Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1838/11.9TAFAR.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
INTERVENÇÃO E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS
CRIME DIVERSO
NULIDADES
Data do Acordão: 04/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I – A questão da alteração substancial ou não substancial dos factos respeita à definição dos limites impostos aos desvios à estabilidade do objeto do processo penal provocados pela dinâmica do processo, permitidos em nome do interesse público na condenação dos culpados de crimes com economia e celeridade processuais e da paz do arguido. Limites aqueles que são ditados por exigências decorrentes do princípio da acusação e das garantias de defesa e que, nessa medida, se refletem necessariamente no conceito de alteração substancial dos factos e, por essa via, na noção de crime diverso que a determina (para além das hipóteses de sanção mais elevada).

II - Verificar-se-á condenação por crime diverso quando ocorrer alteração de elementos da situação de facto integradora do tipo legal indicado na acusação que não se integrem no acontecimento histórico unitário descrito naquela mesma acusação ou, em todo o caso, se a alteração verificada colocar intoleravelmente em causa as garantias de defesa do arguido.

II - Não estamos perante um crime diverso se tanto os factos descritos na acusação como na sentença se reportam à materialidade de uma mesma e única intervenção cirúrgica, que teve lugar num mesmo momento e local, tendo por agente o arguido e por paciente o ofendido, relativamente ao qual se descrevem as mesmas lesões típicas, ou seja, as incisões na região inguinal que provocaram dores e cicatrizes no menor, infligidas pelo arguido no exercício da medicina, sendo que a diferença entre a versão da acusação e da sentença se verifica apenas ao nível do dever de cuidado concretamente violado.
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que corriam termos no 1º juízo criminal do Tribunal Judicial de Faro, o MP deduziu acusação contra A, divorciado, médico, nascido em 10/09/1972, residente em Alvor, imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso efetivo, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3 (e 150.º, n.º 1, a contrario) e um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, p. e p. pelo artigo 156.º, n.º 1, todos do Código Penal.

2. AB e AF, por si e na qualidade de representantes legais do ofendido M, deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste no pagamento de €45.261,16, sendo €30.000,00 a título de danos morais sofridos pelo ofendido menor; €15.000,00 e €261,16 a título de, respetivamente, danos morais e danos patrimoniais sofridos pelos próprios; e em valor a apurar em execução de sentença pelos danos patrimoniais que venham a sofrer derivados da necessidade de o ofendido vir a ter de ser sujeito a nova intervenção cirúrgica.

3. - Realizada a Audiência de discussão e julgamento, o tribunal singular decidiu:

“1. Da acusação
a) Condenar o arguido A. pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa;

b) Condenar o arguido A. pela prática de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto e punido pelo artigo 156.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa;

c) Proceder ao cúmulo jurídico das penas de multa aplicadas, e condenar o arguido A., na pena única de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à razão diária de €50,00 (cinquenta euros), perfazendo um total de €12.000,00 (doze mil euros).

2. Do pedido de indemnização civil
a) Condenar o arguido demandado A. a pagar aos demandantes AB e AF, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros), acrescido de juros à taxa legal desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até integral e efectivo pagamento;

b) Condenar o arguido demandado A. a pagar ao demandante M., legalmente representado por seus pais, AB e AF, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de €4.000,00 (quatro mil euros), acrescido de juros à taxa legal desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até integral e efectivo pagamento;

c) Condenar o arguido demandado A. a pagar aos demandantes indemnização destinada a ressarci-los do dano patrimonial referente ao tratamento cirúrgico das hérnias epigástricas a realizar, em quantia a liquidar em execução de sentença – cfr. artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

d) Absolver o arguido demandado do demais peticionado pelos demandantes.

3. – Inconformados, recorreram os demandantes civis e o arguido.
3.1. Os demandantes civis AB e AF, por si e na qualidade de legais representantes do seu Filho menor ofendido, M., extraem da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
(…)
3.2. Por sua vez, o arguido extrai da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
(…)
4. – O MP e os demandantes civis apresentaram resposta ao recurso interposto pelo arguido, concluindo pela sua total improcedência.

5. – O arguido respondeu ao recurso interposto pelos demandantes civis, concluindo pela sua total improcedência.

