaração – não se incluindo assim, a existência dum transporte da autora fornecido pela Ré.
84. As alterações ao contrato têm de ser redigidas a escrito, sob pena da sua nulidade, pelo que as cláusulas posteriores à celebração contrat[o] são admissíveis, sem a forma escrita.
85. O direito a transporte não foi consagrado pelo contrato de trabalho, nem é legalmente exigido pelo ordenamento jurídico português.
86. A recorrente não violou o contrato de trabalho na execução do contrato de trabalho, nem violou a boa-fé contratual, porque não estava adstrito a dar um serviço de transporte à autora
87. Os veículos da ré eram conduzidos por trabalhadores que se disponibilizavam para fazer um determinado trajeto e que davam “boleia” aos demais trabalhadores que precisassem de transporte sempre que tivessem lugares vagos, onde se incluiu a autora, por haver lugar disponível.
88. A comunicação da entidade patronal (Facto n.º 11) só esclarece aos trabalhadores que não incumbe à entidade patronal suportar esse serviço de transporte, salvo se existir acordo escrito entre as partes e só a trabalhadores que residam a mais de 8km de distância da sede da Ré.
89. A ré tomou essa posição porque o funcionário que conduzia o veículo deixou de querer usufruir do mesmo e dar boleia aos colegas por alegados desentendimentos no percurso, assim, não se verificou nenhum acordo de serviço de transporte quando a autora iniciou o seu trabalho por conta da recorrente.
90. Na data da celebração do contrato de trabalho com a autora, já existia um grupo de trabalhadores que residiam a cerca de 28/30km de distância da sede da ré e por prática da anterior gerência, a ré permitiu que dois dos trabalhadores conduzissem os veículos e levassem de “boleia” os demais trabalhadores, caso estes o pretendessem, tendo a autora sido abrangida por esse transporte.
91. Após Dezembro de 2014, todos os trabalhadores passaram a deslocar-se para o trabalho pelos próprios meios (veiculo próprio) e/ou com boleia dos colegas que tivessem carro e só a recorrida, deixou de comparecer ao trabalho a partir de Janeiro de 2015, após carta enviada à recorrente (facto n.º 16), sem prejuízo de ainda ter ido trabalhar alguns dias no mês de Dezembro (29 a 31)
92. O acordo negociado e reduzido a escrito com a recorrida não inclui o serviço de transporte e o mesmo nunca foi dado à autora, pelo que, não há violação unilateral do contrato de trabalho por parte da entidade patronal.
93. A informação da ré, aqui recorrente no Facto n.º 11, que esclarece os trabalhadores que não incumbe à entidade patronal suportar esse serviço de transporte, salvo se existir acordo escrito entre as partes e só a trabalhadores que residam a mais de 8km de distancia da sede da Ré, não implica uma discriminação e violação do principio da igualdade no trabalho e nem da trabalhadora – tal como fundamento o tribunal a quo. Pois,
94. O princípio da igualdade (art. 13.º da C.R.P.), desenvolvido no art. 59.º/1 da mesma C.R.P., reporta-se a uma igualdade material, que não meramente formal, e concretiza-se na proscrição do arbítrio e da discriminação, devendo tratar-se por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual – conforme posição jurisprudencial, neste sentido.
95. E, pressupõe as mesmas condições de trabalho prestado em condições de igual natureza, qualidade e quantidade, com proibição da diferenciação arbitrária, materialmente infundada, só existindo violação do princípio quando a diferenciação salarial assente em critérios apenas subjectivos – não tendo sido objecto de comparação nas condições laborais dos diversos trabalhadores para aferir alguma violação.
96. E, tal matéria deveria ter sido alegada e provada pela A./Recorrente e provado tal fundamento, a existência de factos bastantes que permitam concluir pela verificação da prestação de trabalho, objetivamente semelhante em natureza, qualidade e quantidade relativamente ao trabalhador face ao qual se diz discriminado, sendo ónus do A.
97. O Tribunal a quo não teve conhecimento, por inexistência de prova nos autos, para concluir pela existência da violação do Principio da Igualdade e discriminação da recorrida, ora trabalhadora, por ter deixado de poder usufruir do transporte fornecido a título de boleia pelos colegas de trabalho que conduziam o veículo de passageiros da propriedade da ré, por comparação com outros.
98. A simples comunicação da entidade patronal sobre término do transporte (facto n.º 11) não implica a verificação que todos os trabalhadores da ré têm a mesma categoria profissional, horário, remuneração e condições válidos para a entidade patronal para o uso e condução dos seus veículos.
99. A lei exige que a discriminação seja fundamentada com a indicação do trabalhador ou trabalhadores favorecidos, sendo a mesma consubstanciada na narração de factos que, reportados a características, situações e opções dos sujeitos em confronto, de todo alheias ao normal desenvolvimento da relação laboral, atentem, direta ou indiretamente, contra o princípio da igual dignidade sócio- laboral, que inspira o elenco de fatores característicos da discriminação exemplificativamente consignados na lei.
