Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4275/11.1TASTB.E1
Relator: ANTÓNIO CLEMENTE LIMA
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 03/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, nos termos prevenidos no artigo 287.º n.º 3, do CPP, o requerimento do assistente para abertura da instrução que deixe de arrolar a totalidade dos factos consubstanciadores do crime pelo qual pretende ver o arguido pronunciado, sob pena de, em infração regras de economia e utilidade processuais, se fazer iniciar uma instrução que, à partida, inarredavelmente, só se pode ter por inconsequente.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I
1 – Nos autos em referência, JR formulou queixa-crime contra A, B, C, D, E e contra F.

Precedendo inquérito, o Ministério Público decidiu determinar o arquivamento dos autos, ponderando, em súmula, que os factos denunciados não constituem crime, designadamente o crime de burla previsto no artigo 217.º, do Código Penal (CP).

Em sequência, o denunciante, adrede admitido a intervir como assistente, requereu a abertura de instrução, imputando aos arguidos a prática de factos consubstanciadores da co-autoria material, na forma continuada, de um crime de burla qualificada, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto nos artigos 218.º n.º 2 alínea a) e 202.º alínea b), do CP.

Por despacho de 9 de Setembro de 2013, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo decidiu rejeitar o requerimento para abertura de instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), «por, atendendo ao conteúdo do mesmo (e dele se extrair a violação do comando dos artigos 287.º n.º 2 e 289.º n.º 3 alíneas b) e c) do mesmo diploma), se verificar uma inadmissibilidade legal da instrução».

2 – O assistente, JR, interpôs recurso deste despacho, que pretende ver «revogado e substituído por outro, mediante o qual se declare aberta a instrução».

Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:

«1º O Mmo. Juiz de Instrução rejeitou, em despacho preliminar, o requerimento de instrução apresentado pelo assistente (cuja transcrição se dá também aqui por reproduzida), ora Recorrente, com fundamento em inadmissibilidade legal da mesma, em particular, por ter considerado que os factos imputados aos arguidos não constituem a prática de ilícitos penais.

2º Os autos tratam da mesma questão fundamental de direito, que veio já decidida pelo Ac. TRP de 25-01-2006 (disponível em www.dgsi.pt), e que de forma absolutamente clara, traduz a ideia de se encontrar vedado ao Juiz de Instrução fazer, no despacho preliminar, uma apreciação jurídico-penal dos factos susceptíveis de instrução, como foi o que sucedeu in casu. Com efeito,

3º o Juiz não pode proceder à apreciação jurídico-penal da conduta imputada ao arguido no respetivo requerimento de abertura, de modo que o leve desde logo a concluir pela inexistência da prática de qualquer ilícito criminal.

4º A instrução, que tem sempre carácter facultativo, visa estabelecer um controlo jurisdicional da acusação ou de arquivamento do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento [286.º do C. P. Penal].

5º Por sua vez, segundo o disposto no art. 287.º, n.º 2 “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, só espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c). …”.

6º No seu n.º 3 acrescenta-se que “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.

7º A propósito da última parte do citado preceito, tem-se entendido que não tem cabimento legal a instrução quando se tratem de processos especiais, quando seja a requerimento do Ministério Público, quando for requerida pelo arguido, relativamente a factos que exorbitem a acusação, ou então pelo assistente, versando sobre factos já descritos na acusação, ou então por falta de legitimidade de quem a requer – veja-se Souto Moura, nas jornadas sobre “O Novo Código Processo Penal” (1997), p. 119 e ss.

8º Daqui decorre que neste segmento normativo apenas questões de índole formal podem conduzir à rejeição da instrução, mas já não a apreciação jurídico-penal dos factos susceptíveis de instrução.

9º Tal apreciação deve ser reservada para o despacho de pronúncia ou não pronúncia previsto art. 308.º, n.º 1 do Código Processo Penal.

10º apreciação, que consumiu o extenso despacho preliminar, não passa de uma decisão de não pronúncia, cuja oportunidade só tem lugar no momento subsequente ao debate instrutório e à realização das diligências de instrução requeridas, pelo que violou o disposto no art. 287.º, n.º 3 do Código Processo Penal, impondo-se a sua revogação.»

3 – O recurso foi admitido, por despacho de 10 de Outubro de 2013.

