Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3941/20.5T8STB-A.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: PRESCRIÇÃO
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1- O prazo de prescrição a que aludem os artigos 70.º e 77.º da LULL inicia-se a partir da data de vencimento que vier a ser aposta pelo portador de uma livrança, que lhe tenha sido entregue por preencher nesse elemento, podendo a data aposta exceder em período mais ou menos largo o momento da constituição da obrigação no negócio subjacente à relação cartular, uma vez que não decorre da LULL, ou de qualquer outro diploma legal aplicável a títulos cambiários, a fixação de um período temporal limite para o preenchimento da livrança em branco.
2- Mostra-se, porém, essencial que a data aposta não se revele em caso algum anterior ao facto que justificou tal preenchimento, maxime o incumprimento da obrigação extracartular assumida pelo obrigado cambiário e que não viole o que tenha sido convencionado a propósito no pacto de preenchimento da livrança.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 3941/20.5T8STB-A.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal –
Juízo de Execução de Setúbal-Juiz 2
Apelante: Banco (…)
Apelado: (…)

Sumário do Acórdão
(da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
***
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:

I – RELATÓRIO
(…), Executado nos autos principais de execução para pagamento de quantia certa que lhe moveu o Exequente (…) Banco, S.A., veio deduzir oposição à execução mediante embargos de executado, pedindo a extinção da execução, alegando para tanto, em síntese:
(i) o abuso de direito por parte da Exequente;

(ii) a prescrição do direito cartular;

