Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
613/13.0TDEVR.E1
Relator: CARLOS JORGE BERGUETE
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
LOCAL DA PRÁTICA DO CRIME
SMS - SERVIÇO DE MENSAGENS CURTAS
Data do Acordão: 10/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
A relativa excepcionalidade da aplicação da consequência da rejeição da acusação, por manifestamente infundada, está reflectida na conjugação dos arts. arts. 283.º, n.º 3, e 311.º, n.º 3, na medida em que se o vício cominado quanto à falta de requisitos da acusação é de nulidade sanável (arts. 119.º a contrario e 120.º do CPP), não se compreenderia que, na prolação desse despacho, se cominasse alguma deficiência, desde que manifestamente suprível, com a imediata rejeição da mesma.
Assim, não se aceita, por excessiva e desproporcional, a posição defendida no despacho recorrido que rejeita a acusação deduzida pelo assistente por omitir o lugar da prática dos factos, sendo que, objectivamente, as mensagens de texto alegadamente injuriosas, teriam sido enviadas pelo arguido e recepcionadas no telemóvel daquele.
Dada a forma de transmissão dessas mensagens, compreende-se que alguma dificuldade existiria, para o assistente, quanto à concretização rigorosa do lugar da prática dos factos, designadamente à luz da regra geral definida pelo art. 7.º do CP, aspecto importante para a determinação de qual o tribunal competente para o julgamento.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 613/13.0TDEVR.E1
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Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora
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1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, da Secção Criminal da Instância Local de Évora da Comarca de Évora, por despacho proferido ao abrigo do art. 311.º do Código de Processo Penal (CPP) foi rejeitada a acusação particular, por manifestamente infundada, deduzida pelo assistente, CALC contra o arguido JARL, imputando-lhe a prática de crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º do Código Penal (CP).
Ainda, tendo em conta o art. 71.º do CPP, não se admitiu o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente.

Inconformado com o despacho, o assistente interpôs recurso, formulando as conclusões:
A.
O Tribunal a quo rejeitou a acusação particular deduzida pelo Recorrente por entender que a mesma era manifestamente infundada, em virtude de não identificar o local onde foram praticados os factos, não admitindo, consequentemente, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Recorrente, ao abrigo do princípio da adesão.
B.
Salvo melhor opinião e com o devido respeito, o Tribunal a quo andou mal quando rejeitou a acusação particular e, consequentemente, não admitiu o pedido de indemnização civil.
C.
A acusação é manifestamente infundada quando não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de um pena ou de uma medida de segurança, pelo que a indicação do lugar, do tempo e da motivação da prática do crime não se consubstancia num elemento essencial, que não pode ser preterido, mas sim num componente acessório
D.
É a preterição da narração dos factos que vicia de nulidade a acusação, e não a falta da indicação do lugar, do tempo e da motivação da prática do crime, a não ser que tais elementos tenham sido conhecidos aquando da investigação.
E.
A cominação de nulidade, para a preterição da narração dos factos, decorre da protecção do direito de defesa do Arguido.
F.
A indicação do local não é um elemento essencial para o Arguido preparar a sua defesa.
G.
O Recorrente não indicou o local da prática do crime porque desconhece o local onde o Arguido remeteu as mensagens de texto e não se recorda do lugar onde se encontrava onde recebeu e leu as mesas, visto que, em tal período, o Recorrente recebia diversas mensagens de texto e telefonemas do Arguido, sendo difícil fazer a respectiva separação.
H.
Assim sendo, o lugar da prática do crime não foi indicado na acusação, porque o mesmo não era possível, pelo que a acusação cumpriu o disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, não sofrendo qualquer nulidade, impedindo a sua rejeição.
I.
O local da prática do crime pode ser apurado no julgamento, visto que se tratará de uma alteração não substancial de factos.
J.
Sempre se refira que, nos termos do disposto no artigo 21.º, do CPP, sempre que seja desconhecido o local da prática do crime, é competente o Tribunal do local onde tiver havido a notícia do crime.
K.
Refira-se ainda que o Tribunal a quo podia ter proferido um despacho para o Recorrente aperfeiçoar a acusação, indicando o local da recepção das mensagens de texto ou o local da sua leitura.
L.