6.- Nesta Relação, a senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer relativamente ao recurso interposto pelo arguido, concluindo pela sua total improcedência.
(…)
8. – A sentença recorrida (transcrição parcial):
(…)
Cumpre agora apreciar e decidir ambos os recursos.
II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto dos recursos e poderes de cognição do tribunal ad quem.
Conforme é jurisprudência assente, os poderes de cognição do tribunal ad quem são limitados pelas conclusões da motivação de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

1.1. O recurso interposto pelo arguido.

São três as questões colocadas pelo recurso do arguido à decisão deste tribunal:

- Nulidade de sentença, nos termos do art. 379º nº1 b) do CPP, em virtude de o tribunal de julgamento ter condenado o arguido por factos que representam alteração substancial dos factos descritos na acusação, sem que tenha dado cumprimento ao disposto no art. 359º do CPP;

- Impugnação da sentença, nos termos do art. 412º nº3 do CPP, na parte em que julgou provados os pontos de facto nºs 6 a 13 e nº 15, que, no entender do arguido, devem ser julgados não provados com a consequente absolvição dos dois crimes pelos quais vem condenado em 1ª instância;

- Em todo o caso, o arguido não deve ser condenado em pena de multa de montante diário superior a 25 euros, em vez da quantia de 50 euros diários arbitrada pelo tribunal a quo.

Nada obsta ao conhecimento da primeira questão ora enunciada, pois contrariamente ao que entende o MP em 1ª instância não se forma caso julgado formal sobre o despacho que considerou indiciada a alteração factual comunicada ao arguido, impeditivo de discussão, por via de recurso, sobre a natureza substancial ou não substancial da alteração comunicada. Na verdade, aquele despacho não tem natureza decisória, não tendo sequer de ser fundamentado, pois constitui mera comunicação ao arguido, por imposição legal, de que o tribunal pondera proceder a alteração de factos na sentença. Trata-se, assim, de um ato preparatório que encerra juízo meramente indiciário sobre eventual alteração de factos, que apenas na sentença será, eventualmente, decidida após exercício dos direitos de defesa do arguido- vd neste sentido Ac TRL de 2.11.2011, relator Jorge Raposo, acessível em www.dgsi.pt.

Deste modo, a questão da natureza substancial ou não substancial da alteração de factos que venha efetivamente a decidir-se, só pode ser colocada por via de recurso na sentença, sem prejuízo do que o arguido entenda dizer a tal propósito após lhe ser feita a comunicação a que se reporta o art. 358º do CPP, tal como sucedeu no caso presente.

1.2. O recurso interposto pelos demandantes civis.

Os demandantes civis pretendem a revogação da sentença recorrida na parte em que fixou em 3.500 euros a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelos pais do menor, AB e CF, e em 4 000 euros a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo menor, M, por entender que aquelas quantias são inadequadas à gravidade dos factos provados e pedem agora que o arguido seja condenado, em substituição, no pagamento das quantias indicadas no pedido cível, ou seja, 45 000 euros aos pais do menor a título de indemnização pelos danos não patrimoniais que sofreram e 30 000 euros ao menor, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por ele sofridos, ou, como dizem, em quantias mais adequadas à gravidade dos danos morais provados que as que foram arbitradas pelo tribunal a quo.

1.3. São, pois, estas as questões a decidir, sem prejuízo das que possam ficar prejudicadas pela decisão dada a outras.

2. Decidindo
2.1. O recurso interposto pelo arguido.
2.1.1. A nulidade de sentença prevista no art. 379º nº1 b) do CPP, por violação do disposto no artigo 359º do CPP.

Como vimos, o arguido vinha acusado pela prática, em concurso efetivo, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3 (e 150.º, n.º 1, a contrario) e um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, p. e p. pelo artigo 156.º, n.º 1, todos do Código Penal e foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa e de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto e punido pelo artigo 156.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa.

A única alteração verificada em termos de incriminação ou qualificação jurídica, consistiu em ter o tribunal a quo condenado o arguido pelo crime simples previsto no nº1 do artigo 148º do C.Penal, por entender que as cicatrizes de 4-5 cm nas regiões inguinais, resultantes das incisões efetuadas pelo arguido não preenchem o conceito de desfiguração grave e permanente, prevista no nº3 do art. 148º do C. Penal, contrariamente ao que constava da acusação.

