Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
874/13.5TMFAR.E1
Relator: ACÁCIO NEVES
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Data do Acordão: 02/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1- No âmbito do incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, não tendo sido requerida outra prova para além da documental junta aos autos, e tendo sido ordenada apenas a realização de inquérito e a notificação do requerido para se pronunciar, o facto de o tribunal ter de imediato proferido decisão não constitui violação do princípio do contraditório.
2 - Trata-se de um processo de jurisdição voluntária no qual o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, podendo “investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes”,nos termos do disposto no nº 2 do art. 986º do CPC.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Procº. Nº. 874/13.5TMFAR.E1 (1ª Secção Cível)
Acordam nesta Secção Cível os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

(…) deduziu incidente de incumprimento, a favor da filha menor (…), contra (…), requerendo que fossem efectuadas diligências necessárias para a cobrança do devido e que, não sendo tal possível que, nos termos do art. 189º da OTM, que fosse fixada uma prestação substitutiva de alimentos a pagar pelo Estado, nos termos da Lei nº 75/98, de 19.11, nºs 1º e 2º do DL 164/99 de 13.05. Alegou para o efeito que no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento, entre a requerente e o requerido, transitado em julgado em 21.10.2009, no âmbito do qual foi regulado o exercício das responsabilidades parentais relativas à menor (…), o requerido ficou obrigado a pagar a quantia mensal de € 150,00, a título de alimentos para a filha, mas que o requerido nunca pagou qualquer prestação, estando em dívida a quantia de € 7.200,00.

Mais alegou que soube que o requerido se encontra detido no estabelecimento prisional de Faro, por ter sido condenado por crime de tráfico de estupefacientes, que o rendimento do agregado familiar, do qual fazem parte, para além da requerente e da menor, um filho do requerido de 17 anos, que se encontra a estudar, e um filho da requerente, que é de maior idade mas que se encontra a estudar, tem apenas o rendimento mensal de € 668.00, passando por fortes privações.

Para além de ser solicitada à segurança social a elaboração de relatório relativo à composição e rendimentos do agregado familiar onde se encontra a criança, foi ordenada a notificação do requerido para querendo se pronunciar. O requerido veio apresentar comunicação escrita na qual veio dizer que deixou de cumprir desde 17.05.2012, data a partir da qual se encontra a cumprir pena de prisão, mas que até essa data vivia com a menor, os irmãos e a mãe na mesma casa (e com uma sua outra filha que entretanto foi viver com os avós maternos), contribuindo dentro das suas possibilidades para as despesas de todos. Mais alegou que apesar do que foi estabelecido no processo de divórcio no sentido de pagar € 150,00 mensais, acordou com a requerente que, devido ao facto de viverem juntos não seria necessário proceder ao pagamento daquela prestação, razão pela qual e pelo facto de ter contribuído para as despesas, a quantia alegadamente em dívida não é adequada.

Mais alegou ainda que dada a sua situação não pode pagar mas que, quando sair, pretende trabalhar e pagar a prestação.

Junto o relatório da segurança social, foi aberta vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido do indeferimento da pretensão da requerente pelo facto de não preencher os requisitos para a intervenção do FGA uma vez que os progenitores viviam em absoluta comunhão, que apenas foi interrompida pela prisão. E requereu que se terminasse, nos termos do art. 15º do DL nº 70/2010 de 16.06, a inibição ao acesso ao direito a qualquer prestação ou apoio daquele diploma pelo período de 24 meses, uma vez que a requerente declarado falsamente uma situação de facto que não corresponde à realidade.

Seguidamente, foi proferida decisão, nos termos da qual, em linha com a posição do Mº Pº, foi indeferido o requerido e foi determinada a inibição da requerente ao acesso a qualquer prestação ou apoio objecto do DL nº 70/2010, pelo período de 24 meses.

Inconformada, interpôs a requerente o presente recurso de apelação, em cujas alegações, pedindo a revogação da decisão recorrida e que, a mesma seja alterada no sentido de ser deferido o requerido pela requerente e de lhe ser retirada a inibição do acesso ao direito a qualquer prestação ou apoio, objecto do definido nos termos do art.15º do DL nº 70/ 2010 de 16.06, apresentou as seguintes conclusões:

1ª - Vem o presente recurso interposto da douta decisão, proferida no incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, acima identificado em que foi requerente (…), e requerido, (…), alegando, aquela que o progenitor, nunca pagou qualquer montante a nível da pensão de alimentos desde Novembro de 2009, e que se encontra detido por ter sido condenado em processo-crime por tráfico de estupefacientes.
2ª - E onde a requerente, na impossibilidade do pagamento poder ser feito por aquele, requeria que o estado se substituísse ao devedor através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
Ao que o tribunal recorrido decidiu:
a) Indeferir o requerido e determinar a inibição da requerente no acesso ao direito a qualquer prestação ou apoio, objecto do Decreto-Lei 70/2010 de 16/06, pelo período de 24 meses, baseando tal decisão em que, a requerente declarou falsamente factos, que não poderia desconhecer com o objectivo de obter o pagamento de uma prestação por parte do Estado.
3ª - A decisão proferida pelo Tribunal “a quo” é deveras injusta, porquanto ao decidir como decidiu não respeitou princípios, com o princípio do contraditório e da igualdade substancial das partes, pelo que houve uma nítida violação, de tais princípios normativos, pelo Tribunal “a quo”.
4ª - Nem tão pouco respeitou como devia os interesses da menor em causa.
5ª - Na realidade foi vedado à requerente a possibilidade de exercer o contraditório, pois, existem documentos comprovativos da miséria humana e social em que, o requerido se encontrava, e todos os processos de execuções, falsificação, etc…. que arrastaram toda a família, para o caos económico, em que se encontra, sendo que, tudo quanto foi referido na douta p.i., pela requerente, é real e verdadeiro!
6ª - O requerido, mesmo após a saída do estabelecimento prisional onde se encontra, não tem meios para custear a pensão de alimentos que deverá pagar a sua filha (…).
7ª - Como desde 2009, não o faz, por não ter meios ou rendimentos que lhe permitissem fazê-lo.
8ª - Sendo tal, constatado e provado, conduziria ao accionamento da prestação que lhe seria garantida através do Estado.
Contra-alegou o Mº Pº, pugnando pela improcedência do recurso.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

Face ao conteúdo das conclusões das alegações da apelante, enquanto delimitadoras do objecto do recurso, são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:
- violação dos princípios do contraditório;
- verificação dos requisitos necessários à substituição do Estado no pagamento da prestação alimentar.

Quanto à violação dos princípios do contraditório e da igualdade substancial das partes:

Diz a apelante que, ao decidir como decidiu, o Tribunal “ a quo” não respeitou e violou os princípios do contraditório e da igualdade substancial das partes.
E isto porque, ainda segundo a apelante, lhe foi vedada a possibilidade de exercer o contraditório, pois, existem documentos comprovativos da miséria humana e social em que, o requerido se encontrava, e todos os processos de execuções, falsificação, etc…. que arrastaram toda a família, para o caos económico, em que se encontra, sendo que, tudo quanto foi referido na douta p.i., pela requerente, é real e verdadeiro.

Desde já se diga que não se vislumbra, e a apelante não o esclarece, em que medida é que foi violado o princípio do contraditório.
Relativamente ao incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, estabelece o art. 181º da OTM, nos seus nºs 2 a 4 o seguinte:
“2 - Autuado ou junto ao processo o requerimento, o juiz convocará os pais para uma conferência ou mandará notificar o requerido para, no prazo de dois dias, alegar o que tenha por conveniente.
3 - Na conferência, os pais podem acordar na alteração do que se encontra fixado quanto ao exercício do poder paternal, tendo em conta o interesse do menor.
4 - Não tendo sido convocada a conferência ou quando nesta os pais não chegaram a acordo, o juiz mandará proceder a inquérito sumário e a quaisquer outras diligências que entenda necessárias e, por fim, decidirá”.
Resulta assim de tais disposições que, não tendo sido convocada, como in casu não o foi, uma conferência de pais, após a resposta do requerido, o tribunal, antes de decidir, apenas tem que mandar proceder a inquérito e que proceder a outras diligências que se mostrem necessárias.

Não tinha assim o tribunal que notificar a requerente, ora apelante, para se voltar a pronunciar, designadamente em relação ao que foi alegado pelo requerido. No caso dos autos, o tribunal limitou-se a mandar proceder a inquérito, cujo relatório foi junto aos autos, a fls. 39 e sgs., sendo certo que, para além dos documentos juntos pela requerente, a fls. 6 e sgs, não tendo sido indicada qualquer prova testemunhal ou requerida a produção de qualquer outra prova. Desta forma, a priori, o tribunal, antes de decidir, apenas tinha que proceder a quaisquer outras diligências de prova no caso de as reputar essenciais.

