Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
393/19.6T9LLE-B.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO SUBSIDIÁRIA
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
É no momento actual e não no futuro que tem de ser efectuada a avaliação a respeito da (im)possibilidade de cobrança coerciva da multa, sendo que, ademais, o art. 49º do C.P. nem faz depender a conversão da multa não paga em prisão subsidiária da instauração de processo executivo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório
No processo sumaríssimo nº 393/19.6T9LLE, que corre termos no juízo local criminal de Loulé – J3, do Tribunal Judicial da comarca de Faro e em que é arguido (…), devidamente identificado nos autos, foi proferido despacho que não procedeu à conversão da pena de multa em que o arguido havia sido condenado por considerar que ainda não era possível firmar um juízo seguro sobre a impossibilidades de cobrança coerciva daquela pena, não se verificando, por isso, os pressupostos para o efeito.
Inconformado com essa decisão e pretendendo que seja revogada e substituída por outra que determine a conversão da pena de multa em prisão subsidiária bem como a sua notificação ao arguido para os efeitos do nº 3 do art. 49º do C. Penal e, na eventualidade de não haver o accionamento do disposto nesta norma, sejam emitidos mandados de detenção para cumprimento da prisão subsidiária, sempre sem prejuízo do eventual pagamento total ou parcial da multa e da correspondente dedução no período de reclusão, dela interpôs recurso o MºPº, formulando as seguintes conclusões:

1. O presente recurso é interposto da douto despacho judicial, datado de 11.05.2021, Refª CITIUS 120134899, que indeferiu a promoção quanto à conversão da multa não paga em dias de prisão subsidiária, sem prejuízo do accionamento do artigo 49º nº 3 do Código Penal, em virtude de em instância executiva, não se ter logrado encontrar bens/rendimentos penhoráveis (razão pela qual foi arquivada condicionalmente), proferido no processo supra identificado, no qual é arguido (...) pela prática do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º nº 1 do Código Penal;
2. Da simples leitura do douto despacho a quo, aparentemente, resulta que tendo o arguido rendimento pelo seu trabalho, estando actualmente o seu salário penhorado à ordem de outro processo, não podendo, segundo informação da própria entidade empregadora, incidir sobre o mesmo nova e simultânea penhora, não se encontrariam, por ora, preenchidos os requisitos legais para o accionamento do disposto no artigo 49º nº 1 do CP, tendo-se que esperar que a primitiva penhora acabasse, para se promover a penhora à ordem dos presentes autos; somente se resultar da tramitação da instância executiva que a primitiva penhora iria continuar para além do prazo de prescrição da pena nestes autos, é que haveria juízo seguro da impossibilidade de a cobrar coercivamente para estarem preenchidos os requisitos legais do artigo 49º nº 1 do CP.
3. Sem prejuízo da bondade da douta decisão recorrida, o fundamento que está na base do indeferimento da promoção de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, assenta apenas na asserção de que o arguido/executado é titular de rendimento penhorável, esquecendo que o juízo de valoração da impossibilidade de cobrança coerciva, tem que assentar no rendimento efectivamente disponível.
4. Com efeito, tendo o próprio arguido requerido o pagamento da multa em prestações, alegando que tem um salário de cerca de €800,00, e tem despesas correntes e permanentes de cerca de €435,00, acrescido da penhora sobre o salário actual de €900,00 em processo executivo diverso dos presentes autos, torna-se óbvio, à luz das regras da experiência comum de vida, que mantendo-se as mesmas despesas, o rendimento liquido disponível é inferior ao Salário Mínimo Nacional, logo é legalmente impenhorável.
5. Na ausência de outros bens e rendimentos penhoráveis, decorrentes da tramitação do processo executivo que o MP instaurou para cobrança coerciva da multa, resulta evidente que não existem à data da promoção de cumprimento do disposto no artigo 49º nº 1 do CP, bens, nem rendimentos penhoráveis, sendo legitimo fazer um juízo seguro da impossibilidade de cobrança coerciva da multa.
6. Como refere o Douto Acórdão TRG, de 19/05/2014, Relator: Tomé Branco, proferido no Proc. n.° 355/12.4GCBRG-A.G1, disponível in www.dgsi.pt, “A aplicação da prisão subsidiária não está dependente da prévia instauração do processo executivo, mas apenas da avaliação da impossibilidade de se obter o pagamento coercivo”, e por identidade de razão, essa avaliação também pode ser feita posteriormente à tentativa frustrada de cobrar coercivamente, no âmbito de processo executivo previamente instaurado, a pena de multa, em virtude de se ter constatado que o rendimento do executado disponível, após dedução de despesas correntes e penhora anterior é de montante impenhorável, havendo aí a tal impossibilidade de se obter o pagamento coercivo.
7. E na linha de raciocínio deste douto aresto, citou o douto acórdão cuja conclusão de direito foi no mesmo sentido e cujo teor é o seguinte:
A lei - art.° 49°, do Cód. Penal - não faz depender a aplicação da prisão subsidiária da instauração de processo executivo, mas da impossibilidade de obter o pagamento coercivo que, como é óbvio, abrange tanto os casos em que se instaurou a execução e através dela não se conseguiu obter o pagamento da multa como aqueles em que a impossibilidade de pagamento coercivo resulta «ab initio», ou seja, por não existirem bens que permitam pelo menos tentar obter o pagamento." (cfr. ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/02/2013, in www.dgsi.pt).”
8. Ora, é este o caso dos presentes autos, ou seja, tendo informação de que o arguido tem rendimentos penhoráveis, foi instaurada execução, cuja tramitação resultou que o seu salário actual de €900,00 está sujeito a penhora no âmbito de outro processo e que não tem rendimento disponível para incidir nova penhora, aliado ao facto de o executado ter despesas correntes e permanentes mensais no valor de €435,00, facilmente, de acordo com as regras da experiência comum de vida, se chega á conclusão que o rendimento é inferior ao SMN, sendo, por isso, impossível lograr a cobrança coerciva da quantia exequenda, ie a multa penal.
9. Por outro lado, da tramitação da instância executiva, não existem bens móveis ou imóveis registados em nome do executado nos quais possa incindir uma penhora.
10. Isto é suficiente para considerar, de acordo com a lição tirada do citado Douto Acórdão TRG, de 19/05/2014, que à data do douto despacho recorrido existe uma real e efectiva “impossibilidade de se obter o pagamento coercivo”
11. Logo estão preenchidos os requisitos legais do artigo 49º nº 1 do CP, e o douto despacho recorrido ao indeferir a promoção de converter a multa não paga em prisão subsidiária, violou o disposto naquela norma jurídica.
12. Para além do mais, sendo a prisão subsidiária um meio de execução da pena de multa, não obstante estar em causa a liberdade do arguido, este pode sempre evitar a execução da pena, cumprindo-se o disposto no artigo 61º n 1 al. b) do CP, para se pronunciar quanto à eventual conversão, podendo ainda pagar total ou parcialmente a multa ou requerer, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 49º nº 3 do CP.
13. Somente depois de toda esta tramitação, com o exercício do contraditório, no caso de total silêncio do arguido, é que se emitem os mandados de detenção para cumprimento da prisão subsidiária e mesmo neste caso, confrontado com tal mandado, o arguido pode evitar a sua reclusão, pagando a multa.
Nesta conformidade, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro, que converta a pena de multa em 66 dias de prisão subsidiária, nos termos do disposto no artigo 49º nº 1, sem prejuízo do nº 3 do CP com referência ao disposto no artigo 61º nº 1 al. b) do mesmo diploma legal, conforme promovido pelo Ministério Público, com o que se fará a costumada justiça.

O recurso foi admitido.
O arguido não apresentou resposta.
Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no qual, manifestando a sua concordância com os argumentos aduzidos na motivação do recurso, se pronunciou no sentido da sua procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P., sem que tenha sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre decidir.


