Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
103/07.0GAFAL.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: MAUS TRATOS
SUCESSÃO DE LEIS PENAIS
REGIME MAIS FAVORÁVEL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 03/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECRETADA A NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário:
1.O art.º 2.º, n.º 4, do Código Penal, ao estabelecer que quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, está a impor que se devam, para esse efeito, fazer dois cômputos penais, calculando-se a pena que em concreto se deveria aplicar por cada um dos regimes em confronto, compará-las e escolher a mais favorável ao agente.

2. Cada um dos regimes legais em confronto tem de ser aplicado em bloco, não podendo andar a respigar-se em cada um deles disposições isoladas com o que de mais favorável houver para o arguido.
Decisão Texto Integral:
I

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular,do Tribunal Judicial de Ferreira do Alentejo, em que M. se constituiu assistente, o arguido J. foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática de um crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 al.ª a) e 2, do Código Penal (na redacção anterior à da Lei n.º 59/2007, de 4-9) na pena de um ano de prisão, a qual foi substituída por 360 dias de multa à razão diária de 6,00 €, no montante global de 2.160,00 €, nos termos do art.º 43.º n.º 1 do Código Penal (este, na redacção posterior à da Lei n.º 59/2007).
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Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

21 — È tempo de concluir, dando cumprimento ao disposto no art° 412° do C.P.P.;

22—A pena aplicada ao arguido de um ano de prisão substituída por 360 dias de multa mostra-se bastante elevada, tendo em consideração o limite mínimo e máximo da pena de multa, nos termos do art° 47, n° 1 do Código Penal ;

23— O douto Tribunal a quo não atendeu a todas as circunstâncias que depunham a favor do arguido e enumeradas nas várias alíneas do n°2 do art° 71° do Código Penal;

24 — Nomeadamente, não atendeu à ausência de antecedentes criminais do arguido, às circunstâncias em que o arguido praticou o crime (sempre na sequência de discussões motivadas pelos ciúmes da ofendida), a diminuta gravidade das suas consequências (não afectação do trabalho geral e profissional da ofendida), o divórcio do arguido e da ofendida, o novo casamento celebrado pelo arguido, a sua total integração na sociedade bem como a sua situação económica (sendo o único suporte financeiro do seu agregado familiar);

25—A pena de multa fixada em 360 dias é excessiva e não serve as finalidades de prevenção, tendo ultrapassado a medida da culpa, bem como a tutela dos valores ofendidos pelo crime em causa ;

26— O Tribunal a quo esqueceu o sentido pedagógico e ressocializador da pena;

27—Vale isto por dizer que a pena de multa aplicada no limite máximo de 360 dias revela-se excessiva, não se percebendo, aliás, qual o fundamento específico de aplicação de 360 dias ;

28—Assim, a douta Sentença recorrida violou o disposto nos art° 47°, n°1 e 71° do Código Penal;
29—Pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que condene o arguido na pena de um ano de prisão que se seja substituída por pena de multa não superior a 100 dias.
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A Ex.ma Substituta do Procurador Adjunto do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:

1.ª - A pena unitária de 1 (um) ano de prisão mostra-se perfeitamente adequada face ao comportamento do arguido, à personalidade, demonstrada no momento anterior e posterior à prática dos factos, aos critérios de prevenção geral e especial.

2.ª - In casu, considerando, que o arguido não têm quaisquer antecedentes criminais registados e encontra-se inserido social, familiar e profissionalmente, o facto de estar divorciado da ofendida e de não ter praticado semelhantes factos após o divórcio, a gravidade das agressões não se considera elevada, entende-se que as exigências de prevenção especial não impõem, apesar de tudo, a execução da pena de prisão, considerando-se que a simples censura do facto e ameaça da prisão (no caso de incumprimento da pena), dirigidos a um agente socialmente inserido serão suficientes para desmotivar o arguido da prática de novos ilícitos do tipo que lhe é imputado nos presentes autos, circunstância que permite a substituição da pena de prisão aplicada por uma pena de multa, nos termos do predito art.° 43°, n° 1 do C. Penal e tendo em conta os critérios vertidos no art.° 71.° do mesmo diploma legal.

