Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
85538/15.9YIPRT.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: COMPETÊNCIA
SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 06/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: Os tribunais comuns são incompetentes em razão da matéria para julgar uma acção de responsabilidade por dívida a serviço integrado no Serviço Nacional de Saúde decorrente de serviços prestados a pessoa vítima de acidente de trabalho, que teve a sua génese em requerimento de injunção.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:


1 - Relatório.

Em 22.06.2015, no Balcão nacional de Injunções o Centro Hospitalar AA EPE, apresentou requerimento de injunção que em face da dedução de oposição seguiu os seus termos como acção declarativa de condenação com processo especial previsto no regime jurídico anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, contra “Companhia de Seguros BB”.
Nos autos o autor vem peticionar o pagamento dos serviços prestados a CC e DD na sequência de lesões por estes sofridos enquanto prestavam trabalho sob as ordens e direção de EE, Lda..
Foi proferida decisão que declarou o tribunal incompetente em função da matéria para prosseguir da presente ação e, consequentemente, absolveu a ré da instância, declarando extinta a presente ação.
Inconformado com a decisão o requerente interpôs recurso, com as seguintes conclusões (transcrição):
«A).- A sentença sob impugnação, e que considerou o Tribunal Cível incompetente em razão da matéria para apreciação da causa, não perspectivou todo o enquadramento jurídico aplicável à situação dos autos
B).- Não tendo em consideração o regime jurídico especial actualmente aplicável à cobrança das dívidas por assistência hospitalar prestada por entidades integradas no Serviço Nacional de Saúde constante Decreto-Lei nº 218/99 de 15 de Junho na redacção do Dec.-Lei 64-B/2011 de 30 de Dezembro.
C).-Na sequência da alteração introduzida pelo Dec.-Lei 64-B/2011 de 30 de Dezembro, o Dec.-Lei 218/99 veio consagrar o princípio de que as instituições hospitalares, ao prestarem cuidados de saúde, o fazem ao abrigo de um contrato de prestação de serviços.
D).- E concomitantemente consagrou a aplicação do regime da injunção à cobrança das dívidas por assistência hospitalar.
E).- Regime que se aplica às dívidas originadas por assistência prestada na sequência de acidente de trabalho.
F).- De acordo com tal regime, em caso de oposição ou frustração de notificação o processo é remetido à distribuição para o Tribunal competente indicado pelo requerente no requerimento de injunção no caso dos autos a Instancia Local Secção Cível da Comarca de Setúbal.
G).- Que proferiu a sentença recorrida a declarar-se incompetente, considerando que a competência para julgar a causa seria do Tribunal do Trabalho.
H).- Sucede que da consagração legal das prestações de saúde se considerem feitas ao abrigo de um contrato de prestação de serviços decorre que a obrigação de pagamento da assistência hospitalar prestada decorre de responsabilidade contratual emergente de tal contrato.
I).- O mesmo sucedendo quando os tratamentos tenham sido motivados por acidente de trabalho.
J).- É que o direito da entidade do SNS prestadora de serviços não se radica na responsabilidade extracontratual, mas sim no contrato de prestação de serviços.
L).- À responsabilidade contratual associa-se a responsabilidade aquiliana enquanto facto desencadeador daquela responsabilidade, sendo a fonte da obrigação a relação contratual.
M).- Uma vez que a relação fundamental emerge de um contrato de prestação de serviços, a competência em razão da matéria deve ser aferida em função da dessa relação e não dos factos conexos que originaram a prestação da assistência.
N).- Assim sendo não pode deixar de ser competente em razão da matéria o tribunal cível para julgamento da oposição.
O).- A tal não obstando, como no caso dos autos, que os factos conexos que determinaram a assistência e deduzidos na oposição, possam enquadrar matéria de jurisdição laboral, pois vigora na jurisdição cível o princípio da extensão de competência que dimana dos artºs 91º e 92º do Cod. Proc. Civil;
P).- Princípio que se justifica pela necessidade de conferir ao tribunal poderes para resolver as questões à margem do objecto próprio da acção que se lhe colocam, para poder decidir do mérito da causa cuja competência lhe está atribuída.
Q).- Há, pois, que concluir pela competência do Tribunal cível, definida em função da causa de pedir da acção – contrato de prestação de serviços, não obstante se ter de apreciar matéria relacionada com questões de ordem laboral.
R).- Conclusão que não é prejudicada pelo artº 154º do Cod. Proc. Trabalho que, face ao regime especial do Dec.-Lei 218/99 se encontra derrogado, não sendo de excluir, por inexistência de revogação expressa, a possibilidade de coexistência dos dois regimes e a opção por cada um deles por parte das instituições integradas no Serviço Nacional de Saúde
S).- Ao decidir como decidiu a sentença recorrida violou as normas de competência em razão da matéria constantes dos artºs 40º e 130º nº 1 a) com referencia ao artº 117º nº 1 a) e nº 1 al. a) do artº 126º da Lei 62/2013 de 26 de Agosto ( Lei Orgânica do Sistema Judiciário)
T).- O Centro Hospitalar requerente é uma instituição hospitalar integrada na Serviço Nacional de Saúde, e a acção tem por objecto a cobrança de dívida por cuidados de saúde prestados (artº 1º Dec.-Lei 218/99) pelo que nos termos do artº 24º do Dec.-Lei 34/2008 de 26 de Fevereiro o A. está isento do pagamento de custas;
U).- Porque delas está isento, deve a decisão ser, nessa matéria objecto de reforma declarando-se o Centro Hospitalar AA EPE isento de custas.
V).- Deve pois ser dado provimento ao recurso revogando-se a decisão recorrida, prosseguindo os autos os seus normais termos como é de J U S T I Ç A.»
Não há contra alegações.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
A matéria relevante para a decisão é a que consta do relatório supra.