O douto despacho recorrido proferido pelo Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 283.º, n.º 3, al. b), e 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), todos do CPP.
M.
O Tribunal a quo andou mal quando interpretou que a falta de narração dos factos, descrita no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), do CPP, consubstanciava, também, a falta da indicação do lugar da prática do crime, referido no artigo 283.º, n.º 3, al. b), do CPP.
N.
No entanto, somente a falta de narração concreta dos factos origina a nulidade da acusação, e já não o lugar, em virtude de o artigo 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, fazer referência à expressão “se possível”.
Termos em que se requer a V. Exas. que, atendendo aos fundamentos supra expostos, seja o presente recurso julgado procedente por provado, e em consequência, seja o douto despacho recorrido revogado e substituído por douto Acórdão que admita a acusação particular e, consequentemente, admita o pedido de indemnização civil.

O recurso foi admitido.

Apresentaram resposta:
- o Ministério Público, concluindo:
I- Não pode confundir-se a falta de narração de factos do tipo de crime com a omissão de apenas um facto atinente à localização dos factos que nem sequer se logrou apurar.
II- Do teor da acusação particular deduzida, constam todos os factos necessários à subsunção ao crime que é imputado ao arguido e se não foi efectuada uma maior concretização quanto ao lugar da prática dos factos foi porque tal não se revelou possível.
III- A narração dos factos efectuada na acusação particular, acompanhada pelo Ministério Público em nada afectou as garantias de defesa do arguido, pois daquela resultam as acções que, em concreto, lhe são imputadas.
IV- Não resultando dos autos a exacta localização dos factos, a atribuição de competência territorial ao tribunal para conhecer dos factos dos presentes autos, deve ser efectuada tendo em conta a conjugação dos artigos 19.º e 21.º, ambos do CPP.”

V- Os factos imputados ao arguido na acusação particular deduzida pelo assistente e acompanhada pelo Ministério Público preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de injúria, inexistindo fundamentos para a rejeição da acusação.

VI- Face ao exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se o despacho judicial recorrido, em virtude de o mesmo não ter feito a interpretação adequada do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, al. b) e 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), do CPP, assim os violando, devendo assim ser substituído por outro que designe data para a realização da audiência de julgamento.

- o arguido, designadamente, referindo:
Adere-se integralmente aos fundamentos do douto despacho do Meritíssimo Juiz que sustentou a decisão do não recebimento da acusação particular e a consequente extinção do procedimento criminal.
Relativamente à falta de indicação na acusação do local da prática do crime, essa indicação, contrariamente à pretensão do recorrente é um elemento essencial que deverá constar de qualquer acusação e “ in casu”, por maioria de razão, dado tratar-se de um arguido de nacionalidade espanhola residente em Badajoz…
A verdade, é que da factualidade descrita na acusação não é possível inferir que o crime tenha ocorrido em território português…
Com efeito, é absolutamente necessário que da narração resulte, no mínimo, a aplicabilidade da lei penal portuguesa e a competência internacional dos tribunais nacionais (artigos 4º e 5º do Código Penal e 19º a 22º do Código de Processo Penal).
Por mais sintética e imprecisa que seja, a descrição deve, pelo menos, permitir retirar esta ilação.
Pois, de outro modo, não se justificaria submeter o arguido a julgamento, já que não seria possível, aplicar-lhe uma pena, mesmo que se verificassem todos os factos da acusação…
É o que sucederia na presente situação…
Na verdade, se na acusação não consta, podendo constar, a precisa indicação dos factos e do lugar onde os mesmos foram praticados, por omissão desse elemento, a acusação é nula, por violação da alínea b) do nº 3 do artigo 283º aplicável ex vi do disposto no nº 3 do artigo 285º, ambos do Código de Processo Penal.
Aliás, o recorrente, na sua acusação, nem sequer menciona que é impossível referir o lugar da prática dos factos.
Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória, como é o nosso, exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implica a desconsideração no processo de quaisquer factos ou circunstâncias que não constassem do objecto uma vez definido este pela acusação.