3.ª - Com efeito, discute-se se deve continuar a entender-se que a que a norma contida no art.° 43.° do Código Penal (que corresponde ao artigo 44.°, na versão do Código Penal de 1995), prevê a correspondência aritmética entre o número de dias de pena de prisão e o número de dias da pena de multa de substituição

4.ª - Perfilhamos do entendimento que o critério da conversão da pena de prisão em pena de multa não é um critério aritmético de correspondência entre o número de dias de pena de prisão e o número de dias da pena de multa de substituição.

5.ª - Assim sendo, e porque o n.° 1 do artigo 44.° manda aplicar correspondentemente o artigo 47.° e este remete para o art. 71.°, são estas as disposições legais que devem ser aplicadas na determinação da medida concreta da pena de multa.

6.ª - Temos assim que o critério para a determinação do número de dias de multa resultante da substituição da pena de prisão não tem necessariamente de corresponder ao número de dias desta, embora nada obste a isso, devendo a sua determinação ser feita em conformidade com o estabelecido no artigo 71.° do Código Penal.

7.ª - Atendendo ao que ficou provado relativamente aos aspectos que militam a favor e contra o arguido, considera-se que, de acordo com os critérios gerais, preceituados no art. 71.° do Código Penal e as circunstâncias consideradas a propósito da determinação da pena principal, relativas ao grau de ilicitude e culpa, bem como às exigências de prevenção geral e especial, entende-se como ajustada uma pena multa não inferior a 200 dias.

8.ª – Atentas as circunstâncias pessoais, económicas e financeiras do arguido, mostra-se assim ajustada, nos termos do art.° 47 °, n.° 2 do Código Penal que o quantitativo diário seja o fixado em €6,00 (seis euros) conforme determinado na Douta sentença.

9.ª- Pelo que, deverá a Douta sentença ser revogada e substituída por outra que condene o arguido na pena de um ano de prisão que seja substituída por multa não inferior a 200 dias à razão diária de €6,00 (seis euros).

A assistente respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do decidido.

Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II

Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:

-- Factos provados:

1. O arguido casou com M. em 20 de Dezembro de 1975.

2. Desse casamento nasceu um filho, J.C.

3. O casamento referido em 1. foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 14 de Novembro de 2007, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Ferreira do Alentejo.
4. Em data não concretamente apurada, mas pelo menos durante o ano de 2007, que o arguido tem vindo a apelidar M. de ‘puta’, ‘vaca’ em diversas ocasiões, no interior da residência de ambos.
5. Em data não concretamente apurada, mas antes de Agosto de 2007, o arguido desferiu uma chapada na cara de M., de mão aberta.

6. No dia 8 de Agosto de 2007, pelas 10h30m, no interior da residência em que o arguido residia com a sua esposa, M., sita na….em Ferreira do Alentejo, o mesmo, após discussão exaltada com a mesma, chamou-a de ‘Puta’.

7. Após, o arguido deu uma chapada na cara da ofendida, quando esta vinha a sair da casa-de-banho da sua residência, ao que a esta se tentou defender com as mãos.

8. Acto contínuo o arguido empurrou a ofendida e a mesma foi embater com a anca direita num móvel existente no corredor da sua residência e o braço esquerdo na fechadura da porta da casa de banho.

9. A ofendida recebeu tratamento médico no Centro de Saúde de…, o qual posteriormente a remeteu para observação no Hospital Distrital de Beja.

10. Como consequência directa e necessária desta conduta, o arguido provocou na ofendida hematomas no braço esquerdo e coxa direita, bem como dores generalizadas no corpo.

11. As lesões sofridas pela ofendida demandaram, para se curar, um período de 4 dias, sem afectação da capacidade para o trabalho geral ou para o trabalho profissional, sendo fixada a data da cura médico-legal em 12 de Agosto de 2007.

