Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
433/20.6 T8TMR.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: PATERNIDADE BIOLÓGICA
DIREITO DE PERSONALIDADE
OMISSÃO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Tendo a Ré escondido do A., seu ex marido, que não era o pai biológico da filha CC, nascida na constância do casamento, engano que deixou persistir por 9 anos, permitindo o estabelecimento de um vínculo pai/filha que sabia não corresponder à verdade, violou os direitos de personalidade do autor, protegidos pelos artigos 26.º da CRP e 70.º do CC.
II. A violação destes direitos constitui ilícito apto a desencadear responsabilidade civil nos termos do artigo 483.º do CC.
III. Demonstrado que a conduta descrita em I. foi causal dos danos apurados, constituiu-se a Ré na obrigação de indemnizar o Autor.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 433/20.6 T8TMR.E1[1]
Comarca de ...
Juízo local Cível ...


I. Relatório
AA, divorciado, residente em ..., ..., ..., ..., instaurou contra BB, divorciada, residente na Estrada ..., ..., acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação da demandada no pagamento da quantia global de € 39.823,00 (trinta e nove mil e oitocentos e vinte e três euros), para reparação dos danos de natureza patrimonial e não patrimonial sofridos em consequência da conduta ilícita da ré, pretensão que formulou ao abrigo do disposto nos artigos 493.º, 1672.º e 1792.º do C.C. e artigo 26.º, n.º 1, da CRP, que expressamente convocou.
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Citada a Ré, impugnou especificadamente os factos alegados pelo autor, contrapondo que à data em que a menor CC foi concebida já não viviam como marido e mulher, sabendo o demandante perfeitamente que a contestante mantinha uma relação extra matrimonial, o que sempre aceitou, tendo sido sua a decisão de permitir o registo nos termos em que foi realizado, pelo que carece de fundamento a presente acção.
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Dispensada, com o acordo das partes, a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, prosseguindo os autos com identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se audiência final, em cujo termo foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial e € 140,00 (cento e quarenta euros) a título de danos patrimoniais, absolvendo-a do demais peticionado.

Inconformada, apelou a ré e, tendo desenvolvido na alegação que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
1.ª Venerandos Desembargadores, no que à apreciação da matéria de facto diz respeito, a Meritíssimo Juiz a quo, na perspetiva do ora Recorrente, julgou erroneamente 5 a 8, 10, 11, 16 a 23 dos factos julgados como provados.
2.ª Acresce que, a douta sentença ora recorrida, apesar de não ser nula, padece do vício de deficiente e insuficiente fundamentação.
3.ª A resposta positiva dada aos quesitos 5º a 8º, 10º, 11º, 16º a 23º sustentou-se, segundo o que consta da posição da Meritíssima Juiz a quo, no depoimento das testemunhas DD, mãe do autor, EE, irmã do autor, FF, primo do autor, e GG, amiga de infância do autor.
4.ª Refira-se, contudo, que, nenhuma destas testemunhas inquiridas depôs de forma circunstanciada e objectiva, denotando conhecimento directo dos factos alvo do respectivo depoimento, bem como equidistante, face aos interesses em litígio, pelo que que não se podem reputar de credíveis os seus depoimentos.
5.ª Se apreciarmos de forma geral o seu discurso, facilmente se percebe que não o fez.
6.ª As referidas testemunhas às perguntas dos mandatários responderam, de uma forma geral, com incertezas, desconhecimento, falta de equidistância e permitindo-se até especular sobre a situação.
7.ª A Testemunha indicada pela Ré, filha das partes, concretizou de forma clara que o Autor tinha conhecimento, desde 2011, dos factos.
8.ª Assim sendo, in casu, para além de se não ter provado, em nosso humilde entendimento, a factualidade invocada pelo Autor, provou-se, claramente, que ele sabia que não era o pai biológico da menor.
9.ª Em nosso humilde entendimento, a senhora Juíza a quo, analisou de forma absolutamente desigual os depoimentos das testemunhas do Autor, em detrimento da testemunha da Ré.
10.ª Venerandos Desembargadores, a Mma. Juiz a quo fez tábua rasa da ratio, das contradições, do desconhecimento, da falta de equidistância e no interesse que as testemunhas indicadas pelo Autor tinham no litígio.
11.ª Como fez tábua rasa do depoimento prestado pela testemunha indicada pela Ré.
12.ª Como tudo melhor se pode verificar pela simples audição da gravação.