Esta alteração da qualificação jurídica não é, porém, questionada pelo arguido, nomeadamente por hipotética falta de cumprimento do disposto no art. 358º nº3 do CPP, nem tal se justificaria uma vez que a alteração da qualificação jurídica de que resulte a incriminação pelo crime simples em vez do crime qualificado, não põe em causa os direitos de defesa do arguido quando, como no caso presente, a incriminação pelo crime base pelo qual é efetivamente condenado constava já da acusação – vd sobre a questão, por todos, o Ac. do STJ de 31-10-2007, rel. Costa Mortágua, ( www.dgsi.pt).

A questão suscitada no recurso do arguido respeita, antes, à alteração da factualidade constante da acusação, comunicada ao arguido na sessão de 12.07.2015 da audiência de julgamento pelo tribunal a quo que, invocando o disposto no artigo 358º do CPP, comunicou ao arguido a alteração de um conjunto de factos descritos na acusação, reputando-a de não substancial.

Logo após, a defesa apresentou requerimento arguindo a nulidade daquele despacho por violação do disposto no artigo 379º nº1 b) do CPP, por considerar estar-se perante alteração substancial de factos, o que não foi atendido pelo tribunal a quo que nada alterou aos termos da sua comunicação ao arguido.

A nulidade de sentença arguida pelo recorrente implica, pois, decidir se a concreta alteração de factos comunicada ao arguido tem natureza não substancial, conforme considerou o tribunal recorrido, ou, antes, se estamos perante alteração substancial de factos como pretende o arguido recorrente.

A questão suscitada respeita à alteração da factualidade constante da acusação relativa ao crime de ofensa à integridade física por negligência, simples, p. e p. pelo artigo 148º nº1 do C.Penal. No que concerne à factualidade atinente ao crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, p. e p. pelo artigo 156.º, n.º 1, todos do Código Penal há mera especificação e concretização da factualidade já narrada na acusação.

Vejamos então da natureza substancial ou não substancial da alteração relativa ao crime de ofensa à integridade física por negligência.

a) A versão factual levada à acusação, relativamente ao crime de ofensa à integridade física por negligência é, no essencial, a seguinte:

- Por indicação médica, no dia 23 de Fevereiro de 2012, o menor M, foi submetido a uma intervenção cirúrgica, no Hospital Particular ---, a realizar pelo arguido, enquanto cirurgião, com vista à reparação de 2 hérnias epigástricas ou da linha branca.

No decurso dessa intervenção cirúrgica, o arguido detetou a existência de 2 hérnias inguinais e então, sem consentimento dos progenitores do menor, e sem que tal se mostrasse necessário para evitar um perigo para a vida, saúde ou para o corpo do menor, decidiu reparar também as referidas hérnias inguinais, pela via clássica, ou seja através de incisões bilaterais e através dessas incisões chegar ao umbigo e tratar [também] as hérnias epigástricas, em vez de proceder à reparação de todas as hérnias por via laparoscópica, ou seja, através do tratamento intra-abdominal ou intraperitoneal segundo um acesso trans-peritoneal, como lhe impunham as respectivas legis artis.

Em resultado directo e necessário da supra descrita conduta, sofreu o ofendido M diversas dores e feridas nas zonas atingidas [as incisões bilaterais], que o arguido bem podia e devia ter evitado se tivesse usado o instrumental de conhecimentos e o esforço técnico que se lhe impunha, enquanto médico-cirurgião, sendo que, dado o deficiente tratamento as referidas hérnias epigástricas nem sequer foram reparadas.

Provou-se ainda que o arguido bem sabia que a técnica que utilizou para tratar as hérnias que o menor apresentava não era a mais adequada e que ao atuar como descrito violava um dever de cuidado a que, atentas as circunstâncias concretas, estava obrigado e de que era capaz, não tendo, contudo, chegado a representar a possibilidade de realização do facto que agora lhe é imputado, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.

b) Por sua vez, a versão dos factos julgada provada pelo tribunal a quo na sentença recorrida é, essencialmente, a que se segue.