100. O única facto indiciário de discriminação “deixa de garantir o transporte a parte dos trabalhadores, mantendo essa garantia para outros”, foi alegado pelo tribunal a quo e não pela autora, cai por terra quando no comunicado transcrito no Facto n.º 11, a entidade patronal esclarece que o transporte só se mantém para os atuais trabalhadores que residam a mais de 8km de distancia da sede da recorrente – existindo um facto discriminativo objetivo e igualitário, não existindo violação da igualdade das condições de trabalho.
101. A autora recorrida tem os mesmos direitos que qualquer cidadão português que exerça a mesma atividade com a mesma categoria profissional, horário e salário, que esteja vinculado com a entidade patronal; sendo um falsa questão, o facto da recorrida ser estrangeira e que não tem os mesmos direitos e deveres que os demais trabalhadores, não existindo qualquer discriminação.
102. O facto da recorrida ser estrangeira e mulher nunca obstou à relação laboral com a recorrente porque em maio de 2005 até outubro de 2005 a recorrida trabalhou para a recorrente - facto provado nº 2, tendo voltado a trabalhar em 2007.
103. O requisito de disponibilizar o veículo a trabalhadores que residam a mais de 8km é um critério objetivo e não discriminatório.
104. A autora não alegou qualquer factologia suscetível de afrontar, direta ou indiretamente, o princípio da igual dignidade sócio laboral, subjacente a qualquer dos fatores característicos da discriminação, existindo uma simples especulação do juiz a quo sobre a eventual discriminação, pelo que não se verifica violação do direito à igualdade das condições de trabalho pelo não fornecimento do transporte à recorrida.
105. A autora, ora recorrida, deixou de comparecer ao trabalho, faltando consecutivamente, desde 01 de Janeiro de 2015.
106. A autora, em 26/12/2014, conforme facto n.º 16, desde que deixou de ter transporte promovidos pelos colegas de trabalho nunca mais compareceu ao local de trabalho (facto n.º 17).
107. Em 29/01/2015 (facto n.º 18) a entidade patronal enviou carta à recorrida para que esta voltasse ao trabalho e a trabalhadora não respondeu à carta nem compareceu (facto n.º 19).
108. Em 13/02/2015, a entidade patronal comunicou a cessação do contrato de trabalho por abandono do Posto trabalho desde 01/01/2015 porque a trabalhadora faltou ao trabalho sem apresentar os motivos justificativos – facto n.º 20.
109. A autora apresentou participação à autoridade para as condições de trabalho (facto n.º 22) e transcrição da carta da trabalhadora co[ns]tante no fato n.º 16 “tenho conhecimento que não tenho direito a transporte (…)”.
110. A figura da presunção de abandono do trabalho retira-se da ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador tenha recebido comunicação do motivo da ausência.
111. O empregador demonstrou a ausência da trabalhadora desde 01/01/2015 e por prova documental que enviou carta a comunicar o abandono de trabalho.
112. Ficou demonstrado que o empregador não recebeu comunicação da trabalhadora do motivo da ausência do trabalhador, após o envio das comunicações escritas (fatos n.ºs 17 a 20), o que alegou e que provou, ficando demonstrada a aplicação daquela presunção, devendo a cessação do contrato de trabalho operar pelo empregador com fundamento em abandono do trabalho com a comunicação deste à trabalhadora de 13/02/2015 (facto n.º 20), porque vigorava um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre as partes – sem prejuízo de esse não ser o entendimento do tribunal a quo. Atendendo que, entendimento jurisprudencial é de que,
113. O abandono do trabalho corresponde à denúncia (tácita) do contrato por parte do trabalhador, cuja eficácia extintiva opera se invocado, como tal, pelo empregador após comunicação ao trabalhador dos factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo, por carta registada com aviso de receção – verificou-se na situação dos autos.
114. A Ré demonstrou os factos que constituem a base da presunção norma (a ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos e a inexistência/falta de qualquer informação sobre os motivos dessa ausência) funcionando, assim, em benefício do empregador, a presunção do abandono, na plena configuração da previsão legal.
115. A trabalhadora deixou de comparecer ao trabalho a partir de 01/01/2015, sem qualquer explicação, nem respondeu às cartas enviadas pela R. (29/01/2015 e 13/02/2015), que se dão por reproduzidas por constarem nos autos.
116. A trabalhadora não ilidiu a presunção de abandono de trabalho, indiciando “com toda a probabilidade a intenção de não retomar o trabalho, tal como lhe competia.
117. Após a explicação dada sobre o transporte em dezembro de 2014 e tendo os demais trabalhadores que residem a menos de 8km da entidade patronal providenciado por transporte próprio e tivessem sempre comparecido ao trabalho, que o motivo pelo qual a trabalhadora ao não comparecer indicia uma situação de abandono de trabalho.