Por último, ainda se dirá que o apuramento em julgamento, do local da prática do crime, poderá determinar a incompetência do tribunal, sendo que, estaríamos perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação. (cfr. Artigo 359º nº 3 do Código de Processo Penal)

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, louvando-se na argumentação da motivação e da resposta oferecida pelo Ministério Público, no sentido de que ao recurso deve ser concedido provimento.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP, nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

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2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente em conformidade com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10 (in D.R. I-A Série de 28.12.1995).
Consubstancia-se, então, em apreciar se, não obstante a omissão do lugar da prática dos factos na acusação particular formulada pelo assistente, o despacho recorrido não a deveria ter rejeitado.
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Consta do despacho recorrido:
Nos presentes autos o assistente CALC deduziu acusação particular (fls. 125 e ss.) contra JARL, nos termos e com os fundamentos seguintes (reprodução na íntegra da parte do articulado respeitante à acusação particular):
«1. No âmbito da relação comercial existente entre o Lesado/Assistente e o Demandado, o primeiro, na qualidade de administrador da sociedade de direito espanhol “3 DCDHP, S.L.” e em seu nome próprio, e o segundo celebraram, a 14 de Fevereiro de 2013, um acordo de pagamento, conforme documento 1, junto com Queixa-Crime.
2. Em tal acordo de pagamento, o Assistente assumiu-se devedor, do Arguido, na quantia de € 4.500,00 euros, quantia essa que seria paga através do desconto de 10 cheques, todos no valor unitário de € 450,00 euros.
3. Acontece que, por motivos alheios à relação comercial entre o Assistente e o Arguido, que geraram uma quebra na tesouraria da empresa supra referenciada e, consequentemente, na esfera patrimonial pessoal do Assistente, o cheque n.º 8348315993, que consubstanciava a 3.ª prestação, veio devolvido na compensação por fora de validade.
4. Em consequência de tal devolução, o Assistente comunicou ao Arguido que poderia descontar o cheque no dia 9 de Julho de 2013.
5. Mas, por mera coincidência e na sequência de novas vicissitudes alheias à vontade do Assistente, o cheque veio, novamente, devolvido na compensação por o mesmo se encontrar fora do prazo de validade.
6. A partir de tal ocorrência, o Arguido começou a contactar o Assistente, insistentemente, via telefone móvel, quer através de mensagens escritas, vulgo sms, quer por chamada telefónica directa, sempre insultando e injuriando o Assistente com recurso a diversos adjectivos vernaculares que infra se deixam referidos.
7. No dia 5 de Junho de 2013, pelas 23.22 horas, o Lesado/Assistente recebeu, no seu telemóvel com o n.º 00351965265966, três mensagens de texto (também designadas vulgarmente por “SMS”), remetidas pelo Demandado, do telemóvel com o n.º 00351965601361, conforme cópia de certificado emitido pelo Cartório Notarial sito na rua de Chartres, 4B, Loja 11, Horta da Porta, em Évora, e fotografia do telemóvel, juntos como documento 2 e 3, com a Queixa-Crime.
8. Em tais mensagens, pode ler-se:
“Quiero saber Carlos sí te esta estas cachondeando de mi, por que sí es asi lo vas a hacer pero de quien yo te diga. Han devuelto el cheque y mi paciencia se há acabado. Voy a por ti. Ya estoy hasta los cojones de tios impresentables como tu y mentirosos.”
“Aunque me gaste siete veces más pero lo vas a pagar”
“Tu cuñado es um sinvergüenza pero tu eres peor, eres un ladrón y un mierda.”
9. Ou seja,
«Quero saber Carlos se te estás a esconder de mim, porque se for assim que te vais comportar, alguém tem que te dizer. Devolveram o cheque e a minha paciência acabou. Vou atrás de ti. Estou pelos cabelos de tipos imprestáveis como tu e mentirosos.»
«Ainda que gaste sete vezes mais, vou-te fazer pagar.»
«O teu cunhado é um sem vergonha, mas tu és pior, és um ladrão e um merdas.»
10. Note-se ainda que o Arguido, tendo domicílio profissional e de férias em Portugal e ainda telemóvel ligado à rede móvel nacional, desloca-se com bastante frequência ao território nacional.
11. Tendo sempre feito referência, nos telefonemas em que se dirigia de forma ameaçadora ao Assistente, que se encontrava em território nacional.
