Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
56/14.9TBMAC.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: QUESTÕES NOVAS INVOCADAS EM FASE DE RECURSO
CRÉDITOS SUBORDINADOS
PAGAMENTO
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Os recursos ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas.
2 – Os credores são notificados da proposta de distribuição e de rateio final através da publicação desta na Área de Serviços Digitais dos Tribunais. O prazo para os credores se pronunciarem sobre aquela proposta conta-se a partir da data desta publicação.
3 – Tendo a sentença de graduação dos créditos reclamados qualificado o crédito da recorrente como subordinado, a proposta de distribuição e de rateio final não poderá deixar de reflectir tal qualificação e o tribunal não poderá alterar a mesma qualificação no momento processual previsto no n.º 4 do artigo 182.º do CIRE.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 56/14.9TBMAC.E1 – Insolvência

Insolvente: (…) – Indústria de Madeiras e (…), Lda..

Credora/recorrente: (…).

Decisão recorrida:

«Nada tendo sido reclamado relativamente à proposta de distribuição e rateio final apresentada, e atenta a concordância da secretaria, deverão os pagamentos ser efetuados em conformidade.

Consigna-se, para os efeitos tidos por convenientes, que nos termos do artigo 183.º/3, do CIRE, não sendo o cheque apresentado a pagamento (ou comunicado o NIB para efeitos de transferência bancária) no prazo de um ano contado desde a data do aviso ao credor, prescreve o crédito respetivo e reverte a quantia a favor do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P.

Uma vez efetuada a conta e realizado o rateio final, importa declarar encerrado o processo nos termos do artigo 230.º/1-a, do CIRE, em que é insolvente (…), Industria de Madeiras e (…), Lda..

Encerrado o processo após o rateio final, cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência.

Com o registo do encerramento do processo, a sociedade considera-se extinta – artigo 234.º/3, do CIRE.

Excetuados os processos de verificação de créditos, qualquer ação que corra por dependência do processo de insolvência e cuja instância não se extinga, deve ser conclusa para efeitos de desapensação do processo e remessa para o tribunal competente.

As execuções fiscais apensas deverão ser todas devolvidas à Administração Fiscal.

Nos 10 dias posteriores ao encerramento, o administrador da insolvência deve entregar no tribunal, para arquivo, toda a documentação relativa ao processo que se encontre em seu poder, bem como os elementos da contabilidade do devedor que não hajam de ser restituídos ao próprio.

Notifique para o efeito.

Registe, publicite e notifique artigo 230.º/2, do CIRE.»

Conclusões do recurso:

1) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor não poderão ser considerados como créditos subordinados sempre que beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais.

2) A Recorrente exerceu funções de operadora de máquina no estabelecimento da Insolvente entre 02/11/1993 e 21/03/2014.

3) A Recorrente é titular de um crédito privilegiado (privilégios imobiliário e mobiliário geral) sobre a Insolvente, reclamado nos autos.

4) Os privilégios creditórios do crédito da Recorrente sobre a Insolvente constam da lista de credores.

5) Os créditos laborais de todos os trabalhadores identificados nos autos foram reconhecidos como créditos privilegiados (privilégio imobiliário especial e mobiliário geral) a ser pagos em 1.º lugar pelo produto da liquidação das verbas n.º 1 a 16 (bens móveis) e pelo produto da liquidação da verba n.º 18 (bem imóvel), correspondente às instalações da Insolvente.

6) No mapa de rateio final o crédito da trabalhadora, ora Recorrente, foi excluído da lista de credores a serem pagos pelo produto da(s) liquidação(s).

7) Com a sentença ora recorrida, a credora tomou conhecimento da proposta de rateio e distribuição do produto da liquidação.

8) A sentença ora recorrida determina a realização dos pagamentos em conformidade com a proposta de distribuição de rateio final apresentada.

9) O tribunal tem o poder-dever de verificar a conformidade substancial e forma dos títulos de créditos constantes da lista e/ou mapas de rateio, a fim de evitar a violação da lei substantiva.

