Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
538/16.8OLH-E.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRAZO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- O prazo legalmente previsto para os credores deduzirem incidente relativo à qualificação da insolvência, a que alude o artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, é perentório e não ordenador.
II.- Relativamente ao Administrador da Insolvência tal prazo é meramente ordenador, uma vez que o AI é um colaborador do tribunal e não uma parte no processo e, como tal, a emissão do relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE não é um direito dele, mas um dever funcional que está submetido ao controlo jurisdicional.
III.- Independentemente da natureza do referido prazo – perentório ou ordenador –, não é admissível o requerimento de abertura de incidente de qualificação de insolvência apresentado por credor, mais de três anos após o decurso daquele prazo, sob pena de violação dos princípios da confiança e da segurança do direito, que emanam do Estado de Direito Democrático.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Procº 538/16.8OLH-E.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: (…).

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No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Lagoa, Juiz 2, no âmbito do incidente de Qualificação da Insolvência de (...) – Imobiliária, Lda., foi preferida a seguinte decisão:
Da intempestividade e do carácter manifestamente infundado do presente incidente
Como o reconhece o requerente a dedução do presente incidente não se afigura, desde logo, tempestiva, atenta à data em que ocorreu a assembleia de credores (09/11/2016).
Constatando-se que o requerente veio requerer (30/03/2020) a qualificação da insolvência volvidos mais de 04 anos depois da realização da assembleia de credores.
Ora, contrariamente ao sustentado pelo requerente, entende o Tribunal que o prazo a que alude o artigo 188.º, n.º 1, CIRE não meramente é ordenador para as partes (porque isso equivaleria a não fixar prazo nenhum), mas quando muito, é ordenador, como o são todos os prazos, para o próprio Tribunal, em face da oficiosidade da sua própria atuação.
Pelo que a dedução deste incidente, por um credor, para além do prazo a que alude o art.º 188.º, n. º 1, do CIRE, deve, pois, ser considerada extemporânea,
Contudo, ainda que assim não se entendesse, sucede que não foram, em todo o caso, na presente situação (apesar da extensão do articulado apresentado e do seu conteúdo repetitivo e conclusivo), alegados quaisquer factos concretos com relevo para a qualificação da insolvência da devedora e nem sequer identificados as pessoas aptas a ser afetadas pela mesma.
Com efeito, para que possa ocorrer qualificação, nomeadamente, da insolvência de uma sociedade importa que tenha ocorrido (pelo menos) uma conduta dos seus administradores, de facto ou de direito, na asserção do disposto no art. 6º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que:
- tenha criado ou agravado a situação de insolvência;
- tal conduta seja dolosa ou com culpa grave, excluindo-se, assim, a culpa simples.
- tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, ou seja, nos três anos anteriores ao dia da entrada do requerimento inicial do processo de insolvência na secretaria do tribunal, relevando, para além desse prazo, todos os actos praticados entre aquele dia e a data de declaração de insolvência, nos termos previstos no artigo 4.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Sendo que o n.º 1 do artigo 186.º é o preceito base no qual se prevê, assim, a exigência, para que a insolvência possa ser considerada culposa, de uma conduta de um administrador de direito e/ou de facto, que seja dolosa ou praticada com culpa grave e que apresente um nexo de causalidade com a situação de insolvência ou com o seu agravamento, cometida dentro de um determinado limite temporal.

Já o n.º 2 do artigo 186.º elenca, de forma taxativa, nas suas alíneas a) a i) situações fácticas que levam sempre à caracterização da insolvência como culposa, presunções iure et de iure, inilidíveis, quer de culpa grave, quer de existência do nexo de causalidade entre a conduta tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Por fim o nº 3 do mesmo preceito elenca, por sua vez, condutas cuja verificação faz presumir a existência de culpa grave, para os efeitos do nº 1 do art. 186º, presunção esta ilidível, sendo que, para que se possa qualificar a insolvência como culposa é necessário que se verifiquem os demais elementos do nº 1 do preceito, nomeadamente, que a conduta criou ou agravou a situação de insolvência
In casu, atentando na factualidade alegada, diremos que o facto de a devedora não ter contabilidade organizada desde de 2010 e ou de não ter encerrado a sua atividade, nada tem a ver com a observância (ou não) do dever de colaboração, a que alude a al.) i) do n.º 2 do art.º 188.º do CIRE.
Por outro lado, ainda que a contabilidade da devedora não se encontrasse organizada, não foi alegada qualquer factualidade concreta da qual se depreendesse a existência de prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora, tendo sido apenas exteriorizadas, pelo requerente, meras conclusões jurídicas, que mais não são que a reprodução da própria hipótese legal prevista na al. h) do nº 2 do artº 188.º do CIRE.
Acresce, que o alegado não depósito das contas e ou a não observância do dever de apresentação à insolvência consubstanciam factos inócuos quando não foi alegada nenhuma factualidade que fosse apta a suportar, com a necessária solidez, a conclusão de que os administradores de facto e ou de direito da devedora, com a sua conduta criaram ou agravaram a situação de insolvência da devedora.
E o facto de os sócios gerentes da sociedade insolvente terem alegadamente constituído outras empresas (no Brasil) e ou de terem recorrido ao crédito no decurso do ano de 2010 e ou promovido a venda dos imóveis construídos para esse mesmo efeito pela sociedade que geriam, também não é factualidade que seja, só por si, reveladora de qualquer conduta causal do agravamento da situação de insolvência da devedora [tanto mais, que o requerente tem apenas meras suspeitas (as quais não servem para fundar a instauração de qualquer processo judicial) quanto à ocorrência de uma eventual descapitalização da sociedade devedora].
Pelo que a dedução do presente incidente, não só se afigura intempestiva, como se revela igualmente manifestamente infundada, em face da falta de alegação de qualquer factualidade concreta que se afigure subsumível a qual número e alínea do artigo 186.º do CIRE.
Nestes termos, cumpre indeferir liminarmente, por manifestamente intempestivo e infundado o presente incidente.
Custas do incidente cargo do Requerente – artigo 527.º do Código de Processo Civil
Valor da causa: € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo) – cfr. artigo 303.º, n.º 1, do novo C.P.C.
Registe e notifique.
Silves, 02.04.2020