12. A conduta do Arguido é tanto mais censurável, por gratuita, quando o Assistente já procedeu ao pagamento de parte do montante acordado no contrato supra referenciado, tendo mesmo pago as despesas que o Arguido teve com a devolução do cheque, conforme comprovativos que se juntaram com a Queixa-crime como documento 4.
13. Decorre do supra exposto que o Arguido remeteu mensagens de texto ao Assistente com um conteúdo injurioso, actuação que se consubstancia na prática do crime de injúria, conforme infra referido, previsto e punido pelo artigo 181.º, do CP.
14. Nos termos do disposto no artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, é punido pelo crime de injúria “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração”.
15. O tipo objectivo do crime de injúria é composto pelas seguintes condutas (que têm que ser dirigidas directamente ao ofendido):
a. Imputação de um facto ofensivo da honra;
b. Formulação de um juízo ofensivo da honra;
c. Reprodução daquela imputação ou deste juízo.
16. Ora, o Arguido, ao ter dirigido, directamente, ao Assistente, as mensagens de texto com o conteúdo supra referenciado e reproduzido, mormente ao ter-lhe chamado “ladrão”, “mentiroso” e “merdas” formulou diversos juízos ofensivo da honra do Assistente.
17. Sendo, “suficiente que o ofendido presencie a conduta do agente, mesmo que noutro espaço físico ou em momento diferido no tempo em relação à comunicação (por exemplo, através de mensagem gravada no seu telemóvel)”.
18. O Arguido agiu com dolo directo, visto que actuou com consciência e com intenção de praticar tal ilícito.».
Compulsada a acusação particular deduzida, verifica-se que esta não reúne condições para ser recebida, pois nela não são suficientemente descritos os factos que consubstanciariam a prática pelo arguido do crime que lhe é imputado. Com efeito, nos termos do disposto na alínea b) do nº 3 do art. 283º, aplicável à acusação particular por via do disposto no nº 3 do art. 285º, ambos do Cód. de Proc. Penal, a acusação contém, sob pena de nulidade, «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática (…)».
Ora, nos factos que transcrevemos supra não se encontra descrito o lugar onde os crimes foram cometidos, o que não permite sequer descortinar se o crime foi cometido na comarca de Évora e, em consequência, se este tribunal é o territorialmente competente para proceder ao julgamento (cfr. art. 19º do Cód. de Proc. Penal). Com efeito, o assistente não menciona em que local recebeu as aludidas mensagens, nomeadamente se tal aconteceu na sua residência ou no seu local de trabalho (ou outro), que de resto também não são mencionados no libelo acusatório. Por outro lado, o assistente também não alega que não lhe fosse possível fazer tal descrição, o que poderia eventualmente conduzir à aplicação do disposto no art. 21º do Cód. de Proc. Penal.
Deste modo, verifica-se violação do disposto na alínea b) do nº 3 do art. 283º, aplicável ex vi do disposto no nº 3 do art. 285º, ambos do Cód. de Proc. Penal, o que conduz à nulidade da acusação particular e, consequentemente, à sua rejeição, por ser manifestamente infundada (art. 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), ambos do Cód. de Proc. Penal).
Assim, por ser manifestamente infundada, rejeito a acusação particular deduzida a fls. 125 e ss. pelo assistente CALC.
Tendo em consideração princípio da adesão (art. 71º do Cód. de Proc. Penal), também não admito o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente.
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Analisando o mérito do recurso:
O fundamento do despacho sob censura residiu no art. 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP, reconduzindo-se, pois, à rejeição da acusação particular, por manifestamente infundada, em razão de não conter a narração dos factos, por omissão do lugar onde teriam ocorrido.
Ora, toda a acusação haverá de respeitar os requisitos previstos no art. 283.º, n.º 3, do CPP, subsidiariamente aplicável à acusação particular por via do art. 285.º, n.º 3, do CPP, devendo conter, entre outros, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
Essa exigência constitui clara emanação do princípio acusatório consagrado no n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, no sentido de que só se pode ser julgado pela prática de crime precedendo acusação e formulada por órgão distinto do julgador.
