Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
23/12.7TAPRL.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: RECONHECIMENTO DO ARGUIDO EM JULGAMENTO
BURLA QUALIFICADA
CONDUTA ASTUCIOSA
Data do Acordão: 07/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A generalidade da jurisprudência aceita a validade dos reconhecimentos atípicos ou informais, efetuados fora dos pressupostos e requisitos estabelecidos para o reconhecimento em sentido próprio, a serem valorados de acordo com o princípio da livre apreciação da prova quando ocorram em audiência de julgamento.

II - A burla é um crime de execução vinculada na medida em que o modo de o agente causar o resultado se encontra descrito no tipo. Essa execução vinculada traduz-se na utilização de um meio tendente a induzir outra pessoa num erro ou engano (entendido o primeiro como falsa ou nenhuma representação da realidade concreta que funciona como vício do consentimento da vítima, e correspondendo o segundo à simples mentira) - provocado pelo agente através de palavras, gestos ou actos concludentes -, que, por seu turno, leva a vítima a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou de terceiro(s).

III – Não é necessário para o preenchimento do elemento do tipo conduta astuciosa que o agente produza uma encenação dirigida a facilitar o convencimento do sujeito passivo, bastando que desenvolva uma conduta adequada – aquela que, perante as particulares circunstâncias com que se depare, se mostre necessária - a induzir em erro a concreta pessoa por ele visada e determiná-la à prática dos actos causadores de prejuízo patrimonial.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. Relatório

No Tribunal Judicial de Portel, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido H, devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu condená-lo, pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelos arts. 217º e 218º do C. Penal, na pena de 420 dias de multa à taxa diária de 7,5€.

Inconformado com o acórdão, dele interpôs recurso o arguido, pugnando pela sua revogação e substituição por decisão que o absolva, para o que apresentou as seguintes conclusões:

A) No caso dos presentes autos não se verifica o crime de burla, porquanto, sempre falta o elemento subjectivo do tipo de crime. Ainda que tivesse sido o arguido a levantar o vinho, que não foi, tal situação não se afigura como dolosos, quer para efeitos penais quer para efeitos civilísticos, as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes do comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções.

B) O empregado do denunciante, que até foi Oficial de Justiça conforme referiu o empregador, tinha ordens expressas de que o vinho apenas poderia ser carregado após o seu pagamento, pelo que, mandava o mais elementar dever de diligência e bom senso que tivesse por qualquer meio contactado com o empregador a fim de confirmar se assim ficara acordado.

Há fraude penal:
- quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico:
- quando se verifica dano social e não puramente individual com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;
- quando se verifica uma violação da ordem Jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena:
- quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má-fé. mise-en-scène para iludir:
- quando há uma impossibilidade de se reparar o dano; sublinhados nossos.....

C) E, desde logo, para que houvesse por parte do arguido a intenção ou propósito ab initio em não prestar o equivalente económico, teria que ficar provado que o arguido adquirira vinho já em duas ocasiões [Janeiro e Fevereiro 2012], conforme consta na acusação, mas que em sede de julgamento e conforme decorreu dos depoimentos de denunciante e testemunha Alface, tal não aconteceu - pontos l e 2 da matéria de facto dada como provada sem que tivesse sido feita prova dessas anteriores aquisições para ganhar a confiança do queixoso.

D) No entanto, conforme decorre das declarações do queixoso: no dia 18 de Abril de 2012 - quarta-feira - ele (Alface) esteve comigo nesse dia e assistiu à conversa e assistiu insistentemente que ele não podia levar o vinho, o produto, sem o dinheiro. Que disse ao arguido: não tem problema, quando tiver o dinheiro leva o produto. Cfr. 16'00" a 16'45".

Pelo que se terá que concluir que o arguido, afinal, nunca ganhou a confiança do dono do vinho.

E) A prova por reconhecimento com resguardo sempre terá que ser declara nula, por não terem sido observados os pressupostos legais elencados no Art.º 147º, do CPP, violando a douta sentença o disposto no referido artigo.

F) Dois dos três elementos que integraram a fila para reconhecimento não apresentam a mínima semelhança com o arguido, conforme o MMª Sr. Juiz a quo pode verificar na audiência de julgamento onde estiveram presentes.

Pois o que resultou e é indesmentível da apresentação desses dois senhores Militares da GNR em Tribunal, foi que o Sr. AF, apesar de aparentar a mesma idade que o Arguido, apresenta calvície e o Arguido não, para além disso, tem pelo menos mais 15 cm. de altura, isto é, cerca de l,80m relativamente ao Arguido, que mede l,65m e pesará seguramente uns 30 Kgs. a mais do que o Arguido.

Relativamente ao outro senhor Militar da GNR, o 2- Sargento FG, é mais novo do que o Arguido pelo menos 20 anos, é magro e o Arguido já apresenta barriga e mede seguramente pelo menos mais 20 cm. de altura do que o Arguido, pois terá l,85m de altura.

Isto para além de dois desses elementos serem Militares da GNR e que desempenhavam as suas funções no posto de Portel, desde há alguns anos e, por isso, conhecidos na região.

G) Toda a matéria constante na acusação foi dada como provada na douta sentença, aliás, é uma perfeita e integral cópia dessa mesma acusação, com excepção de que o valor das alegadas cerca de 1400 embalagens de cinco litros de vinho não terá sido negociado, como consta na acusação, pelo valor global de € 7 630,00, mas sim por € 7 000,00. Já com o IVA incluído ou sem IVA incluído, ficou por provar tão relevante facto.

H) Sendo certo que o denunciante, relativamente a quem, quando e como se processou o carregamento do vinho, sabe ou conhece apenas aquilo que a testemunha Alface lhe relatou, nada mais.

I) Os depoimentos do queixoso dois anos após a alegada ocorrência dos factos apresenta-se modificado em relação à denúncia que apresentou pouco tempo após a ocorrência dos factos que alegadamente ocorreram, de igual modo acontece com o depoimento da testemunha Alface

J) No n.º 6 da acusação refere-se e dá-se por provado no correspondente n.º 6 da sentença, que:

No dia 20 de Abril, pelas 09,00, o arguido H deslocou-se até à morada de Alface, tendo-lhe dito: "o negócio está feito, na sexta-feira à tarde pago o vinho" tendo o Alface cedido as 1400 embalagens de cinco litros de vinho ao arguido, que, naquele dia, as retirou dali para local não concretamente apurado.

Bastaria consultar o calendário do ano de 2012, para se verificar sem margem para dúvidas que afinal o dia 20 de Abril de 2012 coincidiu e foi, precisamente, numa sexta-feira. Então pagaria na sexta-feira que é precisamente o dia da conversa e do início dos alegados carregamentos. É ininteligível, incompreensível e não se mostra provado como e quando alegadamente o vinho foi carregado.

Esta questão, conjugada com os factos dados por provados nos n.º l e 2 da sentença, os quais, de igual modo, não se alcançam nem se podem sequer extrair da prova testemunhal trazida na audiência de julgamento.

Estas questões parecem ser relevantíssimas para a boa decisão da causa.

K) Inicialmente, disse-se que as l400 embalagens de vinho haviam sido vendidas ao preço de € 5,45/cada, quando quem adquirisse apenas 10 caixas pagaria apenas € 5,00 por cada embalagem. Após a contestação do arguido, já se veio dizer que afinal o preço era igual, ou seja, € 5,00 por cada bag in box.

L) Depois, importaria e não poderia deixar de se fixar e provar como e quando é que o arguido carregou o vinho. Na verdade, apenas após a apresentação da contestação e a prova da impossibilidade de o vinho ter sido carregado no mesmo dia 20 de Abril de 2012 e em duas ocasiões - uma de manhã, pelas 9,00h e a outra à tarde em que o arguido alegadamente terá saído do local de carregamento pelas 18,00 desse dia 20 de Abril.

M) Ora, tal não se alcança dos factos dados como provados, pois era impossível que alguém conseguisse transportar os 7 000 lts. de vinho acondicionado em bag in boxes em dois ou mesmo em três carregamentos, conforme se veio dizer na sentença. As incontornáveis leis da física assim o ditam. E como diz o povo, "seria meter o Rossio na Betesga". É impossível aquela praça caber naquela que é tida como a mais pequena rua de Lisboa.

N) Quanto ao n.º l e n.º 2 dos factos dados como provados, não foi apresentado nos autos qualquer documento (factura, guia de transporte ou outro) comprovativo de que essas vendas, na verdade, aconteceram.

O) As contradições nos depoimentos do denunciante e da testemunha Alface são por demais evidentes, assim como, entre a denúncia e as declarações da testemunha, conforme supra entre 42º e 60º da motivação, se afirma e revela das transcrições dos depoimentos de ambos que ali constam.

P) A prova produzida mostra-se insuficiente para que se possa condenar o arguido com o mínimo de certeza constitucional e legalmente exigido, à luz do princípio da presunção de inocência articulado com o princípio de in dúbio pro reo. Violando-se o deste modo o disposto no Art.º 32º, n.º 2, da CRP.

Q) Ao alterar e dar como provado factos diferentes daqueles que constam na acusação, nomeadamente, quanto às datas, viola a sentença o princípio do acusatório plasmado no n.º 5, do Art.º 32º, da CRP.

