Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
78/14.0T8STR-N.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: FACTO EXTINTIVO
LEVANTAMENTO DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Decretada providência cautelar determinando a restituição do bem ao requerente, a improcedência da acção principal, decidida por sentença transitada em julgado, não significa que o requerido disponha automaticamente de título executivo para obter a devolução desse bem.
2. Deverá ser tomada decisão pelo juiz, nos termos do art.º 373.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, determinando a extinção do procedimento ou o levantamento da providência, com prévia audiência do requerente, logo que demonstrada nos autos a ocorrência do facto extintivo.
3. Para o efeito, analisando as questões relevantes que possam interferir na efectiva devolução, o juiz certificará a caducidade da providência e tomará as medidas necessárias à reposição da situação anterior, sendo essa a decisão exequível ao dispor do requerido para devolução do bem.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
(…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Comércio de Santarém, foi decretada a insolvência de (…) e, subsequentemente, o administrador de insolvência lavrou auto de apreensão do estabelecimento de farmácia denominado “Farmácia (…)”, sito em Tomar, e bem assim do respectivo alvará emitido pelo Infarmed.
À insolvência foi apensada acção (Apenso E) na qual eram demandantes a referida (…) e ainda (…), e demandadas as sociedades (…), S.A. (1.ª Ré), e (…), S.A. (2.ª Ré), na qual se pedia a declaração de resolução do contrato de trespasse celebrado em 20.04.2012 entre os Autores e a 1.ª Ré com efeitos na 2.ª Ré e de anulação do contrato de trespasse celebrado em 14.08.2013 entre a 1.ª Ré e a 2.ª Ré; a condenação da 1.ª Ré a pagar aos Autores indemnização no valor de € 1.404.330,39, acrescida de juros, e ainda em montante a liquidar em execução de sentença.
Na sua contestação, a (…), S.A., formulou, para além do mais, pedido reconvencional de entrega do estabelecimento “Farmácia (…)”.
Porém, em saneador datado de 20.01.2017, este pedido não foi admitido por inadmissibilidade legal e por falta de interesse em agir.
O referido apenso E prosseguiu para julgamento, após o que foi proferida sentença, em 17.01.2019, contendo o seguinte dispositivo:
«(…) decido julgar parcialmente procedente a presente acção, e, em consequência:
a) Declaro resolvido o contrato de trespasse do estabelecimento Farmácia (…) celebrado entre os Autores e a 1.º Ré;
b) Absolvo a 2.ª Ré do pedido de resolução do contrato de trespasse celebrado entre os Autores e a 1.º Ré;
c) Absolvo as Rés do pedido de condenação no pagamento aos Autores a quantia de € 1.404.330,39 (um milhão, quatrocentos e quatro mil, trezentos e trinta euros e trinta e nove cêntimos) a título de indemnização pelo interesse contratual negativo, acrescida de juros á taxa legal desde a data da citação até integral pagamento; e ainda em montante que se vier a apurar e a liquidar em execução de sentença;
d) Declaro sem efeito os pedidos reconvencionais de declaração de nulidade do documento denominado declaração de dívida e de condenação dos Autores a indemnizar a 1.ª Ré no montante global de € 812.483,76 (oitocentos e doze mil, quatrocentos e oitenta e três euros e setenta e seis cêntimos).»
Desta sentença interpôs recurso a Massa Insolvente de (…), ao qual foi negado provimento por Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 16.05.2019 (Proc. 78/14.0T8STR-E.E1).[1]
Entretanto, também a (…), S.A. (1.ª Ré no Apenso E), foi declarada insolvente (Proc. 11011/14.9T8LSB), tendo o respectivo administrador de insolvência procedido à resolução em benefício da massa do contrato de trespasse celebrado entre a 1.ª Ré e a 2.ª Ré em 14.08.2013. A 2.ª Ré (…), S.A., impugnou essa resolução, em acção proposta por apenso àquela insolvência, não existindo ainda decisão à data da última informação prestada a estes autos (em 09.12.2019).