12. O arguido é caçador e proprietário de duas espingardas de caça.

13. Ao adoptar estes comportamentos, o arguido teve sempre a intenção de atemorizar e molestar a ofendida M.

14. Ao atormentar a ofendida, com quem era casado, o arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, com intenção de a molestar física e psicologicamente, do modo descrito, como fez, bem sabendo que dessa forma afectava o normal desenrolar da vida daquela e lhe causava receio o que pretendia e logrou alcançar.

15. Sempre que assim agiu, o arguido fê-lo com o propósito de ofender e maltratar M., intimidando-a e fazendo-a recear pela sua vida, o que fazia de forma contínua e reiterada, agindo sempre com o intento de atingir a dignidade humana e a saúde mental da ofendida, como visou e conseguiu.

16. O arguido determinou-se, durante o lapso temporal referenciado, reiterando sucessivamente os mesmos propósitos, cometendo de forma homogénea os repetidos actos e servindo-se dos mesmos métodos que, sucessiva e repetidamente, se foram revelando aptos para atingir os seus fins.
17. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e, mesmo assim, não se coibiu de a praticar e de o fazer de forma sucessiva e reiterada.

18. O demandante Centro de Saúde de… prestou cuidados de saúde e assistência médica a M., para tratamento na sequência da agressão acima mencionada, no valor global de € 11,50.

19. O demandante Centro Hospitalar… prestou cuidados de saúde e assistência médica a M., para tratamento na sequência da agressão acima mencionada, no valor global de € 109,40.

20. O arguido tem de habilitações literárias o 4.º ano de escolaridade do ensino básico.

21. O arguido não tem antecedentes criminais.

22. O arguido voltou a casar em 14 de Novembro de 2008.
23. O arguido está aposentado há seis anos e aufere mensalmente a pensão de reforma no montante de € 1.050,00.

24. O arguido paga de renda de casa a quantia de € 189,00 e tem despesas mensais no montante de cerca de € 500,00.

25. Os amigos do arguido consideram-no uma pessoa calma e sociável.

26. A ofendida sofreu dores e medo.

-- Factos não provados:
1. O arguido empurrava a ofendida contra móveis ou paredes da residência de ambos.

2. Em data não concretamente apurada, mas que mediou entre 8 de Agosto de 2007 e 1 de Outubro de 2007, o arguido dirigiu à ofendida as seguintes expressões: ‘se não desistes da queixa dou-te um tiro’ e ‘antes queria matar-te do que te dar algum dinheiro’.

Fundamentação da convicção:

Nos termos do art. 205º, n.º 1, da Constituição da Republica Portuguesa as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.

O Código de Processo Penal consagra a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97º, n.º 4 e 374º, n.º 2, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção.

São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125º do Código de Processo Penal). A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (art. 127º do Código de Processo Penal).

O Tribunal formou a sua convicção na análise crítica e conjugada dos vários elementos probatórios abaixo indicados, apreciados segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do art.º 127.º do Código de Processo Penal.

A livre apreciação da prova não se confunde com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado “ 13ª Ed., 2002, pág. 341, com citações de A. dos Reis, Cavaleiro de Ferreira, Eduardo Correia e Marques Ferreira).

No acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16.12.1998 (disponível em www.dgsi.pt), escreve-se que a apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, “há-de fundar-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal“.

Os factos provados resultaram da análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento tendo em conta os parâmetros referidos.

Cumpre, em obediência ao disposto no n.º2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, indicar as provas que serviram para fundar a convicção do Tribunal.

Assim, a convicção do Tribunal formou-se com base nas provas produzidas e analisadas em audiência de discussão e julgamento, submetidas a exame crítico e ponderadas conforme as regras da experiência e da livre convicção do julgador nos termos do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Na fixação da matéria de facto provada, o tribunal teve em conta a prova testemunhal, pericial e documental produzida.

