Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1140/18.5T8STR.E1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
AUTO DE NOTÍCIA
NOTIFICAÇÃO
INSPECÇÃO DO TRABALHO
TESTEMUNHA
Data do Acordão: 10/31/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: i) A notificação do auto de notícia não tem que ser na própria pessoa da empregadora.
ii) os inspetores da ACT podem depor em julgamento sobre factos que presenciaram na fase investigatória e que conduziram à elaboração do auto de notícia.
iii) a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é uma ação de simples apreciação positiva e visa pôr fim à situação de incerteza quanto a determinada situação de facto e de direito, qualificando-a.
iv) o regime jurídico relativo à ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho não é inconstitucional, pois neste caso prevalece o interesse público em detrimento do interesse particular em querer prestar a atividade como prestador de serviços.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1140/18.5T8STR.E1

Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO

Apelante: CC, Lda (ré).
Apelado: Ministério Público (autor).

Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo do Trabalho de Santarém, J1.

1. O Ministério Público veio, ao abrigo do disposto no art.º 15.º-A da Lei n.º 107/2009 de 14 de setembro e art.º 186.º-K e ss. do Código de Processo do Trabalho intentar contra a ré ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, pedindo que se decrete o reconhecimento da existência de contrato de trabalho entre a ré e o trabalhador BB desde 09 de fevereiro de 2018, com as legais consequências.
Para tal alega que na sequência da ação inspetiva levada a cabo pelo Inspetor do Trabalho da ACT realizada no dia 21 de março de 2018, foi levantado um auto por utilização indevida por parte da ré de pretenso contrato de prestação de serviços relativamente ao trabalhador BB, o qual procedia à distribuição de correio e publicidade sob as ordens, direção e fiscalização da ré, sendo o seu local de trabalho pertença dos CTT determinado por aquela.
Mais refere que BB celebrou um suposto contrato de prestação de serviços com a ré cumprindo horários diários de seis horas de segunda a sexta-feira, determinados por aquela e comunicados ao trabalhador, normalmente iniciando todos os dias às 09.00 horas, consistindo na recolha de manhã, no estabelecimento dos CTT de DD, o correio previamente dividido em caixas, proceder à distribuição desse correio e regressar a meio da tarde para prestação de contas das cartas registadas que não foram possíveis de ser entregues, valores recebidos de clientes/destinatários, bem como toda a documentação relativa a distribuição efetuada, situação essa a qual vigorava desde 09 de fevereiro de 2018 e se mantinha na data realizada pela ACT.
Salienta ainda que BB, no desempenho das suas funções utilizava vestuário dos CTT, a saber, colete, caixa dos CTT, mala dos CTT e placa identificativa com o logotipo dos CTT, auferindo uma quantia fixa mensal de € 600 que lhe eram pagos pela ré, não tendo outra fonte de rendimento, dependendo exclusivamente do trabalho prestado a esta, o percurso diário resulta do estipulado no contrato de prestação de serviços entre os CTT e a ré, o trabalhador quando tem que faltar informa e comunica a EE, o mesmo sucedendo com as suas férias, embora as mesmas não sejam remuneradas.
Devidamente notificada para contestar veio a ré fazê-lo pugnando pela sua absolvição (fls. 65).
Invoca a nulidade da notificação do auto levantado pela ACT por alegada utilização indevida por parte da ré de contrato de prestação de serviços celebrado com BB, uma vez que o aludido auto foi assinado pelo funcionário da ré, EE e entregue ao mesmo, ao invés de o fazer através de um dos seus legais representantes.
Mais alega que em 09 de março de 2018 foi celebrado entre a ré e BB um contrato de prestação de serviços mediante o qual aquele comprometeu-se, mediante o pagamento de € 4,54 por cada hora de serviço prestado, a proceder à recolha de correio e encomendas nos centros de distribuição, marcos e caixas, bem como a proceder à sua distribuição, entrega e cobrança diária dos envios postais/correspondência no domicílio de cada destinatário, entre outros numa área geográfica delimitada.
Refere por sua vez que o colete, placa identificadora, caixa e mala de distribuição propriedade dos CTT foram cedidos à ré em regime de comodato tendo, por sua vez, sido também cedidos em regime de comodato ao dito prestador de serviços inexistindo qualquer subordinação jurídica ou dependência hierárquica da ora ré, cabendo ao prestador de serviços preparar, organizar e planificar os seus serviços de forma a proporcionar o resultado pretendido, utilizando a sua própria viatura, não observando quaisquer horas de início ou de termo da prestação determinadas pela ora ré, recebendo em função das horas que prestar os seus serviços.
Desvaloriza, em suma, todos os indícios indicados nos autos como de contrato de trabalho, reforçando que os mesmos apenas correspondem a uma normal execução de um contrato de prestação de serviços exercido com autonomia por parte de BB.

Foi proferido despacho a designar data para a realização da audiência de julgamento, após se decidir pelo indeferimento da nulidade invocada pela ré quanto à notificação da mesma do auto levantado pela ACT nos termos do art.º 15.º-A n.º 1 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
Realizou-se audiência de julgamento e, após, foi proferida sentença com a seguinte decisão:
Face ao exposto, reconhece-se a existência de um contrato de trabalho celebrado entre a ré CC, Lda e BB, fixando-se o início da referida relação laboral desde 09 de março de 2018.
Comunique-se à ACT e ao Instituto da Segurança Social IP, nos termos do art.º 186.º-O n.º 9 do Código de Processo do Trabalho.
Fixa-se o valor da causa em 30.000,01 (cfr. art. 186.º-Q n.º 2 do Código de Processo do Trabalho).