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Não se conformando com o decidido, o requerente do incidente de qualificação recorreu do indeferimento, formulando profusas conclusões, mas que se resumem ao entendimento de que o prazo a que alude o artº 188º/1 do CIRE é de natureza meramente ordenadora, pelo que o incidente de qualificação da insolvência que requereu está em prazo.

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A questão que importa decidir é a de saber da tempestividade do requerimento de qualificação da insolvência apresentado por um credor.
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A matéria de facto a considerar é a seguinte:
1.- Na ação principal a que o presente incidente de qualificação da insolvência está apenso, a Assembleia de Credores decorreu em 09-11-2016.
2.- O requerimento que suscitou o incidente de qualificação da insolvência deu entrada em 30-03-2020.
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Conhecendo.
Dispõe o artº 188º/1 do CIRE:
1.- Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
O incidente de qualificação da insolvência será declarado aberto na sentença se o juiz dispuser de elementos que apontem no sentido da insolvência culposa. Se não o for, deverá ser declarado aberto em momento posterior, a requerimento do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, da mesma forma, se o processo dispuser de elementos que o justifiquem.
Depois da sentença, o prazo para suscitar o incidente é de 15 dias.
Contudo, há que fazer uma distinção entre os prazos concedidos pela lei ao Administrador da Insolvência – porque, tal como o Tribunal, prossegue fins públicos, não sendo, por isso, parte –, e o prazo concedido às partes (insolvente, credores e Ministério Público quando represente credores cujos interesses lhe estejam legalmente confiados).
Quanto ao administrador, concorda-se com o que se decidiu no Ac. TRP de 24-10-2019, Carlos Portela, Procº 393/19.6T8AMT-B.P1: I - O administrador da insolvência é um colaborador do tribunal, não é uma parte no processo e como tal, a emissão do parecer não é um direito dele, mas um dever funcional.
E Ac. TRG de 14-04-2011, Manso Raínho, Procº 881/07.7TBVCT-S.G1: O facto do administrador da insolvência não ter apresentado o seu parecer quanto à qualificação da insolvência no prazo legalmente previsto, não faz precludir a possibilidade de o fazer mais tarde e de a tal parecer se atender.
Por este motivo, o prazo concedido ao AI é meramente ordenador, mas o incumprimento é assistido de sanção, uma vez que poderá ter consequências negativas para o exercício das suas funções como a destituição e a responsabilização pelos danos causados (artigos 56º e 59º do CIRE).
O que também ocorre, maxime, com o Tribunal sempre que um prazo não é cumprido, podendo surgir responsabilidades disciplinares e pecuniárias (artº 156º/5 do CPC).
O que equivale a dizer que os prazos meramente ordenadores passaram a ser uma ficção, pela simples razão de que o incumprimento de qualquer prazo é sempre sancionado, havendo divergência apenas no tipo de sanção.
Por isso, no que concerne às partes, sempre que um prazo judicial não é cumprido, a sanção é, ao invés do Tribunal, a caducidade do direito de praticar o ato (139º/3 CPC), salvo casos de justo impedimento ou prática até ao 3º dia útil seguinte.
Por esse motivo, quando é o credor a suscitar o incidente de qualificação da insolvência, o prazo de 15 dias não pode ser considerado meramente ordenador, uma vez que estamos em presença de um ato equiparado à apresentação de articulado de uma das partes no processo e, por isso, o regime quanto a prazos é o que se aplica às partes na apresentação dos seus articulados (artigos 137º a 142º do CPC).
O prazo é perentório pela simples razão de que o sistema de justiça tem de garantir, às partes, a mesma equidistância e uma igualdade de armas que revele e assegure a imparcialidade do sistema.
É por isso que para o tribunal os prazos são disciplinadores ou ordenadores e para as partes são perentórios – extinguindo-se o direito de praticar o ato se o for para além do prazo legal.
Como é bom de ver, o “direito” de praticar o ato nunca pode extinguir-se para o sistema de justiça porque este não se pode nunca eximir à sua prática (proibição de non liquet artº 8º/1 C Civil e 20º CRP); tudo porque estão em causa os interesses dos cidadãos ou empresas que solicitam a intervenção do sistema de justiça e não os interesses do sistema em si.
É pelos motivos descritos que a jurisprudência tem entendido que o prazo é perentório, quando está em causa a dedução do incidente pelos credores, e meramente ordenador, quando o incidente é suscitado pelo Administrador de Insolvência.
A título de exemplo, o prazo é ordenador: Ac. TRP de 07-05-2019, Rodrigues Pires, Procº. 521/18.9T8AMT-C.P1, Ac. TRP de 29-10-2009, Procº 10/07.7TYVNG-B.P1, Ac. TRP de 14-03-2017, Procº 2037/14.3T8VNG-E.P1, Ac. TRP de 07-05-2019, Procº 521/18.9T8AMT-C.P1.
O prazo é perentório: Ac. TRC de 10-03-2015, Procº 631/13.9-L.C1, Ac. TRG de 25-02-2016, Procº 1857/14.3TBGMR-DG1 e Ac. TRG de 20-04-2017, Procº 510/16.8T8VRL-D.G1.
Feito o excurso sobre esta questão da diferente obrigatoriedade de cumprimento dos prazos, que tem suscitado acesos protestos de alguns agentes da justiça, ficamos em condições de decidir a questão que nos foi colocada.
No seguimento da linha de raciocínio que vimos expendendo, o nosso entendimento é o de que o prazo, quando aplicado aos credores é perentório e quando aplicado ao Tribunal ou ao Administrador da Insolvência é ordenador, pelas razões acima expostas.
A jurisprudência tem-se pronunciado no mesmo sentido.
Ac. TRG de 20-04-2017, Elisabete Valente, Procº 510/16.8T8VRL-D.G1: I - O prazo legalmente previsto para os credores deduzirem incidente relativo à qualificação da insolvência, a que alude o artigo 188º, nº 1, do CIRE, não é meramente regulador ou ordenador, mas sim peremptório.
Ac. TRG de 30-05-2018, Eugénia Cunha, Procº 616/16.3T8VNF-E.G1: 1. Preenchidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz, pode determinar ex officio, mesmo em fase posterior à prolação da sentença de declaração de insolvência, a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa;
2. Face a isso, os prazos, previstos no n.º 1 e 3, do art. 188º, do CIRE (na redação emergente da Lei n.º 16/2001, de 20.04), para o administrador de insolvência requerer, fundamentadamente, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa e para apresentar parecer são meramente ordenadores ou reguladores (não podendo ser considerados prazos perentórios).