(iii) a prescrição dos juros; e, por último,

(iv) o preenchimento abusivo da livrança exequenda quanto ao montante em dívida.
*
Regularmente notificado, o Embargado contestou, defendendo-se por impugnação e concluiu pugnando pela total improcedência dos presentes embargos de executado.
*
De seguida, foi proferido pelo Tribunal a quo despacho que dispensou a realização de audiência prévia a que se seguiu a elaboração de despacho saneador-sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
“V – DISPOSITIVO
Face ao exposto, julgo a presente oposição à execução mediante embargos de executado deduzida pelo Embargante (…) contra o Embargado (…) Banco, S.A. totalmente procedente e, em consequência, determino a total extinção da execução.
Fixo à causa o valor de € 662.293,39 (cfr. artigos 304.º, n.º 1 e 306.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Custas pelo Embargado.
Registe e notifique.
*
Inconformada veio a Embargada apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação, nele exarando as seguintes
CONCLUSÕES
I – Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. (…) que julgou a “oposição à execução mediante embargos de executado deduzida pelo Embargante (…) contra o Embargado (…) Banco, S.A. totalmente procedente e, em consequência, determino a total extinção da execução”, por entender que o direito cambiário do Exequente / Embargado se encontrava, há muito, prescrito.
II – O Recorrente não se conforma com a douta sentença, desde logo, por o tribunal a quo, não obstante ter considerado encontrar-se em falta o concreto conteúdo da autorização de preenchimento da livrança exequenda, não convidou, previamente, o Embargado a aperfeiçoar o seu articulado, em despacho pré-saneador, designadamente a fim de esclarecer da (in)existência da referida autorização de preenchimento da livrança exequenda, nomeadamente para se aferir o que havia sido convencionado pelas partes quanto ao prazo limite de preenchimento da livrança, conforme disposto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do Código de Processo Civil.
III – E, nessa sequência, não ter previamente sindicado, em sede própria (julgamento), a vontade das partes no que concerne a essa autorização.
IV – Concluindo, sem mais, pela inexistência de um concreto acordo de preenchimento.
V – Que o convite feito as partes, para dizerem se se opunham a dispensa da audiência prévia, por despacho de 06/03/2021, de todo permitia antecipar; com efeito, o Embargado concluiu então que estavam reunidas as condições para decidir pela tempestividade do preenchimento da livrança e consequente improcedência dos embargos.
VI – Erradamente o tribunal concluiu, primeiro, pela ausência de autorização de preenchimento, depois, pela prescrição cambiária.
VII – Desde logo, decorre do número 13 da cláusula 13.ª do “Contrato de Transacção” a existência de uma autorização de preenchimento da livrança exequenda.
VIII – Ainda assim, deveria ainda ter submetido a julgamento, o apuramento da vontade das partes no que concerne ao conteúdo da autorização de preenchimento; ao invés de concluir – sem provas – pela inexistência de um acordo de preenchimento (ainda que verbal, teria de existir).
IX – Seguidamente, no que concerne à prescrição do título cambiário, não se vê um qualquer fundamento para aplicar, antes do preenchimento da livrança, o prazo de prescrição previsto no artigo 70.º da L.U.L.L. (aplicável às livranças ex vi 77.º do mesmo diploma) A questão é colocada / pode ser colocada neste exclusivo plano e não no plano do preenchimento abusivo, que exigiria a consideração do exacto teor da autorização de preenchimento.
X – Desde logo, porque não estando livrança preenchida não se trata de um verdadeiro título cambiário.
XI – Não faz, por isso, qualquer sentido aplicar o prazo de 3 anos previsto na LULL para efeitos de prescrição de livrança em branco, antes do seu preenchimento como faz a sentença recorrida, ao invés do prazo ordinário (20 anos), previsto no artigo 309.º do Código Civil: esse é o prazo estabelecido pelo legislador para quando não exista uma regra especial.
XII – Assim, a obrigação só se tornou exigível após 18/11/2007 – data de vencimento da última prestação do contrato de transacção –, podendo, então, o Banco mutuante exercer o seu direito de cobrança dos montantes em dívida decorrentes do incumprimento do contrato.
XIII – Sendo que, para cobrança do crédito dos avalistas, realizou-se uma reunião em 2015 com os avalistas sobrevivos para tentar um acordo extrajudicial e uma outra, já em 2019, com o Recorrido.
XIV – Por outro lado, é entendimento generalizado na jurisprudência e doutrina portuguesa, que a contagem do prazo previsto no artigo 70.º da LULL apenas tem o seu início com o preenchimento da livrança (já não, a partir do momento é quem é possível esse preenchimento/olhando ao acordo de preenchimento).
XV – Concluindo-se, assim, que o Exequente poderia apor na livrança a data de vencimento que entendesse, desde que se verificasse – como sucedeu in casu – o incumprimento, nos termos dados como provados.
XVI – O não exercício prolongado de um direito, por si só, não seja suficiente para consubstanciar uma situação de preenchimento abusivo de livrança e a subscrição de livrança em branco tem um alcance e risco que o Recorrido (bancário e empresário), não podia desconhecer:
XVII – Como refere o Acórdão do STJ de 19 de Fevereiro de 2003, mantendo-se o aval prestado pelo Recorrido, este deveria contar, a qualquer momento, com o exercício do direito de cobrança coerciva dos créditos vencidos, designadamente pela via da ação cambiária; até ao limite de vinte anos, fixado no artigo 309.º do CC; a não ser assim, qual então a razão de ser desta previsão legal?
XVIII – Em suma, a livrança não se encontra prescrita nos termos do artigo 70.º da LULL, pois que se venceu em 15/01/2020 (i.e., a contagem do prazo de prescrição previsto no artigo 70.º da LULL conta-se da data aposta como data de vencimento e não, tese do tribunal a quo, da data a partir da qual podia ter sido preenchida).
XIX – Ao assim não decidir, o tribunal a quo violou as disposições normativas constantes dos artigos 590.º, n.º 2 e seguintes, 595.º, n.º 1, alínea b), a contrario, ambos do CPC e 70.º da LULL, ex vi artigo 77.º do mesmo diploma, bem como a jurisprudência dominante sobre o início da contagem do prazo prescricional, em caso de livrança emitida em branco.
XX – Pelo que, deve proceder o presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que decrete a inexistência da prescrição do direito cambiário, ordenando o prosseguimento dos presentes autos, com vista à sua ulterior tramitação.”
*
O Embargado respondeu ao presente recurso, alinhando as seguintes
“CONCLUSÕES
I – Não tendo sido arguida e suscitada pelo recorrente a nulidade da sentença no próprio requerimento de interposição de recurso para o tribunal a quo para dela tomar conhecimento e poder apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, conforme decorre da interpretação do n.º 1 do artigo 617.º e n.º 1 do artigo 641.º, ambos do Código de Processo Civil, fica precludida a apreciação da nulidade invocada apenas nas alegações de recurso.
II – A douta sentença posta em crise pelo recorrente encontra-se devidamente fundamentada, não padecendo de qualquer nulidade.
III – As questões suscitadas nos embargos de executado, prendem-se com a análise das atas de assembleias de condóminos juntas aos autos, se constituem ou não títulos executivos, tendo a sentença analisado detalhadamente as atas dadas como títulos executivos e explicita com clareza qual a orientação que perfilha sobre esta matéria, sustentando, em suma, que as atas em causa são títulos executivos, concluindo que apenas o não são relativamente à penalização devida pela falta de pagamento do condomínio pelo embargante.
IV – A sentença debruça-se também sobre a invocada prescrição explicando o seu entendimento sobre esta matéria. Se o recorrente discorda desse entendimento já é uma questão diversa, mas não há naturalmente qualquer omissão na sentença.
V – Na sentença também se discute a questão levantada pelo recorrente dos consumos de água e eletricidade relativamente aos anos de 2013 e 2014, referindo neste aspeto que “ao embargante é que cabia alegar (e depois provar) com factos concretos que esses valores não são correctos, de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova previstas no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil. Com efeito, a actuação processual que se exigia ao embargante (que é autor neste incidente declarativo) não é compatível com a mera impugnação. Em suma, a petição inicial é omissa em relação a factos concretos com efeito impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do exequente/embargado. Disse que a fração está inabitada durante 9 meses, mas não indicou um único valor concreto de consumos correctos para o tipo de uso da habitação. Nem sequer fez referência aos pagamentos mensais obrigatoriamente que são feitos por qualquer consumidor, mesmo que não habite a casa e que vêm referidos em sede de contestação – cfr. artigo 31.º – o valor das taxas de potência elétrica, a taxa da RDP e dos impostos especiais relativos à energia, o valor do IVA (à taxa de 23% para a energia elétrica e à taxa de 6% para a água), o valor das taxas de recolha de resíduos sólidos, e as taxas de esgotos”.
VI – Como se refere na sentença não basta dizer que a casa se encontra inabitada durante 9 meses, pois desde logo, nos termos do disposto no artigo 1424.º, isso não retira obrigações ao condómino e este não deixa de ser responsável pelo pagamento das despesas do condomínio.
VII – Sobre a consagração da causa de nulidade prevista na alínea b) do artigo 615.º do Código de Processo Civil tem-se entendido, neste particular, que a referida norma apenas abrange os casos de total omissão, o que não sucede manifestamente no caso sub judice. Não deve, por isso, proceder a alegada nulidade de sentença.
VIII – Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, deverá convocar audiência prévia para o fim previsto no artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, o que foi escrupulosamente cumprido pelo tribunal.
IX – Ora, na sentença ficou expressamente a constar que cabia ao embargante alegar (e depois provar) com factos concretos que esses valores não são correctos, de acordo com a regras de distribuição do ónus da prova previstas no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil e que a actuação processual que se exigia ao embargante (que é autor neste incidente declarativo) não é compatível com a mera impugnação, bem como a petição inicial de embargos é omissa em relação a factos concretos com efeito impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do exequente/embargado, pelo que a matéria em discussão nos presentes fica perfeitamente delimitada e resume-se a matéria de direito para a qual o tribunal está desde logo habilitado a apreciar e proferir decisão de mérito, nos termos daquele preceito legal.
X – Referiu o recorrente que a fração está inabitada durante 9 meses, mas nem por isso alega motivos, entenda-se factos, para ter não de pagar as despesas de condomínio, como sejam as quotas, a água e eletricidade como qualquer um que dispõe desses bens. Mesmo que a habitação não seja habitada durante algum tempo isso não implica que o condómino não tenha de cumprir as suas obrigações nos termos do artigo 1424.º do Código Civil. Caso contrário quem pagava os elevadores, os serviços de limpeza, os serviços de manutenção etc.? A verdade é que o recorrente pode usar a sua fração quando entender. No seu entender o condomínio só funcionaria quando o recorrente usasse a sua fração autónoma! Isto não faz qualquer sentido e chega mesmo a ser completamente absurdo!
XI – Todo o exercido argumentativo levado a cabo pelo recorrente nesta matéria é puramente teórico e sem correspondência com o caso dos autos, na medida em que não há sequer matéria controvertida. O embargante não alegou qualquer facto alternativo que tenha de ser objeto de prova, desde logo não adiantou qualquer outro valor como sendo aquele que deveria então pagar. Aliás, despesas do condomínio que o recorrente nunca pagou e agora pretende colmatar a sua lacuna processual com a alegação de uma suposta omissão do tribunal.
XII – O tribunal fundamenta de forma clara o seu entendimento, configurando o prosseguimento dos autos um ato inútil e desnecessário (a até atentaria contra o princípio da economia processual) face às matérias alegadas em sede embargos de executado que a próprio embargante qualifica como matéria de exceção.
Por esta razão, não pode colher a tese pugnada pelo recorrente.
XIII – Sobre a problemática de quais as atas que servem de título executivo, cumpre chamar à colação a recente jurisprudência desse Venerando Tribunal, do acórdão proferido em 12-09-2019, no âmbito do processo n.º 3751/18.0T8OER-A-E1, disponível em www.dgsi.pt:
“I. A ata do condomínio prevista no artigo 6.º do Decreto-Lei 268/94, de 25-10, é título executivo quer quando nela constam as contribuições resultantes da quota-parte a pagar pelo condómino, fixadas em assembleia de condóminos, como também quando nela constam a dívida ao condomínio resultante da ata onde se reproduza a deliberação da assembleia de condóminos que procedeu à liquidação dos montantes em dívida por cada condómino, sempre que a dívida seja certa, líquida e exigível e a ata não sido impugnada nos termos do artigo 1433.º/2, do Código Civil.
II. Uma interpretação restritiva do preceito viola a teleologia da norma, consubstanciada no objetivo de facilitar “o decorrer das relações entre os condóminos”, não fazendo sentido restringir a força executiva apenas à ata em que se delibera o montante da quota-parte das contribuições que cabe a cada condómino pagar, uma vez que se encontram assegurados os princípios da certeza e segurança jurídicas.”
XIV – Por um lado, as atas juntas com o requerimento executivo titulam obrigação certas, líquidas e exigíveis e enquadram-se perfeitamente no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 268/94. Esta norma não foi feita para complicar a vida dos condomínios. O que o legislador pretendeu foi agilizar a cobrança das dívidas dos condóminos.
XV – Conforme se refere também em acórdão tirado por esse Venerando Tribunal, de 24-10-2019, proferido no processo n.º 563/18.4T8SLV-A.E1, disponível em www.dgsi.pt, “I – De acordo com o disposto no artigo 6.º, n.º 1, do DL n.º 268/94, de 25.10, a acta de condomínio para que possa servir de título executivo tem de conter: deliberação sobre o montante das contribuições ou despesas devidas ao condomínio, fixação da quota-parte devida por cada condómino e fixação do prazo de pagamento respectivo”.
XVI – Da simples leitura das atas e como decorre da fundamentação exarada logo na parte inicial da sentença se pode comprovar que estas cumprem todos os requisitos exigidos para serem consideradas título executivo.
XVII – Por outro lado, o recorrente não impugnou as deliberações sociais que constam nas atas. As deliberações da assembleia de condóminos contrárias à lei ou a regulamentos são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado. Porém, os interessados na anulabilidade têm de agir nos prazos que a lei estabelece, e estes prazos são prazos de caducidade. Isto significa que o direito de pedir a anulação das deliberações sociais constantes nas atas dadas para execução caducou decorridos que foram 60 dias após a data das assembleias. Ora, assim sendo, e se perante o sistema e os meios legais que o legislador lhe colocou à disposição para impugnar a validade ou eficácia das deliberações tomadas nas assembleias gerais o recorrente nada fez, esta inércia tem de produzir efeitos, e tem, necessariamente, de ser tida como constituindo a aceitação irrevogável das deliberações constantes nas atas. O nosso regime jurídico da anulabilidade estabelece que todos os atos anuláveis são sanáveis pelo decurso do prazo previsto na lei para pedir a anulação. Assim sendo, e constando expressamente das atas dadas para execução os valores que o recorrente tem de pagar ao condomínio, as deliberações tomadas em assembleia de condóminos são vinculativas para todos os condóminos presentes ou ausentes, incluindo obviamente o recorrente. Como se pode verificar de todo este processo é que o recorrente quer usufruir de um apartamento que explora turisticamente e não quer pagar as despesas de condomínio.
XVIII – Face ao supra exposto, é manifesto que as atas juntas com o requerimento executivo são títulos executivos.
XIX – Por último, a prescrição invocada pelo recorrente por referência à Lei de Serviços Públicos Essenciais não pode proceder, na medida em que o condomínio não é nenhuma entidade fornecedora de água ou eletricidade. O fornecimento destes bens era feito a partir de contador totalizador pagando o condomínio esses bens às entidades fornecedoras e depois procede à respetiva à imutação da respetiva quota-parte a cada um dos condóminos, enquanto serviço de interesse comum.
XX – O condomínio não vende nem comercializa esses bens aos condóminos e naturalmente não tem qualquer atividade ou escopo lucrativo relativamente a esses bens. Quer isto dizer que o prazo de prescrição aplicável é de 5 anos, não estando prescrita a obrigação do recorrente de pagar os serviços dos quais beneficiou.
XXI – Andou bem o tribunal a quo proferindo uma decisão acertada, percorrendo um caminho perfeitamente claro, lógico, coerente, fundamentando devidamente a sua decisão, contendo a referência expressa às disposições legais aplicáveis, não omitindo ou violando qualquer norma legal, pelo que deverá ser integralmente mantida.
Assim, por estas razões e sempre com o douto suprimento de V. Exas., as alegações da Autora não podem proceder, julgando totalmente improcedente o recurso do recorrente.
Assim fazendo inteira e sã JUSTIÇA!”