118. A recorrida em data anterior ao abandono do trabalho, em Dezembro de 2014, já tinha participado da recorrente na ACT, tendo sido informada não ter direito ao mesmos –veja-se as declarações da autora na carta enviada à entidade patronal em 26/12/2014 (facto n.ºs 16 e 22). Ora,
119. Na posição de boa-fé da entidade patronal, verificaram-se os requisitos para concluir pelo abandono de trabalho, não sendo lógico considerar que a anterior carta de 26/12/2014, em que a trabalhadora declarou necessitar de transporte, seria o motivo da sua não comparência ao trabalho; pois, se assim fosse, após a carta da entidade patronal de Fevereiro de 2015, imediatamente responderia a demonstrar a sua posição – o que não aconteceu.
120. Verificou-se a cessação do contrato de trabalho operada pela Ré, ora recorrente, com fundamento em abandono do trabalho, tendo em conta que vigorava um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre as partes, não configura um despedimento ilícito, mas a verificação duma situação de abandono de trabalho, tal como configurado pela lei (artigo 403º do C. Trabalho).
121. O tribunal aplicou mal o Direito, enquadrando a presente situação num despedimento ilícito, quando claramente se verifica o abandono do posto de trabalho, por parte da autora, aqui recorrida, não existindo a violação unilateral do contrato de trabalho por parte da recorrente, nem a violação do Principio da Igualdade no trabalho e de Não discriminação.
122. O tribunal a quo deveria ter enquadrado o presente caso, numa situação de inequívoca situação de Abandono do Posto de Trabalho por parte da Trabalhadora, uma vez que desde 01/01/2015 que a mesma não compareceu ao trabalho, mesmo após o envio de carta da entidade patronal datadas de 29/01/2015 e de 13/02/2015.
123. O tribunal a quo não aplicou devidamente o direito porque teria de enquadrar a situação dos autos na figura do Abandono do posto de trabalho, cfr. artigo 403º do Código de Trabalho.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. EX.ª Doutamente suprirá, deverá o presente recurso ser considerado procedente, por provado e, consequentemente, ser revogada a douta sentença, reconhecendo-se o abandono do posto de trabalho da autora e, consequentemente absolvendo a ré, aqui recorrente, da reintegração da trabalhadora com a garantia do transporte desta entre a sua residência e o local de trabalho e deste para a sua residência e, absolvendo no pagamento das retribuições que a mesma deixou de auferir, desde o despedimento 13/02/2015 até à data do trânsito em julgado da sentença,
Fazendo-se, assim, Justiça».

Contra-alegou a recorrida, a pugnar pela improcedência do recurso.
Para tanto, rematou as contra-alegações com as seguintes conclusões:
«I. Conforme douta decisão do tribunal “a quo”, deve considerar-se o despedimento ilícito, com todas as legais consequências.
II. Uma vez que a relação de trabalho se torna impossível de manter, impossibilitado que está a reintegração da Recorrida no posto de trabalho conforme douta sentença recorrida, a Recorrida vê-se constrangida a optar pela indemnização correspondente e que havia contabilizado em € 8.332,50.
III. A recorrida tem, e ainda conforme douta sentença recorrida às retribuições que se venceram desde 13/02/2015 até ao trânsito em julgado da douta sentença.
Pelo exposto, deve negar-se provimento ao recurso, considerando a douta sentença do tribunal “a quo”, como é de justiça»

O recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, com subida imediata, nos autos, e efeito meramente devolutivo.

Recebidos os autos neste tribunal, aqui a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Para tanto considerou, em síntese, que deve rejeitar-se o recurso quanto à impugnação da matéria de facto (concretamente o facto n.º 6), uma vez que a recorrente não cumpriu o ónus imposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil; e quanto à questão de direito sustenta que o artigo 5.º, n.º 1 do CT não impõe que verificando-se a atribuição de transporte ao trabalhador tal tenha que constar obrigatoriamente do contrato escrito celebrado, assim concluindo que no caso, face ao princípio geral da liberdade de forma, era possível o acordo entre as partes quanto à atribuição de transporte, pelo tendo a Ré/empregadora desrespeitado tal acordo não se verifica abandono do trabalho, devendo, por consequência, considerar-se o despedimento ilícito.

Ao referido parecer respondeu a apelante, a manifestar a sua discordância e a afirmar que “não impugna a matéria de facto prova[da] no ponto 6, mas sim a interpretação dada ao facto 6 no sentido de que, desde o início a trabalhadora beneficiou do transporte (boleia) passou a ser um direito consolidado quando tal direito não consta no contrato de trabalho nem na lei (por imposição legal)”.

Preparada a deliberação, com remessa de projecto de acórdão aos exmos. juízes desembargadores adjuntos, e realizada a conferência, cumpre decidir.

II. Objecto do recurso
Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), salvo as questões de conhecimento oficioso, que aqui não se detectam.
Da leitura das duas primeiras conclusões da recorrente (sob os n.ºs 80 e 81), parece extrair-se que a mesma desde logo impugna o facto n.º 6, ao afirmar que não se demonstrou um acordo verbal entre as partes no sentido de que a Autora beneficiaria de transporte fornecido pela Ré.