2 – Objecto do recurso.

Face ao disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, pelo que as questões a decidir (por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil): Saber se os tribunais comuns são competentes em razão da matéria para julgar uma acção de responsabilidade por dívida a serviço de saúde, integrado no Serviço Nacional de Saúde decorrente de serviços prestados a pessoa vítima de acidente de trabalho, que teve a sua génese em requerimento de injunção.


3 - Análise do recurso.

O recorrente insurge-se contra a decisão, na medida em que a mesma conclui que o tribunal é incompetente em razão da matéria para apreciar a lide, por a dívida ter tido origem num acidente de trabalho.
Argumenta o recorrente que, a lei considera que as prestações de saúde são feitas ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, pelo que a obrigação de pagamento da assistência hospitalar prestada decorre de responsabilidade contratual emergente de tal contrato.
Diz que o direito da entidade do SNS prestadora de serviços não se radica na responsabilidade extracontratual, mas sim no contrato de prestação de serviços e por isso a fonte da obrigação é a relação contratual.
Cumpre decidir:
Entendemos que o recorrente não tem razão.
Nos termos do art.118º, al.ªd) da Lei n.º52/2008, de 28-08,Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, (NLOFTJ), compete aos juízos de trabalho conhecer, em matéria cível :”Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;”
E nos termos do art.154º,n.º1, do Código de Processo de Trabalho 1 - O processo destinado à efectivação de direitos conexos com acidente de trabalho sofrido por outrem segue os termos do processo comum, por apenso ao processo resultante do acidente, se o houver.
Finalmente, nos termos do art.129º da NLOFTJ” 1 - Aos juízos de média instância cível compete a preparação e julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos expressamente a outros tribunais ou juízos. 2 - Compete ao juízo de média instância cível exercer as competências previstas nas alíneas b) a e) do n.º 2 do artigo 110.º, excepto quando as mesmas caibam na competência territorial de um juízo de competência genérica existente na comarca. 3 - O juízo de média instância cível é competente para todas as acções, questões e procedimentos que caberiam na competência dos juízos de grande e pequena instância cível, quando não existam outras instâncias de especialização cível na comarca.”
Donde, a acção destinada à cobrança de dívidas ao SNS, é da competência do tribunal de trabalho.
Às acções destinadas a efectivar a cobrança de dívidas às instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde (SNS) é aplicável o regime jurídico das injunções, constante Decreto-Lei nº 218/99 de 15 de Junho na redacção do Dec.-Lei 64- B/2011 de 30 de Dezembro.
Na sequência da alteração introduzida por esse Dec.-Lei 64-B/2011 de 30 de Dezembro, o Dec.-Lei 218/99 consagrou-se o princípio de que as instituições hospitalares, ao prestarem cuidados de saúde, o fazem ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, nos termos do art. º 1º :
“2.-Para efeitos do presente diploma a realização das prestações de saúde consideram-se feitas ao abrigo de um contrato de prestação de serviço, sendo aplicável o regime jurídico das injunções.
3.- Para efeitos do número anterior, o requerimento de injunção deve conter na exposição sucinta dos factos os seguintes elementos:
a).- O nome do assistido;
b).- Causa da assistência
c).- No caso de acidente que envolva veículos automóveis, matrícula ou número de apólice de seguro;
d).- No caso de acidente de trabalho, nome do empregador e número de apólice de seguro, quando haja;
e).- No caso de agressão, o nome do agredido e data da agressão;”
E concomitantemente consagrou a aplicação do regime de injunção à cobrança das dívidas por assistência hospitalar.
Mas, daí não decorre a competência do tribunal comum.
