Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
495/13.2GBTMR.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: CRIME DE BURLA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
CONDIÇÃO
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I - A substituição da pena de prisão por prisão suspensa na execução na condição de pagamento de indemnização concretiza os princípios da intervenção mínima do direito penal, da restrição máxima das sanções criminais, contribui efectivamente para a reinserção social do condenado e facilita a reposição da situação do lesado antes do cometimento do crime.

II - Mas para que se cumpram estes desideratos, deve o arguido encontrar-se em condições de poder cumprir a obrigação pecuniária condicionante da suspensão, na quantidade e no tempo determinados na sentença.

III - Para tanto, deve o juiz fixar o dever a impor de modo quantitativa e temporalmente compatível com as condições económicas do condenado, podendo a indemnização total ser substituída por uma indemnização parcial de modo a compatibilizar a adequação do dever imposto com as capacidades do arguido. [[1]]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo comum singular n.º 495/13.2GBTMR, da Comarca de Santarém, foi proferida sentença em que se decidiu condenar a arguida M, como autora de um crime de burla do art. 217, n.º 1, do CP, na pena de 1 ano e 5 meses de prisão, suspensa na execução com regime de prova, na condição de, no período de suspensão, pagar a PG a quantia de 2.500,00 euros.

Inconformada com o decidido, recorreu a arguida, concluindo:

“1- A arguida, ora recorrente, foi por douta sentença proferida nos presentes autos, condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217º, nº 1 do Código Penal na pena de um ano e cinco meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, acrescida da condição de a mesma pagar no respectivo prazo, a quantia de €:2.500,00 Euros ficando a suspensão sujeita ao regime de prova;

2- A imposição do dever de pagar a quantia monetária de € 2.500,00 no prazo da suspensão da execução da pena de prisão como condição para a suspensão da mesma, não nos merece acolhimento;

3- A imposição de tal condição pecuniária em nosso entender merece censura pelo seu Quantum ser desproporcional e desadequando à matéria de facto dada como provada, e está subordinada a um princípio de razoabilidade, não devendo ser fixadas, nessa sede, obrigações que à recorrente seja, previsivelmente, impossível cumprir;

4- Efetivamente e com o devido respeito por opinião diversa, somos em crer que não valorou a douta sentença, suficientemente as condições pessoais, familiares e financeiras da recorrente, melhor descritas no relatório social.

5- Excedendo manifestamente o ponto ideal de equilíbrio face às reais possibilidades de cumprimento da mesma pela recorrente, tornando-se evidente alguma desproporção entre esse valor e as actuais disponibilidades económicas da mesma;

6- Assim, ponderando toda a factualidade dada como provada, impor-se-á não submeter a condição pecuniária a pena em que a recorrente foi condenada pelo Tribunal ”a quo”, ou reajustá-la, alterando substancialmente as condições de suspensão da pena de prisão aplicada, porquanto a mesma é, no caso sub júdice, excessiva e desproporcional, pretendendo-se neste caso a supressão da imposição do dever de cumprimento de obrigação pecuniária no montante de €:2.500,00 como condição da suspensão da execução da pena de prisão ou, a sua especial redução;

7- A douta sentença violou assim disposto no artigo 13º da C.R.P. e nos artigos 40.º, 50.º, 51.º n.º 2 , do Código Penal.”

O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da confirmação da sentença e concluindo:

“1. A arguida já possui diversos antecedentes criminais pelo mesmo tipo de crime;

2. O tribunal atendeu às condições económicas da arguida, razão pela qual lhe concedeu o prazo de 17 meses para pagar ao ofendido a quantia de 2.500,00 €;

3. Apenas a pena fixada com o regime de prova e condição determinados poderá, ainda, satisfazer as elevadas exigências de prevenção especial;

4. Caso assim não se entendesse, tais exigências apenas poderiam ser satisfeitas com o cumprimento pela arguida da pena de 1 ano e 5 meses de prisão efectiva;

5. Não enferma a sentença dos vícios invocados pela arguida ou de qualquer outro de que nos cumpra conhecer;

6. Deste modo, deverá tal sentença ser mantida nos seus precisos termos.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto pronunciou-se também no sentido da confirmação da sentença.