Todavia, não só a recorrente não cumpre o ónus que a lei lhe impõe quanto à impugnação da matéria de facto (uma vez que embora se possa admitir que impugna o facto em causa e que pretende que ele seja dado como não provado, assim cumprindo dois dos requisitos impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil para a impugnação, não cumpre o terceiro requisito, que se traduz na indicação dos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa), como da leitura das restantes conclusões retira-se que do que a recorrente efectivamente discorda não é da matéria de facto dada como provada, mais concretamente do seu n.º 6, mas do valor ou consequências jurídicas que o tribunal a quo dela retirou.
Precisando: a recorrente não põe em causa que o tribunal tenha dado como provado que [d]esde o início da relação entre as partes foi verbalmente acordado que a autora beneficiaria de transporte fornecido pela ré entre a sua residência e o local da prestação do trabalho”; o que sustenta é que o acordo nessa parte é inválido por, estando em causa um contrato de trabalho com uma trabalhadora estrangeira – contrato, por isso, sujeito a forma escrita –, não constar do clausulado deste.
A reforçar esta interpretação encontra-se a resposta da recorrente ao douto parecer da Exma. Procuradora-Geral Adjunta, quando afirma que não impugna o n.º 6 da matéria de facto, mas sim a interpretação/relevância que ao mesmo é dada, no sentido da trabalhadora ter adquirido o direito ao transporte quando tal não consta do contrato de trabalho escrito, nem resulta de imposição legal.

Feita esta observação, é agora o momento de afirmar que face às conclusões das alegações de recurso, colocam-se à apreciação deste tribunal as seguintes questões essenciais decidendas:
i. apurar da validade e relevância do acordo verbal de que a Autora beneficiaria de transporte fornecido pela Ré entre a sua residência e o local de prestação do trabalho;
ii. em face da resposta dada a tal questão, apurar se ocorreu abandono do trabalho por parte da Autora/recorrida e, por consequência, se o despedimento deve declarar-se lícito ou ilícito.
Refira-se também que nas contra-alegações a Autora/recorrida afirma, além do mais, que a relação de trabalho se torna impossível de manter, impossibilitado que está a reintegração da Recorrida no posto de trabalho conforme douta sentença recorrida, a Recorrida vê-se constrangida a optar pela indemnização correspondente e que havia contabilizado em € 8.332,50”, o que leva a intuir que pretende nesta altura optar pela indemnização de antiguidade.
Ora, em relação a tal conclusão importa, por um lado, deixar consignado que a Autora não interpôs recurso, ainda que subordinado, da sentença; por outro, como dispõe expressamente o n.º 1 do artigo 391.º do Código do Trabalho, em substituição da reintegração, o trabalhador pode optar por uma indemnização, “até ao termo da discussão em audiência final de julgamento”, e não se localiza nos autos que até esse momento processual a Autora tenha feito tal opção, pelo que tal alegação/opção nesta altura é manifestamente extemporânea.
Do que fica dito vale por concluir que não só a questão em causa não é objecto de recurso, como ainda que o fosse, por manifesta extemporaneidade, não poderia proceder.
III. Factos
A) A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1. A ré é uma sociedade comercial por quotas cujo objecto social é a produção e comercialização de produtos hortícolas e frutícolas, adquiridos para esse fim.
2. Autora e ré celebraram entre si, com início em 18 de Maio de 2005 e termo a 18 de Outubro de 2005, sujeito a renovação, um contrato para a autora trabalhar por conta da ré, sob sua fiscalização e direcção, com a categoria de trabalhadora agrícola, tendo a autora trabalhado para a ré durante esses 5 meses, findos os quais passou a trabalhar para outra empresa.
3. Com data de 12/10/2007, autora e ré celebram contrato de trabalho a termo incerto, para aquela prestar a esta a actividade correspondente à categoria de trabalhador agrícola e mediante remuneração mensal de €403,00 ilíquido, acrescida de subsídio de almoço no valor de €5,93 por cada dia útil de trabalho.
4. Como contrapartida pelo trabalho prestado, em Dezembro de 2014, a autora auferia da ré a retribuição mensal base de €505,00.
5. O contrato escrito previa o pagamento subsídio de refeição por cada dia útil de trabalho.
6. Desde o início da relação entre as partes foi verbalmente acordado que a autora beneficiaria de transporte fornecido pela ré entre a sua residência e o local da prestação do trabalho, o que aconteceu até Dezembro de 2014.
7. Sem transporte fornecido pela ré a autora não tinha meio de se deslocar até ao local da prestação do trabalho.
8. O transporte era efectuado por carrinhas da ré, conduzidas por trabalhadores da ré.
9. D…passou a conduzir um veículo, transportando trabalhadores da ré, moradores na zona de Silves, entre a residência destes e o local de trabalho.
10. Em Dezembro de 2014 a ré decidiu terminar com o transporte de parte dos trabalhadores que vinha fazendo.
11. E com data de 24/12/2014, informa os seus trabalhadores do seguinte: “Informação sobre transporte de pessoal: 1. Foi descontinuada a viatura que fazia o trajeto de Silves, em virtude de problemas vários causados pelos utentes, tendo o condutor habitual, Sr. D…manifestado à gerência a sua indisponibilidade para conduzir a viatura.