R) Pois:
1 - Considera o Arguido incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto:
- 1, 2, 4, 6, 7, 8 e 9, da sentença;
2 - As provas que impõem decisão diversa daquela de que ora recorre:

Não existindo nos autos qualquer prova documental quanto às alegadas transacções, claramente se verifica que existem:

- Contradições insanáveis entre os depoimentos prestados pela testemunha António Alface em sede audiência e as declarações do queixoso que sempre falou pelo que aquele lhe relatava, conforme supra ficou explanado e transcrito;

3 - Ao acusador impõe-se que faça prova plena e cabal dos factos constantes na sua acusação e, não tendo tal ocorrido em sede própria, ao introduzir-se na sentença recorrida uma cópia da acusação com algumas mas importantíssimas alterações, que visam corrigir factos reveladores das incongruências dos depoimentos sem que os mesmos tivessem sido devida e legalmente comunicados ao arguido, verifica-se a violação do princípio do acusatório – n.º 5, do Art.º 32º, da CRP.

Na acusação e nos factos provados n.º l e 2 da sentença, foram os mesmos dados como provados, a prova testemunhal e a falta de prova documental impunha decisão diversa e no sentido de Não Provados.

De igual modo quanto à alteração introduzida no ponto 4 da sentença alterando o valor de e 7 630,00 para € 7 000,00, desconhece-se porquê. Apenas poderá ter sido porque o arguido salientou na sua contestação este ponto incontornável e revelador da trama que foi montada. Na aquisição de 10 embalagens as mesmas eram vendidas por € 5,00/cada e na aquisição de 1400 (ou 1700 conforme também ficou dito na audiência), era comercializado ao preço de € 5,45/cada.

Sempre com o devido respeito, não se compreende que o MMº Sr. Juiz tivesse procedido à alteração desse valor, atentas as declarações prestadas em audiência.

E o ponto 6 dos factos dados como provados na sentença, que corresponde literalmente e é uma cópia fidedigna do ponto 7 da acusação, dos depoimentos ficou sem se saber com a segurança legalmente exigida em quantos carregamentos e em que dias foi efectivamente levantado ou carregado o vinho.

Na acusação consta que foi em duas vezes, ambas no dia 20 de Abril (a sexta-feira em que alegadamente o vinho seria pago); na sentença fixou-se que foi nessa mesma sexta-feira, mas agora já em três carregamentos; dos depoimentos após a contestação do arguido, o denunciante já vem dizer que foi na quarta, na quinta e na sexta-feira, ou seja, dias 18, 19 e 20 de Abril. Sendo certo que no dia 18 de Abril, conforme foi afirmado pelo denunciante e pela testemunha Alface encontravam-se os três juntos - denunciante, testemunha e arguido; mas a testemunha Alface referiu que tal teria acontecido, em pelo menos quatro ou cinco carregamentos.

Bom, em 4 ou 5 carregamentos o veículo indicado já poderia suportar a carga e o volume de todas as embalagens. Mas em dois carregamentos e mesmo em três conforme se dá por provado na sentença, sempre seria e é impossível, conforme o arguido alegou na sua já supra aludida e referenciada contestação.

Atenta a prova produzida, sempre a sentença de que se recorre teria que decretar a absolvição do arguido.

S) Decorre ainda da sentença que o facto de o arguido, que conta 58 anos de idade e se encontrar pela primeira vez em Tribunal (ser primário), milita a seu desfavor em termos de circunstância agravante da pena.

T) Pelo que antecede, foram violados na douta sentença recorrida os seguintes preceitos:
- N.º 2 e 5, do Artº 32º, da CRP; Art.º 127º, 147º e 410º, n.º 2, als. a) e c), do CPP e 217º e 218º do CP.

O recurso foi admitido.

Na resposta, o MºPº - considerando que o elemento subjectivo do crime de burla decorre inquestionavelmente “do facto do arguido ter encetado vários contactos comerciais preliminares com o denunciante e testemunhas e sobretudo de nunca se ter identificado verdadeiramente, antes afirmando chamar-se “JOSÉ ANTÓNIO”, ser natural de Estremoz e estar ligado à empresa “T… SOCIEDADE DE VINHOS S.A.”, tudo factos que se veio a comprovar não corresponderem à realidade”; que é irrelevante a alegação da nulidade do reconhecimento enquanto meio de prova na medida em que “por um lado, o mesmo foi declarado nulo pelo Mmo. Juiz e que, por outro, o mesmo não foi usado para fundamentar de qualquer forma a decisão recorrida”; e que também nenhuma razão assiste ao recorrente no que diz respeito ao erro na apreciação da prova “uma vez que os depoimentos das várias testemunhas foram coincidentes e coerentes entre se em todas as questões fundamentais para o preenchimento do tipo de crime de burla” - defendeu a manutenção da decisão recorrida e a improcedência do recurso.

Nesta Relação, o Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no qual, considerando que a decisão recorrida fez uma correcta análise da matéria de facto tida como assente e da respectiva subsunção jurídica e que em causa está apenas uma mera discordância do recorrente acerca da forma como o tribunal recorrido, perante os meios de prova produzidos, construiu a sua convicção, e aderindo à argumentação expendida na resposta do MºPº na 1ª instância em particular quando enfatiza que a visão subjectiva do recorrente quanto à apreciação e valorização da prova não afasta a convicção que o tribunal a quo formou sobre a factualidade que está devidamente motivada e fundamentada e não permite ou impõe outra decisão, também se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., tendo o recorrente apresentado resposta, na qual veio reafirmar a sua pretensão recursiva, retomando as incongruências que já antes havia apontado à decisão recorrida.

Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre decidir.

2. Fundamentação
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos:

1) Em data não concretamente do mês de Janeiro de 2012, quando se encontrava no café “A FONTE” sito na localidade de Santana, em Portel, o arguido H, apresentando-se com o nome de “JOSÉ ANTÓNIO”, entrou em diálogo com Alface, empregado de FS, negociando entre si a compra e venda de vinho da marca “ALQUEIRE”, tendo o arguido comprado dez boxes pelo valor de €50,00.

2) Em data não concretamente apurada do mês de Fevereiro de 2012, o arguido H negociou novamente com Alface a compra e venda de vinho da marca “ALQUEIRE”, tendo o arguido comprado dez boxes pelo valor de €50,00.

3) Em inícios do mês de Abril de 2012, o arguido H entrou novamente em contacto com Alface, propondo-lhe comprar a totalidade do vinho que este tivesse disponível, altura pela qual Alface facultou ao arguido o contacto de FS por forma a que estes pudessem acertar os termos do negócio.

4) O arguido H, apresentando-se com o nome de “JOSÉ ANTÓNIO”, natural de Estremoz e ligado à empresa “T. SOCIEDADE DE VINHOS S.A.”, entrou em contacto com FS, tendo ambos, no dia 18 de Abril de 2012 e quando se encontravam à porta da morada de Alface sita em Santana, Portel, acordado a compra e venda de 1400 embalagens de cinco litros de vinho, pelo valor total de €7000,00.

5) Nessa altura os negociantes combinaram que o arguido levantaria o vinho e pagaria o respectivo preço.

6) No dia 20 de Abril de 2012, pelas 09h00, o arguido H deslocou-se até à morada de Alface, tendo-lhe dito: “O negócio está feito, na sexta-feira à tarde pago o vinho” tendo Alface cedido as 1400 embalagens de cinco litros de vinho ao arguido, que, naquele dia, as retirou dali para local não concretamente apurado.

7) O arguido H, agiu da forma supra descrita, induzindo em erro Alface e FS, fazendo-os acreditar que se chamava “JOSÉ ANTÓNIO” e que pretendia adquirir 1400 embalagens de cinco litros de vinho, pelo valor total de €7000,00.

8) O arguido H, agiu de forma voluntária, livre e consciente, com o propósito de fazer com que Alface e FS lhe entregassem 1400 embalagens de cinco litros de vinho, sem que para tal recebessem a contrapartida negociada, o que conseguiu.

9) O arguido H sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Condições socioeconómicas do arguido
10) O arguido é comerciante e aufere a quantia de €500 a €600 mensais nas feiras que frequenta.
11) O arguido trabalha aos sábados e domingos.
12) O arguido frequenta a feira de Moura e Portel.
13) O arguido vive em casa da filha e não paga renda.
14) O arguido sabe ler e escrever.
15) O arguido não tem qualquer dívida bancária.
16) O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Quanto a factos não provados, consignou-se não se ter provado, com relevo para a decisão da causa, que:

1) Os negociantes combinaram que levantaria o vinho no dia seguinte.

2) No dia 19 de Abril de 2012, o arguido H encontrou-se com FS, tendo em tal altura lhe dito que não podia levar o vinho e que o viria buscar na semana seguinte, altura pela qual pagaria o preço acordado pelo negócio.

3) Alface trabalhou para o ofendido FS durante 20 anos.

A motivação de facto foi explicada da seguinte forma:

Da nulidade probatória
De acordo com artigo 147.º, n.º 1 do Código de Processo Penal: “1 - Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.”

Se a identificação não for cabal, nos termos do n.º 2 do citado normativo, “afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.

Dispõe o n.º 3 “Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.”, e o n.º 4 “As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto.”

A violação destes trâmites é sancionada com nulidade no n.º 7, ao estatuir que “O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.”.

Com a Lei 48/2007, 29 de Agosto, o legislador ampliou as formalidades do reconhecimento a todas as fases processuais, com a nova redacção do n.º 7.

Só são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal).

Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.

Da inserção sistemática dos arts 147º e 148º, do CPP, entre os meios de prova autónoma e expressamente regulados na lei de processo e do seu confronto com o regime da prova testemunhal e demais prova por declarações, máxime o estatuído nos arts 345º nº3, 347º nº2, 348º nº 7 e 138º nº4, todos do CPP, que a nossa lei processual penal actual prevê e admite, fora do quadro dos pressupostos e requisitos essenciais ao conceito de reconhecimento em sentido próprio, os também chamados reconhecimentos atípicos ou informais, valoráveis no âmbito da prova testemunhal e demais prova pessoal, quando tenham lugar em audiência de julgamento. – cf. Ac. R.E. 8-01-2013, in www.dgsi.pt.