Não houve resposta ao parecer. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1.- Em data não concretamente determinada, no mês de Abril de 2013, o ofendido PG colocou à venda o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ---JB", marca "Volvo", modelo "S40", de cor cinzenta, de sua propriedade.

2.-Nessa sequência, a arguida M. contactou o ofendido, mostrando-se interessada na aquisição desse veículo, ao que combinaram um encontro, que veio a ter lugar junto ao Centro Comercial "w Shopping", na cidade de Santarém, em data também não concretamente apurada, no final do mês de Abril de 2013.

3.- Durante esse encontro, o ofendido mostrou a viatura à ofendida e dias mais tarde, para concretizarem o negócio, combinaram um novo encontro, a realizar-se no dia 10 de Maio de 2013.

5.- Nesse dia, cerca das 17H00m, encontraram-se no parque de estacionamento, situado próximo da praça de touros, também nesta Comarca de Santarém.

6.- Fizeram o negócio naquele momento, que consistiu na compra/venda da dita viatura pelo preço de € 2.750,00 (dois mil setecentos e cinquenta euros).

7.-Para o efeito, a arguida entregou o cheque n.º 0.920.734-6 4201-1, sacado sobre a instituição bancária "LA CAIXA", sobre a conta bancária n.º -----, no qual se encontra aposto, para pagamento, a quantia de € 2.500, 00 (dois mil e quinhentos euros).

8.-Em contrapartida e por ter recebido o cheque referido em 5.-, o ofendido entregou à arguida o veículo de que era proprietário e, bem assim, as respectivas chaves e documentos.

9.- Por o pagamento ter sido feito mediante entrega de cheque, acordaram que o requerimento de registo assinado pelo ofendido apenas seria entregue por este à arguida após crédito do valor da venda na sua conta bancária.

10.- No dia 24.05.2013, o arguido apresentou o cheque descrito em 6.- a pagamento, o qual foi devolvido por falta de provisão, em 29.05.2013 e, de novo em 14.06.2013, após o ter apresentado uma segunda vez a pagamento, em 11.06.2013.

11.- Perante isto, o ofendido procurou obter esclarecimentos por mais de uma vez junto da arguida, que nunca resolveu a situação, por não ser essa a sua intenção.

12.-Para surpresa do ofendido, constatou, no dia 20.06.2013, que o veículo de matrícula ---JB se encontrava registado, desde o dia 27.05.2013, em nome de O.

13.-Tal surpresa decorreu do facto de nunca ter entregue à arguida, nem assinado - na qualidade de vendedor/sujeito passivo -, o requerimento com que foi efectuado tal registo.

14.-Porém aquando da realização do negócio descrito em 3.- a 8.-, o ofendido PG entregou à arguida cópia do seu cartão de cidadão.

15.- Ao agir conforme descrito em 2.- a 9.-, a arguida utilizou os dados constantes do cartão de cidadão do ofendido, a que assim teve acesso, para preencher parte do requerimento de registo automóvel - com o qual foi registada, por pessoa e modo não concretamente apurados, a propriedade do veículo identificado em 1.- em nome de O-, nomeadamente e entre outros, os dizeres e algarismos relativos ao número e local de emissão referentes à identificação do sujeito passivo.

16.-A arguida entregou o cheque e dessa forma formalizaram a compra/venda.

17.-Ficando na posse do veículo e respectivos documentos e bem assim, dados de identificação pessoal do ofendido.

18.-A entrega do cheque visava permitir a ilusão de um pagamento que não se haveria de processar.

19.-De facto, a arguida nunca pretendeu pagar o veículo ao ofendido.

20.-A arguida apenas pretendia obter um ganho consubstanciado no valor do veículo que lhe foi entregue por PG.

21.-Caso este soubesse que a arguida não tinha intenção de lhe pagar o veículo de matrícula ---JB, marca "Volvo", modelo "S40", nunca lho teria entregue, nem os respectivos documentos.