2. Inconformada, veio a R. interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
a) No âmbito do processo em epígrafe foi peticionado pelo Ministério Público o reconhecimento da existência de contrato de trabalho entre a ré, aqui recorrente, e o trabalhador BB desde 9/2/2018 com as legais consequências.
b) Em sede de contestação, pela Ré foi pedido que a ação fosse declarada totalmente improcedente, por não provada e,
c) Que fosse declarada a nulidade do auto junto como doc. 1 à P.I., e, em consequência, ordenado o reenvio dos autos à autoridade administrativa (ACT) para notificar formalmente a ré nos termos do art.º 15.º-A n.º1 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro,
d) Tendo em conta que o aludido auto foi assinado pelo funcionário da ré, EE, e entregue ao mesmo.
e) Por despacho datado de 09/05/2018, com a ref.ª 78175487, veio o MM Juiz do Tribunal “a quo” considerar improcedente a nulidade ora invocada,
f) Todavia, por não se concordar com a decisão proferida e por ser aquele despacho recorrível em sede de recurso de apelação, nos termos do art.º 79º-A n.º 3 do CPT, do mesmo aqui se recorre.
g) Ressalte-se que o auto ora em crise e junto à P.I. como doc. 1, fora lavrado nos termos do art.º 15.º-A n.º 1 da suprarreferida Lei, com o objetivo de notificar o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente,
h) Como tal, deveria tal notificação ter sido efetuada, por escrito, para a sede da entidade empregadora (ré),
i) Salientando que dos art.ºs 7.º a 9.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, consta expressamente a forma de notificação da entidade empregadora,
j) Não fazendo expressamente menção às notificações de pessoas coletivas, porque também não o faz relativamente a pessoas singulares,
k) Pelo que se presume que a notificação deverá ser sempre efetuada por carta registada, independentemente de ter como destinatário uma pessoa coletiva ou uma pessoa singular,
l) Face ao exposto, tendo o auto junto como doc. 1 à P.I., sido assinado pelo funcionário da ré, EE, e entregue ao mesmo, dúvidas não existem em como a ora recorrente não foi formalmente notificada,
m) Pelo que deverá o despacho de que aqui se recorre ser devidamente revogado e substituído por outro que reconheça e declare a nulidade do auto junto como doc. 1 à P.I.,
n) Devendo ser ordenado o reenvio dos autos à autoridade administrativa (ACT) para notificar formalmente a ré nos termos do art.º 15.º-A, n.º 1 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro,
o) Ficando assim prejudicada a sentença que igualmente aqui também se recorre.
p) Mais, após a primeira sessão de audiência de julgamento, mediante requerimento apresentado via citius em 13/06/2018, com a ref.ª 5037658, a ré requereu que o depoimento da testemunha FF, inspetor da Autoridade para as Condições de Trabalho e autuante, não fosse valorado como meio de prova,
q) Tendo realçado que, nos termos do art.º 16º da Lei n.º 107/2009, o autuante ou o participante não podem exercer funções instrutórias no mesmo processo,
r) E que, de acordo com o n.º 7 do artigo 356.º do CPP, “Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas”,
s) Pelo que foi ainda requerido que não fossem admitidas as declarações das testemunhas …e… (ambas inspetoras da ACT, também presentes na ação inspetiva), sobre o conteúdo dos autos de declarações anexos à P.I.,
t) Pretensão indeferida pelo MM Juiz do Tribunal “a quo”, mediante despacho proferido em 14/06/2018, com a ref.ª 78551878,
u) Todavia, também por não se concordar com a decisão proferida e por ser aquele despacho recorrível em sede de recurso de apelação, nos termos do art.º 79.º-A n.º 3 do CPT, do mesmo aqui se recorre.
v) Assim, importa realçar que o aludido art.º 186.º-K do Código de Processo do Trabalho, não faz qualquer menção sobre prova testemunhal,
w) Pelo que, o MM. Juiz do Tribunal “a quo”, ao decidir como decidiu, não teve em consideração o art.º 1.º do Código de Processo do Trabalho,
x) Assim, sendo certo que os inspetores da Autoridade para as Condições de Trabalho, são considerados OPC (Órgãos de Policia Criminal) de competência específica, conforme resulta do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto (Lei da Organização de Investigação Criminal),
y) Bem como que, nos termos do art.º 16.º da Lei n.º 107/2009, o autuante ou o participante não podem exercer funções instrutórias no mesmo processo,
z) Dúvidas não existem em como não deveriam ter sido inquiridos, como testemunhas, os inspetores da ACT, sobre o conteúdo das declarações alegadamente recolhidas pelos mesmos ao prestador de serviços,
aa) Pelo que deverá o despacho de que aqui se recorre ser devidamente revogado e substituído por outro que defira o requerido,
bb) Não sendo sequer lícita a valoração como meio de prova dos depoimentos das testemunhas FF e GG, ambos inspetores da Autoridade para as Condições de Trabalho,
cc) Facto que, salvo melhor opinião, determinará a consequente nulidade da sentença recorrida, o que igualmente se requer que seja declarado e reconhecido.
dd) Mais se dirá que, tendo em conta a prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a prova testemunhal, não pode o recorrente conformar-se com a sentença objeto dos presentes autos,
ee) Impugnando-se, assim, a matéria de facto considerada como provada na sentença da qual se recorre, correspondente aos pontos B, C, D, E, H, I, J e L dos “factos provados”.
ff) Contrariamente à matéria de facto que resulta assente no ponto B dos “factos provados”, não é verdade que o prestador de serviços BB procedesse à distribuição de correio com base no estabelecido entre os CTT- Correios de Portugal, S.A. – Sociedade Aberta em DD e a ré CC, Lda.,
gg) Face à prova testemunhal produzida nos presentes autos, jamais deveria o Mm juiz do Tribunal “a quo” ter considerado provado o ponto C dos “factos provados”,
hh) Salientando que facilmente se conclui da prova produzida o prestador de serviços BB não presta a sua atividade nos CTT de DD,
ii) Igualmente não corresponde à verdade, nem disso foi feita prova que, BB, cumpra ou cumprisse horários diários de 6 horas determinados pela ré e comunicados por EE,
jj) Nem tão pouco que aquele, na véspera, informasse BB das horas do trabalho a iniciar no dia seguinte (cfr. consta do ponto D dos “factos provados”),
kk) Bem como não corresponde à verdade, nem disso foi feita prova, que BB tivesse que recolher de manhã o correio nos CTT e regressar a meio da tarde para prestação de contas das cartas registadas que não foram passíveis de ser entregues, valores recebidos de clientes/destinatários e de toda a documentação relativa a distribuição efetuada (cfr. consta do ponto E dos “factos provados”),
ll) Não correspondendo igualmente à verdade, nem disso foi feita prova, que o prestador de serviços desempenhasse funções com trabalhadores – carteiros – dos CTT e com EE, funcionário da ora recorrente (cfr. consta do ponto H dos “factos provados”,
mm) Tal como não foi feita prova que o prestador de serviços BB aufira uma quantia fixa mensal de € 600 e que não tivesse outra fonte de rendimento (cfr. conta do ponto I dos “factos provados”),
nn) O mesmo sucedendo com os ponto J dos “factos provados”, uma vez que o prestador de serviços BB não recebe orientações e instruções do trabalho através do trabalhador EE (nem aquele funciona como veiculador das orientações que chegam dos CTT e que estão vertidas no contrato de prestação de serviços celebrado entre os CTT e a recorrente),