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O Embargante respondeu ao recurso aduzindo as seguintes conclusões:
Concluindo:
“A. O credor pode e deve exercer a faculdade de preenchimento logo que se verifique o incumprimento definitivo da obrigação que causou a emissão da livrança em branco, pois é nesse momento que o credor adquire a informação necessária para preencher a livrança, bem como o interesse (processual) na cobrança coerciva do crédito.
B. A livrança em branco não se vence quando o seu beneficiário assim o desejar.
C. A ser assim, ou o credor teria um direito imprescritível ou o devedor renunciaria antecipadamente à prescrição, soluções viciadas pela nulidade (artigos 300.º e 302.º do Código Civil) e atentatórias da boa-fé (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil).
D. Acresce que o exercício do direito de preenchimento da livrança está limitado pela boa-fé (artigo 334.º CC), de modo a serem salvaguardados os princípios da segurança e da estabilidade jurídicas que tutelam a posição dos devedores cambiários, tornando determinável o conteúdo dos direitos incorporados no título de crédito.
E. Pelo que, no âmbito das relações imediatas, o limite ao exercício do direito de fixar o vencimento da livrança em branco corresponde ao incumprimento definitivo da obrigação subjacente (artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil), momento a partir do qual se deve contar o prazo de prescrição para o exercício dos direitos cambiários (artigo 70.º LULL).
F. A livrança venceu-se, pelo menos, em 19.10.2011, data na qual foi dissolvida e liquidada a sociedade devedora e subscritora da livrança, tendo a presente ação sido proposta em 03.08.2020, isto é, mais de 8 anos após a data de vencimento da livrança, em clara violação do disposto no artigo 70.º da LULL.
G. Consequentemente, o direito incorporado no título dado à execução prescreveu, pelo menos, há cerca de cinco anos, pelo que se deverá declarar extinta, por prescrição, a obrigação exequenda e, em consequência, ser declarada extinta a execução (artigo 732.º, n.º 4, do CPC).”
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O recurso é o próprio e foi correctamente admitido quanto ao modo de subida e efeito fixado.
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Correram Vistos.
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II – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que no caso vertente impõe-se proceder à reapreciação do mérito centrando a análise na (in)existência de prescrição do direito cambiário do Apelante.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Consta da sentença recorrida o seguinte no respeitante ao segmento reservado aos fundamentos de facto:
“4.1. Fundamentação de Facto
4.1.1. Factos Provados
Com relevo para a decisão da causa, mostra-se provado:
1. Por escrito intitulado «Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente», datado de 18.11.1999, celebrado entre o Banco …, S.A. (doravante BES), o Banco (…), S.A. (BIC), o Banco (…), S.A. (doravante BES …), a (…) – Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A. (…), (…), (…) e (…), aqueles Bancos declararam colocar à disposição da (…) um crédito até ao montante de 300.000.000$00 (€ 1.496.392,46) destinado à recomposição do fundo de maneio permanente da (…), tendo esta última se declarado então devedora do montante já utilizado de 45.000.000$00 (€ 224.458,87).