2. Foi deliberado pela gerência que, a partir de hoje, não é garantido transporte a nenhum funcionário cujo local de residência dista menos de 8 km da sede desta empresa, considerada a última morada conhecida a esta data, para os atuais funcionários.
3. Para futuros funcionários nunca será garantido transporte, a não ser que isto resulte de acordo prévio e seja averbado no contrato de trabalho.
4. O número de funcionários a transportar não pode exceder nunca a lotação de cada viatura.
5. A C… não poderá manter o benefício do transporte a um funcionário que altere o seu local de residência e passe a ser necessário alterar a rota para o recolher, terá este, querendo, de se deslocar até um local de passagem da viatura e em que esta possa parar em segurança”.
12. A ré, por intermédio das pessoas físicas que a representam, sabia que a existência de transporte para o local de trabalho era essencial para a autora trabalhar para a ré.
13. A ré instaurou processo disciplinar à autora em 12 de Abril de 2012, notificando-a da nota de culpa com a intenção de lhe aplicar uma “sanção de proibição do uso de viaturas da empresa” ou “despedimento por justa causa”.
14. Em Dezembro de 2014 D… comunicou à gerência da ré não pretender continuar a conduzir a viatura.
15. Em Dezembro de 2014 a ré deixou de fornecer transporte à autora para o local da prestação do trabalho.
16. A autora enviou uma carta à ré, datada de 26/12/2014 com o seguinte teor: “como é do vosso conhecimento sou vossa empregada desde 2007, lembram-se que no dia em que pediu a E… trabalhar para consigo e ela não aceitou e eu que tinha o meu trabalho e tinha um contrato com F… e eu deixei o contrato e o trabalho para trabalhar com os senhores porque me garantiu e acordou que me dava transporte para a minha deslocação da minha habitação para o local de trabalho. Tenho conhecimento que não tenho direito a transporte e que o mesmo foi retirado à poucos dias mas por motivos de saúde, económicos e outros não me é possível deslocar para o local de trabalho diariamente. Pedia a vossas excelências se poderiam resolver a situação com boa fé. Tenho 4 filhos, marido desempregado e preciso muito deste trabalho”.
17. Desde que deixou de ter transporte a autora não compareceu no local de trabalho.
18. A 29/01/2015 a ré enviou uma carta à autora solicitando-lhe a apresentação ao serviço sob pena de, não o fazendo, lhe ser instaurado processo disciplinar por abandono de trabalho.
19. Na sequência da carta de 29/01/2015 a autora não compareceu ao trabalho nem enviou resposta à ré.
20. Por escrito de 13/02/2015 a ré comunica à autora a cessação do contrato de trabalho por abandono de trabalho, considerando que esta faltou ao trabalho desde 1/01/2015 não tendo apresentado qualquer razão ou motivo para não se apresentar ao serviço.
21. A ré continua a assegurar o transporte de trabalhadores residentes na zona de S. Marcos da Serra e São Bartolomeu de Messines.
22. A autora apresentou participação à Autoridade para as Condições do Trabalho.
23. A ré pagou à autora €116,15 em 11/12/2014, €315,84 em 31/12/2014, €87,06 em 30/01/2015 e €369,80 em 27/02/2015.
IV. Enquadramento jurídico
Delimitadas supra, sob o n.º II, as questões essenciais suscitas pela recorrente, é agora a altura de analisar e decidir, de per si, cada uma delas.

1. Do acordo verbal quanto ao transporte fornecido pela Ré
Relacionado com esta questão resulta da matéria de facto que em 12-10-2007 a aqui empregadora/recorrente e a trabalhadora/recorrida celebraram um contrato de trabalho a termo incerto, nos termos do qual esta iria prestar àquela a actividade correspondente à categoria de trabalhadora agrícola e mediante a retribuição mensal de € 403,00 – que em Dezembro de 2014 era de € 505,00 – acrescida de subsídio de almoço por cada dia útil de trabalho (n.ºs 3 a 5).
De acordo com o referido contrato de trabalho (fls. 46-47) a prestação da actividade iniciou-se na mesma data, 12-10-2007.
Importa ainda atender que desde o início da relação de trabalho foi acordado (verbalmente) que a Autora beneficiaria de transporte fornecido pela Ré entre a sua residência e o local de trabalho, o que se verificou até Dezembro de 2014 (n.º 6).
Ora, tendo em conta que o contrato de trabalho escrito foi celebrado em 12-10-2007, que o inicio da relação de trabalho se verificou nessa data, o afirmar-se que o acordo verbal se verificou desde o início da relação do trabalho, significa que tal acordo é contemporâneo da data da celebração do documento.
De resto, de acordo com a comunicação de 26-12-2014, que a Autora enviou à Ré e que consta do n.º 16 da matéria de facto, tal acordo verbal seria até anterior à celebração do contrato escrito, pelo que em tal circunstância, por força do disposto no n.º 1 do artigo 221.º do Código Civil, lhe corresponderia o mesmo regime jurídico da contemporaneidade do acordo verbal com o acordo escrito.