As declarações do arguido foram fundamentais para o tribunal formar a sua convicção, uma vez que admitiu parcialmente os factos, pois de forma conformada e sincera reconheceu que no âmbito de discussões entre o casal, originadas pelos ciúmes da ofendida (o que a mesma admitiu) lhe chamava de “puta” e “vaca”. Afirmou que efectivamente tem duas armas, duas caçadeiras, pois é caçador.
Quanto ao episódio relativo ao dia 8 de Agosto de 2007, relatou que saiu cedo de casa para ir a Grândola, e que nessa altura a ofendida o questionou sobre os motivos da sua saída ao que ele não respondeu, e que posteriormente ao chegar a casa, uma hora e meia depois, quando a ofendida estava a tomar banho foi lá dizer-lhe ‘afinal és tu quem vai para o bem bom’, e que ela o terá agredido com a embalagem de champô, que agarrou num objecto de vidro, no cachimbo do telefone e num arquivo metálico e que o tentou agredir e que este ao defender-se lhe encostou a mão no peito e que ela provavelmente terá batido na esquina do móvel.

No demais, negou a prática dos factos que lhe são imputados.

No entanto, o Tribunal teve em conta o depoimento da ofendida, o qual considerou credível, na medida em que não obstante ter sido confuso porque emotivo, apresentou um depoimento imbuído de algum sofrimento relacionado ainda com a ruptura do casal decorrente do divórcio.

Deste modo, foi possível formar uma convicção positiva, não só em relação à ligação existencial que existia entre a ofendida e o arguido, como em relação às agressões, e à forma como se prolongaram ao longo do tempo.

Assim, esta referiu que tudo começou por causa de discussões entre ambos, motivadas pelos seus ciúmes, e que nessas discussões o arguido a chamava de ‘puta’ e ‘vaca’. Quanto ao episódio de 8 de Agosto de 2007, a sua versão dos factos colheu perante o tribunal pois relatou de forma exacta e precisa (ao invés de outros episódios) o que aconteceu: que ao sair da casa-de-banho o arguido lhe deu uma chapada na cara e que a empurra, atirando-a para o corredor, tendo ido embater com a anca no móvel que estava no corredor, rasgando o braço na fechadura da casa-de-banho, negando que o tivesse tentado agredir.

Aliás esta versão é verosímil com o facto de o arguido, ficando a pensar (durante uma hora e meia) no que a ofendida lhe terá dito, ao chegar a casa confrontou-a.

No geral a ofendida relatou que o casamento entre os dois sempre teve crises, que nas discussões o arguido lhe batia, que a ameaçava que a matava, que lhe chamava ‘puta’ constantemente, que lhe dava pontapés nos braços e nas pernas e chapadas na cabeça com a mão aberta. Por falta de melhor concretização e especificação alguns de tais factos não foram dados como provados.

Relatou o episódio no parque de estacionamento do ‘Lidl’ onde o arguido lhe deu uma chapada na cara.

Explicou os seus ciúmes relatando que o arguido por vezes não dormia em casa, durante um ou dois dias, até que em Maio de 2007 começaram a coabitar em quartos separados. As ausências do arguido foram corroboradas pelo documento junto em sede de audiência de discussão e julgamento (carta relativa a uma casa arrendada desde Abril de 2007 em Setúbal).

Assim, no tocante aos factos criminosos dados como provados, e em geral, teve-se em conta as declarações da ofendida, a qual, por forma relativamente generalizada mas contextualizada, não obstante a sua emotividade, descreveu tais factos, confirmando quase toda a matéria da acusação.

Além das declarações da ofendida outras provas (algumas de conhecimento directo dos factos, e outras de mero conhecimento indirecto, mas auxiliar, pois, além do mais, permitem avaliar da veracidade das declarações da ofendida) concorreram para fixar os factos criminosos provados:

- o depoimento da testemunha A., que foi merecedor de total credibilidade face à clareza, isenção e naturalidade com que foi prestado, relatando que, numa ocasião que não conseguiu situar no tempo, viu o arguido, no parque de estacionamento do supermercado ‘Lidl’, dar uma chapada na cara da ofendida, de mão aberta; descreveu ainda que M. lhe relatava que o marido a tratava mal, que a insultava depois de se ausentar com outras mulheres;

- o depoimento de M., sobrinha da ofendida, que de modo sincero relatou que viu a tia com nódoas negras nos braços, em data que não soube precisar, e que a tia lhe disse que foi o marido que a agrediu (empurrou), no geral, a tia queixava-se que o marido a tratava mal e que andava com outras mulheres;

- o depoimento de L., irmã da ofendida, que de modo honesto referiu que o casal sempre teve discussões desde o início do casamento e que dos acontecimentos mais recentes apenas sabe o que a irmã lhe contava, declarou sem hesitar que a sua irmã tinha medo do arguido, mas que não saía de casa por não ter condições de arranjar nova casa para morar.