E, num caso muito semelhante ao dos autos, em que o incidente foi suscitado mais de três anos após o decurso do prazo de 15 dias, onde foi desenvolvida argumentação que aqui damos por reproduzida porque com ela concordamos, cfr. Ac. TRP de 24-03-2020, Alexandra Pelayo, Procº 3041/16.2T8VNG-C.P1: II - Independentemente da natureza do prazo estabelecido no art. 188º nº 1 do CIRE, como sendo um prazo “regulador”, “ordenador” ou de “organização processual” não é admissível o requerimento de abertura de incidente de qualificação de insolvência apresentado por credor mais de três anos após o decurso daquele, sob pena de violação dos princípios da confiança e da segurança do direito, que decorrem do Estado de Direito Democrático.

Assim sendo, uma vez que o incidente de Qualificação da Insolvência foi suscitado em 30-03-2020 e a Assembleia de Credores decorreu em 09-11-2016, mais de 3 anos após a sua realização, mostra-se decorrido o prazo a que alude o artº 188º/1 do CIRE, pelo que o incidente é extemporâneo.
Mas também o seria, como se disse, se o prazo fosse meramente ordenador, por violação dos princípios da confiança e da segurança do direito, imanentes ao Estado de Direito Democrático, uma vez que foi proposto mais de 3 anos após a realização da Assembleia de Credores onde foi apreciado o relatório do AI a que alude o artigo 155.º do CIRE.
Esta conclusão torna inútil a apreciação das restantes questões alegadas nas conclusões do recorrente, uma vez que tal pressuporia a tempestividade da propositura do incidente de qualificação.
O que significa ser a apelação improcedente e a decisão confirmada.
***

Sumário:

(…)


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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga improcedente a apelação e confirma a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente – Artigo 527.º CPC.
Notifique.

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Évora, 14 de Julho de 2020

José Manuel Barata (relator)

Conceição Ferreira

Emília Ramos Costa