13.ª Com efeito, a ponderação crítica e comparativa de todos os meios de prova produzidos, relacionados dialeticamente entre si, impunham que a resposta aos quesitos supra mencionados fosse diferente.
14.ª Face ao alegado, dúvidas não nos restam que o Autor não fez prova da existência do direito invocado.
15.ª O Recorrente alega e indica os meios probatórios concretos constantes do processo e da gravação, que impunham decisão diferente sobre os pontos da matéria de facto impugnada.
16.ª Em suma, da produção de prova, conforme supra alegado, gravada, resulta que, existiu erro na apreciação da prova, o que implica uma modificação da decisão quanto à matéria dada como provada e não provada.
Conclui pela procedência do recurso, com a consequente absolvição da recorrente.
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Não foram oferecidas contra alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir indagar se, como defende a recorrente, ocorreu erro de julgamento quanto aos factos que identifica.
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i. impugnação da matéria de facto
A recorrente impugna a factualidade dada como assente nos prontos 5 a 8, 10, 11, 16 a 23, alegando que as testemunhas oferecidas pelo R., a que o Tribunal conferiu credibilidade, prestaram depoimentos contraditórios, revelaram desconhecimento dos factos e ausência de equidistância em relação às partes. Foi ainda indevidamente desconsiderado, disse, o testemunho prestado pela filha do casal que, apesar do evidente constrangimento, depôs de forma concreta, objetiva e revelando conhecimento directo dos factos. Deste modo, conclui, impõe-se a modificação do decidido, devendo os factos impugnados obter, todos eles, respostas negativas.
Está em causa a seguinte factualidade:
5. Desde a data do divórcio até ao mês de Agosto de 2018, Autor e Ré viveram ignorando-se um ao outro.
6. O dissolvido casal não requereu partilhas subsequentes ao seu divórcio.
7. Desde que nasceu, a menor foi tratada, acarinhada, protegida pelo pai, que criou profundos laços de amizade e de estima com a menor, contribuindo para os alimentos dessa mesma menor e mantendo, mesmo após o divórcio, o mesmo tipo de relacionamento que sempre existiu na constância do casamento com a Ré.
8. No mês de Agosto de 2018, tendo havido confronto entre Autor e Ré relativamente à partilha dos bens comuns do dissolvido casal, a Ré disse-lhe que era “um cabrão, (...), um palhaço, as parelhas de cornos que levaste foram poucas, andas a criar as filhas dos outros e não vês nada à frente”.
10. Não tinha desconfianças da infidelidade da sua ex-mulher, embora lhe tivessem chegado aos ouvidos alguns rumores.
11. Perante a forma desabrida como a sua ex-mulher lhe falou, o Autor tomou a iniciativa de se certificar se a filha menor CC é biologicamente sua filha.
16. Tal notícia causou e continuará a causar ao A. um profundo abalo psicológico e sofrimento moral.
17. O A. criara a menor CC biologicamente como sua filha, reforçando no dia-a-dia os laços de amor e carinho recíprocos.
18. Soube o A., por intermédio da menor CC, que a Ré veio dar conhecimento à menor que o A. não era o seu pai (biológico).
19. Estando o pai ausente em serviço de transportes, passou a menor a telefonar-lhe diariamente, dizendo-lhe que não quer ter outro pai que não seja ele.
20. A relação entre o a menor e A. é tao forte que continua a telefonar-lhe e quer que o A. não lhe deixe telefonar também.
21. Recorde-se que a própria menor entregava ao A., quando saia para viagem, um brinquedo para que o pai se lembrasse dela e que o A. transportava nos bolsos.
22. O A. vive agora amargurado, desgostoso, sentindo-se vexado e humilhado, traído na sua honra e dignidade, pois sabe que no seu meio o facto é conhecido, sendo certo que se trata de uma aldeia - ... – onde é conhecido de todos, bem como em zonas circundantes.
23. Por virtude do comportamento da Ré que omitiu ao Autor as relações sexuais adulterinas, manteve o A. no erro durante 10 anos, concluindo agora o A. que a menor CC não é sua filha, embora tenha sido gerada pela sua mulher na constância do casamento.

Ouvida a prova não se vê razão, antecipa-se, para modificar na essência a factualidade impugnada. Note-se que estando em causa um facto da vida interior – o conhecimento que o autor teria ou não, desde a revelação da gravidez, que a menor CC não era sua filha – e na ausência de prova directa – v. g. testemunha que estivesse presente quando a gravidez lhe foi comunicada ou a quem tivesse confidenciado o facto – assumiram protagonismo os factos instrumentais apurados e que resultaram dos testemunhos prestados.