Assim, temos o depoimento da ofendida o qual ganha consistência ao ser compaginado com outros elementos da prova produzida em sentido coincidente.

Por outro lado, temos os relatos das testemunhas supra indicadas, os quais nos pareceram credíveis e isentos.

É consabido que o crime de que o arguido é acusado ocorre não raras vezes no interior da residência, sendo apenas presenciado pelos membros do agregado familiar, pelo que é natural que não existam testemunhas presenciais das agressões. Tal não impede que se valore o depoimento da ofendida, se for credível, o que é o caso, sendo ainda certo que, a testemunha A. efectivamente assistiu a uma agressão do arguido à ofendida, na rua, o que fornece consistência às declarações daquela.

As testemunhas abonatórias, arroladas pelo arguido, A., J. e F., vieram relatar que convivem com o arguido, descrevendo-o como uma pessoa calma, não agressiva, sociável, tendo-o visto na companhia da ofendida e nada de estranho haverem a assinalar. No entanto, desconhecem como o arguido reagiria perante uma ofensa ou uma discussão por a isso não terem assistido.

Para prova dos factos n.ºs 1 e 3 foi relevante o teor da certidão de fls. 147.

Para prova dos factos relativos aos pedidos deduzidos pelo Centro de Saúde e pelo Hospital foram relevantes o teor dos documentos de fls. 242 a 244.

Para prova da agressão e das lesões sofridas pela ofendida foi relevante a documentação clínica remetida pelo Centro de Saúde de …, constante de fls. 22 a 24, a documentação clínica remetida pelo Hospital Distrital de …, constante de fls. 106 a108 e bem assim o Relatório Pericial de Clínica Médico-Legal constante de fls. 9 a 12, por serem coincidentes com o que foi referido pela ofendida.

O tribunal não pode deixar de dar como provado que o arguido quis os resultados obtidos e empregou os meios adequados para tanto, já que se retira do carácter reiterado das agressões verbais, bem como do seu modus operandi, que este não podia ter deixado de dirigir a sua vontade de outro modo.
No que concerne à inexistência de antecedentes criminais, o tribunal assentou a sua convicção no C.R.C. junto aos autos, a fls. 297.

Os factos não provados resultaram da total ausência de prova sobre os mesmos ou por a prova os contrariar expressamente.

III

De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.

De modo que a única questão posta ao desembargo desta Relação seria a de se a pena de multa aplicada ao arguido, no limite máximo de 360 dias, se revela ou não excessiva.

E dizemos «seria», porque a escolha da pena está inquinada a montante.

Vejamos:

Os factos passaram-se até Agosto de 2007 e no domicílio comum do arguido e sua esposa, a vítima.
No entretanto, sucederam-se no tempo duas leis a regularem os mesmos: o Código Penal na redacção anterior à da Lei n.º 59/2007, de 4-9, e que era o vigente àquela data, e o Código Penal na redacção posterior à da Lei n.º 59/2007, de 4-9.

À data da prática dos mesmos, as disposições legais do Código Penal, na redacção anterior à da Lei n.º 59/2007, que mais interesse tinham para o seu enquadramento jurídico eram, de acordo com a solução encontrada pela 1.ª Instância e citando apenas as partes que mais interessam ao caso:
Artigo 152.º
Maus tratos e infracção de regras de segurança
(…)
2 - A mesma pena [prisão de 1 a 5 anos] é aplicável a quem infligir ao cônjuge (…) maus tratos físicos ou psíquicos.
(…)
Artigo 44.º
Substituição da pena curta de prisão
1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se (…)
Artigo 50.º
Pressupostos e duração
1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se (…)
5 - O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.