O menor foi internado para ser submetido a intervenção cirúrgica levada a cabo pelo arguido, com vista à reparação de duas hérnias epigástricas ou da linha branca (tal como já resultava da acusação), mas apenas no decurso da audiência de julgamento foi apurado que no respetivo plano operatório constava “TRATAMENTO DE HÉRNIA INGUINAL” [em vez de tratamento de hérnia epigástrica] e que foi motivado pelo teor daquele plano que o arguido fez as incisões nas regiões inguinais, de que resultaram as dores e cicatrizes sofridas pelo menor, o que já constava da acusação.

Resultou também da audiência (sem que tal factualidade constasse igualmente da acusação), que não encontrando a presença de qualquer hérnia inguinal o arguido fechou aquelas incisões, sem ter reparado as hérnias epigástricas ou de linha branca.

No que respeita à descrição e caraterização da conduta do arguido, provou-se ainda que o arguido bem podia e devia ter evitado as dores e feridas sofridas pelo menor nas zonas atingidas (regiões inguinais), não fora a sua actuação imprudente e descuidada assente no facto de não se ter certificado de que mal padecia exactamente aquele doente, obrigação que se lhe impunha enquanto médico e cirurgião responsável pela condução da cirurgia e que facilmente se cumpriria através da consulta do respectivo processo clínico e da realização do diagnóstico clínico adequado, que no momento não fez, confiando simplesmente na informação constante do plano operatório, o que bem sabia não ser o mais adequado, seguro e prudente, e que ao actuar como descrito violava um dever de cuidado a que, atentas as circunstâncias concretas, estava obrigado e de que era capaz.

c) Do confronto entre ambos os conjuntos de factos, constatamos que tanto a acusação como a sentença respeitam a uma mesma e única intervenção cirúrgica realizada pelo arguido na pessoa do menor M, no dia 23 de Fevereiro de 2012, no Hospital Particular…, com vista à reparação de 2 hérnias epigástricas ou da linha branca, por indicação médica, antecedida das consultas médicas detalhadamente descritas sob os números 1 a 4 da factualidade provada na sentença, incluindo a concretização dos termos da informação que prestou aos pais do menor. Estamos seguramente nesta última parte perante alteração não substancial dos factos o que, aliás, não é posto em causa pelo arguido, pois respeitam à mera concretização e detalhe das consultas que estiveram na origem da intervenção cirúrgica e que apenas contextualizam de forma mais pormenorizada a natureza e finalidade da intervenção cirúrgica antes decidida, ou seja, o tratamento de duas hérnias epigástricas diagnosticadas ao menor.

A questão controversa centra-se, antes, em alguns aspetos da execução da intervenção cirúrgica levada a cabo pelo arguido e na consequente caraterização da conduta que lhe é imputada a título de negligência, tanto na acusação, como na sentença, conforme vimos.

Na acusação imputava-se ao arguido ter realizado, sem consentimento, incisões na região inguinal do menor (que, grosso modo, lhe provocaram dores e cicatrizes), porque decidira tratar por essa via duas hérnias inguinais que detetara ao proceder à anestesia do menor, incisões que não seriam necessárias caso se tivesse limitado a operar o menor às hérnias epigástricas por meio de laparoscopia, conforme acordado com os pais e como lhe impunha a legis artis, sendo certo que não chegou a proceder ao tratamento das hérnias epigástricas, apesar de ser esta a finalidade da intervenção cirúrgica ao menor.

Agindo desse modo, o arguido teria violado o dever de utilizar a técnica mais adequada para tratar as hérnias que o menor apresentava (hérnias epigástricas), embora não tivesse chegado a representar a possibilidade de o estar a fazer, causando desse modo as lesões descritas, ofendendo, assim, a integridade física do menor com negligência inconsciente.

Na sentença descreve-se, antes, que apesar de estar prevista a operação às hérnias epigástricas diagnosticadas, o arguido procedeu às incisões na região inguinal do menor por se propor tratar duas hérnias inguinais ao menor, em resultado de ser esta a intervenção cirúrgica que, por erro, foi indicada no plano da operação, sendo certo que o arguido não chegou a proceder ao tratamento das hérnias epigástricas, apesar de ser esta a finalidade da intervenção cirúrgica acordada.

