Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
769/09.7GCPTM.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
RENOVAÇÃO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Tanto a concessão como a renovação da licença de uso e porte de armas (das categorias C e D) dependem do preenchimento de diversos requisitos cumulativos, entre os quais se destaca a idoneidade do requerente.
II - Por “idoneidade” deve entender-se a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.
III - As anteriores condenações (recentes), quer pelo crime de detenção de arma proibida (diferentes armas), na forma continuada - que transportava quando conduzia em estado de embriaguez - quer pelos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (duas vezes, em menos de dois anos de distância), indiciam com segurança - de acordo com uma análise criteriosa dos factos, segundo os critérios da razoabilidade - a falta de capacidade do requerente para fazer um uso adequado, de acordo com as normas vigentes, da arma cuja licença pretende.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal da Comarca de Faro (Portimão, Instância Local, Secção de Criminal, J3) correu termos o Proc. 769/09.7GCPTM-A (apenso ao Proc. Comum Singular n.º 769/09.7GCPTM), no qual se decidiu – decisão de fol.ªs 62 a 65, de 22.10.2014 – indeferir o pedido apresentado pelo requerente FMCA, melhor identificado nos autos, e, consequentemente, não lhe reconhecer idoneidade para a renovação da licença de uso e porte de armas da classe C.
2. Recorreu o requerente dessa decisão, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - O recorrente viu indeferido o seu requerimento, não lhe reconhecendo idoneidade para a renovação da licença de uso e porte de armas da classe C.
2 – A decisão fundamentou-se, essencialmente, na circunstância de o recorrente ter sido já condenado por dois crimes de condução sob o efeito do álcool e nas declarações das testemunhas, que referiram que o recorrente ingere bebidas alcoólicas às refeições após a prática venatória.
3 – Entende o recorrente que as razões invocadas não tiveram em conta, não só a personalidade do recorrente, mas também o facto de estar inserido, social e familiarmente, ser uma pessoa trabalhadora, não registar qualquer infração no seu registo de caçador, que na maioria das vezes se faz deslocar a pé, com as armas sempre acondicionadas e com a patilha de segurança, após o que deixa as armas em casa e então vai petiscar com os colegas caçadores, como é hábito de todos os caçadores.
4 – Deveria o tribunal ter decidido pelo deferimento do requerido, mesmo com algumas limitações, que lhe permitissem o exercício da atividade de caçar nos dias e períodos em que tal atividade pudesse ser legalmente exercida e obrigando-o, fora desses dias e períodos, a fazer o depósito em qualquer posto da autoridade policial.
5 – O recorrente reúne condições de idoneidade para que lhe seja renovada a licença de uso e porte de armas da classe C.
6 – Ao assim não decidir, e salvo o devido respeito, violou o tribunal a quo o disposto nos art.ºs 28 n.º 1, 15 n.ºs 1 e 2, 14 n.ºs 2 e 3 da Lei 5/2006, de 23.02, com as devidas alterações.
7 – Deve conceder-se provimento ao recurso e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que reconheça idoneidade ao recorrente para que lhe seja renovada a licença de uso e porte de armas da classe C, mesmo sujeito à condição de ter as armas em seu poder apenas em dias e períodos em que tal atividade puder ser legalmente exercida, obrigando-o, fora desses dias e períodos, a fazer depósito das mesmas em qualquer posto da autoridade policial.
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3. Respondeu o Ministério Público ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
1 - A condenação pela prática de crimes dolosos ou negligentes, mesmo que cometidos sem uso de violência e a que não corresponda pena superior a um ano, podem constituir fator atendível de ponderação e, concretamente, integra as “outras razões devidamente fundamentadas” a que alude o artigo 14 n.º 2 da Lei n.º 5/2006, na redação introduzida pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril.
2 - No caso concreto, verifica-se que o recorrente sofreu duas condenações, uma pela prática, em 23.11.2009, de um crime de detenção de arma proibida e um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, sendo que as armas detidas se encontravam no veículo daquele aquando da sua condução, e outra pela prática, em 29.09.2011, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
3 - A avaliação da idoneidade do recorrente para efeitos de licenciamento de utilização de arma de caça - que se traduz na capacidade ou qualidade para se ser titular de licença de uso e porte de arma e dela fazer adequado uso, consentâneo com os fins legais - não pode fazer tábua rasa das concretas condenações sofridas pelo recorrente; é que o legislador proibiu a detenção, uso, porte e transporte de arma sob a influência de álcool ou estupefacientes (cfr. artigo 45 do referido diploma legal).
4 - Pelo que, apesar do recorrente se apresentar familiar e profissionalmente inserido, essa integração social, por si só, não tem a virtualidade de afastar ou de atenuar o peso negativo das circunstâncias a que a Mm.ª Juiz a quo atendeu e que consistiram nas duas condenações do recorrente, condenações que, atenta a natureza dos crimes e a sua repetição, justificam por si só a dúvida séria sobre a idoneidade para obtenção de licença de uso e porte de arma de caça.