4 – O Ministério Público, em 1.ª instância, respondeu ao recurso, defendendo a confirmação da decisão recorrida.

Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:

«A) O assistente veio, perante a prolação de despacho de arquivamento, requerer a abertura de instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º do Código de Processo Penal.

B) O requerimento de abertura de instrução foi rejeitado por se ter considerado que o mesmo não narrava factos susceptiveis de imputar aos arguidos qualquer ilícito penal, sendo legalmente inadmissível nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal.

C) Alegou o recorrente que o despacho preliminar proferido pelo Mmº Juiz de Instrução consubstancia um verdadeiro despacho de não pronuncia, cuja oportunidade só tem lugar após o debate instrutório e à realização das diligências de instrução requeridas, pelo que violou o disposto no art. 287º nº 3 do Código de Processo Penal.

D) Os factos narrados no requerimento de abertura de instrução foram corretamente apreciados, formal e juridicamente, bem como não se mostram violados os dispositivos legais invocados ou quaisquer outros, não nos merecendo o Despacho ora recorrido qualquer reparo.

E) Um dos casos de inadmissibilidade legal de instrução, para os efeitos do disposto no nº 2 do art. 287º do Código de processo Penal, é o requerimento de abertura de instrução pelo Assistente que contem factos que não constituem crime, por identidade de razão com o disposto no art. 311º n.º 3 alínea c) do Código de Processo Penal.

F) Acresce que, abrir a fase de instrução e realizar atos de instrução por factos que não consubstanciam a prática de crime, seria praticar atos inúteis, proibidos por lei e violadores do princípio da economia processual.

G) Uma vez que os factos narrados no requerimento para abertura de instrução não integram os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla, cuja prática o assistente imputa aos arguidos, não podem, por conseguinte, os arguidos ser pronunciados pelo referido crime, motivo por que a realização da instrução se tornaria absolutamente inútil.

H) Perante estes elementos, não nos merece qualquer reparo a douta decisão proferida de rejeição do requerimento de abertura de instrução, com fundamento na inadmissibilidade legal do mesmo, em consonância com o disposto no n.º 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal.».

5 – Nesta instância, o Ministério Público é de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.

6 – Tal como definido, pelo recorrente, o objecto do recurso – e, por tal via a questão sob exame – está em saber se o Mm.º Juiz do Tribunal a quo incorreu em erro de jure, no ponto em que, por indevida interpretação do disposto no artigo 287.º n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), indeferiu, por inadmissibilidade legal, o requerimento do assistente para abertura da instrução.

II
7 – Importa, antes do mais, fazer presente a decisão revidenda.

Tal seja:
«Requerimento de abertura de instrução de fls. 404 e seguintes:

O requerimento não é extemporâneo, e o tribunal é competente.

Porém, outras considerações haverá a tecer.

Após a entrada em vigor das alterações ao artigo 287º do Código de Processo Penal, operadas pela Lei número 59/98 de 25/08, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente está sujeito ao formalismo prescrito nas alíneas b) e c) do número 3 do artigo 283º do mesmo diploma.

Quer isto dizer que deve conter sob pena de nulidade, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação do agente).

De facto, “não compete ao juiz perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes. Após o arquivamento pelo M.P., o requerimento de abertura de instrução do assistente equivalerá em tudo à acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação.”

É uma consequência da estrutura acusatória do processo a definição do seu thema decidendum pela acusação. Quando esta não existe, é o requerimento de abertura de instrução que tem que fixar tais limites.

De facto, a instrução não tem por finalidade directa a fiscalização ou complemento da actividade de investigação e recolha de prova realizada no inquérito. A instrução é actualmente uma actividade materialmente judicial e não de investigação ou materialmente policial ou de investigações.

Como consequência, a insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público no inquérito é sindicada hierarquicamente por via de reclamação e a errada valoração dos indícios colhidos na investigação é sindicada judicialmente por via da abertura de instrução.

Nos casos de decisão de arquivamento, como sucede aqui, o juiz de instrução, quando aceite as razões aduzidas pelo assistente, e discordando da decisão de não acusação do Ministério Público, não ordena a este órgão que proceda em conformidade com a sua decisão, antes recebe a acusação implícita no requerimento do assistente, pronunciando, se for o caso disso, o arguido pelos factos constantes dessa acusação.