Conclui-se na sentença que, deste modo, o arguido agiu negligentemente, porque não se certificou de que mal padecia exactamente o menor doente, obrigação que se lhe impunha enquanto médico e cirurgião responsável pela condução da cirurgia e que facilmente se cumpriria através da consulta do respectivo processo clínico e da realização do diagnóstico clínico adequado, o que no momento não fez, confiando simplesmente na informação constante do plano operatório, o que bem sabia não ser o mais adequado, seguro e prudente.

2.1.1.1. Em face das alterações factuais supra destacadas, vejamos agora se as mesmas têm efetivamente natureza substancial face à definição legal de alteração substancial dos factos.

a) Nos termos do art. 1º al. f) do Código de Processo Penal, considera-se alteração substancial de factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso (critério qualitativo) ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (critério quantitativo). Uma vez que o arguido foi acusado pelos mesmos tipos penais pelos quais vinha condenado (ressalvada a incriminação pelo nº3 do artigo 148º que a sentença rejeitou), não está em causa nos autos a agravação dos limites máximos da pena aplicável, pelo que a única questão que se coloca é a de saber se deve considerar-se que o arguido foi condenado por crime diverso, face à factualidade que lhe fora imputada na acusação.

Sobre o que deva entender-se por crime diverso são muitas as dúvidas suscitadas na doutrina e jurisprudência, tributárias em grande medida das divergências verificadas à volta do objeto do processo e da relevância deste na decisão de questões processuais de primeira grandeza, como sejam o problema da vinculação temática do tribunal de julgamento (aqui nos ocupa directamente), a litispendência ou o caso julgado.

Na verdade, a questão da alteração substancial ou não substancial dos factos respeita à definição dos limites impostos aos desvios à estabilidade do objeto do processo penal provocados pela dinâmica do processo, permitidos em nome do interesse público na condenação dos culpados de crimes com economia e celeridade processuais e da paz do arguido.

Limites aqueles que são ditados por exigências decorrentes do princípio da acusação e das garantias de defesa e que, nessa medida, se refletem necessariamente no conceito de alteração substancial dos factos e, por essa via, na noção de crime diverso que a determina (para além das hipóteses de sanção mais elevada).

Por outro lado, como é maioritariamente considerado, no conceito legal de alteração substancial dos factos adota-se um conceito de facto normativamente modelado, para o qual concorrem não só́ aspetos naturalísticos do acontecimento em causa, como também as conexões normativas que lhe conferem as qualidades que justificarão a sua integração no objecto dum processo (vd Teresa Beleza e Frederico da Costa Pinto, Direito processual penal I, Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado (texto introdutório), Lisboa 2001).

Deste modo, pode dizer-se que o crime é diverso quando a alteração de facto represente alteração de elementos constitutivos do crime de tal modo que, sob alguma daquelas perspetivas - normativa ou naturalística -, a condenação do arguido pelos novos factos representaria violação intolerável dos princípios da acusação ou das garantias de defesa, com especial destaque para estas, caso tivesse lugar fora do procedimento previsto no artigo 359º do CPP. Como diz Germano M. Silva “… a lei admite que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objeto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afetada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo.” – Curso de Processo Penal, 2ª ed.. 2000, p. 273

Ou seja, verificar-se-á a condenação por crime diverso quando ocorrer alteração de elementos da situação de facto integradora do tipo legal indicado na acusação (ainda que este se mantenha em face da alteração factual, como sucede in casu), que não se integrem no acontecimento histórico unitário descrito naquela mesma acusação ou, em todo o caso, se a alteração verificada colocar intoleravelmente em causa as garantias de defesa do arguido. Sendo assim, é indiferente que a alteração factual registada não arraste consigo qualquer alteração do tipo legal imputado ao arguido, como se verifica no caso presente, pois decisiva é a identidade do crime concreto, do ponto de vista do acontecimento histórico unitário em causa e do seu enquadramento jurídico-penal, em termos que não ponham em causa os referidos princípios da acusação e das garantias de defesa do arguido.