oo) Salientando que o ponto L dos “factos provados”, tal como está escrito, pretende fazer crer que BB tem a obrigação de avisar a ora recorrente quando não quer ou não pode prestar os seus serviços,
pp) O que não corresponde à verdade, uma vez que o prestador de serviços BB, quando não presta os seus serviços apenas informa a recorrente porque assim o entende,
qq) Sendo que tais factos foram dados como provados apenas porque constam da participação efetuada pela ACT e do auto junto como doc. 1 à P.I.,
rr) O que foi feito com total desconsideração pela prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos,
ss) Embora já tivesse sido concluído pelo MM Juiz do Tribunal “a quo”, que o auto junto como doc. 1 à P.I. foi assinado por EE e não por BB,
tt) Bem como que as declarações constantes do mesmo (do auto), não correspondem à realidade transmitida pelo prestador de serviços BB,
uu) Ora, tendo em conta o facto de o auto de notícia que deu origem aos presentes autos ter sido preenchido pelo Sr. inspetor FF, com informações que não lhe foram transmitidas e que não correspondiam à verdade,
vv) Em nosso humilde entendimento jamais deveria o Douto Tribunal de Primeira Instância ter considerado relevante o depoimento do aludido Sr. inspetor,
ww) Não se compreendendo, ainda, o motivo pelo qual consta da motivação da sentença que a testemunha BB referiu que recebia uma quantia fixa por mês, no valor de € 600,
xx) Uma vez que o mesmo alegou que recebia € 500, se prestasse serviços durante 5h por dia, conforme se retira das declarações prestadas em 24/05/2018, registadas no programa habilus,
yy) Salientando que, para além de prova testemunhal, deveria o MM Juiz do Tribunal “a quo” ter tido em consideração a prova documental junta aos autos,
zz) Nomeadamente, as faturas-recibos emitidas por aquele, no valor de € 480 e € 500, juntas à contestação como Documentos n.ºs 1 e 2.
aaa) Assim, e com o devido respeito que é inteiramente merecido, apenas se pode concluir que toda a motivação da Sentença foi assente nos elementos constantes do documento 1 anexo à P.I., como se de verdades absolutas se tratassem.
bbb) Ressalte-se que de acordo com as declarações do referido BB, as suas funções e as funções dos trabalhadores dos CTT – carteiros, são distintas, tendo enumerado uma série de funções que apenas aos carteiros são adstritas,
ccc) Sendo tais declarações contraditórias com o ponto H dos factos provados,
ddd) Sendo que o referido BB referiu que, quando começou a prestar serviços à ora recorrente, também fazia, cumulativamente, serviços de distribuição de publicidade para outras entidades, não o fazendo agora apenas porque não tem aparecido,
eee) Tendo referido que não recebe ordens diretas/instruções de EE – trabalhador da ora recorrente (o que não corresponde ao ponto J dos factos provados),
fff) Mais, os factos acima expostos foram confirmados pelo funcionário da recorrente, EE, conforme se retira das declarações prestadas em 24/05/2018, registadas no programa habilus,
ggg) Como tal, entende-se que a Sentença ora recorrida deverá ser devidamente revogada e substituída por outra que substitua a redação do ponto B dos “factos provados”, bem como que considere os pontos C, D, E, H, I, J e L dos “factos provados” como “Factos Não Provados”,
hhh) E que considere como “Provados” os factos constantes dos pontos 5 a 12 dos “Factos Não Provados”,
iii) Mais se dirá que da conjugação da prova testemunhal acima reproduzida, com a prova documental junta aos autos, nomeadamente dos recibos emitidos à ré por BB, bem como do requerimento elaborado por BB e junto aos autos em 18/05/2018, com a ref.ª citius 4962154,
jjj) E, ainda, atendendo ao facto de BB ter declarado em audiência de julgamento que não aceitaria celebrar contrato de trabalho com a ora recorrente
kkk) Tendo o mesmo alegado, de forma inequívoca, que pretendia continuar como prestador de serviços da ora recorrente por privilegiar a sua autonomia e independência,
lll) Não se entende que o MM. Juiz do Tribunal a quo tenha decidido, como decidiu, reconhecendo a existência de um contrato de trabalho, em clara revelia pela vontade do prestador de serviços e pelo contrato celebrado entre as partes,
mmm) Salientando que tal decisão viola os princípios da liberdade de escolha do género de trabalho e do direito de ação, previstos, respetivamente, nos artigos 47.º n.º 1 e 20.º n.ºs 1 e 4 da Constituição da República,
nnn) E bem assim, os princípios da igualdade e do direito a processo equitativo, previstos nos artigos 13.º n.º 1 e 20.º n.º 4 da Constituição,
ooo) Violando, ainda, a liberdade contratual prevista no art.º 405º do Código Civil,
ppp) E liberdade de escolha de profissão, consagrada no artigo 47.º da CRP,
qqq) Razão pela qual deveriam os presentes autos ter sido devidamente arquivados por inutilidade superveniente da lide,
rrr) Não o tendo sido, impunha-se que a Sentença ora recorrida não reconhecesse a existência de um contrato de trabalho contra a vontade do prestador de serviços,
sss) Nesse sentido, vides os Acórdão proferido em 24/09/2014 pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do Processo n.º 1050/14.5TTLSB.L1-4, relator MARIA JOAO ROMBA,
ttt) Pelo que deverá a Sentença ora recorrida ser devidamente revogada e, consequentemente, ser substituída por outra que respeite a vontade das partes, mantendo válido o contrato de prestação de serviços celebrado.
uuu) Mais se dirá que a sentença recorrida enferma de lapso no que concerne à interpretação que o Mmo. Juiz do Tribunal a quo fez do disposto n.º 1 do art.º 12.º do Código do Trabalho,
vvv) Realçando que o aludido artigo deverá ser interpretado em conjugação com o vertido no art.º 1154º do Código Civil,
www) Salientando que da prova documental, aliada à prova testemunhal, apenas se poderá concluir que entre a recorrente e o já citado BB existe um contrato de prestação de serviços (junto à P.I. como doc. 6),
xxx) Pelo que, nos termos do art.º 350.º n.º 2 do Código Civil, facilmente se conclui que a presunção prevista no art.º 12.º n.º1 do Código do Trabalho, fora ilidida mediante a prova produzida nos presentes autos já devidamente elencada.
yyy) Mais se dirá que o Ministério Público não peticionou que fosse reconhecida a nulidade do contrato de prestação de serviços celebrado entre BB e a ora recorrente,
zzz) Pelo que a sentença recorrida, ao reconhecer a existência de um contrato de trabalho sem declarar a nulidade do contrato de prestação de serviços existente, padece de uma clara contradição,
aaaa) A qual, em última instância, culminará na coexistência de dois contratos incompatíveis, i. e, contrato de trabalho vs. contrato prestação de serviços.
bbbb) Razão pela qual, em nosso humilde entendimento, não poderá ser reconhecida a existência de um contrato de trabalho quando, no mesmo período temporal, vigorou um contrato de prestação de serviços,
cccc) Face ao acima exposto deverá a sentença recorrida ser revogada e consequentemente, ser a petição inicial julgada improcedente, por não provada, e a recorrida absolvida do pedido e da instância.
Nestes termos e sempre com o mui Douto Suprimento de V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, requerendo-se a revogação dos despachos recorridos (despacho datado de 09/05/2018, com a ref.ª 78175487 e despacho proferido em 14/06/2018, com a ref.ª 78551878), o reconhecimento das nulidades invocadas e a revogação da sentença recorrida, tudo com a consequente absolvição da recorrente do pedido e da instância.