2. Fundamentação
Dos autos constam os seguintes elementos, com interesse para a decisão do recurso:
- o arguido/recorrente foi condenado, por sentença homologatória proferida em 19/6/20 e transitada, pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º nº 1 al. b) do C. Penal, na pena única de 100 dias de multa à taxa diária de 5€, perfazendo um total de 500€;
- notificado, veio o arguido, em 22/6/20, invocando dificuldades decorrentes das suas condições pessoais, familiares e económicas ( aufere um salário ilíquido de cerca de 800€, vive sozinho, em casa arrendada, pela qual paga uma renda mensal de 300€, tem despesas mensais de 35€ com consumos de serviços essenciais do lar, suporta ainda uma prestação mensal de 100€ com um crédito bancário ) requerer o pagamento da multa em 5 prestações iguais, mensais e sucessivas e, bem assim, o pagamento das custas em prestações, a iniciar após o pagamento da última prestação da multa;
- não tendo havido oposição por parte do MºPº, foi proferido, em 29/6/20, despacho que autorizou o pagamento em prestações nos termos requeridos;
- emitidas as guias para o efeito, e devendo a primeira ser paga até 31/8/20, o arguido não procedeu ao seu pagamento;
- o MºPº promoveu, em 15/9/20, que o arguido fosse notificado para proceder ao pagamento da multa, sob pena de execução ou, não havendo bens penhoráveis, de eventual conversão em prisão subsidiária, e, bem assim, que fossem declaradas vencidas todas as prestações da pena de multa;
- em 22/9/20 foi proferido despacho que declarou o vencimento da totalidade das prestações em dívida e determinou a notificação do arguido para comprovar o pagamento do montante em dívida;
- na sequência da informação de que o arguido não havia pago a DUC que lhe tinha sido entregue pela GNR, o MºPº promoveu, em 13/10/20, a realização de diversas diligências e pesquisas tendentes a averiguar se o arguido dispunha de bens e/ou rendimentos;
- da consulta à base de dados da Segurança Social, apurou-se que a última remuneração do arguido, declarada em Setembro de 2020, ascendia a 570€;
- em 11/11/20, o MºPº, fundamentando-se na falta de pagamento da multa e na impossibilidade de se proceder ao respectivo pagamento coercivo por ao arguido não serem conhecidos bens ou rendimentos susceptíveis de penhora (“é proprietário de um veiculo ciclomotor Yamaha matrícula (…), de 1995, sem pagamentos IMV/IUC encontrados e sem valor venal; bem como de veículo ciclomotor Kymko U3 Vitality, matrí9cula (…), de 2006, mas sem pagamentos IUC encontrados; a última declaração IRS de 2019, e a última reenumeração data de Setembro de 2020 - auferindo €570,00 mensais; é titular de conta de depósito bancário nº (…) no BCP (Millenium), tendo saldo impenhorável na quantia de €201,15”), promoveu, depois de se notificar o arguido para, em 10 dias, proceder ao pagamento da multa sob pena de imediata conversão em prisão subsidiária, a conversão da multa em 66 dias de prisão subsidiária e que oportunamente fossem passados mandados de detenção do arguido, mais declarando não instaurar execução atenta a inexistência de bens/rendimentos penhoráveis;
- em 12/11/20 foi proferido despacho que determinou a notificação do arguido para, no prazo máximo de 10 dias, proceder ao pagamento da pena de multa, “sob pena de execução patrimonial (penhora de bens e direitos detidos) e caso tal não resulte no cumprimento da pena, sob pena de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, a cumprir efetivamente em ambiente de reclusão, ou para que requeria o que tiver por conveniente nos termos do art. 49.º, n.º 3 do Código de Processo Penale, ainda, que fosse estabelecido contacto telefónico com o arguidodando-lhe conta do teor do presente despacho e das consequências do incumprimento”;
- o arguido foi notificado deste despacho em 25/11/20;
- lavrada informação, em 15/12/20, de que o arguido não havia pago a DUC que lhe tinha sido entregue pela GNR, o MºPº promoveu o cumprimento do disposto no art. 49º nº 1 do C. Penal e que, após trânsito, fossem emitidos os mandados de detenção para execução dos 66 dias de prisão subsidiária;
- em 17/12/20 foi proferido despacho no qual, com o fundamento de ser o arguido titular de rendimentos passíveis de penhora[1], se considerou ainda não estarem reunidos os pressupostos para a conversão da pena de multa em prisão subsidiária;
- em 11/2/21, o MºPº apresentou requerimento executivo contra o arguido para penhora do montante da multa, acabando por promover o arquivamento condicional da execução por se desconhecerem bens/rendimentos penhoráveis[2];
- na sequência de nova promoção do MºPº no sentido da conversão da pena de multa em prisão subsidiária, foi proferido, em 11/5/21, o despacho recorrido, que é do seguinte teor:

- Consultei os autos de execução apensos na presente data, designadamente a resposta da entidade empregadora do arguido/executado com a ref. n.º 8859698.
- Por ora, julgo não se verificarem os pressupostos para a conversão da pena de multa em prisão subsidiária, porquanto o arguido é efetivamente titular de rendimentos de trabalho, salário passível de penhora, sendo de apurar qual o desconto atualmente vigente sobre o seu salário, em que exato montante e em que data tal desconto cessará, de modo a firmar um juízo seguro sobre a impossibilidade de cobrança coerciva da pena de multa nestes autos.
- Consigna-se que, na ausência de outras causas de interrupção e/ou suspensão, a prescrição da pena apenas ocorrerá em 22.06.2024.
- Notifique.


3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões suscitadas pelo recorrente reconduzem-se a determinar se o despacho recorrido, ao recusar, implicitamente, a conversão da pena de multa não paga em prisão subsidiária, com o fundamento de ainda se não verificarem os pressupostos para tal conversão por o arguido ser titular de rendimentos do trabalho e quedar por apurar o termo do desconto que incide sobre o seu salário, violou o disposto no nº 1 do art. 49º do C. Penal.

O recorrente sustenta que sim, considerando que existe uma real e efectiva impossibilidade de se obter o pagamento corercivo, e, em nosso entender, assiste-lhe inteira razão.
Pois é, desse logo, insustentável continuar a sustar a conversão ordenando, implicitamente, uma espera pelo termo da outra penhora que está em curso, para mais depois das sucessivas tentativas ensaiadas para lograr a cobrança coerciva da multa.
De facto, e para além de ser por demais evidente que o arguido, mais de um ano volvido sobre a condenação e não obstante as diversas oportunidades que lhe têm sido dadas, não dá mostras de pretender efectuar voluntariamente o pagamento da multa, também não se vislumbram bens ou rendimentos disponíveis para efectuar a respectiva penhora e, através da mesma, lograr a obtenção dos meios necessários ao pagamento da multa ainda em dívida.
É certo que o arguido dispõe de um rendimento que poderia ser objecto de penhora não fosse dar-se o caso de sobre o mesmo já incidir outra penhora e de esta não deixar margem para o submeter a mais uma penhora.
E, dos termos da resposta da entidade patronal, até se infere que os descontos que estão a ser efectuados não terminarão nos tempos mais próximos, pois de outra forma certamente se indicaria o respectivo termo.
De todo o modo, é no momento actual e não no futuro que tem de ser efectuada a avaliação a respeito da (im)possibilidade de cobrança coerciva, sendo que, ademais, o art. 49º nem faz depender a conversão da multa não paga em prisão subsidiária da instauração de processo executivo[4].
E a avaliação dessa impossibilidade, face aos elementos constantes dos autos e acima discriminados, não pode deixar de ser em sentido positivo.
Daí que, inexistindo qualquer obstáculo a que seja operada a conversão da multa em que o arguido foi condenado e que por ele não foi paga em prisão subsidiária, não pode subsistir o despacho recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que decida em conformidade.


4. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgam o recurso procedente e, em consequência, revogam o despacho recorrido, determinando que seja substituído por outro que, observando o disposto no art. 49º nº 1 do C. Penal, proceda à conversão da pena de multa em que o arguido foi condenado na prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
Sem tributação.

Évora, 9 de Novembro de 2021
Maria Leonor Esteves
Berguete Coelho

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[1] Embora não venha a instruir o recurso, retira-se da motivação deste que o referido despacho se terá baseado em nova informação da Segurança. Social de acordo com a qual a última remuneração, datada de Novembro de 2020, havia sido de 1.591,72€.
[2] Da mesma forma também se sabe que, na execução, a entidade patronal veio prestar informação nos seguintes termos:
“Na sequência da vossa notificação relativa ao processo em referência, informamos que (...) é colaborador da empresa (...), e que o mesmo aufere a quantia mensal de €900,00 (novecentos euros).
Mais informamos que sobre este vencimento está a ser descontada outra penhora pelo que de momento o colaborador não tem vencimento disponível para efectuar mais esta penhora.(…)”
[3] ( cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[4] Assim, os arestos citados pelo recorrente, em concreto os Acs. RC 6/2/13, proc. nº 1038/98.1TBVIS.C1 e RG 19/5/14, proc. nº 355/12.4GCBRG-A.G1.