O acusador, no caso, o assistente, requer ao tribunal a submissão a julgamento do acusado (relativamente ao qual o processo foi arquivado) pela prática dos factos que obrigatoriamente tem que descrever na acusação, em conformidade com as disposições legais aplicáveis, que também deve (obrigatoriamente) indicar.

Ou seja, o assistente tem que elaborar uma “acusação alternativa”, descrever um encadeado de factos concretos com circunstâncias de tempo, modo e lugar (artigo 283º, número 3, al. a) do Código de Processo Penal aplicável ex. vi artigo 287º, número 2, do mesmo diploma) que, provando-se, constituam o arguido em responsabilidade criminal.

Tal não é, todavia, e pese embora a extensão do requerimento de abertura de instrução da assistente, o que nele se verifica.

De facto, compulsada a factualidade relatada no referido requerimento, constata-se que a eventual prática dos factos imputada aos arguidos, ainda que eventualmente pudesse vir a ser dada por suficientemente indiciada, não consubstancia o crime que lhes é assacado, ou seja, o crime de burla, previsto e punível pelo artigo 218º, número 2, do Código Penal.

Os factos a considerar pelo tribunal são os que vêm descritos, com alguma clareza, a fls. 411-418.

Assinale-se todavia alguma indefinição da conduta concreta dos acusados, no que toca à indução em erro do assistente. Na realidade, o que se relata é a celebração sucessiva de diversos acordos, levados até a escrito, mas sem se conhecer pormenorizadamente o que fizeram os acusados no sentido de convencer o assistente a dessa forma se obrigar.

Ponto fulcral da acusação alternativa formulada pelo assistente é a existência de um conluio entre os acusados C, B e A, no sentido de o fazerem crer que os dois últimos efetivamente celebrariam consigo um contrato de compra e venda de um imóvel.

Sendo que por conta da promessa de venda do mesmo, o assistente lhes entregou diversas quantias monetárias, e estes nunca tiveram qualquer intenção de outorgar o contrato definitivo. E bem assim, o acusado Carlos nunca teve qualquer intenção de construir nesse terreno um edifício, em “parceria” com o assistente, como se havia obrigado.

A questão que se coloca é, se isto for verdade e dado por indiciado, tal factualidade traduz, como o pretende o assistente, a prática de ilícitos penais?

Não se tem qualquer dúvida, como o não teve o Ministério Público aquando da prolação de despacho de arquivamento, sobre a ilicitude civil de tais ações.

Vejamos mais pormenorizadamente.

Estabelece o artigo 217º, número 1 do Código Penal, que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.

São elementos constitutivos (objectivos e subjectivos) do crime de burla: a) - o emprego de astúcia pelo agente; b) - o erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia; c) - a prática de actos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida; d) - o prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro resultante da prática dos referidos actos; e) - a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.

Este ilícito integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem que ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento e que se traduza na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva, após indução em erro, a praticar actos concretos de que resultem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.

O erro do sujeito passivo tem que ser provocado astuciosamente ou mediante um artifício fraudulento, podendo ocorrer burla mediante a prática de actos ou comportamentos concludentes em que a produção do engano resulta de uma deficiência de esclarecimento acerca do significado ou alcance da conduta do agente, nos casos em que a conduta do sujeito activo cria ou assegura o engano da vítima, por defeito da informação ou quando exista a responsabilidade social de garantir a transparência nas transacções ou nos serviços e a mesma não tenha sido observada.

Verificar-se-á esse crime, na forma tentada, quando aquele agente desenvolver todo o seu processo enganatório, mas sem conseguir a produção do resultado entrega de bens ou de valores em virtude de o potencial lesado, depois de ter estado convencido a entregá-los por força do artifício fraudulento utilizado, desiste de a fazer por ter passado a descrer da possibilidade de obtenção dos prometidos benefícios.

A consumação da burla exige um duplo nexo de imputação objectiva entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio e, depois, entre estes últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial.
Trata-se de um elemento autónomo em relação ao erro ou engano, por um lado, e, por outro, relativamente ao prejuízo patrimonial, pois exige que sejam praticados actos de administração ou de administração pela vítima do tipo criminal .