Já pelo Código Penal na redacção posterior à da Lei n.º 59/2007, as disposições legais que mais interesse têm para o enquadramento jurídico do caso são, ainda de acordo com a solução encontrada pela 1.ª Instância e citando apenas as partes que mais interessam ao caso:
Artigo 152.º
Violência doméstica
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos (…):
a) Ao cônjuge (…);
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos (…)
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto (…) no domicílio comum (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
Artigo 43.º
Substituição da pena de prisão
1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se (…)
Artigo 50.º
Pressupostos e duração
1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se (…)
5 - O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.

Ora o que se passa é que na decisão recorrida foi usado o art.º 152.º , n.º 1 al.ª a) e 2, do Código Penal na redacção anterior à da Lei n.º 59/2007 para fixar a pena concreta; e depois o art.º 43.º n.º 1 do Código Penal na redacção posterior à Lei n.º 59/2007 para a substituir por multa.

É que, como se pode constatar, a pena de prisão fixável ao abrigo do o art.º 152.º , n.º 1 al.ª a) e 2, do Código Penal na redacção anterior à da Lei n.º 59/2007, não é substituível por multa ao abrigo desse mesmo código (embora possa ser suspensa na sua execução, designadamente mediante a imposição de deveres); e qualquer pena de prisão fixável ao abrigo do art.º 152.º, n.º 1 al.ª a) e 2 do Código Penal na redacção posterior à da Lei n.º 59/2007, também não é substituível por multa ao abrigo desse mesmo código (embora também possa ser suspensa na sua execução, designadamente mediante a imposição de deveres).

Assim, o que na decisão recorrida se fez foi usar de cada uma das versões do Código Penal o que mais favorável pudesse ser ao arguido em cada uma das duas operações efectuadas, a da fixação da pena concreta e a da sua substituição por multa.

Ora isso não é correcto.

Estas questões foram abordadas de forma homogénea em dezenas de acórdãos proferidos pelas Instâncias Superiores aquando da rendição do Código Penal de 1886 pelo de 1982, dos quais e para não sermos fastidiosos citaremos para exemplo apenas alguns:

-- Da Colectânea de Jurisprudência: da Relação do Porto de 14-12-83, 1983, V-259; e da Relação de Coimbra de 2-3-83, 1983, II-44.

-- Do Boletim do Ministério da Justiça: da Relação do Porto de 16-2-83, 324-618; da Relação do Porto de 23-2-83, 324-620; do Supremo Tribunal de Justiça de 15-2-84, 334-274; do Supremo Tribunal de Justiça de 29-2-84, 334-290; da Relação de Évora de 31-1-84, 335-353; do Supremo Tribunal de Justiça de 11-5-83, 327-458; do Supremo Tribunal de Justiça de 24-3-83, 325-420.

Mais recentemente, do Supremo Tribunal de Justiça e na Colectânea de Jurisprudência: de 10-2-2000, 2000, I-208; e de 15-6-2000, 2000, II-218.

E as duas ideias básicas sobre o tema são:

Primeira:

O art.º 2.º, n.º 4, do Código Penal, ao estabelecer que quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, está a impor que se devam, para esse efeito, fazer dois cômputos penais, calculando-se a pena que em concreto se deveria aplicar por cada um dos regimes em confronto, compará-las e escolher a mais favorável ao agente.

O tribunal "a quo" não procedeu a esta operação, deixando de se pronunciar sobre uma questão de que devia conhecer e tornando assim nula a sentença que proferiu (art.º 379.º, n.º 1 al.ª c), do Código de Processo Penal).

Segunda:

Cada um dos regimes legais em confronto tem de ser aplicado em bloco, não podendo andar a respigar-se em cada um deles disposições isoladas com o que de mais favorável houver para o arguido.

Regra que o tribunal "a quo" também violou.

IV

Nestes termos e com tais fundamentos, declara-se nula a sentença recorrida, a qual deverá ser reformulada e substituída por outra na qual seja suprida a nulidade acima identificada.

Sem custas.


Évora,11-03-2010

(elaborado e revisto pelo relator).

Martinho Cardoso (relator)

António João Latas