3. O A.. respondeu e concluiu da seguinte forma:
1. A ré foi regularmente notificada do auto levantado pelo Inspetor do Trabalho da Autoridade para as Condições do Trabalho, não tendo sido praticada qualquer invalidade processual.
2. Não existe qualquer impedimento legal de os inspetores autuantes e participantes na ação inspetiva ser inquiridos como testemunhas ou que proíba a valoração das suas declarações.
3. A factualidade dada como provada e não provada não carece de qualquer reparo.
4. Considerando a matéria de facto assente, dúvidas não restam que se mostram verificadas as características mencionadas nas alíneas do nº. 1 do artigo 12.º do Código de Trabalho, motivo pelo qual bem andou a decisão recorrida ao reconhecer que entre a recorrente e BB foi celebrado um contrato de trabalho e não um contrato de prestação de serviços.
5. A ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho tem por escopo essencial o combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado, agindo o Ministério Público, primordialmente, na defesa de interesses de ordem pública, motivo pelo qual não pode a instância ser extinta por inutilidade superveniente da lide caso o trabalhador venha manifestar nos autos que o contrato que pretendeu celebrar foi de prestação de serviços.
6. Não foi violado qualquer imperativo legal.
Deste modo, os despachos e sentença recorridos não merecem qualquer reparo, devendo ser mantidos na íntegra e, consequentemente, deve ser negado provimento ao recurso interposto pela ré.

