Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
201/07.0GALGS.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
PRORROGAÇÃO
Data do Acordão: 06/24/2014
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - A sujeição a segredo de justiça, com adiamento e prorrogação, deve ser feita sem soluções de continuidade, não sendo admissível, perante o quadro legal vigente, deixar o processo retomar o seu carácter público para tempos depois regressar ao regime de segredo de justiça através dos mecanismos de dilação previstos no n.º 6 do art. 89.º do Código de Processo Penal.
II - Prorrogar significa prolongar (o tempo) para além do prazo estabelecido, pressupondo que o prazo ainda não esteja findo pois, de outro modo, não haveria lugar à sua prorrogação, mas sim a um novo prazo ou um prazo sucessivo, que, assim, se iniciaria depois de esgotado o anterior e independentemente da existência de intervalos temporais entre ambos
III – Só no caso do prazo de inquérito estabelecido na lei ter sido ultrapassado, se justifica a necessidade de adiamento de acesso aos autos que foi determinado pelo titular do inquérito e validado judicialmente.
IV – Mesmo que esse prazo não se mostre ultrapassado, se houve arquivamento do inquérito, por incapacidade da investigação, deixou de haver razão justificativa para a manutenção do segredo de justiça, retornando os autos ao regime-regra da publicidade a partir de então, sem aguardar o transcurso da parte do prazo ainda não decorrida.
V – Não se pode considerar que esse prazo ficou suspenso, retomando o seu curso com a reabertura do inquérito.
Decisão Texto Integral:
Recurso Penal nº 201/07.0GALGS.E1


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1.Relatório
No âmbito do inquérito nº 201/07.0GALGS, a correr termos nos serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Portimão, foi proferido despacho judicial que não deferiu o requerimento do MºPº no sentido de que, em face da reabertura do inquérito e a natureza da criminalidade em investigação, fosse prorrogada a limitação de acesso aos autos pelo prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação.
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o MºPº, pretendendo a sua revogação e a sua substituição por outra que mantenha válido o despacho de fls. 4263 e vº ou, assim se não entendendo, que determine o adiamento do acesso aos autos pelo prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação, formulando as seguintes conclusões:

1a-
A dupla argumentação de indeferimento pelo Senhor JI que o acesso aos autos fosse prorrogado nos termos da disposto no artigo 89° n° 6 do CPP conjugado com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 5/2010 não tem cabimento na lei, sendo inclusive contrária e violadora do princípio da proporcionalidade.
2a-
O despacho de arquivamento nos termos do artigo 277.° não constitui necessariamente a intervenção definitiva do Ministério Público relativamente ao encerramento do inquérito pois este não é uma realidade estática, antes dinâmica como resulta dos artigos 278° ou 279° ambos do CPP não tendo, pois, tal despacho como consequência a restauração definitiva e irreversível da publicidade.
3a-
O artigo 89° n° 6 do CPP não pode permitir o acesso automático aos autos sempre que tal possa pôr gravemente em causa a investigação, se a sua revelação impossibilitar a descoberta da verdade ou se a sua revelação criar perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou para a liberdade dos participantes processuais ou vítimas do crime (cfr. notas da Motivação).
4a-
A determinada reabertura do Inquérito faz recomeçar a investigação com todo um conjunto de diligências centradas num suspeito que não obstante estar morto nem por isso deixa de ter protecção em si (p. ex. a prevista no artigo 185° do Código Penal), quer nos seus familiares directos, viúva e filho menor, tanto mais que para já existem simplesmente suspeitas, quer noutras pessoas directamente envolvidas na investigação (cfr. NUIPC’s a fls.5799) daqui a identidade com os dois objetívos com que foi criado o segredo de justiça, salvaguardar as condições de investigação e os interesses particulares relevantes e, assim, os fundamentos que determinaram a reabertura exigem uma limitação do acesso aos autos ex nunc da reabertura, tendo em conta o rumo novo de investigação.
5a-
O entendimento constante no despacho recorrido que o pedido de adiamento de acesso aos autos só poder ser feito na pendência do segredo de justiça, consubstancia uma interpretação abusiva da lei, já que o artigo 89° n° 6 o que refere é findos os prazos previstos no artigo 276°, que é o manifestamente oposto e inculca a ideia que o pedido do M°P° de prorrogação do segredo interno deve ser feito antes de expirado o prazo do Inquérito previsto no artigo 276°.
6a-
Ora, o prazo só esgotaria em 13 de Agosto de 2008, conforme o despacho do senhor JI a fls. 4263 e verso já transitado, na sequência de ter sido deferido o requerimento do M°P° de 5-5-2008 (fls.42591) para que o acesso aos autos fosse adiado por um prazo de 3 meses.
7a-
Nao estando o prazo do segredo de justiça esgotado e com o requerido agora, tendo em conta o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 5/2010, tal prazo poderia ser prorrogado para além do anteriormente determinado, já que estão em investigação os crimes de tráfico de seres humanos, rapto, homicídio e ocultação de cadáver, criminalidade referida nas alíneas j) a m) do artigo 1° do CPP.
8a-
Há face ao despacho de 12-5-2008 (fls. 4263 e verso) uma evidente contradição nos fundamentos do despacho que ora se recorre que acarreta violação de caso julgado formal que implica a validade daquele primeiro despacho.
9a-
Sem prejuízo o teor do despacho sob censura é manifestamente desproporcional e desadequado relativamente aos interesses que fundamentam o requerido, já que o acesso aos autos não reveste actualmente, como o comprovam as notícias vindas nos diversos jornais, um interesse público mas um interesse do público em conhecer pormenores, tudo em função dos interesses comerciais da publicação das notícias e muito pouco com a investigação em si, nem com os valores em jogo, como entre outros a defesa da honra e presunção de inocência, tanto mais que não há arguidos, assistentes ou demandantes cujos interesses haja que proteger e salvaguardar, desproporcionalidade e desadequação que exigem, também com este fundamento, a revogação do despacho de que se recorre.
10a-
O despacho recorrido violou os artigos 89° n° 6 do CPP e 20° n° 3 da CRP, bem como o princípio do caso julgado formal.