22.-A arguida actuou visando ludibriar o ofendido, criando neste a ilusão de que o mesmo obteria o pagamento da quantia negociada atrás de apresentação do cheque que lhe entregou para pagamento, bem sabendo não que a conta bancária sacada não dispunha de tal montante.

23.-Agiu de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que a sua conduta era proibida por Lei Penal.

24.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº ---/01.1GBCCH do extinto Tribunal de Coruche pela prática em 5/5/2001 de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 121.º, n.ºs 1, do Código da estrada na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 3 euros, por decisão proferida em 6/12/2002 transitada em julgado em 1/3/2003.

25.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº ---/02.5TAALR do extinto Tribunal de Almeirim pela prática em 20/11/2001 de um crime de Burla Qualificada p. e p. pelo artigo 218.º, do Código Penal na pena de 350 dias de multa à taxa diária de 3 euros, por decisão proferida em 21/5/2003 transitada em julgado em 6/6/2003.

26.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº ---/05.2GACTX do extinto Tribunal do Cartaxo 2.º Juízo pela prática em 23/4/2005 de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do D L n 2/98., 3 /1., na pena de 5 meses de prisão, suspensa por 12 meses por decisão proferida em 29/1/2008 transitada em julgado em 11/3/2008.

27.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº ---/04.6GTEVR do extinto Tribunal do montijo 1.º Juízo pela prática em 21/8/2004 de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.º, do D L n 2/98., 3 /1., na pena de 3 meses de prisão, suspensa por 1 ano por decisão proferida em 11/12/2007 transitada em julgado em 21/5/2008.

28.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº --/05.3IDSTR do extinto Tribunal de Coruche pela prática em 2001 de um crime de Fraude Fiscal Qualificada p. e p. pelo artigo 103.º, n.ºs 1, alínea c) e 104, n.ºs 1 e 2 da Lei N.º 15/2001, de 5/6., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, por decisão proferida em 8/1/2009 transitada em julgado em 9/2/2009.

29.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº --/02.0GBPSR do extinto Tribunal de Ponte de Sor pela prática em 21/3/2002 de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º, n.ºs 1, do Decreto Lei N.º 454/91, de 28/12., na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 5 euros, por decisão proferida em 7/3/2003 transitada em julgado em 18/5/2009.

30.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº ---/05.7GBCCH do extinto Tribunal de Coruche pela prática em 8/7/2005 de três crimes de Burla Qualificada p. e p. pelo artigo 218.º, do Código Penal, do Código Penal na pena de 18 meses de prisão por cada um deles e de quatro crimes de Burla p. e p. pelo artigo 217.º, do Código Penal na pena por cada um deles de 12 meses de prisão e em cumulo jurídico na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão suspensa por igual período de tempo, com a condição de pagar a quantia em que foi condenada no pedido de indemnização, por decisão proferida em 30/6/2008 transitada em julgado em 8/6/2009.

31.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº ---/06.8GALR do extinto Tribunal de Almeirim pela prática em 2/3/2006 de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º, n.ºs 1, do Decreto Lei N.º 454/91, de 28/12., na pena de 250 dias de multa à taxa diária de 5 euros, por decisão proferida em 29/4/2009 transitada em julgado em 31/7/2009.

32.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº ---/06.1TDSLB do extinto 5 juízo criminal 1 secção do Tribunal criminal de Lisboa pela prática em 8/10/2005 de dois crimes de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º, n.ºs 1, alínea a), do Decreto Lei N.º 454/91, de 28/12., na pena de dois anos de prisão por cada crime e na pena única de dois anos e seis meses de prisão suspensa por igual período de tempo, por decisão proferida em 18/3/2011 transitada em julgado em 25/5/2011.

33.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº ---/07.2TALRA do extinto 1.º Juízo criminal do Tribunal judicial de Leiria pela prática em 26/1/2007 de um crime de Burla Qualificada p. e p. pelo artigo 218.º, do Código Penal na pena de dois anos de prisão suspensa por 2 anos com regime de prova e subordinada ao cumprimento do dever de entregar a lesada a quantia de 7157,50 euros no prazo de 18 meses a contar do transito, por decisão proferida em 1/4/2009 transitada em julgado em 16/9/2011.