5 - Não existe, assim, a violação das normas legais invocadas, ou quaisquer outras, bem como outros motivos para alterar o sentido do despacho recorrido.
6 - Pelo exposto, deverá negar-se provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso (fol.ªs 112 a 116).
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
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6. Na sentença recorrida consideraram-se como provados os seguintes factos:
A) O requerente foi condenado:
- Pela prática, em 23.11.2009, de um crime de detenção de arma proibida, na forma continuada, mais concretamente, de um aerossol de defesa, uma arma adaptada e um bastão artesanal em madeira, e um crime de condução de veículo sob o efeito do álcool, com 1,64 g/l, na pena única de 450 dias de multa e quatro meses de proibição de conduzir;
- Pela prática, em 29.09.2011, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 120 dias de multa e em seis meses de proibição de conduzir.
B) O requerente ingere bebidas alcoólicas às refeições e, alegadamente, apenas após a prática venatória.
C) O requerente é mecânico e faz reparação de camiões e máquinas.
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7. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412 do Código de Processo Penal).
Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito.
Elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso (ver art.º 412 n.ºs 1 e 2 e 410 n.ºs 1 a 3, ambos do Código de Processo Penal, e, entre outros, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
Atentas as conclusões da motivação do recurso apresentado pelo recorrente, assim consideradas, uma única questão vem colocada no presente recurso à apreciação deste tribunal, que é a de saber se, em face da factualidade dada como provada, o recorrente “reúne condições de idoneidade para que lhe seja renovada a licença de uso e porte de armas da classe C”.
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Na decisão recorrida entendeu-se que não, com os seguintes argumentos:
- Decorre do preceituado nos art.ºs 15 n.ºs 1 e 2, 14 n.ºs 2 e 3 e 28 n.º 1 da Lei 5/2006, de 23.02, que aprovou o novo Regime Jurídico das Armas e das suas Munições, que tanto a concessão como a renovação da licença de uso e porte de armas das categorias C e D depende do preenchimento de diversos requisitos cumulativos, entre os quais se destaca a idoneidade do requerente.
- Por idoneidade “entende-se a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais (veja-se neste sentido os acórdãos de RP de 17.09.2008 e da RC de 21.03.2012, disponíveis in www.dgsi.pt)”;
- O requerente foi condenado pela prática de dois crimes de condução em estado de embriaguez, um dos quais na posse de vários tipos de armas, duas das quais proibidas e uma para a qual não possuía licença ou autorização para detenção, “não obstante ser expressamente proibida a detenção, uso, porte e transporte de armas sob a influência de álcool ou estupefacientes, como, aliás, não podia deixar de ser do seu conhecimento (art.º 45 da Lei 5/2006).
Mais se apurou ser hábito do requerente após as caçadas e nos momentos de convívio com os amigos ingerir bebidas alcoólicas, o que equivale a dizer que, posteriormente, seria frequente e encarada com a maior normalidade a condução sob influência etílica, transportando as armas usadas na prática venatória”.
- “… muito embora o recorrente esteja inserido familiar, social e profissionalmente, tal integração não tem, por si só, a virtualidade de afastar ou atenuar os peso negativo das circunstâncias que envolveram a prática dos crimes praticados, a respetiva natureza, gravidade e a sua repetição, bem como os demais aspetos salientados, que justificam, por si só, a dúvida sobre a respetiva idoneidade para a renovação da licença de uso e porte de arma de caça, uma vez que colocam em causa as suas qualidades morais, nomeadamente, a confiança e responsabilidade na utilização devida e lícita, transporte e detenção de armas de fogo.
… não revela o requerente, pelas suas condutas, uma adesão ao ordenamento jurídico vigente e aos valores que lhe estão subjacentes, não existindo nos autos elementos que nos permitam efetuar um juízo de prognose favorável no sentido de, no futuro, não voltar a reincidir nos comportamentos anteriormente adotados…”.
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Divergindo do decidido, alega o recorrente – para fundamentar decisão diversa da recorrida - por um lado, que “está inserido familiar, social e profissionalmente”, é “pessoa tralhadora e responsável, pai de família e pessoa que não provoca desordem ou desacatos, bem considerada no meio social, consciente das regras e segurança e manuseio de armas… nunca foi protagonista ou participante num acidente envolvendo armas de caça…”, por outro, que a nova redação introduzida ao n.º 2 do art.º 14 da Lei 12/2011, de 27.04, reduzindo o campo normativo dos efeitos de uma condenação anterior, eliminou a possibilidade de considerar automaticamente inidóneo para o uso e porte de arma um cidadão que haja praticado um crime, devendo o tribunal, no caso concreto, ter valorado a personalidade do recorrente, o seu modo de vida e a sua integração familiar, social e profissional.
Vejamos.
Dispõe o art.º 15 n.º 2 da Lei 5/2006, de 23.02, que a apreciação da idoneidade do requerente – uma das condições exigidas pela lei (art.º 15 n.º 1 al.ª c)) para concessão de licença (ou sua renovação) de uso e porte de arma - prevista no art.º 15 n.º 1 al.ª c) da citada lei – é feita nos termos dos n.ºs 2, 3 e 4 do art.º 14.