O recurso foi admitido.
Não houve resposta.
O Sr. Juiz proferiu despacho de sustentação, invocando, em abono do seu entendimento dois acórdãos da 2ª instância[1] e os fundamentos utilizados no AUJ nº 5/2010, “que colocam o acento tónico na necessidade de estar em vigor o segredo de justiça no momento em que se solicita o adiamento dos autos nos termos do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, vd. Pontos 12.1.2.6 e 13.1 do referido aresto”.
Nesta Relação, o Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no qual – considerando, por um lado, que o prazo de 3 meses do adiamento do acesso aos autos, deferido pelo JIC, ainda não se havia esgotado na data em que foi proferido o despacho de arquivamento e que, por isso tal acesso podia continuar adiado por via da prorrogação daquele prazo, agora por um objectivamente indispensável à conclusão da investigação, por estar em causa criminalidade a que se referem as als. i) a m) art. 1º do C.P.P., do que decorre que o despacho recorrido contraria frontalmente o anteriormente proferido e que corporiza o esgotamento do poder jurisdicional sobre a questão decidida e, por outro, ainda que se entendesse de modo diverso, que, encontrando-se o acesso adiado e estando arredado o levantamento do segredo ope legis nos casos previstos naquelas normas, era legalmente possível e legitimamente admissível a prorrogação desse adiamento, faltando competência ao juiz para decidir contra a vontade do MºPº, da cessação do segredo, na medida em que a lei acomete a este, e só a este, a competência para decidir em que momento deve cessar esse mesmo segredo -, acompanhando no essencial o argumentário sustentado na motivação do recurso, se pronunciou no sentido da sua procedência.
Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º C.P.P., não tendo sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.