Com efeito, de acordo com o referido preceito legal, as estipulações verbais acessórias anteriores ou contemporâneas do documento legalmente exigido para a declaração negocial são nulas, salvo quando a razão determinante da forma lhes não seja aplicável e se prove que correspondem à vontade do Autor da declaração.
É sabido que o contrato de trabalho é, por regra, um contrato consensual, uma vez que está sujeito à liberdade de forma [artigo 219.º do Código Civil, artigo 102.º do Código do Trabalho de 2003 e artigo 11.º do Código do Trabalho de 2009 (doravante também designados CT/2003 e CT/2009, respectivamente)].
Porém, situações há, e que constam, em especial, do artigo 103.º do CT/2003 e artigos 5.º, 94.º 103.º, 141.º, 153.º, 162.º 166.º e 319.º do CT/2009, em que se exige a forma escrita: entre tais situação importa para o caso em presença o contrato de trabalho com trabalhador estrangeiro.
De acordo com o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 103 do CT/2003 – tendo em conta que o contrato dos autos foi celebrado na vigência de tal diploma legal – está sujeito a forma escrita o contrato de trabalho com trabalhador estrangeiro, salvo disposição legal em contrário; o contrato, para além de revestir a forma escrita, deve cumprir as formalidades reguladas em legislação especial.
E, de acordo com o n.º 2 do mesmo preceito, de tal contrato deve constar a identificação e a assinatura das partes, bem como, tendo em conta o disposto no artigo 158.º do Regulamento do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 35/2004, de 29-07) outras formalidades, à semelhança, aliás, do que estabelece o n.º 1 do artigo 5.º do CT/2009.
Assim, do contrato deve constar:
a) identificação, assinaturas e domicílio ou sede das partes;
b) referência ao visto de trabalho ou autorização de residência ou permanência do trabalhador em território português;
c) actividade do empregador;
d) actividade contratada e retribuição do trabalhador;
e) local e período normal de trabalho;
f) valor, periodicidade e forma de pagamento da retribuição;
g) datas da celebração do contrato e do início da prestação da actividade.
Em relação ao trabalhador estrangeiro vale o princípio de igualdade de tratamento em relação ao trabalhador nacional (artigos 87.º do CT/2003 e 4.º do CT/2009 e artigo 15.º, n.º 1 da CRP).

No caso em apreço, resulta da matéria de facto e da cópia do contrato que se encontra a fls. 46 e 47 dos autos, entre o mais, a identificação das partes, a celebração do contrato em 12-10-2007, a actividade a que se destina a empregadora e a actividade para que foi contratada a trabalhadora e o local onde vai exercer a mesma, e ainda a retribuição mensal (€ 403,00, acrescida de um subsídio de almoço de € 5,93,00 por cada dia de trabalho).
Do referido contrato escrito nada consta relacionado com as deslocações/transporte da trabalhadora, aqui recorrida, da sua residência para o local de trabalho, bem como do regresso desta à sua residência.
Todavia, como se viu, de acordo com a factualidade provada, entre as partes foi acordado verbalmente, contemporâneo com a celebração e início da relação de trabalho, que a Autora beneficiaria de transporte fornecido pela Ré entre a sua residência e o local de trabalho, o que se verificou até Dezembro de 2014.
Prescreve o n.º 1 do artigo 221.º do Código Civil, que as estipulações verbais anteriores ou contemporâneas do documento legalmente exigido para a declaração negocial são nulas, salvo se a razão determinante de forma lhes não seja aplicável e se prove que correspondem à vontade do Autor da declaração.
Ora, importa ter presente que o consensualismo da forma dos contratos de trabalho visa, essencialmente, a protecção do trabalhador, uma vez que a inobservância de forma, quando é exigida, não determina por regra, a invalidade do contrato de trabalho (cfr. artigos 114.º e 115.º do CT/2003 e artigos 121.º e 122.º do CT/2009).
No que aos contratos de trabalho de trabalhadores estrangeiros diz respeito, como a própria recorrente assinala, a exigência da forma escrita prende-se também (mas não só) com a protecção de direitos dos trabalhadores estrangeiros.
Ora, pergunta-se: é válida a cláusula verbal contemporânea do contrato escrito em que as partes estabelecem que a Autora beneficiaria de transporte fornecido pela Ré?
A nossa resposta é afirmativa, uma vez que não vislumbramos fundamento legal que a tal se oponha, designadamente não vislumbramos que a tal cláusula se imponha a exigência de forma escrita que se impõe para a celebração de contrato com trabalhador estrangeiro e porque se prova que a mesma corresponde à vontade real das partes.
Deve a este propósito evidenciar-se que dos diversos elementos que têm, obrigatoriamente, que constar do contrato escrito, aí não parece inscrever-se a “matéria” do transporte do trabalhador para e do local de trabalho.
Além do mais, a referida cláusula vem em protecção de interesses da trabalhadora.