10) Iguais exigências se impõem ao abrigo dos princípios da prevalência da verdade material sobre a formal, bem como da igualdade entre credores, independentemente da existência de impugnações do mapa de rateio final.

11) Nos autos, o crédito detido pela Recorrente, apesar de pessoa especialmente relacionada com a devedora, como crédito laboral que é, goza de privilégio imobiliário especial e privilégio mobiliário geral, pelo que deve o mesmo ser pago, em primeiro lugar, pelo produto da liquidação das verbas 1 a 16 e 18.

12) Posto isto, existem motivos para não ser realizado o rateio final em conformidade com a proposta de distribuição e rateio final apresentada.

13) Por cautela de patrocínio, identificada que foi a natureza e o montante do crédito da Recorrente e privilégios inerentes, verdadeiramente o que está em causa, é a interpretação feita do dispositivo, reduzindo-se as dúvidas ora suscitadas a mero erro de interpretação/material.

14) Assim sendo, e salvo o devido respeito, o tribunal a quo não deveria ter determinado o pagamento dos credores nos termos do rateio apresentado.

15) Tal distribuição e pagamento constituem violação da lei substantiva (artigos conjugados 47.º, n.º 4, alínea b), 48.º, alínea a), 49.º, n.º 2, alíneas a) e d), conjugadas com a alínea b) do n.º 1 e 97.º do CIRE), do princípio da verdade material sobre a verdade meramente formal e do princípio da igualdade entre os credores, consagrado nos artigos 604.º, n.º 1, do CC e 194º, n.º 1, do CIRE.

16) Por não ter decido destarte, ao decretar o pagamento dos credores conforme mapa de rateio (excluído o crédito privilegiado da Recorrente), violou a douta decisão as normas dos artigos 47.º, n.º 4, alínea b), 48.º, 49.º e 97.º do CIRE e artigo 737.º, n.º 1, alínea d), do CC, bem como os princípios da verdade material que norteia o nosso processo.

Factos relevantes para a decisão do recurso:

1 – Da sentença proferida no apenso de verificação e graduação de créditos, consta o seguinte:

«(…)

Nos presentes autos, como decorre da lista apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência, foram reconhecidos créditos privilegiados, garantidos, comuns e subordinados.

Aqui chegados, cumpre identificar as classes dos créditos sobre a massa insolvente reconhecidos pelo AI:

a) Privilegiados:

- Créditos laborais, que gozam de privilégio imobiliário especial sobre a verba nº 18 e mobiliário geral, de todos os trabalhadores identificados na lista, pelos montantes aí indicados, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos;

- Créditos do FGS, no valor de € 64.489,62, que gozam de privilégio imobiliário especial sobre a verba n.º 18 e mobiliário geral;

- Créditos do ISS, IP, no valor de € 48.303,77 com privilégio imobiliário e mobiliário geral;

- Créditos da AT, a título de IMI, IS e IMT no valor total de € 11.850,10, com privilégio imobiliário especial sobre a verba n.º 18;

- Créditos da AT a título de IRS e IRC, no valor de € 7.502,91, com privilégio imobiliário e mobiliário geral;

- Créditos da AT a título de IVA, no valor de € 18.997,56, com privilégio mobiliário geral;

b) Garantidos:

- Créditos da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da (…), CRL, no valor de € 73.454,73, garantido por hipoteca registada sobre a verba n.º 18;

c) Comuns:

- Todos os demais reconhecidos, devidamente identificados como comuns na lista apresentada pelo AI.

d) Subordinados:

- Todos os demais reconhecidos, devidamente identificados como subordinados na lista apresentada pelo AI.

Os créditos laborais gozam de privilégio imobiliário especial e mobiliário geral (artigo 333.º do C.T.) e são pagos à frente dos créditos por impostos e da Segurança Social – artigo 747.º e 749.º do CC e Ac. TRG de 13-2-2014, proc. n.º 1216/13.5TBBCL-A.G1 – bem como dos créditos garantidos por hipoteca.

(…)

Em seguida, devem ser pagos os créditos comuns, na proporção respetiva, se a massa insolvente for insuficiente para a sua satisfação integral – artigo 47.º, n.º 4, alínea c) e artigo 176.º do CIRE.