4. Em conferência, cumpre aprecia e decidir.

5. Objeto do recurso
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
Questões a decidir:
1 – Nulidade da notificação do auto à ré.
2 – Valoração dos depoimentos dos inspetores da ACT.
3 – Impugnação da matéria de facto.
4 – Inconstitucionalidade por violação da vontade do prestador da atividade.
5 – A contradição da sentença.
6 - A existência do contrato de trabalho.


II - FUNDAMENTAÇÃO
A) A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
A. Na sequência de ação inspetiva levada a cabo pelo inspetor do trabalho da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), realizada no dia 21 de março de 2018, foi levantado um auto por utilização indevida por parte da ré de pretenso contrato de prestação de serviços relativamente ao trabalhador BB (…).
B. BB procedia a distribuição de correio na Região de …, fazendo com base no estabelecido entre os CTT-Correios de Portugal, SA-Sociedade Aberta em DD e a ré CC, Lda.
C. BB, prestava a sua atividade de distribuição de correio e publicidade, sendo o seu local de trabalho pertença dos CTT determinado pela ré.
D. BB celebrou um contrato denominado de “prestação de serviço” com a ré CC, Lda, de atividade de distribuição de correio e publicidade cumprindo horários diários de 6 horas de segunda a sexta-feira determinados pela ré e comunicados ao trabalhador por EE, também trabalhador da ré o qual na véspera o informava das horas do trabalho a iniciar no dia seguinte,
E. A prestação de atividade à ré por parte do mencionado trabalhador consistia na recolha de manhã, no estabelecimento dos CTT de DD, o correio previamente dividido em caixas, proceder a distribuição desse correio e regressar a meio da tarde para prestação de contas das cartas registadas que não foram possíveis de serem entregues, valores recebidos de clientes/destinatários, bem como toda a documentação relativa a distribuição efetuada.
F. O contrato denominado de “prestação de serviços” mantinha-se na data da visita inspetiva realizada pela ACT.
G. BB no desempenho das suas funções utilizava vestuário dos CTT, colete, caixa dos CTT, mala dos CTT, e placa indicativa com o logotipo dos CTT.
H. BB desempenhava funções com trabalhadores – Carteiros - que estão sob as ordens direção e fiscalização dos CTT e ainda com EE – com a categoria de carteiro, o qual desempenha as funções de carteiro sob as ordens direção e fiscalização e mediante retribuição da ré CC, Lda, sob o regime de contrato de trabalho sem termo.
I. BB auferia uma quantia fixa mensal de € 600 que lhe eram pagos pela ré CC, Lda, não tendo outra fonte de rendimento, dependendo em exclusivo do trabalho prestado a Ré CC, Lda.
J. O trabalhador BB recebe orientações e instruções do trabalho através do trabalhador EE, empregado da ré, o qual funciona como veiculador das orientações que chegam dos CTT e que estão vertidas no contrato de prestação de serviços celebrado entre os CTT e a ré CC, Lda.
K. O percurso diário que o trabalhador BB tem de fazer resulta do estipulado no contrato de prestação de Serviço entre os CTT e a ré CC.
L. O trabalhador BB quando tem que faltar informa e comunica o EE.
M. Em 21 de setembro de 2017, entre a ré e a CTT- Correios de Portugal, S.A., com o NIPC …, foi celebrado um contrato de prestação de serviços de distribuição, iniciando o mesmo os seus efeitos em 02 de outubro de 2017.
N. Nessa sequência, em 09 de março de 2018, entre a ré e BB… um contrato denominado de “prestação de serviços”, mediante o qual aquele comprometeu-se, mediante o pagamento de € 4,54 (quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos) por cada hora de serviço prestado, a proceder à recolha de correio e encomendas, nos Centros de Distribuição, marcos e caixas, bem como proceder à sua distribuição, entrega e cobrança diária dos envios postais/correspondência no domicílio de cada destinatário; entregar nos Centros de Distribuição Postal, no fim da distribuição da correspondência e encomendas, os envios postais que não foi possível entregar e/ou distribuir, os valores recebidos dos clientes/destinatários, bem como toda a documentação relativa à distribuição efetuada.
O. Sendo o serviço prestado na área geográfica correspondente aos códigos postais de …
P. Bem como o colete, placa identificadora, caixa e mala de distribuição propriedade dos CTT que, tendo sido cedidos à ré e por sua vez, foram cedidos ao BB.
Q. E utilizando o prestador de serviços a sua própria viatura.
R. Aquando da inspeção realizada (no dia 21 de março de 2018, pelas 15h20), BB encontrava-se na estação dos CTT de DD (…).
S. Aquele local corresponde ao local onde aquele deve proceder à recolha de correio e encomendas, que deve distribuir na área geográfica correspondente ao código postal de DD e onde, posteriormente, deve entregar os envios postais que não foi possível entregar e/ou distribuir, os valores recebidos dos clientes/destinatários, bem como toda a documentação relativa à distribuição efetuada.
T. Encerrando os CTT de DD, BB aí deverá entregar, até essa hora, no fim da distribuição da correspondência e encomendas, os envios postais que não foi possível entregar e/ou distribuir, os valores recebidos dos clientes/destinatários, bem como toda a documentação relativa à distribuição efetuada.
U. EE é funcionário da ré, e no fim da distribuição da correspondência e encomendas, receciona os envios postais que não foi possível entregar e/ou distribuir, receciona os valores recebidos dos clientes/destinatários, bem como toda a documentação relativa à distribuição efetuada e efetuar a devida entrega à CTT- Correios de Portugal, S.A.
V. Os trabalhadores – carteiros - dos CTT, têm como local de trabalho as instalações dos CTT, têm a obrigatoriedade de cumprir o horário de trabalho que lhes é definido pelos CTT, estão sujeitos a ordens, direção e fiscalização dos CTT, e têm como função fazer a triagem de todo o correio, separando o correio por zonas de distribuição, bem como rececionar o correio que não foi possível entregar, respetiva documentação e valores para posterior tratamento.
W. BB não passa do balcão dos CTT para dentro das instalações.

B) APRECIAÇÃO

As questões a decidir são as que já referimos:
1 – Nulidade da notificação do auto à ré.
2 – Valoração dos depoimentos dos inspetores da ACT.
3 – Impugnação da matéria de facto.
4 – Inconstitucionalidade por violação da vontade do prestador da atividade.
5 – A contradição da sentença.
6 – A existência do contrato de trabalho.