34.-A Arguida já anteriormente respondeu e foi condenada no âmbito do processo Penal Nº ---/08.2GBCCH da instância central criminal J1 do tribunal da Comarca De Santarém pela prática em 18/2/2008 de dois crimes de Burla Qualificada p. e p. pelo artigo 218.º, do Código Penal na pena de um ano e seis meses por um desses crimes e de 3 anos e seis meses pela prática de outro e na pena única de quatro anos e seis meses de prisão suspensa por 4 anos e seis meses.

35.-O processo de socialização de M. efetuou-se no seio do agregado familiar de origem composto por ambos os progenitores e um irmão gémeo, num contexto social de características rurais e no seio de uma família de situação económica humilde.

36.- Ao nível relacional foram-lhe proporcionados vínculos de afeto e transmissão de regras e valores aceites e valorizadas em termos sociais, usufruindo no agregado de origem de condições para um desenvolvimento estruturado e organizado.

37.-Em termos escolares optou por abandonar os estudos após ter concluído o 9°. ano de escolaridade por sua iniciativa, a fim de começar a trabalhar.

38.-Em termos profissionais o seu trajeto tem-se revelado irregular. tendo sido iniciado com cerca de 16 anos como operária fabril, atividade que abandonou ao fim de dois anos por se encontrar grávida do primeiro filho.

39.- Retomou o desempenho laboral executando outros trabalhos indiferenciados e de curta duração até ao nascimento do segundo filho, há 15 anos, não voltando a desenvolver atividade remunerada desde então alegando necessidade de ajudar o cônjuge na respetiva atividade laboral, o que se verificou até 2010, altura em que aquele iniciou o cumprimento de uma pena de prisão efetiva.

40.-Nos últimos cinco anos, tem-se mantido a maior parte do tempo inativa profissionalmente, desempenhando apenas algumas tarefas de limpeza, de forma esporádica e pontual.

41.-Em termos familiares salienta-se a assunção de papéis parentais ainda em idade muito jovem, já que aos 18 anos de idade contraiu matrimónio e constituiu na altura agregado próprio, na sequência do nascimento, não planeado, do seu primeiro filho.

42.- Tem mantido até à atualidade o seu casamento que avalia como gratificante.

43.-À data dos factos o agregado familiar de M. era composto como na atualidade pela própria e pelos dois filhos mais novos, de 15 e 8 anos de idade.

44.- O cônjuge, AA, de 37 anos, cumpre desde 2010 uma pena de prisão de sete anos e meio, no estabelecimento prisional da Carregueira.

45.- O filho mais velho, desde a sua infância que se mantém aos cuidados dos avós maternos, com quem tem vivido até à atualidade.

46.-Desde que o marido se encontra preso a arguida tem em alguns períodos integrado o agregado familiar de origem, havendo contudo referência a episódios de conf1ituosidade com os progenitores que condicionou a sua autonomização em termos habitacionais.

47.-Na atualidade habita há cerca de dois meses, uma pequena moradia térrea, cedida gratuitamente por pessoas amigas.

48.-M. tem uma situação económica na atualidade precária, uma vez que não se encontra ativa laboralmente

49.-. As dificuldades a este respeito têm-se acentuado a partir da reclusão do cônjuge, considerando que a atividade que aquele desempenhava, nomeadamente, manobrador de máquinas por conta própria, assegurava satisfatoriamente o sustento da casa.

50.- Presentemente a subsistência da família é garantida da através de subsídio concedido pelos serviços da segurança social no âmbito do rendimento social de inserção e prestação familiar dos dois descendentes, nos valores de € 285,00 e € 84,00 mensais, respetivamente.

51.-Dispõe também do apoio da cantina social, estando-lhe a ser cedidas diariamente três refeições confecionadas por uma instituição particular de solidariedade social da localidade de residência.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do CPP (AFJ de 19.10.95), a questão a apreciar restringe-se pena e, nesta, ao condicionamento da suspensão da prisão ao pagamento da indemnização arbitrada na sentença.