A distinção entre ações que integrem o mero ilícito civil e o ilícito penal não é, todavia, fácil. Sintomaticamente, tem a doutrina e a jurisprudência sido chamada prolificamente a pronunciar-se sobre a questão. Um aresto em que a mesma aparece bem dilucidada, e que em face da fundamentação expressa totalmente se anui, é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4/10/2007, processo número 07P2599, relatado por Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt (texto integral).

E como aí se refere (com sublinhados nossos), “pode verificar-se uma identificação, de modo e de finalidade, entre a fraude que integra a burla e o dolo que vicia os contratos de carácter económico, o que levou a questionar-se se haveria, então, uma fraude civil distinta de uma fraude penal; questão a que logo o direito positivo responde positivamente, bastando considerar o dano culposo, o esbulho possessório sem violência ou ameaça grave, o incumprimento de contrato (em geral), a acção de condenação de dívida não vencida, a lide temerária, o abuso de direito, o recebimento culposo do não devido, como actos ilícitos que, no entanto, a lei não define como crimes.”

Na realidade, há que não esquecer a função do direito penal como direito de ultima ratio.

Assim, e como foi dito no douto aresto, “Numa opção, em que muitas vezes não é imediatamente reconhecível um rigoroso científico ou distinção ontológica entre tais fatos, por razões de política criminal, o legislador efectua uma selecção, elegendo as condutas penalmente censuráveis entre as quais não inclui o facto contra direito que não provoque alarme colectivo, caso em que se contenta com os meios próprios do direito civil, como sancionamento. Parte assim, da maior gravidade do delito penal, da mais extensa e intensa perturbação social que causa.

Não obstante serem múltiplas são as teorias que se apresentaram para clarificar esta distinção (cfr. Nelson Hungria, op. cit., 171-191, sobre a sua consideração), é de aceitar, face às dificuldades, incluindo práticas, de estabelecer uma distinção ontológica entre o injusto penal e o civil, pelo menos em face do direito positivo, o único critério discriminativo aceitável será, pois, o critério relativo e não apriorístico da suficiência ou insuficiência das sanções não-penais, de forma a que, só quando a sanção civil se apresenta como ineficaz para a reintegração da ordem jurídica, é que surge a necessidade da sanção penal, o último dos recursos.”

No caso concreto, e sempre no pressuposto que sejam verdadeiros os factos alegados pelo assistente, é inquestionável que a lei civil estabelece formas de reparação do dano. Que recorde-se, se consubstancia essencialmente no resultado de incumprimentos de obrigações assumidas contratualmente pelos acusados. Sendo que se desconhece, mas também não o alega o assistente, que os mesmos acusados não tenham meios de, em sede própria, ressarcir os prejuízos que alegadamente lhe causaram.

Neste sentido, também foi referido no acórdão supra aludido: “Importa, assim, procurar delimitar o âmbito de protecção da norma, do ilícito subjacente ao crime de burla, como já se adiantou. Almeida Costa (Comentário Conimbricense, II, pág. 300) refere que no plano criminal se exige que «a consumação do delito dependa, não de um qualquer domínio-do-erro (ainda que efectivo) mas de um domínio-do erro jurídico-penalmente relevante», tendo em consideração uma restrição adicional do desvalor de acção subjacente à burla, cuja definição remete para o princípio da boa fé (em sentido objectivo): «uma exigência de consideração pelos interesses legítimos da outra parte, nele radica o decisivo critério da lealdade que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, portanto, o limite da relevância do domínio-do-erro no quadro da burla».

Ora é este desvalor da acção que permite responder à dificuldade com se pode ser confrontado, a propósito da criminalização da vida colectiva. Como se disse acima, há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena.

Como se disse já, como referir-se o ilícito penal como a violação da ordem jurídica, contra a qual, pela sua intensidade ou gravidade, a única sanção adequada é a pena, enquanto o ilícito civil é a violação da ordem jurídica, para cuja debelação bastam as sanções da indemnização, da execução forçada ou in natura, da restituição ao satu quo ante, da anulação do acto.”