Como escreve a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer, (…) se nada se havia dito sobre o direito ao transporte no contrato de trabalho, então, não ocorreu qualquer alteração do mesmo, antes tendo ocorrido uma concretização de tal contrato de trabalho, quanto a tal aspecto”.
Questão diferente da validade da cláusula seria a possibilidade de sobre ela incidir prova testemunhal, face ao disposto nos artigos 393.º e 394.º do Código Civil.
Porém, essa é uma questão que não vem colocada no recurso e que, por isso, não importa aqui e agora conhecer (cfr. artigos 627.º, n.º 1, 631.º e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Aqui chegados, impõe-se concluir, nesta parte, pela improcedência das conclusões das alegações de recurso.

2. Do abandono do trabalho
Como se afirmou a empregadora/recorrente declarou a cessação do trabalho por abandono do trabalho.
A sentença recorrida concluiu que foi o incumprimento da empregadora de não fornecimento de transporte à trabalhadora que motivou a ausência desta ao trabalho, pelo que não se verifica abandono do trabalho e, por consequência, a comunicação de cessação do contrato de trabalho constitui um despedimento ilícito.
A empregadora/recorrente rebela-se contra tal entendimento, argumentando, ao fim e ao resto, que a Autora faltou ao trabalho sem apresentar motivos justificativos, pelo que se presume o abandono do trabalho, presunção essa que não foi ilidida.
Vejamos.

O contrato de trabalho pode cessar por diferentes razões, quer por iniciativa do empregador, quer do trabalhador, nos termos estabelecidos no artigo 340.º do referido compêndio legal.
Assim, o contrato pode cessar, nomeadamente, conforme a alínea h) do artigo 340.º, por denúncia pelo trabalhador, mesmo quando esta resulta, tacitamente, do abandono do trabalho, nos termos previstos no artigo 403.º do referido compêndio legal.
Dispõe este artigo:
«1 – Considera-se abandono do trabalho a ausência do trabalhador do serviço acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelam a intenção de não o retomar.
2 – Presume-se o abandono do trabalho em caso de ausência do trabalhador do serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador seja informado do motivo da ausência.
3 – O abandono do trabalho vale como denúncia do contrato, só podendo ser invocado pelo trabalhador após comunicação ao trabalhador dos factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo, por carta registada com aviso de recepção para a última morada conhecida deste.
4 – A presunção estabelecida no nº 2 pode ser ilidida pelo trabalhador mediante prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação ao empregador da causa da ausência.
5 – Em caso de abandono do trabalho, o trabalhador deve indemnizar o empregador nos termos do artigo 401º.».
Do citado artigo decorre que são dois os elementos constitutivos da figura jurídica do abandono do trabalho:
(i) um elemento objectivo, traduzido na ausência do trabalhador ao serviço, isto é, a não comparência do trabalhador no local e no tempo de trabalho a que está obrigado, não comparência essa que terá que ser voluntária e injustificada;
(ii) um elemento subjectivo, traduzido na intenção de não retomar o serviço, ou seja, a intenção de não comparência definitiva ao local de trabalho [neste sentido, vejam-se entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Março de 2008 (Proc. n.º 2715/07), de 29 de Outubro de 2008 (Proc. n.º 2273/08), de 03-06-2009 (Proc. n.º 3696/08) e de 05-12-2012 (Proc. n.º 499/10.7TTFUN.L1.S1) todos disponíveis em www.dgsi.pt].
Esta conclusão (de não retomar o serviço) deverá extrair-se objectivamente, a partir dos factos, não sendo necessário que tenha sido representada pelo respectivo agente.
Isto é, a afirmação de que determinados factos revelam com toda a probabilidade a intenção do trabalhador de não retomar o serviço colhe-se através das regras da experiência, de princípios lógicos e com base em factos conhecidos de que o tribunal faz as suas inferências, extrai as suas ilações (artigos 349.º e 351.º do Código Civil).
Como se afirmou no referido acórdão do STJ de 03-06-2009, «[p]ara que o facto seja considerado “concludente” da vontade de não retomar o serviço, não se torna necessário – cabe aqui salientá-lo – que o sentido dele extraível haja sido representado pelo respectivo agente: a concludência de um comportamento determina-se “de fora”, objectivamente”, “... não exigindo a consciência subjectiva por parte do seu autor desse seu significado implícito».
E do citado n.º 2 do artigo 403.º, resulta que a lei presume que a falta ao trabalho durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, sem comunicação do motivo de ausência, revela com toda a probabilidade aquele elemento subjectivo, isto é, a intenção de não retomar o serviço.
Em tal situação, caberá ao trabalhador ilidir a presunção, nos termos previstos no citado n.º 4 do artigo 403.º, ou seja, provando a ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação ao empregador do motivo da ausência.
Essa prova não se basta com os factos que motivaram a sua ausência: ele deverá também alegar e provar que, no caso concreto, agiu com a necessária diligência, própria de uma pessoa normal, medianamente prudente, avisado e cuidadoso e que só por razões que lhe não são imputáveis, foi impedido de cumprir aquele seu dever de comunicar o motivo da ausência (neste sentido, ac. do STJ de 05-07-2007, disponível em www.dgsi.pt, sob Proc. 06S4283).