Os créditos subordinados são os últimos a obter pagamento.

(…)

IV- Decisão

Atendendo a tudo o que ficou exposto supra, deve proceder-se ao pagamento dos créditos, através do produto da massa insolvente, pela seguinte ordem:

1º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção do produto da venda de cada bem móvel ou imóvel, conforme estipula o n.º 1 e 2 do artigo 172.º do CIRE;

2.º - Do remanescente, serão pagos, atendendo ao auto de apreensão junto em 20-4-2021:

Relativamente ao produto da liquidação das verbas n.º 1 a 16 (bens móveis)

1º lugar: créditos laborais, e créditos do FGS, com privilégio mobiliário geral, rateadamente se necessário;

2º lugar: créditos da AT a título de IVA, IRC e IRS e créditos do ISS, IP, com privilégio mobiliário geral, rateadamente se necessário;

3º lugar: créditos comuns;

4º lugar: créditos subordinados.

Relativamente ao produto da liquidação das verbas n.º 17, 19 e 20 (bens imóveis)

1º lugar: créditos do ISS, IP, com privilégio imobiliário geral;

2º lugar: créditos da AT a título de IRC e IRS, com privilégio imobiliário geral;

3º lugar: créditos comuns;

4º lugar: créditos subordinados

Relativamente ao produto da liquidação da verba n.º 18 (bem imóvel)

1º lugar: créditos laborais e do FGS, com privilégio imobiliário especial, rateadamente, se necessário;

2º lugar: créditos da AT, a título de IS, IMT e IMI, com privilégio imobiliário especial;

3º lugar: créditos da CCAM da Zona do Pinhal, CRL, garantidos por hipoteca;

4º lugar: créditos do ISS, IP, com privilégio imobiliário geral;

5º lugar: créditos da AT a título de IRC e IRS, com privilégio imobiliário geral;

6º lugar: créditos comuns;

7º lugar: créditos subordinados.»

2 – Não foi interposto recurso da sentença referida em 1, encontrando-se a mesma transitada em julgado;

3 – Na relação de créditos reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência no apenso de verificação e graduação de créditos, é atribuída a natureza de subordinado ao crédito de que a recorrente é titular;

4 – A proposta de distribuição e de rateio final apresentada pelo administrador da insolvência não prevê o pagamento, sequer parcial, do crédito de que a recorrente é titular;

5 – O montante a ratear é insuficiente para o pagamento integral dos créditos não subordinados que foram reconhecidos;

6 – A proposta de distribuição e de rateio final foi publicada na Área de Serviços Digitais dos Tribunais;

7 – Nenhum credor se pronunciou sobre a proposta de distribuição e de rateio final.

Questão a decidir:

Admissibilidade do conhecimento da questão suscitada pela recorrente em sede de recurso.


*


A recorrente sustenta que o direito de crédito de que é titular, por ter natureza laboral e ser garantido por privilégios imobiliário e mobiliário geral, não pode ser qualificado como subordinado e, com esse fundamento, excluído da lista de créditos a serem pagos pelo produto da liquidação, como aconteceu. Em vez disso, segundo a recorrente, o seu direito de crédito deve ter tratamento idêntico aos dos restantes trabalhadores, ou seja, deve ser qualificado como privilegiado, (privilégio imobiliário especial e mobiliário geral) e pago em primeiro lugar pelo produto da liquidação das verbas n.ºs 1 a 16 (bens móveis) e da verba n.º 18 (bem imóvel), correspondente às instalações da insolvente. A recorrente afirma que só com a notificação da sentença recorrida, que determina a realização dos pagamentos em conformidade com a proposta de distribuição de rateio final, tomou conhecimento desta.

O n.º 3 do artigo 182.º do CIRE estabelece que, após julgadas as contas e paga a conta de custas, no prazo de 10 dias, o administrador da insolvência apresenta, no processo, proposta de distribuição e de rateio final, acompanhada da respectiva documentação de suporte caso seja diferente daquela que já existe no processo, e procede à publicação da proposta na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, dispondo a comissão de credores, caso tenha sido nomeada, e os credores, de 15 dias, contados desde a data da publicação, para se pronunciarem sobre a mesma.