2. Fundamentação
Revestem-se de interesse as seguintes ocorrências processuais:
- nos autos de inquérito a que o presente recurso respeita, o MPº, contando o prazo para realização do inquérito a partir da entrada em vigor da reforma do CPP, ou seja 15/9/07, e que o prazo de 8 meses previsto do art. 276º nº 1 do C.P.P. se estava quase a esgotar, havendo ainda várias diligências em curso que inviabilizavam a prolação de despacho final de arquivamento ou acusação, requereu, em 5/5/08, que o acesso aos autos fosse adiado por um prazo de 3 meses ( cfr. fls. 4259 );
- na sequência, foi proferido despacho pelo Sr. JIC que comungando daquele entendimento relativamente à contagem do prazo do inquérito, e antes de esgotados os 8 meses, em 12/5/08, deferiu o requerido, ao abrigo do disposto no art. 89º nº 6 do C.P.P. e considerando o facto de ainda se encontrarem em curso diligências de investigação ( cfr. fls. 4263 );
- o inquérito veio a ser arquivado por despacho proferido em 21/7/08 por falta de indícios que permitissem a identificação do(s) autor(es) dos factos em investigação, relacionados com o desaparecimento, ocorrido em 3/5/07, da menor A;
- ainda antes dessa data, uma das linhas de investigação seguidas tinha como suspeito B, indivíduo amplamente referenciado como autor de furtos em residências por alguns dos quais foi condenado, e que, inclusivamente, chegou a comparecer na PJ para esclarecer as suspeições que sobre ele recaíam no âmbito deste inquérito ( cfr. informação da P.J. a fls. 5817 ), como resulta abundantemente do expediente que consta de fls. 5780-5852;
- esse suspeito vivia com uma companheira, de quem teve um filho, nascido em 5/12/02 ( fls. 5794 ) e veio a falecer, na sequência de acidente de trabalho, em 6/8/09 ( cfr. relatório de autópsia a fls. 5886-5888);
- através de ofício datado de 16/10/13, dirigido ao Procurador da República da comarca de Portimão, foi proposta a ponderação de reabertura do inquérito, com base no adensamento das suspeitas, decorrente de elementos entretanto recolhidos, que não podiam ter sido ponderados aquando da decisão de arquivamento, e melhor discriminados na informação sobre a análise ao inquérito levada a cabo pela PJ ( cfr. fls. 5783-5800 ), de que o aludido suspeito pudesse ter estado envolvido, por si só ou com outros, na prática de factos ilícitos ( eventualmente rapto, sequestro, tráfico de seres humanos ou homicídio e ocultação de cadáver ) relacionados com o desaparecimento da referida menor ( cfr. fls. 5780-5782 );
- por despacho datado de 23/10/13 ( fls. 5913-5914 ), o MºPº, em face dos novos elementos que apontavam para o dito suspeito, determinou a reabertura do inquérito, nos termos do art. 279º nº 1 do C.P.P., rematando esse despacho com requerimento nos seguintes termos:
Com o encerramento do Inquérito através do despacho de arquivamento deixaram os autos de se encontrar em segredo de justiça.
Contudo, com o novo rumo da investigação resultado da reabertura do Inquérito há imperiosa necessidade que os autos voltem a estar em segredo de justiça, desde logo porque não obstante o suspeito estar morto, tem companheira viúva e um filho de 11 anos que têm de ser resguardados na intimidade das suas vidas privadas e familiar - direito consagrado no artigo 26° n° l da CRP - enquanto decorrerem as diligências da investigação e se confirmam ou não as suspeitas; podendo a publicidade pôr em causa a sua integridade psíquica, depois porque a própria investigação precisa, para a sua realização, eficácia e celeridade, de estar protegida do mediatismo que a reabertura do Inquérito proporcionará, sendo certo que tratando-se ainda e para já de uma suspeita o segredo da justiça tem, a nosso ver, no prato da balança mais peso que a publicidade do processo.
Assim, tendo em conta que foi proferido despacho de encerramento do Inquérito e com ele findos os prazos previstos no artigo 276° do CPP, mas tendo sido o mesmo reaberto vão os autos conclusos ao Mmo. JI requerendo, nos termos do disposto no artigo 89° n° 6 do CPP conjugado com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 5/2010, que o acesso aos autos seja prorrogado pelo prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação, já que estão em investigação crimes de tráfico de seres humanos, rapto, homicídio e ocultação de cadáver, criminalidade referida nas alíneas j) a m) do artigo 1° do mesmo Código.
- o requerimento mereceu por parte do Sr. JIC o seguinte despacho de indeferimento:
Segredo de Justiça:
Se, como aduz o Ministério Público, com o «encerramento do Inquérito através de despacho de arquivamento deixaram os autos de se encontrar em segredo de justiça», posição que sufragamos, tal tem por consequência a restauração ope legis da publicidade, o que significa não haver espaço para limitar o acesso aos autos nos termos requeridos.
Vale por dizer, de forma enxuta, que o pedido de adiamento de acesso aos autos nos termos do artigo 89.°, n.° 6, do Código de Processo Penal, só pode ser efectuadoj per natura, quando os autos, no momento em que tal pedido é realizado, ainda se encontrem sob segredo.
Termos em que, sem necessidade de outra fundamentação, indefiro o requerimento do Ministério Público.
- na sequência, o MºPº proferiu o seguinte despacho:
Tendo em conta a reabertura do Inquérito e pelos motivos indicados no nosso despacho de f Is. 5912/5914, mormente no seu ponto III, que aqui se dão por reproduzidos, tendo em conta também o despacho do Mmo. JI, determino que os autos permaneçam em segredo de justiça nos termos do disposto no artigo 86° n° 3 do CPP.
Assim remeta os Autos ao Mmo JIC para validação desta determinação nos termos e para os efeitos da disposição citada.
- conclusos os autos novamente ao Sr. JIC, foi por ele proferido o despacho recorrido, que é do seguinte teor:
Requerimento para sujeição dos autos a segredo de justiça a fls. 5919: visto.
No direito processual penal vigente vigora a regra da publicidade, vd. artigo 86.°, n.° 1, do Código de Processo Penal.
Nos autos foi preferido despacho de arquivamento nos termos do artigo 277.°, n° 1, do Código de Processo Penal, em 21/7/2008, fls. 4592-4649, o que teve por consequência a restauração da publicidade, circunstância, aliás, reconhecida pelo Ministério Público no despacho de 5914, findando, por isso, o segredo que vigorava por força da decisão de validação proferida em 18/09/2007, nos termos do artigo 86.°, n.° 3, do Código de Processo Penal.
Porém, a reabertura de inquérito não equivale, por sua própria natureza, à instauração originária, isto é, ex novum de um outro inquérito, para, por esta via, se poder lançar mão (outra vez) da norma prevista no artigo 86.°, n.° 3, do Código de Processo Penal e, em consequência, sujeitar os autos a segredo.
Do mesmo jeito que não se poderia conceder o adiamento do acesso aos autos, nos termos do artigo 89.°, depois de restaurada a publicidade, em inquérito onde não houvesse ainda despacho final, (situação que aqui não ocorre) no qual, após tal restauração ope legis da publicidade, viessem a ser recolhidos novos elementos que apontassem para outro suspeito, isto é, para pessoa distinta daquela contra quem, entretanto, corria o inquérito.
Sem prejuízo.
As pessoas referidas no ponto III a fls. 5914 cuja resguarda se alçaprama à guisa de fundamento não têm a qualidade de sujeito processual a que alude o artigo 86.°, n.° 3, do CPP.
Depois a singela invocação «do mediatismo» é irrelevante na medida em que não se sabe - sequer minimamente - que diligências de investigação se pretendem levar a cabo e cuja eficácia ficaria em perigo por força do tal «mediatismo».
Logo os próprios termos em que o requerimento vem formulado impedem, ab initio, a elaboração de um juízo de ponderação.
Termos em que, sem necessidade de outros fundamentos, não valido a decisão do Ministério Público de sujeitar os autos a segredo de justiça.