2. Para garantia do reembolso aos Bancos do capital a utilizar ao abrigo daquele contrato e do pagamento dos respetivos juros remuneratórios e de mora, bem como do pagamento das despesas, judiciais e extrajudiciais em que os Bancos viessem eventualmente a incorrer para cobrança dos seus créditos, a (…) entregou-lhes naquela data (incluindo ao Banco) três livranças em branco, sendo uma para cada Banco, subscritas pela (…) e avalizadas por (…), (…) e (…) e respetivos termos de autorização de preenchimento.
3. Por escrito intitulado «Contrato de Transação», também datado de 18.11.1999, celebrado entre a (…), a Golf (…) – Desenho, (…) e (…) de Golfe Jardim, Lda., a (…) – Relvados e Jardins, S.A., a (…) – Gestão de Golfes, S.A., a (…) – Representação de Artigos de Desporto, Lda., a (…) – Sistemas Informáticos de Gestão e Projectos, S.A. – Primeiras Contraentes –, o BES, o BIC, o BES (…), o (…) Mobiliária, S.A. – Instituições Credoras – e (…), (…) e (…) – (Garantes) –, as Primeiras Contraentes declararam-se devedoras perante as Instituições Credoras do montante global de 696.004.344$00 (€ 3.471.652,18) – saldo credor total –, que se obrigaram solidariamente a restituir em 12 prestações semestrais e variáveis de capital, vencendo-se a primeira prestação em 18.05.2002 e a última no dia 18.11.2007.