O n.º 2 do art.º 14 dispunha, na sua versão original: “sem prejuízo do disposto no art.º 30 da Constituição e do número seguinte… é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime”.
Posteriormente passou a ter a seguinte redação:
1) Introduzida pela Lei 17/2009, de 6.05: “sem prejuízo do disposto no artigo 30 da Constituição e do número seguinte… é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outros, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão”.
2) Introduzida pela Lei 12/2011, de 27.04: “sem prejuízo do disposto no artigo 30 da Constituição e do número seguinte… é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão”.
De acordo com este preceito – redação vigente - são suscetíveis de indiciar a falta de idoneidade do requerente, para além da aplicação de medida de segurança ou a condenação pela prática de crime doloso cometido com uso de violência em pena superior a um ano de prisão, outras razões devidamente fundamentadas.
Ou seja, por um lado, o legislador reduziu os efeitos da condenação anterior, passando a ser mais exigente (onde antes era suscetível de indiciar falta de idoneidade do requerente a aplicação de medida de segurança ou a condenação pela prática de crime, atualmente é suscetível de indiciar a falta de idoneidade a aplicação de medida de segurança ou a condenação pela prática de crime doloso cometido com uso de violência em pena superior a um ano de prisão), por outro lado, ampliou os fatores a ponderar no juízo sobre a idoneidade do requerente, consagrando que, além daqueles, outras razões devidamente fundamentadas são suscetíveis de indiciar a falta de idoneidade.
Equivale isto a dizer que a condenação pela prática de qualquer crime não permite só por si indiciar a falta de idoneidade, porém, nada obsta a que o tribunal, perante as circunstâncias concretas do caso – designadamente, a natureza do crime (ou crimes), o tempo decorrido desde a sua prática e circunstâncias em que ocorreu - possa considerar essa condenação (ou essas condenações) como razão/fundamento bastante para concluir que o requerente não goza da idoneidade exigível para que lhe seja concedida a requerida licença.
No caso concreto o requerente foi recentemente condenado:
- pela prática, em 23.11.2009, de um crime de detenção de arma proibida, mais concretamente, de um aerossol de defesa, uma arma adaptada e um bastão artesanal em madeira, e um crime de condução de veículo sob o efeito do álcool, com 1,64 g/l, na pena única de 450 dias de multa e quatro meses de proibição de conduzir;
- pela prática, em 29.09.2011, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 120 dias de multa e em seis meses de proibição de conduzir.
E, de acordo com a matéria de facto dada como provada, ingere bebidas alcoólicas às refeições e, alegadamente, apenas após a prática venatória.
Por outro lado, o legislador foi particularmente sensível ao consumo de bebidas alcoólicas ou produtos estupefacientes, proibindo a detenção, uso, porte e transporte de arma sob a influência de álcool ou produtos estupefacientes (art.º 45 da Lei 5/2006).
Ora, as anteriores condenações (recentes), quer pelo crime de detenção de arma proibida (diferentes armas), na forma continuada – que transportava quando conduzia em estado de embriaguez - quer pelos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (duas vezes, em menos de dois anos de distância), indiciam com segurança – de acordo com uma análise criteriosa dos factos, segundo os critérios da razoabilidade – a falta de capacidade do requerente para fazer um uso adequado, de acordo com as normas vigentes, da arma cuja licença pretende, o mesmo é dizer que tais circunstâncias (ainda que o arguido esteja inserido social e profissionalmente, pois que a ingestão de bebidas alcoólicas é frequente nas pessoas social, familiar e profissionalmente inseridas e tal facto, como se escreveu na decisão recorrida, “não tem, por si só, a virtualidade de afastar ou atenuar o peso negativo das circunstâncias que envolveram a prática dos crimes praticados…”) não permitem formular um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do requerente, ou seja, para confiar que no futuro aquele deixará de ingerir bebidas alcoólicas e deixará de deter, usar ou transportar a arma quando influenciado pelo álcool (é do conhecimento comum que a ingestão de bebidas alcoólicas vicia, cria dependência, circunstância que potencia, objetivamente, o risco de repetição de atos como aqueles pelos quais o requerente foi condenado, tanto mais que, como resulta da prova testemunhal, continua a ingerir bebidas alcoólicas, quer às refeições, quer no final da caça).
Consequentemente, perante tais factos – e as sérias reservas que dos mesmos se inferem quanto ao uso adequado da arma cuja licença pretende - entendemos que o requerente não goza da idoneidade necessária para que lhe seja concedida/renovada a licença requerida.
Improcede, por isso, o recurso.
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8. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo requerente e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.
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Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art.ºs 513 e 514 do CPP e 8 n.º 5 e tabela III anexa do RCP).

(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 16-06-2015

Alberto João Borges

Maria Isabel Gonçalves Duarte