Conforme refere Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, pág. 65, a concepção típica de um processo acusatório implica «estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa, tanto na determinação do objecto do processo (thema decidendem), como na extensão da cognição (thema probandum),como nos limites da decisão (ne eat judex ultra vel extra petita partium)», só assim, quanto àquele objecto e suas consequências, estando asseguradas as garantias de defesa, para que o arguido conheça, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles se possa convenientemente defender.
Contém-se na dimensão ampla de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, nos termos do n.º 1 desse mesmo art. 32.º, que se constitui como verdadeiro princípio constitucional, consagrando uma cláusula geral englobadora de todas as garantias que hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido, ou seja, de todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 516).
Segundo estes Autores, ainda, ob. cit., pág. 522, O princípio acusatório (…) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).
Também, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, tomo III, pág. 117, sublinha que O processo acusatório, buscando assegurar a imparcialidade do julgador, atribui a órgãos distintos as funções de investigação e acusação, por um lado, e a função de julgamento dessa acusação, por outro. Deste modo pretende assegurar-se a objectividade do julgamento dos factos que são objecto da acusação; a acusação é condição processual de que depende sujeitar-se alguém a julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento.
Já Figueiredo Dias referia, ob. cit., pág. 145, que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (…) e a extensão do caso julgado (…). É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal; os princípios, isto é, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se irrepetivelmente decidido.
Toda a temática se revela, aliás, como decorrência do direito a um processo equitativo, em sintonia com o art. 6.º, n.º 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Visando o reforço desse princípio, o legislador, não só comina de nulidade a preterição dos requisitos da acusação (referido art. 283.º, n.º 3), como também, pela redacção do mencionado art. 311.º, n.º 3, do CPP - introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25.08 e, mormente, na sequência de divergências notadas na doutrina e na jurisprudência e da formulação do Assento do STJ n.º 4/93, de 17.02, in D.R. I-A Série de 26.03.1993, que então fixava como obrigatória a jurisprudência de que «A alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária», a qual sempre suscitou a dúvida de compatibilizá-la com o princípio acusatório e com a autonomia das autoridades judiciárias que presidem, respectivamente, ao inquérito e ao saneamento e julgamento do processo - veio restringir ao mínimo indispensável, isto é, unicamente em razão de vícios estruturais da acusação, a possibilidade do juiz de julgamento - em situações em que não tenha havido instrução - se pronunciar valorativamente quanto aos termos da mesma, no cumprimento estrito da distinção constitucional de funções que às diferentes autoridades judiciárias incumbem e, concomitantemente, às suas diversas atribuições no âmbito processual penal.
Com esse desiderato, previu expressamente as situações específicas em que a acusação, por manifestamente infundada, pode ser rejeitada, aproximando a redacção daquele n.º 3 do art. 311.º da previsão do art. 283.º, n.º 3, do CPP.
De todo o modo, a importância da acusação está, pois, bem revelada, não podendo o arguido ser surpreendido em julgamento com factos de que, acusação, lhe não tivesse posto diante dos “olhos”, como se acentuou expressivamente no acórdão do STJ de 06.12.2002, in CJ Acs. STJ, ano X, tomo III, pág. 240.
Se assim é, tal não significa, contudo, que a acusação tenha necessariamente de conter todos aqueles aspectos que são indicados na alínea b) do n.º 3 do art. 283.º e com idêntico grau de exigência, uma vez que se admite que exista a possibilidade de os concretizar, sem prejuízo de que, não obstante, a imposta narração de factos traduza acontecimento que possa ser plenamente delimitado nos seus contornos e relevância.
Em concreto, a acusação deduzida pelo assistente omite o lugar da prática dos factos, sendo que, objectivamente, as mensagens de texto, alegadamente injuriosas, teriam sido enviadas pelo arguido e recepcionadas no telemóvel daquele.
Ora, dada a forma de transmissão dessas mensagens, compreende-se que alguma dificuldade existiria, para o assistente, quanto à concretização rigorosa do lugar da prática dos factos, designadamente à luz da regra geral definida pelo art. 7.º do CP, aspecto importante para a determinação de qual o tribunal competente para o julgamento.
Por seu lado, o alegado quanto à dificuldade em saber onde se encontrava quando as recebeu, ainda que não se afigure muito habitual, reflecte, de certo modo, seriedade na sua revelação, uma vez que, certamente, lhe seria fácil dizer que isso se teria verificado na área da sua residência.