No caso concreto (considerando em abstrato a factualidade enunciada pelo assistente como verdadeira, e que os acusados tenham tido, ab initio, a intenção de não cumprir as obrigações que assumiram perante o mesmo), e com todo o respeito por entendimento diverso, não se considera que tenha havido um dano social relevante, que justifique a aplicação de uma pena, mas meramente um dano individual, reparável através dos mecanismos próprios previstos na lei civil.

É que, nestes casos, não basta a intenção de não cumprir uma obrigação e o prejuízo patrimonial para que haja burla.

Como foi notado no arresto supra aludido: “Que a linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina e pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla.

Há, assim, fraude penal: – quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico: – quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto; – quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena; – quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir; – quando há uma impossibilidade de se reparar o dano; – quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.”

Estes requisitos são cumulativos.

No caso concreto, e ainda que se dessem por provados todos os factos descritos pelo assistente, não se verifica, em meu entender: - a dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto; – uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena; – uma impossibilidade de se reparar o dano sem recurso ao direito penal.

Numa frase: se a narração factual constante do requerimento de abertura de instrução fosse dada como provada após julgamento, seria a mesma susceptível de fazer concluir pela verificação da responsabilidade criminal concreta dos arguidos? Parece-me evidente que não.

Se é verdade que não existe ilicitude penal que não pressuponha uma concomitante ilicitude civil também verdade é que a fronteira da ilicitude penal apenas surge quando, dentro de um território material civilmente relevante, surgem elementos diferenciadores específicos que são o valor acrescentado do ilícito penal. O que não acontece no caso vertente.

Ou seja, o tipo criminal, enquanto ultima ratio da censurabilidade social, começa onde existe algo mais do que se encontra no ilícito civil.

Sempre sublinhando que o assistente tem ao seu dispor diversos institutos jurídicos de natureza civilística para ser ressarcido dos prejuízos que possa ter sofrido, circunstância que demonstra à saciedade a inexistência dos elementos subjectivos e objectivos do crime de burla.

Donde, afastada fica a possibilidade de qualificar a atuação dos acusados, tal como lhes vem imputada, como crime de burla, previsto e punível pelos artigos 217º e 218ºdo Código Penal, pela não enunciação de factos que constituam o elemento objectivo do tipo legal em causa.

Pelo exposto, e porque os factos relatados no requerimento de abertura de instrução, não constituem crime, outra solução não existe que, ao abrigo do disposto no artigo 287º, número 3, do Código de Processo Penal, rejeitar o referido requerimento, por, atento o conteúdo do mesmo (e dele se extrair a violação do comando dos artigos 287º, número 2, e 283º, número 3, als. b) e c) do mesmo diploma), se verificar uma inadmissibilidade legal da instrução.

O que vai decidido.»

8 – Defende o recorrente que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo incorreu em erro de jure, no ponto em que, por incorrecta interpretação do disposto no artigo 287.º n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), indeferiu, por inadmissibilidade legal, o requerimento do assistente para abertura da instrução, com indevida apreciação jurídico-penal dos factos trazidos à instrução, assim antecipando uma decisão de pronúncia ou de não pronúncia.

Em oposição, salienta o Ministério Público, em primeira e nesta instância, que um dos casos de inadmissibilidade legal de instrução, para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 287.º do CPP, é o do requerimento de abertura de instrução pelo assistente que alinha factos insusceptíveis de determinar a aplicação de uma pena por se mostrarem insusceptíveis de integrar qualquer infracção penal, sob pena de a instrução configurar um conjunto de actos inúteis, em violação do princípio da economia processual.

9 – Cumpre, antes de mais, ter presente o disposto nos artigos 283.° e 308.°, do CPP.

Por indiciação suficiente, entende-se «a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança»...

Trata-se da «... probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal...» - Prof. Germano Marques da Silva, in «Curso de Processo Penal», Vol. II, Verbo – 1999, 2.ª edição, pp. 99/1000.

Como refere o Prof. Figueiredo Dias, «... os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição». E adianta: «tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação» - in «Direito Processual Penal», Vol. I, Coimbra Editora – 1974, pág. 133.

No mesmo sentido, afirmava já o Cons. Luís Osório que «devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado» - in «Comentário ao Código de Processo Penal Português», Vol. IV, pág. 411.