B1) Nulidade da notificação do auto à ré
A apelante conclui que não foi formalmente notificada nos termos do art.º 15.º-A n.º 1 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, do auto levantado pelo inspetor do trabalho da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) por alegada utilização indevida por parte da ré de contrato de prestação de serviços celebrado com BB, uma vez que o aludido auto foi assinado pelo funcionário da ré e entregue ao mesmo.
O art.º 15.º -A n.º 1 da Lei n.º 107/2009, de 14.09, prescreve que caso o inspetor do trabalho verifique, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, a existência de características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.
Por sua vez, o art.º 7.º deste diploma legal prescreve que as notificações em processo de contraordenação são efetuadas por carta registada, com aviso de receção, sempre que se notifique o arguido do auto de notícia, da participação e da decisão da autoridade administrativa que lhe aplique coima, sanção acessória ou admoestação (n.º 1).
A notificação por carta registada considera-se efetuada na data em que seja assinado o aviso de receção ou no 3.º dia útil após essa data, quando o aviso seja assinado por pessoa diversa do notificando (n.º 3).
A ré, após ter sido notificada pela ACT, veio apresentar junto desta entidade os esclarecimentos pedidos.
Começou por alegar que não foi formalmente notificada, mas apesar disso, pronunciou-se circunstanciadamente sobre os factos que lhe são imputados no auto de notícia, revelando ter tido conhecimento completo do seu teor.
A forma minuciosa como expõe o seu ponto de vista em relação ao relatado no auto de notícia, não deixa quaisquer dúvidas quanto à sua notificação material e ao conhecimento dos factos.
Assim, do ponto de vista material, verifica-se que uma eventual preterição da formalidade invocada pela ré não prejudicou em nada a sua defesa, pelo que se mostra sanada.
Acresce que o art.º 7.º n.º 3 prevê expressamente a possibilidade da notificação ser efetuada através de pessoa diversa do notificando.
A existir irregularidade na notificação, a ré poderia tê-la arguido de imediato perante a ACT, o que não fez. Faz referência à não formalidade da notificação, mas não argui a nulidade respetiva e optou por apresentar a sua defesa.
Como se concluiu no Assento n.º 1/2003, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, com a retificação de 28.11.2002, publicado no Diário da República n.º 21/2003, Série I-A de 25.01.2003: “Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afetar, a subsequente decisão administrativa [artigos 120.º n.s 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122., n.º 1 do Código de Processo Penal e 41.º n.º 1 do regime geral das contraordenações]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspetos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º n.º do regime geral das contra-ordenações].[1]»
No caso, verifica-se e esta última hipótese. A empregadora apresentou a sua defesa de forma proficiente e de modo a não deixar dúvidas quanto ao entendimento completo dos factos constantes do auto de notícia.
Assim, improcede a arguição da nulidade da notificação do auto de notícia.

B2) Valoração dos depoimentos dos inspetores da ACT
O art.º 16.º da Lei n.º 107/2009, de 14.09, prescreve que o autuante ou o participante não podem exercer funções instrutórias no mesmo processo.
A lei não proíbe que os autuantes ou participantes prestem depoimento como testemunhas sobre os factos que presenciaram.
O art.º 356.º do CPP, citado pela ré, só permite a leitura de autos nos termos aí previstos, mas não proíbe que os autuantes e participantes possam depor como testemunhas sobre os factos que presenciaram, ou sobre os factos que lhes foram relatados pelo pretenso trabalhador ou empregadora na fase de investigação, ainda sem auto de notícia[2].
A regra é a de que não valem as proibições legais de prova sobre factos anteriores à elaboração do auto de notícia.
Como referimos, os factos inseridos na fase investigatória prévia à elaboração do auto de notícia, mesmo que tenham sido emanados pela empregadora (eventual futura arguida pela prática de contraordenação) ou pelo pretenso trabalhador, podem ser objeto de depoimento pelos inspetores da ACT.
Realça-se ainda que esta ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é de natureza cível e, em qualquer caso, a aplicação do CPP às contraordenações não é imediata, carecendo de intermediação, pois o direito contraordenacional é direito penal secundário, em que o desvalor das condutas não assume o dramatismo e gravidade dos crimes
Na motivação o tribunal recorrido refere expressamente que “FF e GG, ambos inspetores da ACT durante a ação inspetiva e os quais confirmaram as perceções por si tidas aquando da mesma e que estiveram na base da elaboração do auto de fls. 16”. Ou seja, o tribunal formou a convicção também com base no depoimento destas testemunhas, mas relativo a factos de que tiveram conhecimento na fase investigatória, antes de terem elaborado o auto de notícia.
Neste contexto, entendemos que os inspetores da ACT podem depor como testemunhas nos termos que referimos.

B3) Reapreciação da matéria de facto
A apelante pretende que sejam dados como não provados os factos das alíneas C, D, E, H, I, J, L e alterada a resposta à alínea B) dos factos provados.
Quer ainda que sejam dados como provados os factos dados como não provados nos pontos 5 a 12, conforme prova que indica.
A prova produzida em audiência de julgamento (ou noutra diligência) está sujeita à interpretação dos sujeitos processuais. Cada um tenta ver e amplificar o que a testemunha ou outro meio de prova traz em abono da sua tese.
Todavia, a prova deve ser analisada e interpretada na sua globalidade e também tendo em conta a globalidade do depoimento ou de outro meio de prova. O tribunal não está apenas atento aos pormenores favoráveis a uma das partes. O tribunal está atento a tudo o que resulta do meio de prova produzido, independentemente da parte que possa ser favorecida. Não podemos esquecer que o tribunal é totalmente alheio à paixão e interesse da parte em que o resultado penda a seu favor. O tribunal tem por função atingir a verdade processual, a verdade que resulta dos meios de prova trazidos ao processo, que se almeja seja o mais fiel possível à verdade material ou histórica.
(…)
A qualificação atribuída pelas partes ao contrato não vincula o tribunal. Do teor do contrato e da demais prova produzida resultam inequivocamente provados os factos que a apelante quer dar como não provados.
BB nega que queira assinar um contrato de trabalho com a ré. Tem toda a liberdade para o dizer. Mas o que não pode contradizer são os factos relativos ao modo como presta a atividade.
Os depoimentos de BB e EE não são suscetíveis de enganar a realidade resultante dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos das outas testemunhas. Os factos provados constantes das alíneas B, C, D, E, H, I, J, L correspondem à prova produzida nos autos e merecem a nossa total aderência, tal como a resposta de não provados relativamente aos pontos de 5 a 12 dos factos não provados.
O tribunal recorrido fez uma minuciosa fundamentação da resposta à matéria de facto, clara e coerente. Feito o reexame da prova em relação aos factos em discussão, não encontrámos qualquer fundamento para formar a nossa convicção em sentido diferente.
Nesta conformidade, improcede a impugnação da matéria de facto.