Em sede de contestação, o arguido invoca que (i) não há qualquer registo de reconhecimento por descrição da fisionomia do arguido, e se foram junta fotografias de outros indivíduos; e, (ii) a colocação do arguido em fila ao lado de militares da GNR viola o disposto no artigo 147.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, na medida em que serão militares conhecidos na área.

Das três modalidades de reconhecimento (por descrição, presencial, fotografia e por resguardo) assentam o estrito cumprimento do artigo 147.º do Código de Processo Penal.

Em primeira linha, o reconhecimento é efectuado por descrição (artigo 147.º, n.º 1), e, se a identificação não for cabal, procede-se ao reconhecimento presencial (artigo 147.º, n.º 2).

O reconhecimento por resguardo efectua-se quando a testemunha possa ser intimidada ou perturbada pela diligência.

O reconhecimento por fotografia só é valido a ele lhe seguir o reconhecimento presencial nos termos do artigo 147.º, n.º 3 ex vi artigo 147º, n.º 5 do Código de Processo Penal.

Conforme fls. 80 e 83, procedeu-se ao reconhecimento fotográfico do arguido sem que se encontrem juntas aos autos as fotografias exibidas às testemunhas e que estas souberam identificar como sendo do arguido.

Não existe qualquer descrição das características físicas do imputado arguido pelas testemunhas que realizaram o reconhecimento fotográfico. Apenas que se procedeu ao reconhecimento através de uma fotografia de um individuo do sexo masculino.

Nem nas inquirições resulta qualquer característica física que descreve o imputado reconhecendo.

A fls. 159, no reconhecimento presencial, descreveram-se as características do imputado arguido (cerca de 50 anos, cabelo curto, estatura baixa sem barba / bigode) e filaram-se AF, FB e JV, que apesar da referência clara a H igualmente filado, não se descreveram as características físicas que levaram à selecção dos reconhecendos.

O meio de obtenção de prova – reconhecimento por fotografia – não foi precedido de um reconhecimento por descrição (das características físicas do ora arguido) – nenhuma das testemunhas descreveu o arguido - nem constam do auto a apresentação de outras fotografias para além da remetida com a carta precatória.

Aliás, do auto apenas há uma fotografia exibida às testemunhas.

Contudo, conforme auto de reconhecimento de fls. 159, realizou o reconhecimento por descrição e ao reconhecimento por resguardo em respeito das formalidades constantes do artigo 147.º do Código de Processo Penal.

A falta de junção das fotografias dos reconhecendos intervenientes no reconhecimento por resguardo, tal não inviabiliza o aproveitamento da prova recolhida porquanto a falta de junção das fotografias depende do respectivo consentimento.

Sem o consentimento, de acordo com o artigo 147.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, não podem as fotografias serem juntas aos autos.

Assim, só o reconhecimento por fotografias por falta de apresentação de fotografias que não à do imputado arguido remetido pela carta precatória encontra-se inquinado.

Pelo exposto, julga-se nula a prova recolhida por reconhecimento fotográfico a fls. 80 e 83.
*
O Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica da prova produzida em audiência que derivou, essencialmente, das declarações prestadas pelo arguido e dos depoimentos das testemunhas inquiridas.

As declarações do arguido, com óbvio interesse no desfecho da presente acção, são contraditórias relativamente das testemunhas indicadas na acusação pública.

O arguido adoptou uma versão de negação dos factos constantes do despacho acusatório: declarou não conhecer os proprietários do vinho; declarou que não comprovou o vinho; declarou que não faz comércio de vinho. Ou seja, o arguido afastou-se de qualquer intervenção nos factos em discussão.

Dos depoimentos prestados pelas testemunhas FS e NM, a convicção probatória do tribunal assentou na existência de relações de intermediação entre o arguido e FS; aqueles descreveram vários encontros com o arguido após ter sido abordado telefonicamente pelo arguido.

O arguido contactou FS para comprar vinho, uma vez que teve conhecimento de existia sobras de vinho, e para esse efeito almoçou com FS em Almeirim, que sempre conheceu o arguido como José António.

A testemunha NM corroborou o depoimento de FS que confirmou as negociações com o arguido.

Saliente-se que estas duas testemunhas souberam, após instadas a tal, identificar o arguido, não obstante, este ter-se apresentado como José António, oriundo da zona de Estremoz.

Efectivamente, a única pessoa – Alface - com um depoimento desprendido do presente litígio, logrou em convencer este tribunal quanto à intervenção do arguido nos factos objecto do julgamento.

Esta testemunha conheceu o arguido com o nome “Zé António” que na primeira vez foi abordado no café na Zona de Santana e disse que estava lá para comprar vinho que aquele vendeu porque tinha autorização do dono.

Posteriormente, em termos bastantes enxutos, a testemunha relatou a segunda abordagem entre o arguido e o dono do sobrante (FS), contudo, não presenciou os termos do negócio, apesar de ter estado presente durante parte das negociações, teve de se deslocar a casa.

A testemunha foi peremptória, e por isso credível, em esclarecer que não ouviu que o arguido de levantar e pagar o vinho. Na versão apresentada pela testemunha, o arguido disse lhe que já havia combinado tudo com o dono do sobrante e que pagaria na sexta-feira, e nessa senda, procedeu a três carregamentos de 1400 boxes, após ter transmitido que o negócio estava apalavrado e concluído.

Ficou assente pelo contributo da testemunha FS que o arguido – à altura José António e agora H – apenas poderia levar o vinho mediante pagamento, após lhe ter vendido algumas game boxes.

A convicção do tribunal é no sentido de que o arguido iniciou o primeiro contacto com FS, por intermédio de Alface, ao comprar vinho de marca Alqueire (dez boxes). Perante a disponibilidade do ofendido em vender vinho sobrante, o arguido diligenciou pela sedimentação dos contactos com o ofendido, fazendo-se apresentar como comerciante de vinho e ganho a confiança do ofendido como parceiro de negócio. Ficou premente nas declaração do ofendido a sua necessidade em vender aquele vinho.

O tribunal dá como provada a factualidade decorrente dos pontos 1 e 2 dos factos provados em face do depoimento de Alface, pela forma como transpareceu um verdeiro conhecimento objectivo dos factos a que foi instado. Esta testemunha foi particularmente relevante por ser interveniente no negócio e na concretização do arguido, mas sobretudo, por não ter qualquer interesse com os interesses subjacentes ao julgamento.

A prova relativamente à compra do vinho de dez boxe pelo valor de €50, o tribunal assentou nos depoimentos prestados pela testemunha FS e Alface.

Decorre da testemunha FS e NM, a entrada em contacto pelo arguido autonomeado José António para acertar os termos do negócio.

Relativamente ao exposto em 4 dos factos provados, o tribunal derivou a sua convicção probatória das declarações prestadas por FS e NM, sobre a identificação do arguido como José António, e por Alface que asseverou o encontro em Santana para acertarem os termos do negócio.

A convicção probanda relativamente aos termos do negócio adveio do depoimento prestado por FS, conhecedor e revelador das comunicações tidas com o arguido, aliás que foram confirmadas por Alface, termos em que se provou que os negociantes combinaram que o arguido levantaria o vinho mediante o pagamento do preço.

Sobre a deslocação a Santana e comunicação a Alface de que o negócio estaria concluído o tribunal firmou a sua convicção essencialmente perante o depoimento irrepreensível de Alface pela lucidez, isenção e objectividade como imputou os factos ao arguido por si reconhecido e que este se aproveitou do seu desconhecimento para lhe transmitir a conclusão do negócio com o arguido, algo que não sucedera, pelo menos, na forma como o arguido dissera.

A indução em erro teve detrimento probatório quanto à pessoa de FS, porquanto não ficou probatoriamente delimitado a condução dos negócios na crença de que pretendia adquirir 1400 embalagens de cinco litros de vinho pelo valor de €5, mas fez com que a testemunha Alface que iria adquirir o vinho pelo preço acordado com FS.

A prova quanto ao elemento subjectivo, em face das regras de experiencia comum, tem por base da conduta prévia do arguido que se faz passar por outra pessoa, contacta um funcionário para entrar em negócios com empregador e aproveita da falta de conhecimento do empregado para proceder ao carregamento do vinho objecto das negociações afirmando que o negócio estava concluído, ou seja, mercadoria e preços fixados.

Preconiza o art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. O princípio da presunção da inocência está ínsito na Declaração Universal dos Direitos do Homem (“toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas” – art. 11.º, n.º 1); do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (“qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida” – art. 14.º, n.º 2) e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada” – art. 6.º, n.º 2).

Para além da prova directa do facto, a apreciação do tribunal pode assentar em prova indirecta ou indiciária, a qual se faz valer através de presunções. Por conseguinte, sendo permitido em processo penal o recurso a prova por presunções, porque não proibida por lei (art. 125.º do CPP), “as normas dos artigos 126.º e 127.º do CPP podem ser interpretadas de modo a permitir que possam ser provados factos sem que exista uma prova directa deles. Basta a prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo”. No recurso a presunções simples ou naturais (art. 349.º do Código Civil), parte-se de um facto conhecido (base da presunção), para concluir presuntivamente pela existência de um facto desconhecido (facto presumido), servindo-se para o efeito dos conhecimentos e das regras da experiência da vida, dos juízos correntes de probabilidade, e dos princípios da lógica. “As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas; são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a exactidão no caso concreto”. Ou seja, na dúvida, funcionará o princípio in dubio pro reo. O princípio da presunção da inocência dispõe que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (cfr. art.º 32.º, n.º 2, da C.R.P. e art.º 6, § 2º, da CEDH).