Indícios, no sentido em que a expressão é utilizada no artigo 308.°, do CPP, são pois meios de prova enquanto são causas ou consequências, morais ou materiais, recordações ou sinais, do crime.

Para a pronúncia ou para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência.

No juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional (art. 2.° da DUDH e art. 27.° da CRP).

É por tal razão que quer a doutrina quer a jurisprudência vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa.

O juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, isto é, os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Vale por dizer, a final e em súmula, que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado.

Sobre o conceito de «indícios suficientes» vejam-se, com particular interesse até ao presente, as lições do Prof. Germano Marques da Silva, ob. e loc. citados, e os Acórdãos, do Tribunal Constitucional, n.º 388/99 (Diário da República, 2.ª série, de 8-11-99) e n.º 583/99 (Diário da República, 2.ª série, de 22-2-2000).

10 – Nos termos prevenidos no artigo 217.º n.º 1, do CP, pratica o crime de burla «quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial».

Estão em causa as situações em que o agente, com intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que a esta, por tal razão, pratique actos que causem a si próprio (ou a terceiro) prejuízos de carácter patrimonial.

Por extensão da previsão atinente aos crimes contra a propriedade, que apenas tutelam a propriedade em si, o bem jurídico aqui protegido consiste no património, globalmente considerado.

A burla constitui, assim, um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro.

Acresce que, embora não directamente relacionado com o critério do bem jurídico, a burla consubstancia, também, um crime material ou de resultado, que apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da esfera de disponibilidade fáctica do sujeito passivo ou da vítima e, assim, quando se dá um evento que, embora integre uma consequência da conduta do agente, se apresenta autónomo em relação a ela.

No contexto em apreço, a questão adquire, inclusive, contornos especiais: uma vez que se está perante algo que já se apelidou de crime com participação da vítima, isto é, de um delito onde a saída dos valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo titular decorre, em último termo, de um comportamento do sujeito passivo, a referida autonomização do evento reporta-se tanto à conduta do agente como à acção do próprio burlado.

O que se afirma reflecte-se na particular estrutura que o nexo de imputação objectiva reveste na órbita da infracção em análise.

O crime sub indice configura um crime de resultado parcial ou cortado, caracterizando-se por uma descontinuidade ou falta de congruência entre os correspondentes tipos subjectivo e objectivo.

Embora se exija, no âmbito do primeiro, que o agente actue com a intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (dano) da vítima.

A consumação deste tipo legal de crime não deriva, apenas, do resultado consistente na saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo titular, exigindo-se, para além disso, a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro.

A determinação do que deve entender-se por prejuízo patrimonial encontra-se condicionada pelo conteúdo que se atribua ao património enquanto bem jurídico subjacente ao tipo legal da burla.

Seja qual for a concepção de património adoptada (jurídica, económica, económico-jurídica), qualquer delas só releva desde que envolva um prejuízo de natureza económica para o sujeito passivo ou para terceiro.

Quanto à conduta, a burla constitui um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infracção.

Por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento.

Traduz-se na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.

Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso, torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo.

De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro, mais se requerendo que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais.

A consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva, tal seja, entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial.

Neste quadro, a qualquer dos momentos em que se desdobra o duplo nexo de imputação objectiva subjazem os pressupostos da chamada teoria da adequação (artigo 10.º n.º 1, do CP), encontrando-se, por isso mesmo, dependente das concretas circunstâncias do caso, aí se incluindo as características do burlado.

A questão prende-se, assim e no essencial, com o valor ou conteúdo comunicacional que a conduta do agente reveste na situação controvertida.

A colocação da tónica no aludido conteúdo comunicacional da conduta implica relevantes consequências ao nível das soluções concretas.

Assim, a afirmação da verdade pelo agente não exclui a punição a título de burla se, atento o contexto em que foi proferida, assumir o prevalente sentido de uma declaração não séria e, nessa medida, se mostrar insusceptível de colocar termo ao estado de erro em que se encontra o sujeito passivo.

Por outro lado, tendo em atenção a particular ingenuidade ou falta de resistência do burlado (por exemplo, mercê de fragilidade intelectual) admite-se a possibilidade de concluir pela idoneidade de um meio enganador via de regra incapaz de persuadir a generalidade das pessoas.

Importa, ainda referir, nesta sede, que o erro do sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente.

No plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista.

Por outro lado, a experiência de todos os dias revela que, longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de economia de esforço, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima.

Numa tal adequação de meios – adequação essa que, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o “ponto óptimo” no menos sofisticado dos procedimentos – radica, em suma, a inteligência ou astúcia que preside ao estereótipo social da burla e, sob pena de um divórcio perante as realidades da vida, tem de subjazer à fattispecie do n.º 1 do artigo 217.º.

Refira-se, por último, que só esta perspectiva se harmoniza com o entendimento pacífico de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características do concreto burlado.

De harmonia com o exposto, e na medida em que se exprime a adequação do comportamento do agente às características do caso concreto, o domínio-do-erro por parte do agente esgota o conteúdo útil da inclusão do advérbio astuciosamente no n.º 1 do artigo 217.º, do Código Penal, enquanto nota caracterizadora do modus operandi da burla: por referência ao disposto no n.º 1 do artigo 10.º, do Código Penal. Ele exprime, no contexto de um iter criminis que comporta, de permeio, a intervenção de outra pessoa (sujeito passivo), a exigência de um rigor intensificado – o mesmo que se coloca na esfera da autoria mediata fundada no domínio-do-erro – ao nível da aplicação dos critérios gerais da imputação objectiva.

A burla integra um crime doloso, não tendo lugar o seu sancionamento na forma negligente (artigos 217.º, n.º 1, e 13.º, do Código Penal).

Para que se verifique o preenchimento do tipo subjectivo não basta, porém, o dolo de causar prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro, exigindo-se, de outra parte, que o agente tenha a intenção de conseguir, através da conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio.

Vejam-se, a respeito, por mais significativos para o caso, A. M. Almeida Costa, no «Comentário Conimbricense do Código Penal», Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pp. 274 e segs. e, na jurisprudência, os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Dezembro de 2002 (Proc. 02P3722), de 20 de Março de 2003 (Proc. 03P241), de 3 de Fevereiro de 2005 (Proc. 04P4745), e de 20 de Dezembro de 2006 (Proc. 06P3383), do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de Março de 2009 (Proc. 9450/2008-5), e, do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de Fevereiro de 2012 (Proc. 918/10).

11 – O artigo 286.º n.º 1, do CPP, dispõe que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Por sua vez, o artigo 287.º n.º 2, do mesmo CPP, estabelece que o requerimento para abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº3 do artigo 283º (…)».

Nos casos, como o presente, de instrução requerida pelo assistente, ao respectivo requerimento, por força da parte final do citado artigo 287.º n.º2, é ainda aplicável o disposto no artigo 283.º n.º 2 alíneas b) e c), ambos do CPP, o que significa que tem de conter, sob pena de nulidade: (i) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (ii) a indicação das disposições legais aplicáveis.

Daí que a falta das exigências previstas na 2.ª parte do artigo 287.º, torne nulo o requerimento para abertura da instrução [artigos 287.º n.º 2 segunda parte, 283.º n.º 3, alíneas b) e c) e 118.º n.º1, do CPP].

No ponto em que o n.º 2 do citado artigo 287.º, do CPP, determina que ao requerimento do assistente é aplicável o disposto no artigo 283.º n.º 3 alíneas. b) e c), e sendo esta norma aplicável ao requerimento de abertura de instrução, este deve conter uma verdadeira acusação.

A propósito do requerimento do assistente para abertura de instrução, refere o Prof. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», Tomo III, Editorial Verbo 2009, pág.138, que o mesmo «tem de conformar uma verdadeira acusação».

Esta exigência decorre da estrutura acusatória do processo penal, consagrada pelo art. 32.º n.º 5 da Lei Fundamental, impondo que o objecto do processo seja fixado com rigor em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução.

Desta delimitação especificadora do objecto do processo deriva o estabelecido nos artigos 303.º n.º 3 e 309.º n.º 1, do CPP, que proíbem a pronúncia do arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para abertura da instrução e os factos que representem uma alteração não substancial dos alegados nesse requerimento só podem ser atendidos caso seja observado o mecanismo processual previsto no n.º1 daquele artigo 303.º.