A recorrente insurge-se contra o condicionamento da suspensão da execução da pena ao pagamento da quantia de 2.500,00 euros, alegando não se encontrar em condições de cumprir a condição, não questionando, no mais, a decisão condenatória, que assim aceita na parte restante.

Na ausência de detecção de vícios da sentença ou de outras matérias de que cumprisse conhecer oficiosamente, cumpre sindicar a pena aplicada na parte relativa a este dever que condicionou a suspensão.

De notar que o Ministério Público não acompanhou a recorrente na pretensão formulada, pronunciando-se no sentido da confirmação da sentença. Argumentou, no essencial, que a aplicação de uma pena de substituição revela já, no presente caso, uma grande benevolência por parte do tribunal, atendendo designadamente aos antecedentes criminais da arguida, sendo claramente necessário o reforço da suspensão da prisão, nos termos decididos.

O recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena. Daqui resulta que a Relação intervém na pena, alterando-a, apenas quando detecta incorrecções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena.

Dito de outro modo, a Relação não decide da sanção como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.

A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de eventuais desvios no iter aplicativo da pena desenvolvido em primeira instância e será sempre dentro desta margem de actuação que a segunda instância exercerá os seus poderes de fiscalização e controlo.

Assim sendo, e concordando-se com o Ministério Público quando se pronuncia no sentido de se justificar o reforço da suspensão da pena de prisão com a imposição de outros deveres e/ouobrigações, é no entanto de reconhecer que, no presente caso, se verificou algum excesso na determinação do condicionamento da suspensão da prisão, como se explicará.

Antes porém, reveja-se a fundamentação da sentença na parte que interessa ao recurso:

“2. Da natureza e medida da pena.
O referido crime de burla praticado pela Arguida é punido com uma moldura penal abstracta de um mês a três anos de prisão ou com pena de multa de 10 a 360 dias.

Os critérios de determinação das penas encontram-se previstos nos artigos 70º e 71º, n.º1 e 2, do C.P..

Atendendo aos antecedentes criminais da Arguida que revela serem especialmente elevadas as exigências de prevenção especial tendo sido anteriormente condenada por crimes de natureza idêntica a da dos presentes autos entendemos que a pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição da Arguida pelo que, de harmonia com o disposto no art. 70º do Código Penal não se opta pela pena de multa na punição do crime praticado pela Arguida.

Ter-se-á, em conta na determinação da pena concreta a aplicar a Arguida pelos crime que praticou o grau de intensidade do ilícito, considerando a respectiva natureza medianamente elevado, o dolo da Arguida, na modalidade de dolo directo, (art.º 14º, n.º1, do C.P.), as consequências já gravosas resultantes da prática dos ilícitos expressas no prejuízo sofrido pelo ofendido, e a situação pessoal, social, económica, familiar e profissional da Arguida que se provaram.

Atendendo aos mencionados elementos de ilicitude e culpabilidade entendemos que a pena de prisão a aplicar a arguida se deve graduar em um ano e cinco meses de prisão.

3. Da pena de substituição.
Importa agora equacionar a questão de saber se a referida pena deverá ser efectiva ou ser aplicada uma pena de substituição designadamente a suspensão da pena.

A imediata privação da liberdade só deve ser em nosso entender decretada, existindo ponderosas razões ao nível da prevenção geral que determinaram a pena de prisão, se o comportamento anterior e posterior dos Arguidos não justificarem tratamento diferente.

Em nossa opinião as necessidades próprias da prevenção geral não podem só por si justificar a efectiva privação da liberdade por parte dos Arguidos, quando, como no caso em apreço a personalidade dos Arguidos e o seu comportamento não imponham tal solução.

O artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, do código penal não pode ser interpretado no sentido de não ser possível determinar a suspensão da pena se apenas as necessidades de prevenção geral do crime o impuserem, tal interpretação não é conforme a um sistema penal como o nosso centrado na culpa concreta do Agente e na adequação da punição à personalidade dos Arguidos e ao facto ilícito por si praticado.