O princípio rege a valoração da prova pela autoridade judiciária, isto é, o processo de formação da convicção sobre os meios de prova, mas também tem consequências importantes em outras decisões tomadas em processo penal e fora dele – art.º 127.º do C.P.P. – veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, in “Código de Processo Penal Anotado”, UCP, 2009, pág. 52.

Um non liquet na questão da prova tem de ser sempre, por imposição das regras do processo, valorado em favor do arguido, decorrendo do principio de presunção de inocência a ideia de que a impunidade de um culpado é mais tolerável do que a condenação de um inocente (Cavaleiro Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, II, reimp., Universidade Católica, Lisboa, 1981, pág. 310, citado no Ac. TC nº 491/00 acessível em www.tribunalconstitucional.pt), em resultado da interpenetração do “postulado processual geral da exigência dirigida ao juiz de decidir sempre e do postulado processual criminal que tem por incondicionalmente inadmissível uma condenação penal em que não se tenha “convencido” o réu da sua efectiva responsabilidade e culpabilidade” (CASTANHEIRA NEVES, Sumários de processo criminal, policop., Coimbra, 1968, págs. 55-56, citado no Ac. TC nº 491/00).

O princípio in dubio pro reo, para além desta sua importante função ao nível do ónus da prova, enquanto corolário do princípio da presunção de inocência do arguido, elucida-nos também acerca do modo como o julgador deve valorar a prova feita e decidir com base nela, procurando responder ao problema da dúvida sobre o facto, visto que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet.

Efectivamente, “a prova para a condenação tem de ser plena, enquanto a dúvida ou incerteza impõe a absolvição. É essa a consequência da presunção de inocência, que a razão material impõe, e a Constituição elevou a princípio constitucional” (CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, Vol. I, p. 212). Assim, “se o juiz, finda a produção de prova num processo, não consegue superar alguma dúvida, não consegue ter a certeza se o arguido cometeu o crime ou não, ou se os pressupostos de facto de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, ou de uma circunstância agravante ou atenuante, se verificaram realmente, então ele deve decidir em favor do arguido, ‘in dubio pro reo’. Esta regra resulta directamente da presunção constitucional de inocência do arguido consagrado no art. 32.º, n.º 2, da Lei Fundamental – toda a actividade de produção de prova é, justamente, a tentativa de ilidir essa mesma presunção. É um princípio fundamental do nosso direito processual penal” (TERESA PIZARRO BELEZA, Apontamentos de Direito Processual Penal, Vol. II, p. 149).

E, nesta medida, exposta a factualidade tida por assente, importa perscrutar as razões que o arguido sustenta na sua contestação.

Entende o arguido que as condições dos negócios não são razoáveis em função do diferencial do preço na compra de dez embalagens de sobrante ao preço de €5 e do preço na compra de mil e quatrocentas embalagens.

Independentemente do valor fixado, importa no caso em apreço, o expediente que o arguido utilizou ao fazer-se passar por outra pessoa e ter comunicado a conclusão de um negócio, quando assim não era na realidade.

A incompletude na identificação do aludido José António não é compatível com as regras de experiencia comum, uma vez que o ofendido é empresário de longa experiencia e que não pediu a completa identificação do arguido nem a sua identificação fiscal.

De facto, as regras do giro empresarial e comercial impõem a correcta identificação fiscal dos parceiros comerciais, mas tal falta de identificação não é, em nosso entender, motivo suficiente para afastar a relevância da conduta imputada (e provada) ao arguido.

Ficou premente na prova que a testemunha Alface é um senhor de idade e aposentado, tendo o arguido beneficiado do desconhecimento daquele sobre o negócio com FS, bem como a idade e confiança que o arguido fez crer que tinha por parte do empregador. O mesmo se diga ao carregamento invocado pelo arguido na sua contestação, porquanto o que releva é a conduta interpessoal de ludibriar Alface.

As restantes testemunhas indicadas na contestação mostraram-se parciais e com uma fonte de conhecimento insusceptível de suportar a convicção do tribunal, cujo os depoimentos singram por genéricos quanto à localização do arguido no período objecto dos autos e com uma ânsia em justificar que o arguido não transaccionou o vinho.

Nas condições socioeconómicas do arguido, valeu-se da declaração do arguido que se mostraram credíveis, não depostas por qualquer outro elemento probatório.

A factualidade atinente aos antecedentes criminais resultaram da análise dos certificados de registo criminal junto aos autos.

A existência de factos não provados resulta de, sobre eles, não ter sido produzida qualquer prova ou a escassa prova produzida se ter revelado vaga e impressiva, suscitando no Tribunal sérias dúvidas quanto à sua efectiva verificação.

3. O Direito

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, (e excluídas as que, não sendo de conhecimento oficioso, para elas não foram, de todo em todo, transportadas[3]) são as seguintes as questões suscitadas:

- ausência do elemento subjectivo do crime;
- nulidade da prova por reconhecimento com resguardo;
- erro de julgamento quanto aos pontos 1., 2., 4., 6., 7., 8. e 9. dos factos provados, insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, violação do princípio in dubio pro reo e do princípio do acusatório;

Iremos conhecer das questões enunciadas pela sua ordem de precedência lógica.

3.1. O recorrente sustenta que a prova por reconhecimento deve ser declarada nula por inobservância dos pressupostos legais elencados no art. 147º do C.P.P., devido à ausência de semelhanças físicas entre o recorrente e dois dos três elementos que integraram a fila para reconhecimento e ao facto de se tratar de militares da GNR que há alguns anos desempenhavam funções no posto de Portel, sendo por isso conhecidos na região.

A questão colocada pelo recorrente resulta, porém, totalmente inócua pelas razões que a seguir vão ser indicadas.

Conferida a sentença recorrida, verificamos que a prova recolhida nos autos por reconhecimento fotográfico (diligências nas quais intervieram, como reconhecedores as testemunhas FR e Alface e o ofendido FS - cfr. fls. 80, 83 e 150) foi declarada nula, mas outro tanto não sucedeu com o reconhecimento por resguardo cujo auto consta de fls. 159-160 e no qual apenas intervieram como reconhecedores as mesmas duas testemunhas acima referidas.

Mesmo na hipótese de se questionar a validade deste segundo reconhecimento, certo é que, em audiência de julgamento, como se colhe da motivação da decisão de facto e ainda mais impressivamente da gravação (a cuja audição procedemos para decisão de outro fundamento do recurso que adiante se apreciará) não só estas duas testemunhas e o ofendido identificaram positiva e seguramente o recorrente como tratando-se do indivíduo que afirmava chamar-se “José António” e logrou induzir em erro o Alface, permitindo que este o deixasse levar o vinho sem proceder ao respectivo pagamento, como outro tanto o fez a testemunha NM, que afirmou tê-lo conhecido através do ofendido e ter estado com ele a almoçar. Assim, e mais que não fosse, pelo menos esta testemunha não sofreu qualquer influência ou sugestão prévia que a pudesse ter condicionado a fazer tal reconhecimento. O simples facto de o recorrente se encontrar posicionado na sala de audiências no lugar reservado ao arguido não foi considerado como bastante, nem só por si o é, para lançar dúvidas cerca da verosimilhança do reconhecimento efectuado, existindo ademais um conjunto de circunstâncias que lhe conferem reforçado suporte, desde o facto de haver uma unanimidade assertiva entre todos quantos lidaram com o tal “José António” no período em que os factos ocorreram até à circunstância de a verdadeira identidade desse indivíduo ter sido descoberta, como foi referido pelo ofendido, através da viatura em que se fazia transportar, registada em nome da filha do recorrente, para além o comportamento evasivo que este adoptou quando o ofendido e a testemunha NM o foram procurar à sua residência e o “deslize” da testemunha JS, quando afirmou que o recorrente anda com a esposa nos mercados “a vender roupas, vinhos e coisas assim.…”.

Assim sendo, como quer que se perspective a questão, e sendo certo que a generalidade da jurisprudência aceita a validade dos reconhecimentos atípicos ou informais, efectuados fora dos pressupostos e requisitos estabelecidos para o reconhecimento em sentido próprio, a serem valorados de acordo com o princípio da livre apreciação da prova quando ocorram em audiência de julgamento[4], inexiste qualquer fundamento para afastar o reconhecimento como meio de prova válido para suportar a convicção formada pelo tribunal recorrido.

3.2. O recorrente insurge-se contra a decisão da matéria de facto, sustentando que os pontos 1., 2., 4., 6., 7., 8. e 9. dos factos provados foram incorrectamente julgados, indicando a ausência de prova documental quanto às alegadas transacções e a existência de contradições insanáveis entre as declarações do ofendido e o depoimento prestado pela testemunha Alface como prova que, em seu entender, impunha decisão diversa. Tece, a propósito várias considerações: em seu entender, ficou por apurar um facto relevante, em concreto se o valor de 7.000€ (inferior ao de 7.630€ que constava da acusação) pelo qual foi dado como assente que o vinho foi negociado já incluía, ou não IVA; os depoimentos prestados pelo queixoso e pela testemunha Alface dois anos após a data dos factos apresentam diferenças em relação aos anteriormente prestados e contradições entre eles; o ponto 6. dos factos provados apresenta uma incongruência na medida em que resulta incompreensível que, sendo a data ali mencionada, de 20/4/12, uma 6ª feira, e sendo essa a data em que o vinho foi retirado da morada da testemunha Alface, o recorrente tivesse dito que na 6ª feira pagaria o vinho; tanto esse facto como os descritos nos pontos 1. e 2. não têm suporte probatório, nomeadamente na prova testemunhal produzida em julgamento, inexistindo ademais qualquer documento (factura, guia de transporte ou outro ) comprovativo de que tais vendas aconteceram de facto; o preço inicialmente indicado, de 5,45€ para cada embalagem de vinho, superior àquele, de apenas 5€ cobrado para quem adquirisse apenas 10 caixas, veio a ser alterado de forma a ficar idêntico após a contestação que apresentou; não foi apurado e não podia deixar de o ter sido, não se alcançando dos factos provados, o circunstancialismo de modo e de tempo em que o recorrente carregou o vinho, sendo impossível que o tivesse feito em apenas dois ou três carregamentos.