Assim, não poderá afirmar-se que a alteração de um ou outro dos factos integradores dos elementos constitutivos do crime o transforma, em abstrato, num crime diverso para efeitos do art. 1º al. f) do CPP, tudo dependendo do modo como a alteração verificada possa comprometer, em concreto, o princípio da acusação ou as garantias de defesa, cuja proteção fundamenta as especiais exigências do regime legal da alteração substancial de factos.

b) Ora, no caso concreto, parece-nos indubitável estarmos perante o mesmo acontecimento histórico, cuja individualização resulta com clareza do conjunto dos factos comuns à acusação e à sentença, apurados em inquérito sob a direção do MP. Como vimos, tanto os factos descritos na acusação como na sentença reportam-se à materialidade de uma mesma e única intervenção cirúrgica, que teve lugar num mesmo momento e local, tendo por agente o arguido e por paciente o ofendido, relativamente ao qual se descrevem as mesmas lesões típicas, ou seja, as incisões na região inguinal que provocaram dores e cicatrizes no menor, infligidas pelo arguido no exercício da medicina.

c) Por sua vez, no que respeita às implicações da alteração verificada sob o ponto de vistas das garantias de defesa do arguido, a propósito das quais se colocam as principais dúvidas, são determinantes os seguintes aspetos da questão.

c.1. Por um lado, a diferença entre a versão da acusação e da sentença verifica-se apenas ao nível do dever de cuidado concretamente violado, sendo certo que a diferença factual releva sobretudo do ponto de vista objetivo. Face à acusação, estava em causa a violação do dever de utilizar a técnica mais adequada para tratar as hérnias que o menor apresentava (hérnias epigástricas). Face à sentença, o dever de certificar-se de que mal padecia exactamente o doente, obrigação que se lhe impunha enquanto médico e cirurgião responsável pela condução da cirurgia e que facilmente se cumpriria através da consulta do respectivo processo clínico e da realização do diagnóstico clínico adequado, o que impediria as desnecessárias incisões na região inguinal sofridas pelo menor.

Já quanto à especificidade subjetiva inerente à realização negligente do facto, que no caso da negligência inconsciente reside na não representação da realização do tipo (art. 15º al. b)) não assume a mesma importância relevante face às garantias de defesa do arguido, pois conforme refere Paula Ribeiro de Faria, invocando F. Dias no mesmo sentido, “…esta especificidade subjetiva não é equivalente a um tipo subjetivo verdadeiro e próprio, já que o que verdadeiramente conta é uma realidade objetiva – a necessidade de representação, a previsibilidade objetiva – a suprir uma eventual falta de ligação interna ao facto, e constituindo nos casos de ausência completa de representação, a base de afirmação da negligência inconsciente [como se verifica in casu] ” – Comentário Conimbricense do C.Penal, Tomo I, 2ª ed. pp 411-2

Assim, o ponto nevrálgico do problema colocado é, afinal, o de saber se as diferenças destacadas quanto ao modo como se desenrolou a intervenção cirúrgica e ao dever de cuidado concretamente violado pelo arguido, face à acusação e à sentença, coloca seriamente em causa as garantias de defesa do arguido, para o que não deixa de relevar o momento e a forma como o arguido foi confrontado com a indiciação dos novos factos, no decurso da audiência.

A este respeito, não pode dizer-se que o arguido foi surpreendido na audiência de julgamento por uma nova versão dos factos que o impossibilitou de se defender ou que tenha dificultado intoleravelmente a sua defesa.

Por um lado, constata-se das atas das cinco sessões da audiência de julgamento em que teve lugar a produção de prova (13.03.2015, 13.04.2015, 20.04.2015,06.05.2015 e 25.05.2015) e dos elementos entretanto juntos aos autos, que no caso concreto o arguido foi confrontado com o novo facto determinante da diferente versão acolhida na sentença, ou seja, com a menção a hérnias inguinais (em vez de hérnias epigástricas) no Plano de Operações, logo na fase inicial da audiência. Na sequência de requerimento apresentado pelo MP na 1ª sessão da audiência de julgamento (13.03.2015), foi junta em 8.04.2015 documentação clínica solicitada ao Hospital Particular… que incluía o Plano Operatório de fls 383, onde, relativamente à intervenção cirúrgica do menor, se refere o Tratamento de Hérnia Inguinal, em vez de Hérnia Epigástrica, que constituiu o novo facto que indiciava que a finalidade da operação efetivamente executada pelo arguido teria sido, por erro, o tratamento de hérnia daquela natureza em vez do tratamento das hérnias epigástricas diagnosticadas.