Assim, e pese embora a relação familiar muito próxima entre as duas primeiras testemunhas e o Autor, sendo respectivamente a sua mãe e irmã, a verdade é que não denotaram qualquer azedume em relação à ré, tendo merecido credibilidade, até por alguma fragilidade de que se revestiram os testemunhos prestados. Com efeito, longe de asseverarem a impossibilidade de o autor ter tido conhecimento do facto nos termos alegados pela ré, narraram, isso sim, o relacionamento afectuoso que aquele mantinha com a filha, tendo inclusivamente convidado a irmã para madrinha, e que se manteve inalterado após o divórcio, pese embora o abalo sofrido por essa ocasião. E convergentemente fizeram as mesmas testemunhas coincidir com o conhecimento do resultado do exame pericial, que revelou que a paternidade estabelecida não correspondia à paternidade biológica da CC, o enorme choque sofrido pelo autor que, nas palavras da irmã, ficou desorientado, chorava, tendo ficado incapaz de conduzir (é motorista de longo curso), o que o levou a procurar ajuda psicológica e determinou a sua permanência de baixa durante meses, conforme a testemunha FF, seu colega de trabalho, também confirmou.
É certo que, conforme se referiu já, resultou igualmente demonstrado que aquando do divórcio o autor ficou também muito perturbado, mas nenhuma das testemunhas inquiridas hesitou em estabelecer uma relação de causa-efeito entre o período de baixa mais recente, motivado por grande desorientação, ansiedade e depressão, e o conhecimento do resultado do exame pericial.
Por outro lado, sendo de reconhecer ter a testemunha DD confirmado que havia “rumores” do maus comportamento da nora -“às vezes as pessoas bicavam aqui e ali”- a verdade é que ninguém alguma vez desconfiou de que a menor não fosse filha do autor, que sempre a tratou e acarinhou e amava como tal, frequentando a CC a casa da avó e dos tios, de quem era próxima, por todos sendo carinhosamente tratada. Aliás, nas palavras da testemunha EE, irmã do autor, nunca passou pela cabeça de ninguém que a menor não fosse filha deste, asseverando que se havia alguma desconfiança nunca deram por nada, nem alguma vez foi feita a mais leve alusão a tal facto.
Esclareceu ainda, embora o conhecimento lhe adviesse de relato feito pelo autor, que na ocasião referida nos autos este se havia desentendido com a ex-mulher, que o injuriou, e foram as palavras desta, então proferidas, que o determinaram a querer saber se a filha era dele ou não.
No mesmo sentido depôs a testemunha GG, amiga de infância do autor, que com ele priva, a quem este revelou ter sabido que a filha não era dele na sequência dos exames realizados, tendo ainda declarado que, constituindo A e Ré um casal aparentemente normal, nada fazia supor que a filha não fosse do marido da mãe. É certo que esta testemunha reconheceu não frequentar a casa do casal, por não ser próxima da ré, mas usava encontrar o autor, frequentemente acompanhado da filha, e tudo o que via era a mais afectuosa relação entre pai e filha.
Resultando dos testemunhos indicados que o autor sempre tratou a menor como filha, acarinhando-a e providenciando pela satisfação das necessidades da mesma, situação que em nada se alterou após o divórcio, pagando a prestação de alimentos fixada, pese embora as visitas se tenham tornado pouco frequentes desde a mudança da menor para ..., surge como verosímil e muito provável a versão trazida aos autos no sentido de ter sido uma discussão com a Ré, no decurso da qual esta o injuriou, que o motivou a realizar exames de averiguação de paternidade, como de resto relatou à mãe e à irmã, que isso mesmo referiram. E sendo possível – veja-se o relato feito pelo autor à psicóloga que subscreve a informação clínica junta aos autos – que tivesse chegado ao seu conhecimento a existência de rumores no sentido de a aqui ré, na constância do casamento e dadas as constantes ausências do marido em virtude da actividade profissional desenvolvida, não manter um comportamento recatado, a verdade é que as testemunhas aludiram a um relacionamento conjugal normal, o que decerto não se verificaria caso acreditasse em tais rumores. Mais relevante ainda é o facto de ter estabelecido um forte vínculo afectivo com a menor que acreditava ser sua filha, que se manteve após o decretamento do divórcio, sem que alguma vez tenha sido feita qualquer alusão à possibilidade de não ser o pai biológico da mesma mesmo no círculo mais estreito dos seus familiares e amigos.