Ademais, considera que a prova produzida se mostra insuficiente para a sua condenação, tendo sido violado o princípio in dubio pro reo e, bem assim, o princípio do acusatório ao terem sido alterados e considerados como provados factos diferentes dos que constavam da acusação, nomeadamente quanto às datas.

Refira-se, desde logo, que, relativamente às lacunas que o recorrente aponta no apuramento da factualidade relevante para a decisão, o recorrente está implicitamente a invocar o vício prevenido na al. a) do nº 2 do art. 410º do C.P.P., ao qual acaba fazendo alusão expressa na derradeira conclusão do recurso, onde indica as normas que considera terem sido violadas.

O vício invocado pelo recorrente é um dos vícios da decisão (desta, e não do julgamento) previstos no nº 2 do art. 410º do C.P.P. e de conhecimento oficioso, que podem constituir fundamento do recurso “mesmo nos casos em a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” e terão de ser ostensivos e passíveis de detecção através do mero exame do texto da decisão recorrida (sem recurso a quaisquer outros elementos constantes do processo), por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.

Este vício afere-se cotejando os factos acolhidos na decisão com aqueles que são objecto do processo ( e que vêm indicados no nº 4 do art. 339º nº 4 do C.P.P. ).

“Na pesquisa do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artigo 410 n.2 alínea a) do Código de Processo Penal, há que averiguar se o tribunal, cingido ao objecto do processo desenhado pela acusação ou pronúncia, mas vinculado ao dever de agir oficiosamente em busca da verdade material, desenvolveu todas as diligências e indagou todos os factos postulados por esses parâmetros processuais, concluindo-se pela verificação de tal vício - insuficiência - quando houver factos relevantes para a decisão, cobertos pelo objecto do processo (mas não necessariamente enunciados em pormenor na peça acusatória) e que indevidamente foram descurados na investigação do tribunal criminal, que, assim, se não apetrechou com a base de facto indispensável, seja para condenar, seja para absolver.”[5] Ou, por outras palavras, “a insuficiência a que se refere a alínea a), do artigo 410º, nº. 2, alínea a), do CPP, é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre facto(s) alegado(s) ou resultante(s) da discussão da causa que sejam relevante(s) para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”[6]

A insuficiência da matéria de facto para a decisão (entendida esta como a decisão justa que devia ter sido proferida, e não como a decisão que efectivamente foi proferida[7] ) existe, pois, quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão proferida, ou seja, “quando, através dos factos dados como provados, não sejam logicamente admissíveis as ilações do tribunal a quo, não estando, porém, definitivamente excluída a possibilidade de as tirar”[8], admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, caso tivessem sido averiguados pelo tribunal "a quo" através dos meios de prova disponíveis, teriam sido dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas[9]. Para invocar este vício, “é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”[10].

A insuficiência da matéria de facto para a decisão “não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devam suportar a matéria de facto, antes, com o elenco desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, antes, por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver no caso.”[11]

Tendo em mente estas considerações e confrontando-as com as objecções apresentadas pelo recorrente resulta meridianamente claro que não lhe assiste razão neste particular.

Na verdade, as insuficiências de investigação que foram apontadas não respeitam, desde logo e seguramente, a factos essenciais ao objecto do processo. Decorrendo da factualidade que foi considerada como provada que houve apenas um pré-acordo, nos termos do qual o vinho (só) seria entregue contra o pagamento do respectivo preço, e não tendo esse pagamento sido efectuado em momento algum, é irrelevante que o preço acertado já incluísse ou não IVA. Importante, para efeitos de qualificação jurídica dos factos e mais adiante para determinação da medida da pena em função do concreto valor do prejuízo, era apurar o valor das embalagens levadas pelo recorrente. E em relação a esse concreto valor, a motivação da decisão de facto revela-nos que o julgador fez fé no depoimento do ofendido (que efectivamente afirmou ter acordado que a venda se faria à razão de 5€ por cada bag in box[12]). De nada interessa que o ofendido possa ter aludido a outro valor (aliás, até ligeiramente superior) durante o inquérito, já que não foi confrontado em julgamento com a disparidade, o que sempre obstaculizaria à valoração das declarações anteriormente prestadas (cfr. arts. 355º e 356º do C.P.P.). Relativamente às circunstâncias em que o recorrente efectuou o carregamento do vinho, o texto da sentença recorrida não evidencia que elas não tivessem sido investigadas de forma adequada. Importante era apurar se efectivamente o recorrente levou as embalagens em causa do local onde elas se encontravam induzindo a testemunha Alface em relação ao que havia acordado a respeito com o ofendido. E tal foi considerado como provado, sendo as concretas circunstâncias em que os carregamentos foram efectuados meros factos instrumentais, que não têm necessariamente de constar do elenco dos factos provados, ou não provados, sobrando para a apreciação do erro de julgamento a eventual incorrecção na apreciação da prova produzida.

Dito de outra forma e em síntese: a factualidade considerada como assente, tendo em conta o ilícito criminal em questão, é suficiente para a prolação de direito.

Assim, não se verifica o vício aludido, e tão pouco qualquer dos outros vícios da decisão, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova[13] que o recorrente refere mas que o texto da decisão recorrida de modo algum evidencia, resultando da argumentação por ele desenvolvida e face ao apelo que faz a meios de prova exteriores a esse texto que o que teve de facto em vista foi a invocação do erro de julgamento

Prosseguindo, então, para o erro de julgamento, através do qual o recorrente também ataca a sentença recorrida, e aceitando como minimamente observados, com o complemento que se retira da motivação do recurso, os requisitos formais indicados no nº 3 do art. 412º do C.P.P. para a impugnação ampla da matéria de facto, começamos por lembrar, tal como vem sendo repetidamente frisado nas decisões dos tribunais superiores acerca do âmbito e finalidades do recurso da matéria de facto, que este não é um novo julgamento, mas apenas um remédio jurídico destinado a detectar e corrigir erros de julgamento, mormente aqueles que o recorrente tenha concretamente apontado, que “não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas”[14], que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si”[15], que não serve como meio para substituir uma convicção plausível e com adequado suporte probatório por outra convicção, ainda que igualmente plausível e possível, que a existência de versões contraditórias, e até de contradições no seio da mesma versão não é necessariamente impeditiva da formação de uma convicção segura, nada impedindo que esta se firme numa delas ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível e só se justificando a aplicação do princípio in dubio pro reo quando e na estrita medida em que, após a produção de prova, subsistam dúvidas razoáveis ( não uma qualquer dúvida subjectiva ) e inultrapassáveis[16], e, enfim, que a decisão da matéria de facto só pode ser alterada nos casos em que tenha sido produzida prova que aponte inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância ( ou seja, quando a “impõe”, e já não quando apenas a “permite” ) e já não naqueles em que o tribunal recorrido, que beneficiou da imediação e da oralidade, alicerçou a sua convicção em meios de prova permitidos e explicitou devidamente o percurso seguido na sua formação sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1ª instância tem suporte na regra estabelecida no art. 127º do C.P.P.[17], escapando a qualquer censura.

Assim balizada em termos genéricos a nossa intervenção correctiva, vejamos em detalhe as objecções apresentadas pelo recorrente.

Começando pela alegada ausência de prova, testemunhal ou documental, em relação às compras e vendas aludidas nos pontos 1. e 2. dos factos provados, dir-se-á que tal afirmação só pode radicar numa leitura menos atenta da prova produzida em julgamento. Como o recorrente certamente não ignora, a regra vigente em processo penal é a de que são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei (art. 125º do C.P.P.) e, salvo algumas excepções, não existem regras pré-determinadas de valoração probatória que vinculem o julgador, sendo este livre de apreciar qualquer meio de prova de acordo com a sua livre convicção, posto que esta seja formada em conformidade com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência. Assim, a prova das aquisições feitas pelo recorrente nos dois primeiros meses de 2012 não tinha necessariamente de ser feita através de documentos, nada obstando a que o fosse através de declarações ou depoimentos. Não se cura neste processo de averiguar se foram cumpridas todas as imposições legais relativas aos contratos de compra e venda – e neste aspecto o recorrente falha rotundamente o alvo ao procurar através do ataque ao ofendido “sacudir a água do seu capote”, sendo inquestionável que não é a conduta dele, em eventuais aspectos de desconformidade com as normas tributárias que pudesse ter assumido, que está em causa nestes autos -, mas sim de determinar se o recorrente praticou os factos que lhe vinham imputados e se por eles deve ser condenado. Ele, que é o arguido nos autos, e mais ninguém, porque mais ninguém neles tem essa posição processual e porque, de todo o modo, o incumprimento de obrigações fiscais por parte do ofendido que invoca nunca teria a virtualidade de afastar a sua própria responsabilidade na prática dos factos objecto do processo. Ora, a realização dessas ditas vendas foi afirmada seja pelo ofendido seja pela testemunha Alface – e foi nestes depoimentos que o tribunal recorrido fez apoiar a convicção que formou quanto à sua ocorrência -, destinando-se a mesma a permitir que o recorrente e/ou eventuais interessados em lho adquirir apreciassem a qualidade do vinho, tendo aquela testemunha fornecido uma explicação para o facto de não terem sido passadas, em momento algum, guias de transporte, precisamente pelo facto de o recorrente ter dito que delas não precisava, que tinha as suas. Não tendo o tribunal recorrido vislumbrado qualquer razão para descrer da versão trazida por aqueles dois ao julgamento, tendo ao invés afirmado a inteira credibilidade que lhe mereceram[18], e mostrando-se tal versão perfeitamente consentânea seja com o que frequentemente se passa durante as negociações prévias à celebração de aquisições de produtos em particular quando se destinam a consumo, seja com o propósito de transmitir um interesse genuíno na celebração do negócio, só podemos concluir no sentido de que inexiste fundamento para proceder à alteração da matéria vertida nos pontos 1. e 2., alvo de impugnação.