Resulta desta norma que os credores são notificados da proposta de distribuição e de rateio final através da publicação desta na Área de Serviços Digitais dos Tribunais. O prazo para os credores se pronunciarem sobre aquela proposta conta-se a partir da data desta publicação.

Daí que não seja exacta a afirmação, feita pela recorrente, de que não foi notificada da proposta de distribuição e de rateio final. Tal notificação foi realizada através da publicação da proposta na Área de Serviços Digitais dos Tribunais.

Tendo a recorrente deixado decorrer o prazo legal para se pronunciar sobre a proposta de distribuição e de rateio final, ficou precludido o direito de o fazer. Consequentemente, está vedado, à recorrente, invocar uma suposta ilegalidade da proposta através da interposição de recurso da decisão que ordenou a realização dos pagamentos em conformidade com ela. Apenas poderia fazê-lo, em princípio, perante o tribunal a quo, dentro do prazo acima referido. Dizemos em princípio porque, tendo em conta o fundamento invocado pela recorrente, nem sequer no momento processual previsto na parte final do n.º 3 do artigo 182.º do CIRE ela estava a tempo de o fazer. Adiante justificaremos esta afirmação.

O tribunal a quo, naturalmente, não se pronunciou, na decisão recorrida, sobre a questão que a recorrente suscita perante o tribunal ad quem, pois a mesma não lhe foi colocada. Estamos, pois, perante uma questão nova. Ora, resulta dos artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º do CPC que os recursos ordinários visam o reexame de questões que foram submetidas à apreciação do tribunal a quo e não o conhecimento de questões novas, ou seja, suscitadas pela primeira vez perante o tribunal ad quem. Isto, naturalmente, sem prejuízo do conhecimento, por este último, das questões que o devam ser oficiosamente, o que não é o caso daquela que a recorrente agora suscita. “Os recursos são meios de obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento. (…) pretende-se um novo exame da causa, por parte de órgão jurisdicional hierarquicamente superior.”[1] Esta é uma regra básica em matéria de recursos, que define a própria natureza destes.

Isto basta para julgar o recurso improcedente, pois nenhuma outra questão é suscitada pela recorrente.

Não obstante, passamos a justificar a conclusão, acima enunciada, de que, tendo em conta o fundamento invocado pela recorrente, nem sequer no momento processual previsto na parte final do n.º 3 do artigo 182.º do CIRE ela estava a tempo de o fazer.

O fundamento invocado pela recorrente para pôr em causa a proposta de distribuição e de rateio final é a natureza do direito de crédito de que é titular. Considera a recorrente que esse crédito deve ser qualificado, não como subordinado, mas sim com privilegiado.

Ora, a questão da natureza do crédito da recorrente foi decidida pela sentença de graduação dos créditos reclamados, da qual não foi interposto recurso e que, consequentemente, se encontra transitada em julgado. Nessa sentença, o tribunal a quo, mediante remissão para o conteúdo da relação de créditos reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência no apenso de verificação e graduação de créditos, qualificou o crédito da recorrente como subordinado. Sendo assim, esta qualificação encontrava-se definitivamente fixada no processo, quer quando a proposta de distribuição e de rateio final foi elaborada, quer quando a decisão recorrida foi proferida. Logo, por um lado, aquela proposta cumpre inteiramente a sentença de graduação dos créditos reclamados e, por outro, estava vedado, ao tribunal a quo, alterar a qualificação do crédito da recorrente na decisão recorrida.

Contudo, para que não restem dúvidas, repetimos: ainda que assim não fosse, o recurso não poderia proceder, pela razão primeiramente referida.


*


Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo do decidido em matéria de apoio judiciário.

Notifique.


*


Sumário: (…)

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Évora, 19.03.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Maria Domingas Simões (1.ª adjunta)

Isabel de Matos Peixoto Imaginário (2.ª adjunta)



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[1] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume V (reimpressão), pág. 212.