No caso em apreciação, extrai-se da matéria de facto, no essencial e a este respeito:
- Desde o início do contrato as partes acordaram que a Autora beneficiaria do transporte fornecido pela Ré entre a sua residência e o local de trabalho, o que se verificou até Dezembro de 2014 (n.º 6);
- sem o transporte fornecido pela Ré a Autora não tinha meio de se deslocar até ao local da prestação do trabalho, sabendo a Ré que a existência do referido transporte era essencial para a Autora lhe prestar o trabalho (n.ºs 7 e 12);
- em Dezembro de 2014 a Ré decidiu terminar com o transporte de parte dos trabalhadores que vinha fazendo, incluindo a Autora, tendo o trabalhador da Ré que conduzia a carrinha que transportava os trabalhadores comunicado a esta não pretender continuar a conduzir a viatura (n.ºs 10, 14 e 15);
- desde que deixou de ter transporte a Autora não compareceu no local de trabalho (n.º 17);
- em 29-01-2015 a Ré enviou uma carta à Autora, solicitando-lhe a apresentação ao serviço, sob pena de, não o fazendo, lhe instaurar processo disciplinar por abandono do trabalho (n.º 18);
- na sequência dessa carta, a Autora não compareceu ao serviço nem enviou resposta à Ré (n.º 19);
- por escrito de 13-02-2015 a Ré comunicou à Autora a cessação do contrato de trabalho, por abandono do trabalho, considerando que esta faltou ao trabalho desde 01-01-2015, considerando esta não ter apresentado razão ou motivo para não se apresentar ao serviço (n.º 20).
Perante esta matéria de facto, considerando que a Autora deixou de se apresentar ao serviço a partir de 01 de Janeiro de 2015, é de concluir que se verifica o elemento objectivo do abandono do trabalho: ausência da trabalhadora ao serviço.
E quanto ao elemento subjectivo?
Recorde-se que este consiste na intenção de não retomar o serviço, de não mais comparecer ao trabalho.
Ora, era obrigação da Ré assegurar o transporte da Autora e a partir de Dezembro de 2014 deixou de o fazer.
Além disso, a Ré sabia que o transporte era essencial para a Autora prestar o trabalho e que sem ele não podia deslocar-se para o local de trabalho.
Tal significa, em rectas contas, que a Ré sabia da razão pela qual a Autora tinha deixado de se apresentar ao trabalho: porque ela, Ré, deixou de lhe assegurar o transporte.
Ou seja, e dito de outro modo, a Ré sabia do motivo da ausência ao serviço por parte da Autora: e desse motivo (falta de transporte) resulta claramente que não há uma intenção de não voltar a retomar o serviço; o que resulta, sim, é que se a Ré facultar o transporte à Autora esta retomará o trabalho.
Tem-se, por isso, por adquirido que não se verificou a intenção da Autora de não mais retomar o trabalho ao serviço da Ré e, por consequência, que não se verifica um dos elementos (o subjectivo) constitutivos do abandono do trabalho.
Nesta sequência, a comunicação da Ré/recorrente de cessação do contrato por abandono do trabalho configura um despedimento, obviamente ilícito, por não ter sido precedido do respectivo procedimento [artigo 381.º, alínea c) do Código do Trabalho].
Aqui chegados impõe-se concluir pela improcedência das conclusões das alegações de recurso e, por consequência, pela improcedência deste.
Isto não obstante se reconhecer que, ao contrário do sustentado na sentença recorrida, não se localiza que encontre respaldo na matéria de facto a conclusão que a conduta da Ré configurasse uma atitude discriminatória em relação a outros trabalhadores: é certo que a Ré continuou a assegurar o transporte de trabalhadores residentes na zona de S. Marcos da Serra e S. Bartolomeu de Messines (facto n.º 21).
Mas tendo em conta que a Autora reside em localidade diferente (de acordo com os elementos dos autos reside em Silves) – portanto, em local distinto daqueles outros trabalhadores – e que a sede da Ré e, presumivelmente, o local de trabalho, são em Silves, não detectamos elementos que sequer indiciem que essa retirada de transporte à Autora configure uma atitude discriminatória nos termos previstos nos artigo 23.º a 25.º do CT: estamos perante situações diferentes que poderão justificar diferente tratamento.
No caso, o que se verificou foi a violação de uma cláusula/dever contratual por parte da empregadora, rectius a referente ao transporte da trabalhadora (cfr. artigo 406.º do Código Civil).

3. Vencida no recurso, a recorrente deverá suportar o pagamento das custas respectivas (artigo 527.º do Código de Processo Civil).
V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto por C…, Lda., e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.


Évora, 12 de Maio de 2016
João Luís Nunes
Alexandre Ferreira Baptista Coelho
Joaquim António Chambel Mourisco
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[1] Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Baptista Coelho, (2) Chambel Mourisco.