3. O Direito
Das conclusões do recurso resulta que o recorrente suscitou questões que se reconduzem a determinar se, no caso, era, ou não, possível a prorrogação do adiamento do acesso aos autos no quadro previsto no nº 6 do art. 89º do C.P.P. ( diploma ao qual pertencerão todos os preceitos adiante citados sem menção especial ).

O recorrente defende que sim, considerando que, não sendo o encerramento do inquérito nos termos do art. 277º uma realidade estática, como resulta dos arts. 278º ou 279º, o despacho que o determina não tem como consequência a restauração definitiva e irreversível da publicidade e que o que resulta do nº 6 do art. 89º é que o pedido do MºPº de prorrogação do segredo interno deve ser feito antes de expirado o prazo do inquérito previsto no art. 276º, e não que esse pedido só pode ser feito na pendência do segredo de justiça, como, a seu ver abusivamente, foi entendido no despacho recorrido. Daí que, não se mostrando ainda esgotado, aquando do encerramento do inquérito, o prazo de adiamento deferido através do despacho proferido em 12/5/08 e já transitado, podia o mesmo ser objecto da prorrogação requerida na reabertura do inquérito. Ao decidir em contrário, violou o despacho recorrido o caso julgado formal que o despacho de 1/5/08 havia formado. O recorrente sustenta, ainda, que, não obstante, o teor do despacho recorrido é manifestamente desproporcional e desadequado relativamente aos interesses que fundamentam o requerido, por o acesso aos autos não revestir actualmente um interesse público mas apenas um interesse do público em conhecer pormenores da investigação, e em face dos valores em jogo.