No caso dos autos afigura-se-nos, tendo em atenção que a Arguida se encontra minimamente socialmente inserida que as condenações da Arguida já remontam há alguns anos e a que posteriormente à pratica dos factos destes autos não foi condenada pela pratica de crimes, com comportamento actual posterior à prática dos factos socialmente adequado, que a ameaça da pena e a simples censura do facto se mostram adequadas para afastar a Arguida da prática de outras infracções do mesmo ou de outro género desde que sujeita a regime de prova e sujeita a condição de pagar ao ofendido o montante do cheque devolvido sem provisão.

Em face do exposto e ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, do código penal decidir-se-á declarar suspensa a execução da pena de prisão aplicada aos Arguidos pelo período idêntico ao da pena de prisão sujeita a regime de prova e sujeita a condição de pagar ao ofendido o montante do cheque devolvido sem provisão.”

Rectificando agora o lapso de escrita detectado na sentença - onde se lê “pena de prisão aplicada aos arguidos” deve ler-se “pena de prisão aplicada à arguida” - verifica-se que o tribunal condicionou a suspensão da pena ao pagamento da quantia de € 2.500,00 ao ofendido, a efectuar no período da suspensão pena, ou seja, em um ano e cinco meses.

A obrigação de reparação do mal do crime como condicionante da suspensão da prisão cumpre uma importante função adjuvante das finalidades da punição. Também no caso presente, como bem considerou o tribunal, encontra-se amplamente justificada, sobretudo (mas não apenas) por razões de prevenção especial, contribuindo para a reinserção social da arguida, que assim se reabilita colmatando, na medida do possível, os efeitos do seu acto criminoso.

Facilita a reposição da situação do lesado antes do cometimento do crime e contribui para a reintegração social da condenada. Em suma, “permite cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima” (Manso Preto, Algumas considerações sobre a suspensão condicional da pena, in Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91, p. 173)”, assegurando “o direito do cidadão a ser punido com a pena justa” (Faria Costa, Linhas de Direito Penal e de Filosofia alguns cruzamentos reflexivos, 2005, p. 230).

A suspensão condicionada é, pois, um “meio razoável e flexível para exercer uma influência ressocializadora sobre o agente, sem privação da liberdade”. A sua vantagem “reside precisamente na possibilidade de adaptar a sanção às circunstâncias e necessidades do agente” (JeschecK, Weigend, Tratado de Derecho Penal, 2002, p. 898-899. E sobre o papel e funções da reparação no ordenamento penal alemão – como isenção ou atenuante de pena; como condição imposta ao condenado; como substitutivo da sanção penal; como consequência jurídica autónoma do direito penal juvenil – ver Pablo Galan Palermo, Suspensão do Processo e Terceira Via: avanços e retrocessos do sistema penal, in Que Futuro para o Direito Processual Penal, 2009, pp. 613 a 643).

Permite potenciar largamente as virtualidades do instituto da suspensão da execução da pena, que não se limita assim a descansar na “ideia da ameaça da pena e do seu efeito intimidativo”, sendo antes integrado pela imposição ao agente de deveres e regras de conduta que reforçam tanto a socialização do delinquente como a reparação das consequências do crime (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005 reimp., p.339). E a suspensão da pena não condicionada, no caso presente, revelar-se-ia manifestamente insuficiente para cumprir as finalidades da punição, como o demonstram os antecedentes criminais da arguida, demonstrativos do insucesso das medidas anteriormente experimentadas e que incluíram já a pena de prisão suspensa.

Nas palavras de Pablo Galan Palermo, a reparação “constitui um comportamento positivo posterior” do agente que “compensa o injusto, repara o dano social, cumpre com o fim de prevenção especial ressocializadora, cumpre com o fim de prevenção penal integradora (loc. cit. p. 642-643).

Mas para que se cumpra este desiderato, deve o condenado encontrar-se em condições de poder cumprir a obrigação pecuniária, na quantidade e no tempo determinados na sentença.