A (…), S.A., apresentou requerimento executivo para entrega de coisa certa, neste caso, o estabelecimento comercial de farmácia, invocando como título executivo a supra-referida sentença de 17.01.2019, proferida no Apenso E, afirmando que não tendo sido declarado resolvido o contrato pelo qual a 1.ª Ré lhe trespassou a farmácia, este se mantém válido e eficaz.
Deduziu a Massa Insolvente de (…) embargos de executado, invocando, para além do mais, a inexistência de título executivo, tanto mais que o pedido reconvencional que a exequente havia formulado, para entrega do estabelecimento, não foi admitido.
A exequente (…), S.A., contestou e argumentou que, tendo sido desapossada do estabelecimento em consequência da procedência do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, da qual o Apenso E era a acção principal, e tendo sido absolvida do pedido de resolução do contrato de trespasse que havia celebrado em 14.08.2013 com a 1.ª Ré, a decisão tomada no procedimento cautelar caducou, nos termos do art. 373.º do Código de Processo Civil.
Em saneador-sentença, julgou-se os embargos procedentes por inexistência de título executivo.

Inconformada, a exequente (…), S.A., recorre e conclui:
a) A douta sentença de que se recorre decidiu não constituir a sentença do apenso E título executivo nos termos pretendidos pela exequente, tendo dado procedência os embargos ao abrigo do disposto no art.º 729º, al. a), do CPC;
b) Nos termos do disposto no artigo 607º do CPC, na sentença deve o Juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final;
c) Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 615º do CPC, é nula a sentença quando, entre outros, não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) No caso dos autos, a douta Sentença não refere quais os factos provados, não existindo igualmente menção dos factos não provados, razão pela qual não cumprindo as exigências de fundamentação por lei exigidas, viola o artigo 607°, n° 3, do CPC;
e) O que implica a nulidade da decisão à luz do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, aqui aplicável, que deve ser decidida.
f) Por outro lado, a douta sentença parece-nos ininteligível, dada a sua obscuridade.
g) A nulidade ancorada na ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida, remete-nos para a questão dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade).
h) Ora, salvo o devido respeito, não conseguimos alcançar com certeza, o que se pretende expor com a decisão, nomeadamente:
i) Porque motivo é que apenas se os recorridos tivessem sido condenados no cumprimento de qualquer obrigação patrimonial para com a recorrente, é que é que esta poderia, por via duma execução para entrega de coisa certa, vir executar?
j) Porque motivo não pode a sentença proferida no apenso E constituir título executivo para a entrega do estabelecimento de farmácia à recorrente?
k) Porque é que o dispositivo dessa sentença não poderá servir como título executivo para entrega de coisa certa à recorrente?
l) Porque é que não constitui a sentença do apenso E título executivo nos termos pretendidos pela exequente?
m) Nenhuma destas perguntas tem resposta na douta sentença proferida, não sendo a mesma clara, no sentido de permitir ao destinatário entender o pensamento do Tribunal a quo para decidir como decidiu.
n) Ficamos sem perceber porque é que, no entendimento do douto Tribunal a quo, a sentença executada não constitui título executivo.
o) O que implica a nulidade da decisão à luz do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, aqui aplicável, ex vi artigo 17º do CIRE, que deve ser decidida.
p) A exequente é a 2ª Ré nos autos principais, no âmbito do qual os executados requereram a declaração de resolução do contrato de trespasse celebrado entre os executados e a 1.º Ré com efeitos na exequente e de anulação do contrato de trespasse celebrado entre a 1.ª Ré e a 2.ª Ré (ora exequente).
q) A acção é principal do procedimento cautelar comum que correu termos no douto Juízo do Comércio de Santarém sob o n.º 1405/13.2TBTMR, no 2º Juízo, a qual foi integralmente declarada procedente vindo a final ser determinado: a restituição aos executados do estabelecimento comercial de Farmácia designado Farmácia (…).
r) Assim, a exequente perdeu a posse do referido estabelecimento, em virtude da decisão proferida no âmbito da providência cautelar.