A idêntica conclusão também chegamos em relação à situação descrita no ponto 4. Mais uma vez o ofendido e a testemunha Alface coincidiram ao referir que houve um encontro entre o primeiro e o recorrente a uma 4ª feira junto à residência daquela testemunha, que era o local em cujas imediações as boxes de vinho se encontravam armazenadas, e que durante esse encontro estiveram a acertar os termos do negócio. O ofendido afirmou expressamente que o recorrente disse não dispor de momento de dinheiro para proceder ao pagamento do vinho, mas que o iria obter, ficando então combinado que poderia levar a quantidade de vinho que pretendesse desde que procedesse antes ao respectivo pagamento. Por seu turno, a testemunha Alface afirmou que, a determinada altura, teve de ir a casa, não tendo ouvido o que ficou acertado quanto ao pagamento do vinho, facto de que o recorrente se apercebeu. E acrescentou que, nessa mesma 4ª feira, quando o ofendido já não se encontrava no local, o recorrente voltou lá e, dizendo que pagava o vinho na 6ª feira, e cuidando a testemunha que assim tivesse ficado combinado com o ofendido, consentiu que ele carregasse parte do vinho e o levasse com ele.

Mais acrescentou que o recorrente voltou ao local mais vezes para o efeito, já acompanhado por um ajudante, tendo procedido a pelo menos 4 ou 5 carregamentos entre aquela 4ª feira e a manhã de 6ª feira seguinte. Só nesse dia, quando o ofendido, contrariamente ao que havia anunciado, veio dizer que só pagava na 2ª feira porque a pessoa a quem ia vender o vinho não tinha aparecido é que a testemunha estranhou e resolveu telefonar ao ofendido que logo lhe disse que “já estavam entalados”, razão pela qual, e depois de um carregamento que o recorrente já tinha feito nessa 6ª feira, a referida testemunha não permitiu que ele procedesse a mais nenhum carregamento.

Lidos em conjunto os depoimentos de ofendido e testemunha, complementando-se o conhecimento directo que um e outro demonstraram ter em relação à parte dos factos em que intervieram ou participaram, sendo certo que, como já referimos, a ambos foi reconhecida credibilidade e que nada do que relataram se mostra estranho às regras da experiência comum, a única conclusão é a de que, efectivamente, o recorrente levou a quantidade aludida no ponto 6. dos factos provados, apenas não o tendo feito num único dia, mas sim em três dias consecutivos. Aliás, só assim se explica a incongruência que o recorrente veio invocar e decorrente do facto de o dia 20/4/12 ter sido realmente uma 6ª feira, não tendo sido indicada nem se vislumbrando razão, para além de uma cópia acrítica do que já constava da acusação, para que se tenha considerado como provado que o recorrente procedeu ao carregamento da totalidade do vinho naquele dia (ainda que não se discrimine se o fez de uma só vez ou por várias[19]). Se bem que a precisão em causa seja inócua em relação à decisão de direito (porque para o efeito o que releva é a retirada do vinho do local pelo recorrente, fazendo crer à testemunha que estava a agir em conformidade com o que havia sido acordado com o ofendido, e assim fazendo com que aquela consentisse nessa retirada, facto em relação ao qual a convicção formada pelo tribunal recorrido tem adequado suporte probatório), a prova produzida, como aliás o recorrente extensamente faz notar, tornando por isso dispensável a observância do disposto no art. 358º do C.P.P., implica que se deva proceder à alteração do ponto objecto de impugnação, de molde a que este fique com a seguinte redacção:

“No mesmo dia 18 de Abril de 2012, o arguido voltou à morada de Alface e, dizendo-lhe que “O negócio está feito, na sexta-feira à tarde pago o vinho”, levou a que este permitisse que ele, entre aquele dia e o dia 20 do mesmo mês, retirasse do local um total de 1400 embalagens de cinco litros de vinho, levando-as para local não concretamente apurado.”

Ademais, não tem qualquer fundamento a invocada violação do princípio in dubio pro reo, resultando à evidência da motivação da decisão de facto que o tribunal recorrido não teve quaisquer dúvidas, muito menos razoáveis, de que foi efectivamente o recorrente quem, apresentando-se com um nome que não é o seu e pelo qual também nem sequer é conhecido, praticou os factos.

Relativamente à matéria de facto vertida nos pontos 7., 8. e 9. dos factos provados, é sabido que, na ausência de confissão, a intenção tem de ser perscrutada nos contornos da materialidade fáctica de modo a aferir a congruência entre a conduta e o propósito que determinou o agente à sua prática. E no caso a conduta praticada pelo recorrente é claramente reveladora da intenção que lhe presidiu, ou seja, a de fazer crer ao ofendido e à testemunha Alface que pretendia adquirir vinho pertencente ao primeiro, obviamente contra o pagamento do respectivo preço, e determinar o segundo a permitir que levasse o vinho sem antes proceder ao pagamento do respectivo preço (opostamente ao que ele próprio havia previamente acordado com o ofendido), fazendo-lhe crer que o negócio estava feito e que o ofendido o tinha aceite com o diferimento do pagamento para momento posterior à entrega do vinho, assim alcançando um enriquecimento a que não tinha direito com o consequente empobrecimento do ofendido. Aliás, a próprio facto de o recorrente se identificar com um nome diferente do seu só reforça a conclusão alcançada, não se vislumbrando qualquer outra explicação para tal procedimento, se não o de procurar eximir-se a eventual responsabilidade, criminal e civil, pela prática de actos cuja ilicitude ele manifestamente não ignorava. Não existe, pois, fundamento para alterar os pontos impugnados acima referidos.

Refira-se, por último, que é completamente destituída de fundamento a invocada – apenas em sede de conclusões do recurso - violação do princípio do acusatório, quer por se ter considerado como provado um valor relativo ao total das embalagens de vinho diferente, para menos, daquele que vinha mencionado na acusação, quer por não se terem considerado como provados os factos que foram vertidos como tal nos pontos 1. e 2. Mal feito fora que toda a matéria de facto descrita nas acusações tivesse de ser considerada como provada para que aquele princípio se mostrasse respeitado!...

3.3. O recorrente, mesmo na eventualidade de se considerar como provado ter sido ele quem levantou o vinho, sustenta que a sua conduta não foi dolosa, não se mostrando preenchido o elemento subjectivo do tipo legal de crime em causa na medida em que as sugestões ou artifícios usuais são considerados legítimos segundo as concepções dominantes do comércio jurídico assim como a dissimulação do erro quando nenhum dever de elucidar resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções. Além disso, tendo o empregado do ofendido ordens expressas no sentido de que o vinho apenas poderia ser carregado após o seu pagamento, mandava o mais elementar dever de diligência e bom senso que tivesse por qualquer meio contactado com o empregador a fim de confirmar se assim ficara acordado. Acrescendo, ainda, que o recorrente nunca ganhou a confiança do dono do vinho, pois este afirmou que só levava o vinho quando tivesse o dinheiro, e para que houvesse da sua parte intenção ab initio em não prestar o equivalente económico teria de ficar provado que já havia adquirido vinho em duas ocasiões, o que não aconteceu conforme decorreu dos depoimentos do ofendido e da testemunha Alface.

Comecemos por definir os contornos jurídicos do crime de burla, cingindo-nos ao tipo matricial na medida em que a agravação prevista no nº 1 do art. 218º do C. Penal decorre do valor elevado do prejuízo patrimonial que se acha por simples operação aritmética a partir do critério estabelecido na al. a) do art. 202º do mesmo diploma legal (no caso, reportando-se os factos a 2012 e sendo de 102€ o valor da UC, valor elevado será aquele que ultrapasse 5.100€ ).

De acordo com o disposto no nº 1 do art. 217º do C. Penal, “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão ate 3 anos ou com pena de multa.”

São pressupostos típicos deste tipo legal, que tem como objecto de tutela o património em geral:

- o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado;
- a determinação de outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial;
- a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.

Como é sabido, a burla é um crime de execução vinculada na medida em que o modo de o agente causar o resultado se encontra descrito no tipo. Essa execução vinculada traduz-se na utilização de um meio tendente a induzir outra pessoa num erro ou engano[20] (entendido o primeiro como falsa ou nenhuma representação da realidade concreta que funciona como vício do consentimento da vítima, e correspondendo o segundo à simples mentira[21] ) - provocado pelo agente através de palavras, gestos ou actos concludentes[22] -, que, por seu turno, leva a vítima a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou de terceiro(s).