Resulta evidente que o ponto fulcral da questão reside em saber se, encerrado o inquérito quando ainda não se havia esgotado o prazo de adiamento do acesso aos autos, com a sua reabertura, determinada em data posterior àquela em que esse prazo findaria, ainda é possível prorrogá-lo.
Estão bem definidas as duas teses em confronto: a do despacho recorrido, que considera que o segredo findou com o arquivamento do inquérito e que, restaurada a publicidade, não pode haver lugar à prorrogação, ao abrigo do disposto no nº 6 do art. 89º, do adiamento do acesso aos autos, e a do recorrente, que considera que, não estando o prazo de adiamento do acesso aos autos esgotado aquando do encerramento do inquérito, pode o mesmo, com a sua reabertura, ser objecto de prorrogação.
Por muito engenhosa que esta segunda tese se apresente, pensamos que a razão está do lado da primeira. Na verdade, aceitá-la significaria, na prática, que o segredo de justiça se poderia manter indefinidamente não obstante a(s) quebra(s) que fossem ocorrendo pelo meio, o que não nos parece ter sido a intenção do legislador de 2007 ao instituir o regime do segredo de justiça em moldes que romperam com o paradigma anterior e causaram uma verdadeira revolução na matéria. Sendo, a partir de então, o regime-regra o da publicidade, interna e externa, do processo penal, mesmo nas suas fases preliminares, só nas hipóteses excepcionadas pela lei pode o processo ser sujeito, e continuar sujeito, a segredo de justiça, como resulta expressamente do disposto no nº 1 do art. 86º. Centrando-nos exclusivamente no que para a decisão do recurso interessa, e aplicado que foi aos autos de inquérito o segredo de justiça ( “durante a fase de inquérito”, como aludido nos nºs 1 e 2 do art. 86º ), vejamos em que condições a lei permite que o prazo inicial seja alargado. Rege nesta matéria o disposto no nº 6 do art. 89º, nos termos do qual “Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação.”. Da própria letra do preceito se extrai que o adiamento e a prorrogação previstas têm lugar decorridos que se mostrem os prazos, de duração máxima do inquérito, previstos no art. 276º. Ou seja, enquanto esses prazos estiverem em curso, os autos mantêm-se em segredo de justiça, quando a ele hajam sido sujeitos. Findos, pode haver um adiamento do acesso aos autos por um prazo máximo de 3 meses e, uma, única, subsequente prorrogação, quando se investigue nomeadamente criminalidade violenta ou especialmente violenta ( em cujo conceito, definido nas als. j) e l) do art. 1º, os factos em investigação são passíveis de enquadramento ), por prazo que “é fixado pelo juiz de instrução pelo período de tempo que se mostrar objectivamente indispensável à conclusão da investigação, sem estar limitado pelo prazo máximo de três meses”, conforme jurisprudência fixada no AUJ nº 5/2010.
Como vem sendo entendido pela jurisprudência largamente maioritária[2], também nós entendemos que a sujeição a segredo de justiça, com adiamento e prorrogação, deve ser feita sem soluções de continuidade, não sendo admissível, perante o quadro legal vigente, deixar o processo retomar o seu carácter público para tempos depois regressar ao regime de segredo de justiça através dos mecanismos de dilação previstos no nº 6 do art. 89º. E, muito concretamente, no que toca à prorrogação do prazo de adiamento do acesso aos autos, sendo esta precisa questão aquela que constitui o objecto do recurso e à qual há que dar resposta ( de fora fica a de saber se, findo o segredo de justiça, podem os autos tornar a ficar sujeitos a esse regime através da aplicação de novos prazos, que constitui objecto de outro recurso que, no âmbito dos mesmos autos e como é do nosso conhecimento funcional, foi posteriormente interposto pelo MºPº ). É que, “prorrogar” significa “prolongar (o tempo) para além do prazo estabelecido”[3]. A prorrogação constitui um prolongamento que ultrapassa, todo ele, o prazo anteriormente fixado, acrescendo-lhe, dilatando-o. O que pressupõe que o prazo ainda não esteja findo pois, de outro modo, não haveria lugar à sua prorrogação, mas sim a um novo prazo ou um prazo sucessivo, que, assim, se iniciaria depois de esgotado o anterior e independentemente da existência de intervalos temporais entre ambos. Aplicando as regras da hermenêutica jurídica, presumindo que o legislador se exprimiu em termos adequados ( art. 9º nº 3 do C. Civil ) e perscrutando o sentido do elemento literal que nada no regime instituído contraria, pensamos não ter sido uma solução deste tipo que o legislador quis criar no quadro previsto no nº 6 do art. 89º.
Aqui chegados, retomemos o caso concreto. Por mais que o recorrente se tenha esforçado em demonstrar que o prazo ainda não se havia esgotado quando foi requerida a sua prorrogação, pensamos que a tese que arquitectou se baseia numa mera ficção, desconsiderando o, aliás muito longo, período de tempo decorrido entre o arquivamento e a reabertura dos autos. Como se o prazo que ainda não se havia esgotado no primeiro momento, ficasse adormecido, suspenso, para depois readquirir vida e servir para sustentar que, ainda em curso, poderia ser prorrogado.
Ora, é inequívoco que o prazo de inquérito estabelecido na lei foi ultrapassado, pois de outra forma, sujeito que havia sido o inquérito a segredo de justiça, não havia necessidade, nem justificação legal, para o adiamento de acesso aos autos que foi determinado pelo titular do inquérito e validado judicialmente. Com o arquivamento do inquérito, por incapacidade da investigação em descortinar o(s) autor(es) dos factos ilícitos que terão estado relacionados com o desaparecimento da menor, deixou de haver razão justificativa para a manutenção do segredo de justiça, retornando os autos ao regime-regra da publicidade a partir de então, sem aguardar obviamente o transcurso da parte do prazo ainda não decorrida. E não se pode considerar que esse prazo ficou suspenso, retomando o seu curso com a reabertura do inquérito. Não vindo prevista na lei a suspensão, não pode ser prorrogado um prazo que, para todos os efeitos e mesmo antes da data do termo previsto, já terminou com e por força do encerramento do inquérito, ainda que este não tivesse, nos termos em que foi decidido, irremediavelmente, carácter definitivo. E, tendo findado, também se cumpriu integralmente a eficácia do despacho que validou o adiamento, não podendo haver lugar à sua prorrogação.
Decorrentemente, conclui-se pelo total acerto do despacho recorrido ao não validar o determinado pelo MºPº, não tendo ocorrido a invocada violação do caso julgado formal. Por outro lado, e sendo controvertida a natureza dos poderes interventivos do juiz de instrução na validação da decisão do MºPº, é ainda assim inquestionável que lhe compete verificar a verificação dos pressupostos formais em que teria de assentar a pretendida validação. O que foi feito, tendo-se concluído, e bem, negativamente.
Ficam, pois, prejudicadas as demais objecções levantadas pelo recorrente com a apreciação dos concretos fundamentos com base nos quais o MºPº havia baseado a almejada prorrogação.


4. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgam improcedente o recurso, mantendo o despacho recorrido.
Sem tributação.

Évora, 24 de Junho de 2014

Maria Leonor Esteves
António João Latas – com declaração de voto

Declaração de voto

Suscita-se-me reservas a conclusão que não pode concluir-se por via interpretativa que o arquivamento do inquérito por falta de indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes (art. 277º nº2 do CPP) implica a suspensão do prazo de 3 meses previsto no art. 89º nº6 do CPP que se encontrava a decorrer, como no caso presente, nomeadamente quando a reabertura do inquérito se dirige a novo suspeito ou arguido.
Apesar disso voto a decisão, porquanto no caso presente o MP não demonstrou a necessidade de manter o segredo de justiça por prazo objetivamente indispensável à conclusão da investigação, pelas razões invocadas pelo senhor Juiz de Instrução na parte final do seu despacho que pode ver-se a fls 7 do presente acórdão.

António João Latas

_________________________________________________
[1] Acs. RE 17/11/09, proc. nº e RL 17/3/10, proc. nº 121/08.1TELSB-B.L1-3.
[2] cfr. Acs. RL 8/10/2008, proc. nº 5079/08 3ª Secção e 30/10/2008, proc. nº 5049/08 9ª Secção (no site da pgdl ), 18/11/08, proc. nº 5793/2008-5 ( cita jurisprudência da RL no mesmo sentido e um só acórdão, proferido em 17/9/08, em sentido contrário ) e 17/3/10, proc. nº 121/08.1TELSB-B.L1-3; RE 1/10/09, proc. nº 216/08.1JASTB-A.E1 e 17/11/09, proc. nº 778/08.3TAPTM-A.E1; RC 10/2/10, proc. nº 167/08.0GACLB-A.C1.
[3] cfr. Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2008.