s) Porém, no dia 7 de Janeiro de 2019 foi proferida douta sentença judicial que constitui título executivo, no âmbito da qual foi declarado resolvido o contrato de trespasse do estabelecimento Farmácia (…) celebrado entre os executados e a 1.º Ré e foi absolvida a exequente (2.ª Ré) do pedido de resolução do contrato de trespasse celebrado entre os executados e a 1.º Ré.
t) Assim, não foi declarado resolvido pelo douto Tribunal o contrato de trespasse para a exequente, pelo que este se mantém válido e eficaz.
u) Nos termos do disposto no artigo 373º do CPC, o procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca se a acção vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado.
v) A improcedência da acção, implica a cessação automática (caducidade) da eficácia do dictat judicial emitido na providência.
w) Pelo exposto, a ora Exequente é a única e legítima proprietária do estabelecimento de farmácia denominado Farmácia (…), devendo, nessa medida, os Executados proceder à entrega do referido estabelecimento à Exequente, entregando-lhe, nomeadamente, os respectivos documentos e chaves.
x) A sentença transitou em julgado pelo que constitui título executivo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 704.º, n.º 1, do CPC, sendo o tribunal competente conforme o disposto nos artigos 85.º, n.º 1, 550.º, n.º 2, alínea a), 626, n.º 3, do CPC.
y) Alega a embargante que a exequente não dispõe de título executivo, e não dispondo dele não pode exigir a entrega e a execução deve ser extinta.
z) Para tanto, defende que naquele processo a exequente tinha formulado um pedido reconvencional, pedindo a entrega da farmácia à exequente e que tendo esse pedido sido indeferido no despacho saneador, transitado, não pode servir de título executivo.
aa) Ora, o pedido reconvencional indeferido no despacho saneador não impede que a douta sentença proferida constitua título executivo.
bb) Com efeito, a Exequente havia apresentado pedido reconvencional de entrega do estabelecimento de farmácia (…), sita em Tomar.
cc) Sobre esse pedido, recaiu o seguinte despacho:
dd) «Quanto ao primeiro pedido reconvencional, a causa de pedir apresentada pelas Ré é desgarrada de qualquer substrato factual ou jurídico, próprio de uma acção de restituição de posse, pelo maior e superior fundamento de que a entrega do referido estabelecimento aos Autores decorreu na sequência da sentença proferida no apenso F, transitada em julgado, e que julgou procedente o respectivo procedimento cautelar, deferindo a providência requerida pelos ali requerentes (…) e marido, (…) e, em consequência, determinando a imediata restituição aos mesmos requerentes do estabelecimento comercial de farmácia designado “Farmácia (…)”, sito em Tomar, na Av. (…), n.º 62 a 66, com todo o seu estoque. As Requeridas, aqui Rés, foram notificadas da sentença proferida no apenso cautelar e com a advertência do artigo 375.º do NCPC, sem que fosse interposto qualquer recurso. De resto, como surge evidente, a providência caduca se a acção vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado, nos termos do art.º 373.º, n.º 1, al. c), do NCPC, pelo que o efeito do pedido reconvencional mais não é do que o efeito correspectivo da improcedência dos pedidos enunciados pelos Autores. Pelo exposto, por inadmissibilidade legal e por falta de interesse em agir, não admito o pedido reconvencional de entrega do estabelecimento de farmácia (…), sita em Tomar à 2ª Ré.»
ee) Basta uma leitura não muito atenta da seguinte passagem desse douto despacho para improceder o alegado pela Executada: «De resto, como surge evidente, a providência caduca se a acção vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado, nos termos do art.º 373.º, n.º 1, al. c), do NCPC, pelo que o efeito do pedido reconvencional mais não é do que o efeito correspectivo da improcedência dos pedidos enunciados pelos Autores.»
ff) E, efectivamente, a acção veio a ser julgada improcedente.
gg) O procedimento cautelar comum havia sido integralmente declarado procedente vindo a final ser determinado a restituição aos executados do estabelecimento comercial de Farmácia designado Farmácia (…).
hh) Assim, a exequente perdeu a posse do referido estabelecimento, em virtude da decisão proferida no âmbito da providência cautelar.