A conduta enganosa do agente, que leva a vítima a praticar actos causadores de prejuízo patrimonial ( e, por isso, se fala de um “crime com participação da vítima” ), deverá, por outro lado, ser levada a cabo de forma astuciosa. Ou seja, o estado de engano ou erro do sujeito passivo deverá ser provocado astuciosamente. A referência à astúcia constante do nº 1 do art. 217º do C. Penal reconduz-nos ao chamado “domínio-do-erro” (expressão que traduz a adequação do comportamento do agente às características da pessoa burlada e às concretas circunstâncias em que actua) como critério de imputação inerente à figura da burla. A conduta astuciosa do agente “no plano dos factos, (…) comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. (…) a experiência de todos os dias revela que, longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de “economia de esforço”, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. Numa tal adequação de meios – adequação essa que, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o “ponto óptimo” no menos sofisticado dos procedimentos – radica, em suma, a inteligência ou astúcia que preside ao estereotipo social da burla”[23]. Não é, pois, necessário para o preenchimento deste elemento do tipo que o agente produza uma encenação dirigida a facilitar o convencimento do sujeito passivo, bastando que desenvolva uma conduta adequada – aquela que, perante as particulares circunstâncias com que se depare, se mostre necessária - a induzir em erro a concreta pessoa por ele visada e determiná-la à prática dos actos causadores de prejuízo patrimonial.

No entanto, porque a tutela dos bens jurídicos constitucionais pelo sistema penal é meramente subsidiária e fragmentária, por força do princípio da proporcionalidade consagrado no nº 2 do art. 18º da C.R.P., o âmbito da tutela da norma não cobre todo e qualquer domínio–do-erro que, dentro de certos limites, é co-natural ao regular funcionamento de uma economia de mercado. Só o domínio-do-erro que viole os ditames da regra basilar da boa fé na celebração dos contratos, que traduza uma deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico, é jurídico-penalmente relevante e passível de consubstanciar o desvalor característico do crime de burla.[24]

O crime de burla é, também, um crime material ou de resultado, na medida em que o tipo objectivo exige que o agente determine outrem à prática de actos que causem prejuízo patrimonial e a sua consumação “depende da “verificação de um evento que se traduz na saída de bens ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infracção”[25]. A consumação da burla passa, ainda, por um duplo nexo de imputação objectiva (ao qual subjazem os pressupostos da teoria de adequação consagrada no nº 1 do art. 10º do C. Penal ): entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio e, por outro lado, entre estes actos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial. A conduta enganatória terá de ser a causa determinante do erro de outrem, erro que, por sua vez, terá de ser causa da disposição patrimonial, aferindo-se o nexo de adequação em função das particularidades do caso concreto e das características do próprio burlado.

A burla constitui, ainda, um crime de dano que se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património (no sentido de soma de todos os direitos e obrigações patrimoniais) do sujeito passivo da infracção ou de terceiro. O prejuízo patrimonial identifica-se, pois, com a perda de direitos, conforme a noção corrente no direito civil.

O tipo subjectivo é preenchido por qualquer conduta dolosa, em qualquer das suas formas.

Assim, é indispensável, por um lado, o conhecimento e a vontade de praticar um facto causador de prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro (dolo genérico) e, por outro, a intenção de conseguir, através da conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio (dolo específico).

O enriquecimento ilegítimo pode revestir diversas formas, designadamente, o aumento patrimonial dos bens de terceiro ou do agente. Na determinação do enriquecimento ilegítimo importa considerar o conceito civilístico do enriquecimento sem causa (art. 473º do C. Civil): o enriquecimento de alguém, com o consequente empobrecimento de outrem, o nexo causal entre a primeira e a segunda destas situações e a falta de causa justificativa de tal empobrecimento[26]

No entanto, a burla é um crime de resultado parcial ou cortado, na medida em que se caracteriza por uma “descontinuidade” ou “falta de congruência” entre os correspondentes tipos subjectivo e objectivo, porquanto, exigindo-se que o agente actue com a intenção de obter – para si ou para outrem – um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização desse enriquecimento, bastando que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento da vítima[27].

Feitas estas considerações genéricas, vejamos agora aquelas, concretas, atinentes ao caso em apreciação, que foram expendidas na sentença recorrida com respeito à subsunção jurídica dos factos:

A distinção no caso em apreço entre o dolo civil e a burla penal não reside como pretende o arguido na inexistência de um dano social mas sim de um dano civil (que aliás, o ofendido não reclamou, nem estava obrigado a tal). O arguido actua convencendo Alface de que o negócio com FS estava concluída, ou seja, mediante o pagamento do preço, o arguido tinha autorização para levar o produto (vinho sobrante).

Houve vontade de realizar o negócio. A tentativa de realização do negócio junto de Filipe Sousa serviu de premissa ao arguido para enganar Alface, sem o qual não o conseguiria convencer a deixar sair o vinho do armazém.

O engano era o adequado e o proporcional aos fins pretendidos pelo arguido e, como se disse, motivo sem o qual não seria possível obter o resultado pretendido.

A conclusão do negócio e sua comunicação a um funcionário do ofendido consiste no momento em que o sujeito passivo desarma e baixa as defesas relativamente à permeabilidade da concretização do negócio prejudicial.

A questão central está em saber se o arguido estava obrigado de acordo com os ditames da boa-fé em comunicar ao funcionário os exactos termos dos negócios combinados com o empregador. A resposta tenderá, necessariamente, a ser negativa. Mas o arguido não podia como o fez, comunicar algo que não correspondia à realidade (a concretização do negocio).

Ao fazê-lo o arguido conseguiu um ganho/proveito ilícito não tutelado pela ordem jurídico e tal conduta assume a respectiva valoração penal subjacente aos presentes autos.
*
No caso em apreço, a vontade aquisitiva do vinho foi o leitmotiv (motivo condutor) desta situação.

O arguido beneficiou do estabelecimento das negociações não conclusas entre si e o ofendido FS, o que não era, aliás, de conhecimento do funcionário deste último.

De facto existiram negociações entre o ofendido e arguido que não chegaram a bom termo, ou seja, com a delimitação dos precisos termos e condições essenciais a assegurar a transferência da disponibilidade do vinho ao arguido.

Efectivamente, a conclusão das negociações e respectivo pagamento do preço pelo vinho não correspondia à verdade, ele não havia pago o vinho que se encontrava na disponibilidade de Alface. Daqui decorre que o arguido tinha intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo.

Adoptando o critério da diligência de um bom pai de família, estamos perante um ascendente de informação criado pelo arguido ao ponto de convencer Alface que poderia libertar o vinho e entrega-lo a terceiro, autorizado pelo seu proprietário. É claro que o arguido abusou da informação e modificou a informação que dispunha criando uma permeabilização junto de Alface.

O valor correspondente ao prejuízo determina a qualificação do tipo de burla, em conformidade com o disposto no artigo 218.º por referência ao artigo 202.º ambos do Código Penal.

O arguido agiu com dolo; dolo evidente pela forma como iniciou as negociações e como contactou o funcionário do ofendido e lhe transmitiu a informação de que tinha autorização para levantar o vinho.

Inexiste qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa que importe a sua consideração nos presentes autos.

Pelo exposto, por a conduta do arguido ao ter sido astuciosa preenche os pressupostos objectivos e subjectivo do tipo imputado de burla, nos termos do art. 217.º e 218.º do Código Penal.

Não vemos razões para divergir seja dos considerandos seja da decisão alcançada. Com efeito, em face da factualidade considerada como provada e agora definitivamente assente, mostram-se preenchidos todos os elementos típicos do crime de burla por cuja prática o recorrente foi condenado, como ali foi demonstrado, não colhendo a argumentação que em contrário foi oferecida pelo recorrente. Em acréscimo, apenas cabe salientar que, no caso, a deslealdade que a conduta do recorrente revela ultrapassa em muito os ditames da boa fé. Senão, tenha-se em conta que o recorrente utilizou, desde o momento em que se apresentou ao ofendido e às testemunhas que gravitaram em torno do negócio com um nome que não lhe correspondia, o que por si só e na ausência de explicação para atitude tão estranha, já é indiciador de propósitos menos lícitos. Depois, realizou duas pequenas aquisições, que correram sem incidentes, contribuindo certamente para criar no espírito da testemunha Alface, com quem foram negociadas, e por seu intermédio no do ofendido, a convicção de que se tratava de um comerciante íntegro e genuinamente interessado em comprar vinho a este. A partir daí avançou para o negócio “chorudo”, fazendo crer que pretendia comprar efectivamente uma quantidade apreciável de vinho (superior até às 1400 boxes, não tendo levado mais porque foi impedido pela testemunha depois ter telefonado ao ofendido na sequência do alerta causado pela apresentação de nova desculpa para protelar o pagamento prometido). Perante a intransigência do ofendido em entregar o vinho sem que antes, ou concomitantemente, fosse pago o preço correspondente, o recorrente, tendo-se apercebido de que a testemunha Alface se havia ausentado momentaneamente e por isso não se tinha apercebido dos termos do acordo, nomeadamente no que concerne à exigência feita em relação ao pagamento, resolve voltar quando o ofendido já não se encontra no local, fazendo crer àquela testemunha que o negócio já tinha sido celebrado, com a aceitação pelo ofendido de que o pagamento não fosse feito de imediato, levando-a a permitir que ele fosse levando o vinho do local, situação à qual só pôs cobro quando descobriu, na conversa com o ofendido, que havia sido levado ao engano. Temos, assim, o desenrolar da trama urdida pelo recorrente, que culminou no ataque ao “elo mais fraco”, a pessoa que ele viu que podia levar a entregar-lhe o vinho, bastando que lhe fizesse crer que tudo se estava a passar de acordo com o que havia sido acertado com o ofendido e que o pagamento seria para muito breve, desenganado que já estava da possibilidade de haver cedências por parte daquele, sendo insofismável que ele nunca teve intenção de pagar o vinho, pretendendo apenas conseguir que lhe fosse entregue e dessa forma aumentar injustificadamente o seu património à custa do empobrecimento do património do ofendido.