Não obstante tudo isso, sempre se dirá que o assistente apresentou queixa nos Serviços do Ministério Público de Évora, comarca onde reside, e que o arguido, segundo a acusação formulada, “tendo domicílio profissional e de férias em Portugal e ainda telemóvel ligado a rede móvel nacional, desloca-se com bastante frequência ao território nacional” e “tendo sempre feito referência, nos telefonemas em que se dirigia de forma ameaçadora ao assistente, que se encontrava em território nacional”, pelo que, quanto perceptível, a alegada, pelo arguido, situação de eventual incompetência de tribunal nacional para o julgamento não tem suporte.
Identicamente, a circunstância do assistente não ter referido, na acusação, que não era possível fazer a indicação do lugar do crime não se configura como obstando a que as regras definidas pelo art. 21.º do CPP, enquanto no sentido de que o lugar da notícia do crime seja o relevante para aferir da competência territorial do tribunal, se devam atender em concreto.
Tanto mais que, constando da acusação a descrição dos restantes elementos pertinentes e, não sendo o lugar da prática dos factos elemento essencial e, por maioria de razão, no contexto em que terão ocorrido, isso tenha redundado em omissão que não põe em causa que o arguido saiba efectivamente qual o objecto dessa acusação.
Ainda, saliente-se, o julgador apenas deve usar da prerrogativa do art. 311.º, n.º 2, do CPP, quando seja de todo inviável a condenação do arguido e, assim, evitar sujeitá-lo injustificadamente à violência de um julgamento, sem que se deva, assim, conferir prevalência a aspectos formais que contendam com a desejável realização material da Justiça e com a inerente protecção dos interesses legalmente protegidos, em que se incluem, também, os do assistente.
A relativa excepcionalidade da aplicação da consequência da rejeição da acusação, por manifestamente infundada, está reflectida na conjugação dos arts. arts. 283.º, n.º 3, e 311.º, n.º 3, na medida em que se, quanto à falta de requisitos da acusação, o vício cominado é de nulidade sanável (arts. 119.º a contrario e 120.º do CPP), não se compreenderia que, na prolação desse despacho, se cominasse alguma deficiência, desde que manifestamente suprível, com a imediata rejeição da mesma.
Assim, não se aceita, por excessiva e desproporcional, a posição defendida no despacho recorrido, que se traduziria, a sufragá-la, em coarctar injustificadamente a devida protecção do direito do assistente.
Isto porque, ainda, nesta problemática, não deixa de entroncar a previsão legal da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, definida, nos termos do art. 1.º, alínea f), do CPP, como sendo aquela que não tem por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, o que, na situação concreta, se adequa ao posterior apuramento do lugar da prática dos factos, transmitidos e recepcionados pela via referida.
Se é certo que, de acordo com a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, que esteve na origem da Lei n.º 59/98, com a dedução da acusação ou com o despacho de pronúncia fixam-se os factos que definem os poderes de cognição do tribunal, regulando-se, de forma exigente, as situações de alteração substancial dos factos nas várias fases do processo, em respeito dos princípios do acusatório, do contraditório e da igualdade de armas, elementos incidíveis de um processo equitativo e, por isso, tudo aconselhando a que, aquando da prolação desse despacho, exista um efectivo controlo dos requisitos da acusação, se a situação se configura, tão-só, como aqui sucede, reportada ao lugar da prática dos factos cometidos nessas circunstâncias, a consequência de rejeição da acusação não se afigura como a mais correcta e equilibrada.
A tanto não contenderá eventual questão que se suscite até ao início da audiência e julgamento, com influência na determinação da competência territorial do tribunal.
A acusação não padece, pois, de vício estrutural que seja de grau suficientemente elevado, na sua importância, que imponha a rejeição.
Falecendo razão para rejeição, o pedido de indemnização civil deduzido subsistirá, cabendo aferir da sua admissibilidade.
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3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente e, consequentemente,
- revogar o despacho recorrido e determinar que seja substituído por outro que, dando seguimento aos subsequentes trâmites, designe data para audiência e se pronuncie quanto à admissão do pedido de indemnização civil.

Sem custas.
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Processado e revisto pelo relator.

(Carlos Jorge Berguete)
(João Gomes de Sousa)