ii) A sentença transitou em julgado em 15 de Fevereiro de 2019, para os efeitos da presente execução, pelo que constitui título executivo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 704.º, n.º 1, do CPC, sendo o tribunal competente conforme o disposto nos artigos 85.º, n.º 1, 550.º, n.º 2, alínea a), 626, n.º 3, do CPC.
jj) Com efeito, ao recurso interposto foi atribuído efeito meramente devolutivo.
kk) Posteriormente, foi proferido douto acórdão do TRE que manteve a decisão da 1ª Instância e que já transitou em julgado.
ll) Pelo que, impugna-se a alegada inexistência de título executivo, facto que, aliás, a Executada conhecia, pois bem sabia os termos do indeferimento do pedido reconvencional, que é claro.
mm) A final, veio o Tribunal a quo a decidir que não existe título executivo, mas não se percebe porquê, pois não conheceu da matéria alegada pelas partes.
nn) Tendo em conta o exposto, a verdade é que a posse da farmácia (…) foi atribuída à recorrida no âmbito da providência cautelar, ou seja, apenas a posse e não a propriedade, pois essa discutia-se no apenso E, que foi improcedente para a recorrida.
oo) Logo, a posse provisória que lhe havia sido atribuída com o deferimento da providência cautelar, caducou com a prolação da sentença no apenso E.
pp) Essa sentença constitui, assim, título executivo para a entrega da farmácia, uma vez que, após interpelação para o efeito, a recorrida não procedeu à sua entrega.
qq) A decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação do disposto nos artigos 373º, 704.º, n.º 1 e 729º, al. a), do CPC.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

Aplicando o Direito.
Da nulidade da sentença
Faz a Recorrente apelo a duas alíneas do art.º 615.º, nº 1, do Código de Processo Civil, por falta de especificação dos factos provados e por obscuridade ao não analisar diversas questões que, no seu entender, deveriam ter sido analisadas, enquadrando tal arguição nas als. b) e c) daquele normativo.
Quanto à invocação de falta de fundamentação fáctica – artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil – diremos que apenas ocorre quando houver falta absoluta dos fundamentos de facto ou de direito, e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, incompleta, não convincente, medíocre ou até errada, porquanto essa situação determinará a sua revogação ou alteração por via de recurso, mas não a respectiva nulidade.
Citando Alberto dos Reis[2], “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.”
Também Teixeira de Sousa[3] afirma que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (…). O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível.”
Não sendo exigível que a fundamentação jurídica seja longa nem exaustiva, bastando que o Tribunal justifique a sua posição, ainda que se forma concisa ou pouco persuasiva, faz-se notar, de todo o modo, que a sentença recorrida especificou os fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão.
Com efeito, estando em apreciação a arguição de inexistência de título executivo, a sentença recorrida ponderou que o facto relevante para a decisão dessa questão era o dispositivo da sentença de 17.01.2019, proferida no Apenso E, expressamente transcrito naquela peça.
Independentemente de modelos ou formulários por alguns considerados mais perfeitos que outros, o certo é que a fundamentação fáctica relevante consta da sentença recorrida – a exposição do dispositivo da sentença – e tanto basta para considerar afastada a nulidade a que se refere o artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
E quanto a uma eventual nulidade da sentença por ininteligibilidade ou obscuridade, a Recorrente acaba por enquadrar esta arguição na falta de análise de questões que, no seu entender, deveriam ter sido analisadas na sentença recorrida, o que, em bom rigor, se traduz em arguição de omissão de pronúncia.
A propósito, diremos que esta nulidade apenas ocorre quando o juiz não resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, ou conheça de outras questões não suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso das mesmas.
Referia o Prof. Alberto dos Reis[4], que “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (…), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (…) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.”
Logo, a sentença não padece de nulidade quando não analisa um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito. Como referiu o Supremo Tribunal de Justiça[5], “a nulidade por omissão de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal deixa de apreciar questões que tinha de conhecer, mas já não quando, no entender do recorrente, as razões da decisão resultam pouco explicitadas ou não se conhecem de argumentos invocados.”