B4) Inconstitucionalidade por violação da vontade do prestador da atividade
A apelante conclui que a decisão é inconstitucional por ir contra a vontade expressa do prestador de serviço, por violação dos art.ºs 13.º, 20.º n.ºs 1 e 4 e 47.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é uma ação especial promovida oficiosamente pelo Ministério Público, o qual é o titular do interesse público prosseguido nesta ação. As declarações de parte do trabalhador não podem ser consideradas como prova por confissão com os efeitos configurados pela lei para este meio de prova.
Assim, embora este trabalhador, interessado direto nesta ação, tenha declarado que existia um contrato de prestação de serviços, tal não é só por si suficiente para dar esta realidade como provada[3], em face da demais prova produzia. Neste caso, as suas declarações são apreciadas livremente pelo juiz e não têm a força de prova plena prevista no art.º 358.º n.º 1 do Código Civil.
Os factos em concreto sobre que recaíram as declarações do trabalhador não são livremente disponíveis por si para efeitos de confissão, nos termos do art.º 354.º, alínea b), do CC).
Todavia, não podemos deixar de registar a dificuldade que o próprio trabalhador tem em compreender a situação. A ação está devidamente regulada no CPT e os tribunais devem obediência à lei. A questão que se coloca é se o Estado, neste caso através do Tribunal e da prova aí produzida, pode ser de certo modo paternalista e impor contra a vontade do trabalhador a declaração de um contrato de trabalho não querido por ele, apesar de se ter provado que os factos devem ser qualificados como de contrato de trabalho.
É legítimo que se questione.
Neste tipo de ações devemos ponderar que a comunidade tem interesse em que as relações de trabalho estejam devidamente qualificadas. Trata-se de um interesse público que tem a ver, em primeira mão, com a situação de vulnerabilidade concreta do trabalhador que este só por si não consegue remover.
Acresce que as situações vulgarmente denominadas de falsos recibos verdes dizem respeito a trabalho prestado por pessoas dependentes totalmente do trabalho em causa e que não querem qualquer espécie de litígio com o dador do trabalho. Preferem sofrer em silêncio e ter um rendimento, apesar da situação precária em que exercem a sua atividade, do que questionar e ficar sem acesso àquele posto de trabalho, sabendo que a procura de emprego é maior do que a oferta.
O Estado, através dos Tribunais, visa na medida possível afastar estas situações que, como no caso dos autos, parecem estranhas, pois pode decidir-se contra a vontade declarada (correspondente ou não à sentida) do trabalhador. Podemos interrogar-nos se o trabalhador ao prestar declarações em tribunal é totalmente livre, sabendo que o dador de trabalho vai saber o que disse. Esta ação visa precisamente colmatar essa vulnerabilidade. Dá como certa esta provável ausência de liberdade e faz impender sobre o Ministério Público, que não pode ser prejudicado pelo dador de trabalho, o odioso da questão.
É neste contexto que a prova tem de ser apreciada e a questão de direito resolvida.
Não nos parece que neste caso a decisão que declarar a existência de um contrato de trabalho entre o prestador de trabalho e a ré seja violadora do princípio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP.
Como refere o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 437/2006, de 12.07.2006, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060437.html, “O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, é um princípio estruturante do Estado de direito democrático e postula, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (cfr. por todos acórdão n.º 232/2003, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Junho de 2003 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º Vol., págs. 7 e segs.)”.
Ora, não nos parece que o regime jurídico relativo ao processo de reconhecimento da existência de contrato de trabalho padeça da violação do princípio da igualdade. A lei é geral e abstrata e dirige-se a todos os que estiverem nas situações previstas.
Quanto à violação do acesso ao direito e a um processo equitativo, previsto no art.º 20.º n.º 1 e 4 da CRP, os autos demonstram exatamente que foi observado escrupulosamente este princípio constitucional.
O art.º 47.º n.º 1 da CRP preceitua que todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade.
Este preceito normativo é bem claro. A regra é a de que cada um pode escolher livremente a sua profissão ou género de trabalho, sujeita à exceção do interesse coletivo.
Neste caso, a regra dá lugar à exceção fundada no interesse coletivo. Como já referimos supra, é do interesse público que exista verdade e transparência nas relações jurídicas. Vivemos numa sociedade solidária, onde todos devemos pagar os impostos e taxas previstas na lei, a fim de que o Estado, através do orçamento de Estado e de outras instituições, nomeadamente a Segurança Social, possa acorrer às necessidades daqueles que por qualquer azar na vida estão vulneráveis e a carecer de apoio para uma existência condigna, como decorre, nomeadamente, dos art.ºs 63.º e 64.º da CRP.
Neste contexto, entendemos que deve prevalecer o interesse público em detrimento do direito de escolher o modo de prestar trabalho.
Entendemos que não existe qualquer inconstitucionalidade, pelo que improcede a apelação nesta parte.