O arguido foi notificado desta junção de documentos por aviso de 9.04.2015 e nas sessões seguintes foi discutido o teor e significado do Plano Operatório de fls 383, sendo ouvido sobre ele a testemunha MP (anestesista) arrolada pelo arguido, tendo este solicitado a fls 516 o depoimento da testemunha PP sobre “quem, como e quando foi feito o agendamento da cirurgia referente ao menor“, a qual foi ouvida na sessão de 25.05.2015. A testemunha ML, enfermeira que esteve presente na cirurgia foi igualmente ouvida sobre o Plano Operatórios, o mesmo sucedendo com o próprio arguido. Para além disso, o arguido nada requereu depois de lhe serem comunicadas as alterações factuais indiciadas, apesar de o poder fazer nos termos do art. 358º nº1 do CPP.

C.2. Em segundo lugar, foi o arguido quem apresentou a versão dos factos acolhida pela acusação, que apresentou aos pais do menor, conforme descrito sob o nº 14 dos factos provados, e manteve nas declarações prestadas em audiência, pelo que não é o mesmo alheio à discrepância verificada entre aquela versão e a que só em audiência de julgamento foi apurada, com o que se afasta a interpretação dos factos que levasse a concluir por comportamento desleal do Estado acusador perante o arguido.

Na verdade, a versão dos factos apresentada e aceite pelo arguido condicionou a possibilidade prática de o titular da ação penal poder aperceber-se do conteúdo total do ilícito no inquérito, sendo certo que não pode confundir-se o direito do arguido a não se autoincriminar com as naturais implicações da sua participação voluntária no apuramento dos factos. Em face da factualidade objetiva aceite pelo arguido, de que foi após o início da operação que se apercebeu da existência de duas hérnias inguinais cujo tratamento o determinou a realizar incisões na região inguinal do menor, é compreensível que o MP não tivesse orientado as averiguações no sentido de apurar se, afinal, a cirurgia concretamente executada ficara a dever-se a erro no Plano Operativo ou outra causa, com eventual prejuízo da economia e celeridade processuais, legalmente protegidos, quer em nome do interesse público na realização da justiça, quer mesmo em nome do direito do arguido a ser julgado no mais curto prazo possível.

As vicissitudes processuais enfatizadas, o caráter circunscrito da factualidade alterada, a natureza essencialmente objetiva dessa mesma factualidade e, em todo o caso, o caráter pessoal dos factos objeto de alteração, impõem a conclusão de que não estamos em face de decisão surpresa que deixasse indefeso o arguido e, consequentemente, perante violação das garantias de defesa do arguido próprias da imputação ao arguido de crime diverso, nos termos e para efeitos dos artigos 358º, 359º e 1ª al. f), todos do CPP.

Concluímos, pois, que não merece crítica o entendimento da senhora juíza a quo de que a alteração de factos comunicada ao arguido tem natureza não substancial, pelo que improcede o recurso do arguido nesta parte.

c.4 – Por último, entendemos não ser inconstitucional a interpretação dos artigos 358º, 359º e 1º nº 1 al. f), todos do CPP, perfilhada pelo tribunal a quo e agora confirmada em recurso, no sentido de a concreta alteração de factos comunicada ao arguido não constituir alteração não substancial dos factos, impeditiva da condenação do arguido nos presentes autos sem o seu acordo à continuação da audiência de julgamento.

Como é sabido, o nosso processo penal aceita desvios ao princípio da estabilidade do objeto do processo desde a acusação ao julgamento nos casos e termos previstos nos artigos 358º e 359º, sem violação dos princípios do acusatório e do contraditório. Assim, inserindo-se o caso presente, pelas razões expostas - com destaque para o caráter circunscrito da alteração factual verificada e para a ampla possibilidade de defesa que teve o arguido de discutir e contrariar a nova e pontual versão dos factos - nas hipóteses de alteração não substancial dos factos a que se reporta o art. 358º do CPP, mostram-se respeitados aqueles princípios, tais como os princípios da proporcionalidade e da garantias de defesa do arguido, essencialmente pelas mesmas razões.

(…)
2.3 Cabe agora apreciar o recurso do arguido em matéria de direito, ou seja, na parte em que pretende ver reduzido o montante diário da pena de multa de 50 para, no máximo, 25 euros.