No caso, a primeira instância analisou a questão que, na sua perspectiva, ditava a solução do pleito, e limitou-se à mesma, pelo que não se vislumbra qualquer fundamento legal para a invocação da nulidade referida pela Recorrente nas als. f) a o) das suas conclusões, que também nesta parte improcedem.

Da existência de título executivo
De acordo com o artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da acção executiva. O título executivo constitui, assim, o documento certificativo da obrigação exequenda, delimitando os respectivos limites objectivos e subjectivos, estando sujeito ao princípio da tipicidade.
Entre os títulos executivos admitidos por lei, conta-se a sentença condenatória – art. 703.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil – nas quais se devem considerar incluídas as que, de forma expressa ou tácita, impõem a alguém determinada responsabilidade ou cumprimento de uma obrigação.
Como já se decidiu no Supremo Tribunal de Justiça[6], “é da natureza do título executivo conter o acertamento do direito. Por isso, se perante o acto jurídico – maxime a sentença de onde emerge uma condenação implícita no cumprimento de uma obrigação – for possível concluir que aquela finalidade já se encontra assegurada, é de todo inútil a interposição de nova acção declarativa, sendo a mesma dotada de exequibilidade. Se a exequibilidade intrínseca se verifica relativamente a documentos autênticos e autenticados que constituam ou reconheçam a existência de uma obrigação (art. 707º do NCPC), a recusa desse pressuposto a uma sentença, só porque da mesma não emerge uma condenação explícita no cumprimento de uma obrigação que pela mesma é reconhecida ou constituída, revelar-nos-ia uma incongruência sistémica. Na verdade, malgrado a maior solenidade que rodeia a prolação da sentença e as garantias do contraditório que são asseguradas em todo o percurso processual para a atingir, acabaria por produzir menos efeitos do que os emergentes da apresentação de um daqueles documentos.”
Concluindo-se que a sentença, para ser exequível, não tem que, necessariamente, condenar expressamente no cumprimento de uma obrigação, bastando que essa obrigação nela seja implícita, haverá a referir, também, que o instituto do caso julgado material deve ser encarado quer na perspectiva da excepção de caso julgado, quer na perspectiva da autoridade do caso julgado.
O prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que os Tribunais proferem, o princípio da economia processual e o objectivo de estabilidade e certeza das relações jurídicas, exigem que se reconheça a eficácia do caso julgado à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável do julgado.[7]
De resto, o Supremo Tribunal de Justiça vem adoptando um critério moderador do rígido princípio restritivo dos limites objectivos do caso julgado, entendendo que a eficácia do caso julgado da sentença não se estende a todos os motivos da mesma, mas abrange as questões preliminares que constituíram as premissas necessárias e indispensáveis à prolação da parte injuntiva, contanto que se verifiquem os outros pressupostos do caso julgado material, abrangendo, pois, todas as excepções aí suscitadas por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, solução que permite evitar a incoerência dos julgamentos, respeita os princípios da justiça e da estabilidade das relações jurídicas, propicia a economia processual e corresponde ao alcance do caso julgado contido no artigo 621.º do Código de Processo Civil.[8]
Argumenta a Recorrente que, tendo sido absolvida do pedido de anulação do contrato de trespasse de 14.08.2013 pelo qual recebeu a farmácia, este mantém-se válido e eficaz, tendo caducado o procedimento cautelar pelo qual havia perdido a posse daquele estabelecimento, nos termos do artigo 373.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil.
Porém, tal não significa que a Recorrente disponha de título executivo para obter a entrega daquele estabelecimento. Tal título executivo não resulta da sentença – implícita ou explicitamente, esta não determinou que a farmácia deve automaticamente regressar à posse da Recorrente – mas antes deverá ser tomada decisão pelo juiz, nos termos do artigo 373.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, determinando a extinção do procedimento ou o levantamento da providência, com prévia audiência do requerente, logo que se mostre demonstrada nos autos a ocorrência do facto extintivo.