4. Ficou então ajustado no referido «Contrato de Transação» que o saldo credor total não venceria juros durante os três primeiros anos de vigência daquele contrato e que, a partir de 18.11.2002, passaria a ser remunerado a uma taxa indexada à taxa Lisbor a um ano, em vigor no segundo dia útil anterior ao início de cada período de contagem de juros e seriam pagos da seguinte forma:
a. anualmente, ocorrendo o primeiro pagamento em 18.11.2003, sendo que a quantia a pagar não poderia em caso algum ultrapassar 50% do resultado corrente consolidado positivo das Primeiras Contraentes que houvesse no final do exercício anual anterior ao período de contagem dos juros em causa; e

b. os juros que se vencessem a partir de 18.11.2002, cujo pagamento não tivesse sido efetuado por força do disposto supra em “a.”, seriam integralmente pagos no último dia do prazo de vencimento do contrato, ou seja, em 18.11.2007.
5. A (…) foi dissolvida administrativamente, encerrada a sua liquidação e cancelada a respetiva matricula em 19.11.2011.

6. Por deliberação do Banco de Portugal de 03.04.2014 foi determinada a transferência para o Embargado Novo (...), S.A. dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do Banco (…).

7. O Embargado procedeu ao preenchimento da livrança exequenda, emitida em 18.11.1999, que havia sido entregue ao Banco, nos termos acima referidos em 1, com vista ao cumprimento das responsabilidades emergentes do «Contrato de Transação», tendo inscrito em tal livrança o valor de € 669.173,39 e o vencimento em 15.01.2020, sendo que no verso desta livrança consta a assinatura do Embargante sob os dizeres: «Por aval à subscritora».
4.1.2. Factos Não Provados
Com pertinência para a boa decisão da causa, inexistem factos por provar.”
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Ao iniciar este segmento não podemos deixar de referir que apesar de se insurgir, dando nota de tal nos pontos I a VIII das suas conclusões recursivas, sobre a eventual preterição pelo Tribunal a quo de convite para aperfeiçoamento da contestação aos embargos, em sede de despacho pré-saneador ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.ºs 2, b), 3 e 4, do CPC, certo é que o Apelante não logrou retirar do que alegou qualquer consequência jurídica, designadamente não invocou expressamente qualquer invalidade, o que teria que ter feito uma vez que o quadro factual descrito pelo mesmo não permite considerar o cometimento de vício de conhecimento oficioso do Tribunal, designadamente uma qualquer nulidade principal.
Diga-se, ainda e a talhe de foice que, partindo do cenário relatado nos autos principais de acção executiva, percebemos que o ónus de alegação e prova do convencionado pelas Partes sobre o prazo limite de preenchimento da livrança recaia sobre o Apelado enquanto obrigado cambiário e não sobre o Apelante.
Ademais, afigurando-se, do que foi expresso mormente nos pontos V e VI das conclusões recursivas, ser verdadeira intenção do Apelante classificar de decisão-surpresa a sentença que impugnou, na base da preterição do contraditório pela não realização de audiência prévia, a verdade é que também neste caso o Apelante não arguiu expressamente a nulidade que tal omissão acarretaria, a qual, sendo inominada e secundária, dependeria de expressa arguição nos termos previstos nos artigos 195.º e 196.º, 2ª parte, ambos do Código de Processo Civil.
Do exposto impõe-se, pois, deixar claro não se vislumbrar qualquer vicio em sede de tramitação processual que deva ser, neste momento, conhecido por este Tribunal.

Passemos de seguida à reapreciação da questão de mérito atinente à prescrição do direito cambiário do Apelante, sublinhando, desde já, que a factualidade a considerar é a que resultou descriminada como provada na sentença recorrida, a qual se tornou definitiva por não ter sido objecto de expressa impugnação neste recurso.
Refere o Apelante em sede de conclusões recursivas não fazer qualquer sentido aplicar o prazo de três anos para efeitos de prescrição de livrança em branco, antes do seu preenchimento, previsto no artigo 70.º da Lei Uniforme de Letras e Livranças (doravante apenas LULL).
Recordemos o conteúdo da mencionada norma:
“Artigo 70.º - Prazos de prescrição
Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento.
As acções do portador contra os endossantes e contra o sacador prescrevem num ano, a contar da data do protesto feito em tempo útil, ou da data do vencimento, se se trata de letra contendo a cláusula "sem despesas".
As acções dos endossantes uns contra os outros e contra o sacador prescrevem em seis meses a contar do dia em que o endossante pagou a letra ou em que ele próprio foi accionado.”
O artigo 77.º da mencionada LULL deixa, por seu turno, clara a aplicabilidade deste regime, além de outros previstos para a letra, às livranças, ao prever o seguinte:
“Artigo 77.º - Aplicação das disposições relativas às letras
São aplicáveis às livranças, na parte em que não sejam contrárias à natureza deste escrito, as disposições relativas às letras e respeitantes a:
Endosso (artigos 11.º a 20.º);
Vencimento (artigos 33.º a 37.º);
Pagamento (artigos 38.º a 42.º);
Direito de acção por falta de pagamento (artigos 43.º a 50.º e 52.º a 54.º);
Pagamento por intervenção (artigos 55.º e 59.º a 63.º);
Cópias (artigos 67.º e 68.º);
Alterações (artigo 69.º);
Prescrição (artigos 70.º e 71.º);
Dias feriados, contagem de prazos e interdição de dias de perdão (artigos 72.º a 74.º).