Para tanto, deve o juiz, após averiguar as possibilidades do cumprimento, fixar o dever de um modo quantitativa e temporalmente compatível com as condições do condenado, só assim se prosseguindo o direito deste a uma pena justa.

A esta compatibilização se refere o art. 51º do CP, cujo nº 2 estipula que “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”, prevendo-se no nº 3 a modificação dos deveres por ocorrência de circunstâncias relevantes supervenientes. Daí o dizer-se que este nº 2 completa com um princípio da razoabilidade, os princípios gerais que norteiam a fixação da pena – da adequação e da proporcionalidade.

O Tribunal Constitucional sempre se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma constante do art. 51º, nº1-a), na parte em que permite condicionar a suspensão da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados ao ofendido (v. Ac. TC 440/87, Ac. TC 569/99), sendo igualmente abundante a sua jurisprudência no sentido até da conformidade constitucional da obrigatoriedade desse condicionamento ao pagamento da totalidade de uma dívida fiscal (entre muitos, Ac TC 356/2003, 335/2003, 500/2005, 309/2006, 61/2007, 556/2009, 237/2011).

Neste segundo caso – da obrigatoriedade legal do condicionamento da suspensão ao pagamento de indemnização – apesar de uniforme, a jurisprudência do Tribunal Constitucional contou com o voto de vencida da Conselheira Fernanda Palma. Assim sucedeu no Ac. n.º 376/2003, em que se justificou: “verificando-se a sujeição necessária da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da dívida fiscal, fica inviabilizada a plena ponderação em concreto das exigências de prevenção e de reintegração no momento de decidir a efectiva aplicação e execução da pena. (…) Dá-se portanto a transfiguração de um meio concretizador dos princípios e das finalidades do sistema punitivo (…) num meio de produção de um resultado desejável pelo sistema jurídico, independentemente da concreta ponderação de outras possibilidades de satisfação das finalidades punitivas. (…) A suspensão da pena, como alternativa à prisão, não pode ter como condição a concreta capacidade económica do agente – o que seria violador do princípio da culpa, (…) do direito à liberdade e à igualdade (arts. 1º, 27º-1 e 13º da CRP)”.

Nestes quadro e parâmetros de avaliação, cumpre determinar se, no caso, a recorrente se encontram em condições de cumprir o dever imposto na decisão recorrida, ou seja, de proceder ao pagamento da quantia de € 2.500,00 euros, no período de um ano e cinco meses de prisão. E dos factos provados resulta que a arguida não se encontra em condições económicas de poder cumprir o dever imposto, do modo estipulado na sentença.

A situação económica e social da arguida retira-se dos factos provados, transcritos em 2., e outros não se conhecem.

Tudo ponderado, e sendo claramente de manter o dever imposto como reforço da suspensão da pena com regime de prova, considera-se no entanto excessivo o montante fixado como condicionante da suspensão da pena.

Este montante afigura-se desproporcionado e, logo, desadequado ao cumprimento das finalidades da punição, uma vez que se apresenta como uma obrigação pecuniária muito difícil, ou mesmo impossível, de cumprir pela arguida, de acordo com o quadro factual apurado na sentença. E é apenas este que temos.

Aquele montante global, como condicionante da suspensão da prisão, deve ser substituído por uma indemnização parcial, relativamente ao valor do prejuízo causado, que se fixa em € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a pagar até ao termo do período de suspensão da prisão.

Assim se harmoniza a condição imposta com as capacidades económicas da arguida, de forma a tornar possível o cumprimento do dever e, como tal, legal e constitucionalmente compatível com os fins e os princípios que justificam e norteiam a pena. Note-se que neste juízo de compatibilidade relevam todos os factos pessoais provados na sentença, ou seja, não apenas os rendimentos mensais recebidos pela arguida ali já referidos, mas também os que resultam das “tarefas de limpeza” que tem executado e que pode continuar a executar.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso, reduzindo-se o montante fixado como condicionante da suspensão da pena para € 1.500,00, mantendo-se a sentença na parte restante.

Sem custas.

Évora, 06.12.2016

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)

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[1] - Sumariado pela relatora.