A decisão de improcedência da acção principal, transitada em julgado, tem necessariamente repercussão quanto ao decidido na providência cautelar dependente, determinando a caducidade de qualquer direito ali provisoriamente reconhecido, tornando-o inútil.[9]
Anotando o art. 373.º do Código de Processo Civil, Lebres de Freitas e Isabel Alexandre[10] escrevem que “o facto que constitui causa de caducidade é em alguns casos de conhecimento oficioso, por virtude do exercício da função jurisdicional. É o que acontece quando o requerente da providência propõe tardiamente a acção principal ou quando esta é julgada improcedente, por decisão transitada em julgado: apensado o procedimento cautelar aos autos do processo principal, neste são esses factos facilmente verificados. Mas tal não significa que, perante esse facto, o juiz possa oficiosamente declarar caducada a providência.”
Também em anotação à mesma norma, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[11] escrevem que “se as circunstâncias de que a lei faz depender a extinção do procedimento ou a caducidade da providência resultarem imediata e objectivamente dos autos, sem necessidade de recurso a elementos externos ou à averiguação de factores de índole subjectiva, o juiz deve decretar oficiosamente os efeitos extintivos; caso contrário, a intervenção do juiz terá de ser requerida. É o que sucederá, com maior probabilidade, no caso da al. e). Em qualquer dos casos, deve ser ouvido o requerente, isto é, o sujeito processual que será prejudicado pela decisão que determine a caducidade da providência.”
Concluindo, ocorrendo algum dos fundamentos de extinção do procedimento cautelar ou de caducidade da providência cautelar decretada, o juiz deve decretar esses efeitos e tomar as medidas necessárias à reposição da situação anterior, mas a respectiva decisão será precedida de audição prévia do requerente do procedimento cautelar.
Ora, não resulta dos autos que tal decisão tenha sido tomada, nem a Recorrente invoca-a como título executivo.
Em bom rigor, a Recorrente deveria ter-se dirigido ao procedimento onde a providência foi decretada e requerer a certificação da caducidade da providência e consequente restituição do bem do qual foi desapossada. Após o necessário contraditório, o juiz decidiria, eventualmente analisando outras questões relevantes que pudessem interferir na efectiva devolução do estabelecimento – e, no caso, consta dos autos que o estabelecimento foi apreendido para a Massa Insolvente de (…), desconhecendo-se se foi interposta alguma acção de separação e restituição desse bem, e também que o administrador da insolvência da (…), S.A. (1.ª Ré no Apenso E) procedeu à resolução em benefício da massa do contrato de trespasse celebrado em 14.08.2013, desconhecendo-se igualmente qual o resultado da acção de impugnação desse acto.
Caso tais questões fossem consideradas irrelevantes para a decisão de restituição da farmácia à Recorrente, o juiz decretaria a sua devolução à Recorrente e determinaria as medidas necessárias a esse desiderato.
Essa seria a decisão exequível ao dispor da Recorrente mas, até ser percorrido o caminho processual exposto, não podemos afirmar que a sentença absolutória constitua, ela mesmo, título executivo de uma obrigação de dare ali não determinada à Recorrida.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 14 de Julho de 2019
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
__________________________________________________
[1] Publicado em www.dgsi.pt.
[2] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140.
[3] In Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221.
[4] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143.
[5] Acórdão de 22.01.2015, no Proc. 24/09.2TBMDA.C2.S2, publicado em www.dgsi.pt.
[6] Em Acórdão de 08.01.2015 (Proc. 117-B/1999.P1.S1), publicado na mesma base de dados.
[7] Neste sentido, cfr. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, 3.ª ed., pág. 202, afirmando o seguinte: “A nós afigura-se-nos, ponderadas as vantagens e os inconvenientes das duas teses em presença, que a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidos por aquele critério ecléctico, que sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.”
[8] Mais recentemente, vide os Acórdãos do Supremo de 26.03.2015, de 07.05.2015 e de 16.02.2016, proferidos nos Procs. 1847/08.5TVLSB.L1.S1, 15698/04.2YYLSB-C.L1.S1 e 53/14.4TBPTB-A.G1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.02.2019 (Proc. 47/14.0T8MNC-D.G1.S1), sempre na mesma base de dados.
[10] In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição, pág. 73.
[11] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, págs. 440-441.