Desta forma, haveremos de concluir no sentido da inexistência da invocada violação dos princípios do contraditório e da igualdade substancial das partes, improcedendo nesta parte as conclusões do recurso. Quanto à verificação dos requisitos necessários à substituição do Estado no pagamento da prestação alimentar:

Defendendo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por decisão que defira a providência requerida, da substituição do requerido pelo Estado no pagamento da prestação alimentícia, diz a apelante que a decisão não respeitou como devia os interesses da menor, existindo “documentos comprovativos da miséria humana e social em que, o requerido se encontrava, e todos os processos de execuções, falsificação, etc…. que arrastaram toda a família, para o caos económico, em que se encontra” e que o requerido não tem meios para custear a pensão de alimentos que deverá pagar a sua filha (…), como não o faz desde 2009”.
Conforme se alcança da decisão recorrida, o tribunal indeferiu a pretensão da apelante, inibindo-a ainda do direito à obtenção de qualquer apoio objecto do DL nº 70/2010 de 16 de Junho pelo período de 24 meses, por considerar que a requerente afirmou factos que não poderia desconhecer.
E isto por entender que contrariamente ao que havia sido alegado pela requerente “apesar dos progenitores se terem divorciado, continuam a viver em comunhão tal como antes do divórcio, até que o progenitor iniciou cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional”, sendo sinal disso “o facto de na documentação do Estabelecimento Prisional relativa ao progenitor, a morada ser a mesma que a progenitora/requerente – fls. 18”.

Todavia, o certo é que o facto de nesta documentação constar a mesma morada não significa só por si que a requerente e o requerido tenham continuado a viver na mesma morada após o divórcio e muito menos que, tendo continuado a viver na mesma casa, tenham continuado a fazer vida em comum – sendo certo que aquilo que o requerido (o qual, a exemplo da requerente, não foi ouvido em declarações) alegou não pode ser havido como provado, sem mais, sem que fosse produzida qualquer prova (e o relatório social é totalmente omisso quanto a tal matéria). De resto, o que o requerido veio dizer foi que, até à sua prisão, continuou a viver na mesma casa (com a menor, os irmãos e a mãe).
E não alegou especificamente que mesmo após o divórcio continuou a fazer vida em comum com a requerente, tendo-se limitado a dizer que contribuía dentro das suas possibilidades para as despesas de todos – alegação esta que está em evidente contradição com o que fora alegado pela requerente e relativamente à qual não foi produzida qualquer prova (sendo de todo insuficiente a mera alegação de tal facto).

E do simples facto de continuarem a morar na mesma casa não se poderia concluir sem mais no sentido da existência de continuação de comunhão de vida, sendo certo que, conforme é sabido, sucede amiúde que, por razões diversas, designadamente por falta de condições económicas, após o divórcio, os ex-cônjuges continuam a partilhar a mesma residência, sem que isso signifique a continuação da comunhão de vida.

De resto, a requerente nem sequer alegou que após o divórcio o requerido deixou de viver/residir na mesma casa, limitando-se a não o incluir no seu agregado familiar.
O que a mesma alegou foi que se divorciou do requerido em Outubro de 2009 e que no âmbito do respectivo processo foi determinado que o requerido ficaria a pagar determinada prestação alimentícia (€ 150,00) a favor da filha menor, que o requerido nunca pagou, que soube que esta se encontra detido e que é apenas ela que, com dificuldades, suporta as despesas do seu agregado familiar, no qual, conforme já referido, não incluiu o requerido.

Desta forma, havermos de concluir que, sem que seja produzida adequada prova, sendo o relatório da segurança social totalmente omisso quanto a tal matéria, o tribunal não podia dar como provado que “apesar de se terem divorciado, os progenitores continuaram a viver em comunhão tal como antes do divórcio” – facto este que esteve na base da decisão proferida. Por se tratar de processo de processo de jurisdição voluntária (art. 150º da OTM), o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita (art. 987º do CPC), podendo “investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes”, nos termos do disposto no nº 2 do art. 986º do CPC.
Desta forma, com vista à prova de tal factualidade (e de qualquer outra factualidade que se mostre relevante para a decisão a proferir, cuja prova não conste dos documentos juntos aos autos pela apelante) impunha-se que o tribunal procedesse oficiosamente à realização de adequadas diligências de prova, como seja a tomada de declarações à requerente e ao requerido, a realização de inquérito direccionado nessa perspectiva e/ou a notificação das partes para oferecerem prova da matéria por si alegada.

Assim, e afigurando-se manifesto que os autos não contêm os elementos adequados e necessários ao proferir de decisão que aprecie o requerido pela requerente, impõe-se revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos com vista à realização das apontadas diligências de prova. Procedem assim apenas parcialmente e nesta conformidade as demais conclusões do recurso.

Termos em que, julgando em parte procedente a apelação, se acorda em revogar a decisão recorrida a qual será substituída por outra que, com vista à apreciação do pedido formulado pela requerente, ora apelante, determine a realização de diligências de prova nos termos e para os efeitos supra enunciados.
Sem custas, dada a isenção do Mº Pº (art. 4º. nº 1, al. a) do RCP).

Évora, 12 de Fevereiro de 2015

Acácio Luís Jesus das Neves

José Manuel Bernardo Domingos

João Miguel Ferreira da Silva Rato