Os factos mencionados, aliados ao violento choque sofrido quando tomou conhecimento do resultado dos exames, o que o seu estado de saúde, comprovado nos autos, evidencia, levaram ao convencimento de que não tinha conhecimento de que a menor CC não era sua filha biológica, revelação que lhe causou enorme sofrimento.
Uma referência final para o testemunho prestado pela filha do casal, HH. A testemunha declarou que o pai sabia – tinha quase a certeza disso, quase certeza que após insistência do Il. Mandatário da Ré se transformou em certeza – que a irmã não era sua filha, convencimento que remontava ao momento em que deu ao pai a notícia de que ia ter uma mana e que lhe teria sido revelado pela reacção deste. Todavia, instada a esclarecer qual tinha sido afinal a reacção do autor, relatou que este teria respondido “Não sei” e que depois acabou por sorrir.
A propósito deste testemunho, há que ter presente que a sua autora tinha, aquando do nascimento da irmã, cerca de 10 anos. Deste modo, e apesar de ter declarado que já tinha a noção de que as coisas não andariam muito bem entre os pais, não conseguiu concretizar esse sentir, aludindo apenas ao facto de o pai se ausentar muito em razão do trabalho. Revelou ainda que, sendo curiosa, mais tarde – ou seja, um pouco mais velha – apercebeu-se, ao espreitar o telemóvel da mãe, que esta teria um relacionamento com outra pessoa, sem especificar contudo a que época se reportam estes factos e qual a natureza de tal relacionamento. Seja como for, e mostrando-se a testemunha, o que é natural, bastante perturbada, não podemos deixar de secundar o juízo feito pela 1.ª instância a propósito da inconsistência do seu depoimento, subsistindo aliás a dúvida sobre se o relato que fez não estaria já contaminado por factos que chegaram posteriormente ao seu conhecimento.
Não se vê, pois, razão, para alterar a decisão, com as excepções que de seguida se referirão.
No que se refere ao ponto 6, tal como a impugnante faz notar, A. e R. acabaram por instaurar processo de inventário, o que ocorreu em 2018. Percebendo-se a alegação, que foi no sentido de a partilha não ter sido feita no imediato após o divórcio, importa todavia precisar o teor do facto em causa, harmonizando-o com aquela realidade.
Quanto aos pontos 19, 20 e 21 não foi feita prova dos factos neles vertidos. Ao invés, e quanto ao ponto 20., resultou dos testemunhos da mãe e irmã do autor que os contactos praticamente cessaram na sequência do resultado dos exames.
Atento o exposto, e com as excepções apontadas, mantém-se a decisão proferida sobre os factos.
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II. Fundamentação
De facto
Estabilizada, é a seguinte a matéria de facto a considerar:
1. Autor e Ré casaram em 20 de Dezembro de 1996, sem convenção antenupcial.
2. Na constância deste casamento – 05 de Janeiro de 2009, nasceu a menor CC, tendo sido registada como filha de Autor e da Ré.
3. Foi o A. que foi declarar perante oficial público que era ele o pai desta menor.
4. O casamento foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento em 10 de abril de 2013, decisão essa transitada em julgado nessa mesma data.
5. Desde a data do divórcio até ao mês de Agosto de 2018, Autor e Ré viveram ignorando-se um ao outro.
6. O dissolvido casal não requereu partilhas subsequentes ao seu divórcio, vindo a instaurar processo de inventário apenas em 2018.
7. Desde que nasceu, a menor foi tratada, acarinhada e protegida pelo pai, que criou profundos laços de amizade e de estima com a menor, contribuindo para os alimentos dessa mesma menor e mantendo, após o divórcio, o mesmo tipo de relacionamento que sempre existiu na constância do casamento com a Ré.
8. No mês de Agosto de 2018, tendo havido confronto entre Autor e Ré relativamente à partilha dos bens comuns do dissolvido casal, a Ré dirigiu insultos ao réu, apelidando-o de cabrão.
9. O Autor era e é camionista TIR, passando frequentemente intervalos de 8 e mais dias sem vir a casa.
10. Não tinha desconfianças da infidelidade da sua ex-mulher, embora lhe tivessem chegado aos ouvidos alguns rumores.
11. Perante a forma desabrida como a sua ex-mulher lhe falou, o Autor tomou a iniciativa de se certificar se a menor CC era biologicamente sua filha.