São, igualmente aplicáveis às livranças as disposições relativas às letras pagáveis no domicílio de terceiro ou numa localidade diversa da do domicílio do sacado (artigos 4.º e 27.º), a estipulação de juros (artigo 5.º), as divergências nas indicações da quantia a pagar (artigo 6.º), as consequências da aposição de uma assinatura nas condições indicadas no artigo 7.º, as da assinatura de uma pessoa que age sem poderes ou excedendo os seus poderes (artigo 8.º) e a letra em branco (artigo 10.º).
São também aplicáveis às livranças as disposições relativas ao aval (artigos 30.º a 32.º); no caso previsto na última alínea do artigo 31.º, se o aval não indicar a pessoa por quem é dado, entender-se-á ser pelo subscritor da livrança.
Como refere Jorge Henrique Pinto Furtado (“Títulos de Crédito - Letra, Livrança e Cheque”, 2017, 2ª edição revista e actualizada, Almedina, pág. 200):
[…] sacador (ou emitente) e tomador são os sujeitos indispensáveis a uma livrança; os endossantes e avalistas são sujeitos que podem, eventualmente, também intervir nela.”
Já Luís de Meneses Leitão (“Garantias das Obrigações”, 2ª edição, 2008, Almedina, pág. 132), clarifica que o aval “implica […] a assunção de uma nova obrigação cambiária, cujo fim é o de garantir o pagamento da obrigação de qualquer outro dos subscritores do Título.”
Ora no caso concreto percebemos estar assente nos autos que o Apelado garantiu o pagamento da livrança apresentada à execução através de aval dado à subscritora da mesma, ou seja à firma (…) – Sociedade Gestora de Participações Sociais, SA, entretanto dissolvida administrativamente com a respectiva matrícula cancelada em 19/11/2011, tornando-se responsável pelo pagamento nos mesmos moldes que aquela, não podendo olvidar-se que a sua obrigação se mantem mesmo que a obrigação garantida seja nula desde que a causa de tal nulidade não se traduza num vício de forma, o que pressupõe, desde logo, que o facto de a subscritora da livrança ter sido declarada dissolvida e a sua matrícula cancelada alguns anos antes do preenchimento (com a data de vencimento aposta), tal não pode, como sustentou o Apelado na resposta ao recurso, constituir impedimento válido ao prosseguimento do processo executivo instaurado.
Na verdade, a admitir-se tal argumentação estaria encontrada uma válvula de escape muito conveniente para eximir responsáveis cambiários intervenientes quer nas relações imediatas, quer nas mediatas, do pagamento de títulos cambiários a que anteriormente se tivessem obrigado, máxime os avalistas, bastando que a subscritora de um tal título procedesse ao encerramento da sua liquidação, com a sua consequente dissolução e cancelamento de matrícula.
De resto, a propósito de uma situação que envolveu a falência de uma firma anteriormente subscritora de uma livrança decidiu o STJ em acórdão proferido em 23/05/1996 (Processo n.º 96B735), passível de consulta em www.dgsi.pt que: “Tendo a subscritora das livranças sido declarada falida, deixa de fazer qualquer sentido a exigência de apresentação a pagamento ao subscritor da livrança, podendo o pagamento do título ser exigido dos respectivos avalistas”.
Sabemos através dos factos considerados como provados nos autos que a livrança foi emitida em branco, dela não constando aquando da sua emissão, designadamente, a data de vencimento, o que constitui um elemento que o título em apreço deve conter.
Com efeito prevê o artigo 75.º da LULL sobre as menções que a livrança deve conter, o seguinte:
“Da livrança
Artigo 75.º

A livrança contém:

1 - A palavra "livrança" inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redacção desse título;
2 - A promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada;
3 - A época do pagamento;
4 - A indicação do lugar em que se deve efectuar o pagamento;
5 - Nome da pessoa a quem ou a ordem de quem deve ser paga;
6 - A indicação da data em que e do lugar onde a livrança é passada;
7 - A assinatura de quem passa a livrança (subscritor
)”

Por seu turno no artigo seguinte, ou seja, no 76.º, estatuiu-se que:

“Artigo 76.º

O escrito em que faltar algum dos requisitos indicados no artigo anterior não produzira efeito como livrança, salvo nos casos determinados nas alíneas seguintes.
A livrança em que se não indique a época de pagamento será considerada pagável à vista.
Na falta de indicação especial, o lugar onde o escrito foi passado considera-se como sendo o lugar do pagamento e, ao mesmo tempo, o lugar do domicílio do subscritor da livrança.
A livrança que não contenha indicação do lugar onde foi passada considera-se como tendo-o sido no lugar designado ao lado do nome do subscritor
.”

Sobre esta matéria decidiu o STJ no acórdão proferido em 25/05/2017, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Fonseca Ramos (Processo n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1), acessível para consulta in www.dgsi.pt, o seguinte:

“A certeza, a liquidez e a exigibilidade da dívida incorporada no título cambiário, em relação ao qual foi acertado pacto de preenchimento, nos termos do art. 10.º da LULL, alcança-se após o preenchimento e completude do título que, assim se mostra revestido de força executiva.”

No acórdão proferido no mesmo STJ em 19/10/2017, relatado pela Srª Juíza Conselheira Rosa Tching (Processo n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1), igualmente acessível in www.dgsi.pt, decidiu-se na mesma senda que:

“A Lei Uniforme das Letras e Livranças admite e reconhece a figura da livrança incompleta ou em branco, a qual, preenchida antes do vencimento passa a produzir todos os efeitos próprios da livrança – artigos 75.º e 10.º, este último aplicável às livranças, por força do artigo 77.º”

Bem como que:

[…]

O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança e a instauração da ação executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no artigo 334.º do Código Civil […]”.

Ainda a propósito da livrança em branco e com particular acuidade para o caso em apreço convocamos o que ficou expresso no acórdão proferido mais recentemente pelo STJ, datado de 19/06/2019, relatado pelo Conselheiro Bernardo Domingos (Processo n.º 1025/18.5T8PRT.P1.S1), igualmente acessível para consulta in www.dgsi.pt, que passamos a transcrever:

Enquanto não for preenchida a livrança em branco, com os elementos essenciais referidos no artigo 76.º da LULL, designadamente a data de vencimento, não é possível conhecer da eventual prescrição do crédito cambiário, nem tão pouco do eventual abuso de preenchimento.”