Como refere a sentença recorrida, “o simples facto de o legislador ter ficcionado uma prestação de serviços relativamente aos cuidados prestados pelas entidades hospitalares, daí não pode resultar o afastar a competência dos tribunais de trabalho para discutir a natureza do acidente, donde decorrerá a responsabilidade da seguradora ou não”.
Neste sentido vão os recentes Acs. desta RE de 10.03.2016, proc. nº 57304/146.YTPRT.E1, in www.dgsi.pt e o Ac. de 3.12.2015, proc. nº 53016/14.9YIPRT.E1, que seguimos de perto:
«É certo que, conforme invoca o apelante, o nº 2 do art. 1º do DL 218/99, de 15 de Julho (na redacção do DL 64-B/2011, de 30 de Dezembro), relativo à cobrança de dívidas por assistência hospitalar prestada por entidades integradas no Serviço Nacional de Saúde, estabelece nos seus nºs 2 e 3 que “Para efeitos do presente diploma a realização das prestações de saúde consideram-se feitas ao abrigo de um contrato de prestação de serviço, sendo aplicável o regime jurídico das injunções;
Todavia o certo é que, nos termos da al. d) do nº 3 do mesmo artigo o requerimento de injunção deve indicar, para além do mais, “No caso de acidente de trabalho que, nome de empregador e número da apólice de seguro, quando haja” – o que significa que, estando em causa um acidente de trabalho a respectiva factualidade também deve ser alegada.
E o certo é que tal diploma nada estabelece sobre a competência material do tribunal onde deve correr o processo, em caso de oposição à injunção.
E assim, a causa de pedir tem que ser entendida como uma causa de pedir complexa, que engloba em simultâneo um contrato de prestação de serviços e um acidente de trabalho.
Desta forma, é com base nessa configuração da causa de pedir que tem que ser analisada a questão da competência material do tribunal onde deve passar a correr o processo (então já enquanto acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias).
Ora o que se estabelece na al. d) do 126º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (“compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível… d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimentos de medicamentos emergentes da prestação se serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais”) é bem explícito quando atribui aos tribunais de trabalho a competência para as acções nas quais estão em causa o fornecimento de serviços hospitalares que forma efectuados em benefício de vítimas de acidentes de trabalho, conforme é o caso dos autos”.
A circunstância de haver ou não haver processo não poderá naturalmente constituir critério para delimitação da competência material do tribunal.
A competência dos tribunais não deve ser determinada em função da forma processual, pois tal distinção sempre assentou em critérios relacionados em a matéria objecto do litígio e não com o tipo de procedimento processual a usar.
Razão pela qual se entende que o simples facto de o legislador ter ficcionado uma prestação de serviços relativamente aos cuidados prestados pelas entidades hospitalares, daí não pode resultar o afastar a competência dos tribunais de trabalho para discutir a natureza do acidente, donde decorrerá a responsabilidade da seguradora ou não.
Assim, tal como conclui o referido Acórdão também é nosso entendimento que a competência para o processamento dos autos é do tribunal de trabalho nos termos do art. 126.º, al. d), da Lei n.º 62/2013 de 26.08.
Improcedem pois as conclusões do recurso, impondo-se julgar o mesmo improcedente.


Sumário:
Os tribunais comuns são incompetentes em razão da matéria para julgar uma acção de responsabilidade por dívida a serviço integrado no Serviço Nacional de Saúde decorrente de serviços prestados a pessoa vítima de acidente de trabalho, que teve a sua génese em requerimento de injunção.


4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.


Évora, 16.06.2016


Elisabete Valente


Bernardo Domingos



Silva Rato