O entendimento de que o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente deve corresponder a uma acusação é unânime na jurisprudência, salientando-se, entre muitos, os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Outubro de 2006 e de 12 de Março de 2009, o acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 3 de Dezembro de 2009, e o acórdão, do Tribunal da Relação do Porto, de 20 de Janeiro de 2010 – todos disponíveis em www.dgsi.pt –, sendo ademais de salientar ainda que o acórdão, do Tribunal Constitucional n.º 358/2004 (DR n.º 150, Série II, de 28-06-2004), não julgou inconstitucional a norma do artigo 283.º n.º 3 alíneas b) e c), do CPP, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas.

12 – No caso dos autos, como inarredávelmente sublinha o despacho revidendo, o requerimento formulado pelo assistente deixa por definir a materialidade consubstanciadora de que os arguidos o induziram em erro, o modo e o tempo de tal ocorrência, limitando-se a um arrolamento de acordos (entre assistente e arguidos), sem especificação de factualidade de que se infira o iter delitivo no sentido de, como se pretexta, os arguidos se conluiaram no sentido de levar o assistente a contrair tais obrigações contratuais, designadamente de que os arguidos C, de par com os arguidos B e A, fizeram o assistente acreditar que estes celebrariam consigo um contrato de compra e venda de determinado imóvel, por conta de cuja promessa o assistente terá entregue diversas quantias monetárias, sem que houvesse, da parte dos falados arguidos, qualquer intenção de celebrar o contrato prometido, e acreditar que o arguido C teria intenção de, como se havia obrigado, em parceria com o assistente, construir um edifício no terreno em causa.

13 – Ora, ainda que a acção dos arguidos se possa apodar de censurável, no ponto em que terão incumprido o contratado, há-de consentir-se, o domínio do erro inerente à astúcia a que se reporta o tipo-de-ilícito em causa, ainda que configure um comportamento pouco consentâneo com o dever de lealdade na prática contratual, não viola os ditames da boa-fé em sentido objectivo (cfr. A. M. Almeida Costa, ob. e loc. citados, pp. 275, 282, 293 e 300), por isso que, in casu, se não perfectibilize o desvalor ínsito ao crime de burla acusado.

14 – Assim, não pode deixar de considerar-se, como se considerou em 1.ª instância, que o requerimento do assistente para abertura da instrução não traduz a necessária nitidez de um iter delitivo.

Ora, como se salienta, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Março de 2009, «a falta de indicação no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório. Ou seja, nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. Haverá, assim, em consequência, que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.».

Como refere Vinício Ribeiro, em «Código de Processo Penal – Notas e Comentários», Coimbra Editora, 2.ª edição, 2011, pág. 794, «o não descrever factos, ou descrever factos que não constituem crime, não pode deixar de conduzir […] à inadmissibilidade legal do RAI [requerimento para abertura da instrução] do assistente por falta de requisitos legais».

Neste sentido, vd. os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Outubro de 2003 (Proc. 2608/03-3) e de 7 de Dezembro de 2005 (Proc. 1008/05) e, deste Tribunal da Relação de Évora, por mais recentes e significativos, os acórdãos de 12 de Abril de 2011 (Proc. 700/06), de 19 de Março de 2013 (Proc. 590/11), e de 25 de Junho de 2013 (Proc. 254/11) – disponíveis, como os mais citados sem menção de origem, em www.dgsi.pt.

Termos em que, sem desdouro para o douto esforço argumentativo do assistente, o recurso não pode lograr provimento.

15 – Do exposto se conclui que deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, nos termos prevenidos no artigo 287.º n.º 3, do CPP, o requerimento do assistente para abertura da instrução que deixe de arrolar a totalidade dos factos consubstanciadores do crime pelo qual pretende ver o arguido pronunciado, sob pena de, em infração regras de economia e utilidade processuais, se fazer iniciar uma instrução que, à partida, inarredavelmente, só se pode ter por inconsequente.
16 – O decaimento no recurso impõe a condenação do assistente-recorrente em taxa de justiça – artigo 515.º n.º 1, alínea b), do CPP.

III
17 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: (a) negar provimento ao recurso interposto pelo assistente, JR; (b) condenar o assistente na taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) unidades de conta.

Évora, 11 de Março de 2014

António Manuel Clemente Lima (relator) – Alberto João Borges (adjunto)