Concordamos com a posição, aliás largamente prevalecente nos nossos Tribunais Superiores, mormente no Supremo Tribunal de Justiça, que defende que no caso da subscrição de uma livrança em branco apenas com o seu preenchimento e mormente com a aposição na mesma da respectiva data de vencimento é possível considera-la um título cambiário ilustrativo de uma dívida, naquele incorporada, certa, líquida e exigível ao obrigado cambiário, passível, como tal, de integrar a previsão respeitante à prescrição do crédito cambiário prevista no aludido artigo 70.º, ex vi do artigo 77.º da LULL., podendo a data de vencimento ser aposta mesmo tendo decorrido um largo período de tempo sobre a constituição da obrigação, uma vez que não decorre da LULL, ou de qualquer outro diploma legal aplicável a títulos cambiários, a fixação de um período temporal limite para o preenchimento da livrança em branco, desde que a data aposta não se revele anterior ao facto que justificou tal preenchimento, máxime o incumprimento da obrigação extracartular assumida pelo obrigado cambiário e, naturalmente, não viole o que tenha sido convencionado a propósito no pacto de preenchimento da livrança.

A este propósito e mantendo-se na senda da jurisprudência emanada do STJ já acima elencada encontramos, ainda, os arestos, aliás mencionados na sentença recorrida, proferidos mais recentemente pelo STJ e pelo Tribunal da Relação de Coimbra e de Lisboa.

No aresto emanado do STJ, datado de 04/07/2019 (e não de 05/07/2019, conforme consta, certamente por erro de escrita, da sentença recorrida), relatado pela Srª Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo (Proc.º n.º 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1.), pode ler-se do elucidativo sumário, o seguinte:
“I. Nos termos do artigo 76.º da LULL, a consequência da falta dos requisitos formais da livrança é a ineficácia e não a invalidade, sendo que a livrança em branco produzirá efeitos quando, em momento ulterior, for preenchida com as indicações em falta, de acordo com o pacto de preenchimento.

II. A questão de saber se o início da contagem do prazo de prescrição de três anos, previsto no artigo 70.º, n.º 1, da LULL (aplicável ex vi do artigo 77.º da LULL) se afere em função da data de vencimento inscrita na livrança tem sido respondida em sentido afirmativo pela jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal, não havendo razões justificativas para nos afastarmos desta orientação consolidada.

III. Quanto à questão do preenchimento abusivo ou indevido das livranças dos autos, tendo os pactos de preenchimento autorizado a exequente embargada a, de acordo com o seu próprio juízo, preencher a data de vencimento das livranças em função do incumprimento das obrigações pela devedora “ou para efeitos de realização do respectivo crédito”, não é possível concluir-se que aquela – ao apor nas livranças uma data mais de três anos ulterior em relação à declaração de insolvência da devedora, e alguns meses anterior à acção executiva – tenha incorrido em preenchimento abusivo.

IV. Acresce que, mesmo que os termos dos pactos de preenchimento dos autos não atribuíssem à exequente tal margem de discricionariedade, atento o regime normativo da prescrição, sempre seria discutível se o simples decurso do tempo sem exigir o cumprimento das obrigações bastaria para configurar uma situação de abuso do direito.”

De salientar, ainda, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, por proferido há apenas escassos meses, (18/02/2021), relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Freitas Neto (Proc.º n.º 51/19.1T8SRE-B.C1), de que se extrai do respectivo sumário o seguinte:

“O prazo de prescrição a que se reportam os artigos 70.º e 77.º da LULL inicia-se a partir da data de vencimento que vier a ser aposta pelo portador de uma livrança que lhe tenha sido entregue incompleta nesse elemento, contanto que tal data não seja anterior ao momento em que se verificou o facto que, à luz do respectivo pacto, legitimou o preenchimento do título.”

A sentença recorrida, conforme já o dissemos supra, deu conta desta corrente jurisprudencial pese embora, a nosso ver erradamente, tenha resolvido não a seguir optando por adoptar corrente jurisprudencial inquestionavelmente minoritária argumentando com a celeridade e agilização pretendida para a cobrança dos créditos cartulares revelada pelo curto prazo prescricional previsto no artigo 70.º da LULL, a par da incerteza criada, incompatível com essas exigência de celeridade e passível de bulir com os ditames da boa fé, caso se admitisse a possibilidade do tomador da letra em branco a poder preencher livremente dilatando o prazo para a cobrança do seu crédito “a seu bel prazer”.

Tal argumentação, todavia, não pode colher, conforme bem resulta explicado nos arestos já acima, por todos, indicados.

Regressemos, agora, ao plano factual do caso concreto que temos em mãos.

Resulta da factualidade considerada assente na sentença recorrida que a livrança dada à execução incorporou em si o negócio jurídico extracartular consubstanciado no “Contrato de Transação” celebrado em 18/11/1999, em que intervieram, para além de outros, a sociedade anónima, já dissolvida, (…), S.A., o Banco (cujos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão foram, por deliberação de 03/04/2014 tomada pelo Banco de Portugal, transferidos para o ora Embargado/Apelante, … Banco, S.A.), na qualidade de co-primeiro contraente e co-instituição credora, respectivamente e o Embargante/Apelado (...), na qualidade de Co-Garante, no âmbito do qual a primeira contraente se declarou devedora da instituição credora no montante global correspondente na actualidade a € 3.471.652,18, obrigando-se solidariamente com as restantes primeiras contraentes a restituir às instituições credoras outorgantes em 12 prestações semestrais e variáveis de capital, vencendo-se a primeira prestação a 18/05/2002 e a última no dia 18/11/2007.