12. A conselho do seu mandatário e de acordo com o mandatário da Ré, e com o consentimento desta, foi requerido se procedesse a investigação de parentesco biológico respeitante ao Autor, sua ex-mulher ora Ré e a menor CC.
13. Tendo o Autor, a Ré e a menor sido submetidos aos respetivos exames no Serviço de Genética e Biologia Forenses do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. de ..., a conclusão que consta do relatório é que AA é excluído da paternidade de CC, filha de BB.
14. Tais análises, cujo resultado foi comunicado ao mandatário do A. no dia 23 de Janeiro de 2019, foram, nesse mesmo dia, comunicadas ao A.
15. O A. propôs a respetiva ação de impugnação de paternidade presumida – Proc. n.º 165/19.... – Juízo de Família e Menores ... – Juiz ..., e que culminou por sentença que julgou procedente a ação, sentença esta transitada em julgado em 14 de Janeiro de 2020.
16. Tal notícia causou e continuará a causar ao A. um profundo abalo psicológico e sofrimento moral.
17. O A. criara a menor CC como sua filha biológica, reforçando no dia-a-dia os laços de amor e carinho recíprocos.
18. Soube o A., por intermédio da menor CC, que a Ré veio dar conhecimento à menor que o A. não era o seu pai (biológico).
19., 20. e 21. Eliminados.
22. O A. vive agora amargurado, desgostoso, sentindo-se vexado e humilhado, traído na sua honra e dignidade, pois sabe que no seu meio o facto é conhecido, sendo certo que se trata de uma aldeia – (...) – onde é conhecido de todos, bem como em zonas circundantes.
23. Por virtude do comportamento da Ré que omitiu ao Autor as relações sexuais adulterinas, manteve o A. no erro durante 10 anos, concluindo agora o A. que a menor CC não é sua filha, embora tenha sido gerada pela sua mulher na constância do casamento.
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Não se provou que:
- Estando o pai ausente em serviço de transportes, passou a menor a telefonar-lhe diariamente, dizendo-lhe que não quer ter outro pai que não seja ele.
- A relação entre o a menor e A. é tao forte que continua a telefonar-lhe e quer que o A. não lhe deixe telefonar também.
- A própria menor entregava ao A., quando saía para viagem, um brinquedo para que o pai se lembrasse dela e que o A. transportava nos bolsos.
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De Direito
Da violação do direito de personalidade do A.
Como resulta das transcritas conclusões, a ré apelante limitou-se a desafiar a decisão proferida sobre os factos, renunciando a discutir o enquadramento jurídico que lhe foi dado e montante da indemnização arbitrada.
Dir-se-á, em todo o caso, muito sintenticamente, que a pretensão do autor encontra acolhimento nos artigos 26.º da CRP, que a todos reconhece “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” e 70.º do Código Civil, que dispõe para os direitos de personalidade, proclamando que «a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral».
Conforme se consignou no acórdão deste mesmo TRE de 28 de Outubro de 2021 (processo n.º 942/20.7 T8FAR.E1, em www.dgsi.pt), que se pronunciou sobre caso em tudo idêntico ao que nos ocupa, “o bem jurídico protegido pelo normativo em análise [artigo 70.º] é, então, a personalidade física ou moral dos indivíduos, ou seja, «os bens inerentes à própria materialidade e espiritualidade de cada homem», exigindo a tutela da personalidade não apenas a protecção dos seus bens interiores, inerentes à realidade física e à autonomia e liberdade de cada ser humano, como também o «resguardo e a preservação do espaço vital exterior de cada homem».
A violação destes direitos constitui ilícito apto a desencadear responsabilidade civil nos termos do artigo 483.º do Código Civil.
Verificando-se, no caso em apreço, que a conduta da ré, ao esconder do autor que não era o pai biológico da filha CC, nascida na constância do casamento, engano que deixou persistir por 9 anos, permitindo o estabelecimento de um vínculo pai/filha que sabia não corresponder à verdade, violou os direitos de personalidade do autor, conduta que foi causal dos danos apurados.
Verificados deste modo os pressupostos da responsabilidade civil por acto ilícito, e não questionando a apelante a justeza do montante arbitrado, resta confirmar a sentença recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário: (…)
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Évora, 28 de Junho de 2023
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
Anabela Luna de Carvalho

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[1] Exm.ªs Sr.ªs Juízas Desembargadoras Adjuntas:
1.ª Adjunta: Ana Margarida Leite;
2.ª Adjunta: Anabela Luna de Carvalho.