Alega a este propósito que auferindo a quantia mensal de 5 500 euros, tendo despesas fixas no valor de 1 700 euros e vindo condenado por negligência inconsciente, aquele valor é manifestamente excessivo.

Não tem, porém, razão o arguido recorrente.

Como é sabido, o sistema de dias de multa adotado pelo nosso C. Penal autonomiza as operações de determinação dos dias de multa e do montante diário, devendo o tribunal fixar este último, nos termos do art. 47º do C.Penal, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, pelo que é irrelevante para este efeito que o arguido venha condenado por negligência inconsciente.

Por outro lado, atribui-se ao sistema de dias de multa a vantagem (face aos sistemas de multa em quantia certa ou a fixar legalmente entre uma quantia mínima e máxima) de permitir ajustar a pena de multa à diferença básica entre pessoas com capacidades económicas muito distintas (ideia da igualdade de sacrifício), ou seja, constituir este modelo um fator de maior igualdade e justiça, ao atribuir relevância autónoma à capacidade económica do condenado, pelo que lhe é inerente que o valor total a pagar em casos de ilicitude semelhante possa ser diferente, desde que situação económica diversa justifique a diferença verificada.

Também do ponto de vista das finalidades das penas se reconhecem vantagens a este sistema, na medida em que, para além “ …da maior justiça que supõe ao adaptar a pena à situação económica do condenado, e a transparência inerente à divisão da sua determinação em duas fases, tem cabimento falar-se … de um maior efeito preventivo especial, uma vez que a possível repercussão psicológica que a multa cause ao condenado será tanto maior quanto mais se mostre proporcionada aos seus haveres…”.

Ora, considerando que nas despesas fixas do arguido se incluem a pensão de alimentos que paga aos dois filhos e a prestação mensal que paga pelo empréstimo para aquisição de casa e, ainda, que vive sozinho, o arguido pode dispor ainda de cerca de 125 euros diários, pelo que não é de modo algum desproporcionado o montante diário de 50 euros fixado pelo tribunal recorrido, quer em atenção às apontadas finalidades do sistema de dias de multa, quer, em todo o caso, ao caráter aflitivo das penas.

Concluímos, pois, pela total improcedência do recurso interposto pelo arguido.

2.4. Recurso dos demandantes civis.
Como vimos, os demandantes civis pretendem ver aumentada a importância de 3 500 euros arbitrada pelo tribunal recorrido aos pais do menor, AB e AF, e a importância de 4 000 euros arbitrada ao menor igualmente a título de indemnização por danos não patrimoniais, respetivamente, para 45 000 euros aos pais do menor e 30 000 euros ao menor.

Alegam que aquelas quantias são inadequadas à gravidade dos factos provados e dos danos morais que aqueles factos espelham.

Sem razão, porém, pois as quantias fixadas pelo tribunal a quo revelam-se ajustadas à especial natureza da indemnização por danos não patrimoniais, aos danos efetivamente sofridos pelos demandantes a esse mesmo título, detalhadamente ponderados pelo tribunal a quo, à situação económica do demandado e demandantes e ao grau de culpa do agente que, nos termos dos artigos 494º e 496º nº3, do C. Civil, constituem critérios a ter em conta na fixação equitativa da indemnização por danos não patrimoniais.

Assim e tendo ainda em conta os montantes geralmente arbitrados pelos tribunais para indemnizar danos não patrimoniais em situações mais graves, como seja a indemnização pelo dano vida ou por ofensas à integridade física de grande extensão e intensidade, concluímos, pois, pelo acerto da sentença recorrida também nesta matéria, pelo que improcede totalmente o recurso dos demandantes.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar total provimento ao recurso interposto pelo arguido e ao recurso interposto pelos demandantes, confirmando integralmente a sentença recorrida.

Custas pelo arguido, fixando a taxa de justiça em 5 UC – cfr art. 513º do CPP e artigo 8º nº5 do Regulamento das Custas Processuais (RCP) aprovado pelo citado Dec-lei 34/2008, conjugado com a tabela III a que se refere este último preceito.

Custas do recurso em matéria civil pelos demandantes – cfr art. 523º C.P.P..

Évora, 26 de abril de 2016

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)


António João Latas
Carlos Jorge Berguete