B5) A contradição da sentença
A apelante conclui que a sentença é contraditória, pois não declarou a nulidade do contrato de prestação de serviços e declarou a existência de um contrato de trabalho, resultando daí que continuam os dois a coexistir.
Entendemos que não é assim.
Como escrevemos no acórdão de 01.02.2018, processo n.º 658/17.1T8STC.E1, publicado em www.dgsi.pt/jtre: “o que está em causa na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, prevista e regulada nos art.ºs 186.º-K a 186.º-R do CPT, é apreciar se a relação estabelecida entre o prestador da atividade e o beneficiário da mesma constitui uma relação de trabalho subordinado e não outra qualquer, nomeadamente de prestação de serviços.
O Ministério Público pretende que nesta ação sejam apreciados factos que, a provarem-se, em seu entender permitem qualificar como contrato de trabalho a relação estabelecida entre a ré e o prestador.
Trata-se de apurar matéria de facto que não tem a ver diretamente com a validade da relação jurídica, mas sim com a sua qualificação.
Só após se terem apurado factos quer permitam concluir pela existência de um contrato de trabalho é que se pode analisar se pode ser validamente convolado em contrato de trabalho e a ré condenada a admitir o trabalhador enquanto tal.
O art.º 10.º do CPC, aplicável subsidiariamente ex vi art.º 1.º n.º 2, alínea a), do CPT, prescreve que as ações são declarativas ou executivas (n.º 1).
As ações declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas (n.º 2).
As ações referidas no número anterior têm por fim: as de simples apreciação, obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto (n.º 3, alínea a).
A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é uma ação de simples apreciação positiva. Pretende pôr fim à situação de incerteza quanto a determinada situação de facto e de direito[4]. É necessário apurar os factos e qualificá-los. A empregadora não é condenada. É apenas destinatária de uma declaração que torna certa uma questão de facto e de direito incerta.
A decisão proferida nesta ação tem consequências jurídicas definitivas em relação à qualificação jurídica da situação de facto estabelecida entre o prestador de trabalho e o beneficiário da mesma e em relação a terceiros, na medida em que é comunicada oficiosamente pelo tribunal à ACT e ao Instituto da Segurança Social, I P, com vista à regularização das contribuições desde a data de início da relação laboral fixada (art.º 186.º-O do CPT) e após o seu trânsito em julgado levanta a suspensão do procedimento contraordenacional (art.º 15.º-A n.º 4 da Lei n.º 107/2009, de14 de setembro)”.
A ação de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho é uma ação de simples apreciação. Visa qualificar, em face dos factos provados, se a relação existente é de subordinação jurídica, em que declarará a existência de um contrato de trabalho.
Não está em causa a nulidade do contrato, mas sim a sua qualificação.
A decisão judicial que qualifica a relação jurídica estabelecida como de contrato de trabalho exclui, por si mesma, a existência de um contrato de prestação de serviços. Tudo se passa como se desde o início existisse um contrato de trabalho.
Daí que não exista a contradição invocada.

B6) A existência de contrato de trabalho
O êxito da apelação dependia da alteração da matéria de facto, a qual não se verificou.
De qualquer modo, apreciaremos se os factos dados como provados permitem manter a decisão recorrida.
Prescreve o art.º 11.º do CT que contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito da organização e sob a autoridade destas.
Por sua vez, o art.º 12.º n.º 1 do mesmo código prescreve, além do mais, que: presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes caraterísticas:
- A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado (alínea a));
- Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade (alínea b));
- O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinado pelo beneficiário da mesma (alínea c));
- Seja paga, com determinada periocidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma (alínea d)); e
- o prestador da atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa (alínea e)).
Resulta da factualidade apurada que se verifica a característica própria de que pode levar à presunção da existência de um contrato de trabalho referida na alínea a) do n.º 1 do art.º 12.º do CT, uma vez que o A. efetuava o percurso de entrega do correio da mesma forma que os funcionários da R. e não poderia deixar de fazer o percurso para entregar o correio.
De igual modo, se verifica a caraterística prevista na alínea b), porquanto a A. utilizava equipamentos e instrumentos utilizados pela R..
A A. observava as horas de início e de termo da prestação, determinados pela R.; e
Era paga no final do mês uma quantia pecuniária à A., como contrapartida da sua atividade.
A R. não logrou provar factos que ilidam estas presunções, pelo que, nos termos do art.º 12.º n.º 1 alíneas a) a d) do CT, presume-se a existência de um contrato de trabalho entre a autora e a ré.
Nesta conformidade, decidimos julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.

Sumário: i) a notificação do auto de notícia não tem que ser na própria pessoa da empregadora.
ii) os inspetores da ACT podem depor em julgamento sobre factos que presenciaram na fase investigatória e que conduziram à elaboração do auto de notícia.
iii) a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é uma ação de simples apreciação positiva e visa pôr fim à situação de incerteza quanto a determinada situação de facto e de direito, qualificando-a.
iv) o regime jurídico relativo à ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho não é inconstitucional, pois neste caso prevalece o interesse público em detrimento do interesse particular em querer prestar a atividade como prestador de serviços.

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante, sem prejuízo de apoio judiciário.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Évora, 31 de outubro de 2018.
Moisés Silva (relator)
João Luís Nunes
Paula do Paço

__________________________________________________
[1] Neste mesmo sentido, Ac. STJ, de 10.01.2008, processo n.º 07P4271, www.dgsi.pt/jstj, onde foi reafirmada a jurisprudência do assento n.º 1/2003.
[2] Neste sentido, Ac. STJ, de 15.02.2007, processo n.º 06P4593, www.dgsi.pt/jstj.
[3] Neste sentido, Ac. RE, de 08.06.2017, processo 3761/16.1T8STB.E1, www.dgsi.pt/jtre .
[4] Reis, José Alberto, Comentário ao Código do Processo Civil, vol. 1.º, segunda edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1960, pp. 19 e 20.