Também resulta da factualidade assente na sentença recorrida que para garantia do reembolso às instituições credoras outorgantes da quantia global acima referida acrescida de juros remuneratórios, a partir de 18/11/2002, juros de mora, bem como do pagamento de despesas judiciais e extrajudiciais em que as ditas instituições credoras viessem eventualmente a incorrer para cobrança dos ditos créditos, a sociedade (…), S.A., entregou na referida data de 18/11/1999 ao Banco a livrança apresentada à execução nos autos de acção executiva a que estes se encontram apensados, avalizada, além de outros, pelo ora (…).

Igualmente resulta dos factos considerados como assentes na sentença recorrida que essa livrança foi entregue em branco, designadamente no tocante à respectiva data de vencimento, bem como que foram entregues pela (…), S.A. ao Banco na aludida data de 18/11/1999 os “respectivos termos de autorização de preenchimento”, ou seja as linhas orientadoras do pacto de preenchimento da aludida livrança.

Desconhece-se, porém, o conteúdo desse pacto, concretamente no tocante à data de vencimento a apor, pois nada resultou provado na sentença recorrida quanto a tal aspecto.

Conforme já o salientamos supra entendemos que recaia sobre o Embargante a prova desse elemento uma vez que foi o próprio a trazer à colação no arrazoado da petição inicial de embargos de executado a questão concreta da data de vencimento eventualmente convencionada no pacto de preenchimento.

Certo é que na sequência do preenchimento da livrança veio a ser aposta na mesma por parte da Embargada, ora Apelante, a data de 15/01/2020 como data de vencimento da obrigação.

Ora, partindo mais uma vez do elenco factual dado como provado na sentença recorrida e tal como decorre da respectiva fundamentação de direito, não constituindo essa ilação retirada pelo Tribunal a quo propriamente assunto fraturante entre as Partes no âmbito desta instância recursiva, em face do que foi, respectivamente, alegado e respondido, deverá aceitar-se como data em que se geraria o incumprimento contratual do “Contrato de Transação” por parte da outorgante (…), S.A., a data seguinte à prevista para o pagamento da última prestação das doze convencionadas para o reembolso, correspondente a 18/11/2007, como tal 19/11/2007, pelo que a data de vencimento a apor na livrança entregue em branco seria sempre admissível desde que igual, ou posterior a ela.

No entanto e recordando o que acima já referimos e defendemos será a partir da data concreta que foi aposta na livrança e não da que poderia ab initio fundamentar o vencimento da livrança, ou seja 18/11/2007, que o prazo prescricional deve ser contabilizado.

A data de vencimento aposta na livrança pelo Embargado/Apelante foi, já o sabemos, a de 15/01/2020, tendo a acção executiva para pagamento da quantia nela aposta sido instaurada em juízo no dia 03/08/2020, pelo que não chegou a decorrer entre as duas datas prazo superior ao prazo de prescrição do direito cambiário aplicável concretamente à livrança correspondente a três anos previsto no artigo 70.º, ex vi do artigo 77.º, ambos da LULL

Tão pouco se retira dos factos considerados como provados na sentença recorrida que o mero decurso do prazo de doze anos e cerca de um mês que mediou entre a data em que se venceu a obrigação extracartular do Embargante/Apelado, não cumprida pelo mesmo e a data de preenchimento da livrança que incorporou o negócio causal pela Embargada/Apelante traduza abuso de direito assente em desrespeito dos ditames da boa fé contratual.

Efectivamente e para além de toda a argumentação que já acima ficou expressa designadamente através das referências jurisprudenciais que fomos destacando sobre a matéria impõe-se sublinhar que no caso concreto o Embargante/Apelado até interveio activamente no negócio jurídico extracartular, ou seja no aludido “Contrato de Transacção”, pelo que detinha todas as condições para saber, desde o primeiro momento, quando se gerou o incumprimento contratual daquele negócio causal por parte da sociedade anónima que avalizou, pelo que se tivesse querido resolver o incumprimento poderia desde logo tê-lo feito sem aguardar o preenchimento da livrança dada em garantia das obrigações assumidas pela outorga do dito negócio, sabendo de antemão que enquanto avalista da livrança se assumia como responsável pelo pagamento da quantia inserta na mesma nos mesmos termos que a subscritora do título.

Ademais, quem avaliza um título cambiário tem necessariamente que saber dos riscos que corre inerentes à responsabilidade pelo pagamento do mesmo, o que o ora Embargado certamente não desconhecia, não devendo contar com o mero decurso do tempo e alguma inércia do beneficiário ou tomador da livrança para se eximir do pagamento daquilo que deve.

Não operou, pois, a prescrição, do direito cambiário consubstanciado na livrança dada à execução no processo principal por parte do Embargado/Apelante.

Procede, pois, o recurso, ainda que não inteiramente pelos fundamentos apresentados pela Apelante nas respectivas conclusões recursivas.

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V - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em conceder provimento ao presente recurso de Apelação apresentado por (…) Banco, S.A. e em consequência decidem:
a) Revogar a sentença recorrida, declarando improcedentes os embargos de executado no tocante à questão da prescrição do direito cambiário invocada e aqui reapreciada devendo os mesmos prosseguirem os seus termos no Tribunal recorrido para apreciação das demais questões neles suscitadas pelo Embargante/Apelado, mais determinando o prosseguimento da acção executiva declarada extinta na sentença recorrida.
b) Fixar as custas a cargo do Apelado, nos termos do disposto no artigo 527.º, nos 1 e 2, do Código de Processo Civil.
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Évora, 28/10/2021
José António Moita (relator)
Silva Rato (1.º adjunto)
Mata Ribeiro (2.º adjunto)