É, pois, evidente que a conduta do recorrente é dolosa e preenche todos os elementos típicos do crime de burla. E nem se diga, para efeitos de desculpabilizar a conduta do recorrente, que a testemunha Alface confiou em demasia[28], que se devia de ter informado antes de consentir que o recorrente levasse o vinho. Mesmo que, pelo menos de um ponto de vista objectivo, se possa censurar a conduta excessivamente confiante da referida testemunha - pessoa notoriamente simples como logo o denuncia o jeito de falar, com a proverbial confiança das gentes do campo do antigamente, quando bastava a palavra para selar os negócios, não sendo de estranhar que tenha acreditado quando o recorrente, com quem antes já tratara de dois pequenos negócios de venda de vinho, lhe veio anunciar que o negócio já estava feito -, a mesma enquadra-se perfeitamente na característica do crime de burla enquanto requer a participação da vítima, no caso, a vítima directa do engano, distinta daquela em cujo património o prejuízo se repercutiu.

Não são necessárias mais alongadas considerações para concluirmos que a qualificação jurídica dos factos, subsumidos à previsão das disposições conjugadas dos arts. 217º nº 1, 218º nº 1 e 202º al. a), todos do C. Penal, não merece censura.

Em jeito de remate há apenas que fazer notar que o teor da conclusão S) resulta ininteligível, não se mostrando sequer complementada pela referência a quaisquer normas legais que o recorrente pudesse considerar como tendo sido violadas. É certo que, em sede de motivação do recurso, o recorrente também manifesta a sua discordância em relação à medida em que a pena foi fixada. Porém, trata-se de questão que “deixou cair” ao não a ter transposto para as respectivas conclusões.

De todo o modo, e ainda que assim se não entendesse, face ao entendimento reiteradamente seguido pela generalidade da jurisprudência em relação à intervenção correctiva do tribunal de recurso na medida da pena[29], não se vislumbra qualquer desrespeito aos princípios que norteiam a pena ou desvio nas operações da respectiva determinação prescritas na lei que pudesse justificar a alteração do que a respeito foi decidido. De facto, sendo o ilícito criminal praticado pelo recorrente punível com pena até 5 anos de prisão ou pena de multa até 600 dias, a opção por pena de multa e a sua fixação em 420 dias dentro daquela moldura abstracta, consideradas todas as circunstâncias relevantes para o efeito, e não obstante a ausência de antecedentes criminais (que, certamente por lapso, foi referida na sentença recorrida entre as circunstâncias agravantes) não se pode considerar como desproporcionada em face da concreta gravidade dos factos ou excessiva em relação à medida da culpa do recorrente.

4.Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, e sem prejuízo da alteração ao ponto 6. Dos factos provados nos moldes acima indicados, julgam improcedente o recurso e mantêm a decisão recorrida.

Vai o recorrente condenado em 4 UC de taxa de justiça.

Évora, 5 de Julho de 2016

Maria Leonor Esteves
António João Latas

__________________________________________________
[1] ( cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).

[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.

[3] “Se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que suscitou na motivação, como vem entendendo o STJ, o tribunal superior só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º 3 [ actual art. 635º nº 4 ] do CPC. Com efeito, nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.” – cfr. Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, Código de Processo Penal anotado, 1996, pág. 555.

No mesmo sentido Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 335:

“(…) o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Nas conclusões da motivação o recorrente tem de indicar concretamente os vícios da decisão impugnada e essa indicação delimita o âmbito do recurso. São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem de apreciar.” ( sublinhado nosso )

Assim, quer tenha sido voluntária ou involuntária, tenha-se devido a uma intencional restrição do objecto do recurso ou a mero esquecimento, a falta de indicação nas conclusões do recurso de alguma questão que haja sido tratada na respectiva motivação tem como consequência a sua exclusão do objecto do recurso e, decorrentemente, da sua apreciação pelo tribunal superior.

[4] v.g. Acs. RC 10/11/10, proc. nº 209/09.1PBFIG.C, 1RE 8/1/13, proc. nº 134/10.3GCABF.E1 ( em que interveio como relator o ora adjunto ) e RE 19/1/16, proc. nº 1245/13.9GBABF.E1.

[5] cfr. Ac. RP 6/11/96, proc. nº 9640709.

[6] cfr. Ac STJ 7/7/99, proc. nº 99P348.

[7] cfr. Ac. STJ de 13/5/98, CJ, Acs. do STJ, t. II, pág. 199.

[8] Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2ª ed., pág. 1035

[9] cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal anotado, 2ª ed., págs. 737-739.

[10] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, t. III, 2ª ed., p. 339.

[11] cfr. Ac. STJ de 1/6/06, proc. nº 06P1614.

[12] Por lapso manifesto as embalagens em que o vinho se encontrava acondicionado são aludidas como “game boxes” a fls. 237.

[13] Vício que é frequentemente confundido com o erro de julgamento, mas nada tem a ver com uma diferente convicção em termos probatórios e uma diversa valoração da prova produzida em audiência que o recorrente entenda serem as correctas.

“(…) o erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410º, nº 2, al. c) do CPP, como se vem reafirmando constantemente, não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente ( carecendo esta de qualquer relevância jurídica, é óbvio que aquela desconformidade não pode deixar de ser, também ela, juridicamente, irrelevante ), e só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal.” cfr. Ac. STJ de 24/3/99, C.J. ano VII, t. I, p. 247

[14] cfr. Ac STJ 7/6/06, proc. 06P763.

[15] cfr. Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28

[16] Há que ter em devida conta que o princípio dubio pro reo não implica que todas as dúvidas devam ser resolvidas em favor do arguido; de facto, a imposição que dele dimana não cobre qualquer dúvida subjectiva, mas única e exclusivamente as dúvidas insanáveis, razoáveis e objectiváveis.

Conforme faz notar Cruz Bucho, “Notas sobre o princípio “in dubio pro reo”, CEJ, Comunicação apresentada em 6/5/98, numa sessão de Direito judiciário subordinada ao tema “A produção e valoração da prova”, a págs. 11 e 16, “A dúvida deve ser insanável, irredutível, irreparável, inultrapassável, invencível. Quer isto dizer que a falha no esclarecimento definitivo dos factos não pode ficar a dever-se a uma deficiente procura dos meios de prova (…) a dúvida só pode considerar-se razoável se for “a doubt for which reasons can be given”.

Também Cristina Líbano Monteiro, “Perigosidade de Inimputáveis e ‘In Dubio Pro Reo”, pág. 51, afirma que “a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir ‘pro reo’ tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária”.

[17] O princípio acolhido nesta norma implica que no processo penal, em regra (com algumas excepções, nomeadamente as que respeitam aos arts. 84º, 169º, 163º e 344º do C.P.P., integradas no princípio da prova legal ou tarifada), o julgador não se encontra vinculado à valoração das provas de acordo com regras rígidas, sendo livre de eleger aquelas às quais reconheça relevância e credibilidade para alicerçar a sua convicção, contanto que na respectiva apreciação tenha na devida conta as regras da experiência comum. Mas, como faz notar Maia Gonçalves (CPP anot., 17ª ed., pág. 354 ), dando conta da orientação uniforme da doutrina ( e seguida igualmente pela jurisprudência ), a livre apreciação da prova “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”.

Assim, se a apreciação da prova é discricionária, esta discricionariedade tem limites, decorrentes do dever de perseguir a chamada "verdade material", de tal sorte que a apreciação há-de ser racional, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo.

A efectivação desse controlo implica que a apreciação da prova esteja sujeita ao dever de fundamentação que, no âmbito do processo penal, constitui uma das garantias constitucionais de defesa do arguido consagradas no nº 1 do art. 32º da C.R.P., e que é acrescido em relação ao dever geral estabelecido no nº 5 do art. 97º do C.P.P., encontrando-se concretizados na norma do nº 2 do art. 374º deste diploma os conteúdos exigidos para a fundamentação da sentença penal.

[18] E de nada vale ao recorrente procurar atacar essa credibilidade, em particular no que concerne à testemunha Alface, com base na sua avançada idade ( que, aliás, em concreto se ignora ) e confusões derivadas da perda de capacidades cognitivas, quando o tribunal recorrido, que beneficiou da imediação e da oralidade, não enxergou razão para duvidar da escorreiteza do seu depoimento, e nem a audição da respectiva gravação suscita dúvidas a respeito, sendo naturais, até em pessoas bem mais novas, algumas imprecisões que encontram cabal e melhor explicação na evanescência das memórias com o decurso do tempo.

[19] Embora na motivação da decisão de facto ( cfr. fls. 237 ) se refira que a testemunha Alface afirmou que o ora recorrente “procedeu a três carregamentos de 1400 boxes”, tal só se pode ter ficado a dever, se não a lapso, seguramente a uma percepção errónea do que foi dito pela testemunha em causa, que foi muito clara ao afirmar que as cerca de 1400 boxes, correspondentes ao total levado pelo recorrente, foram levadas em número de vezes que não sabe concretizar, mas que foram pelo menos 4 ou 5.

[20] Nas palavras de Cavaleiro de Ferreira, parecer publicado na S.J., XIX, 1970, págs. 301 e ss., “toda a acção típica na burla é indução em erro mediante o uso ou emprego de determinados meios; estes meios são o fio condutor do engano”.

[21] cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, II vol., 1996, p. 538.

[22] Segundo P. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 599, “aqueles que têm um sentido social inequívoco, que não corresponde à vontade do agente do crime, mas que ele aproveita para enganar o burlado” ou, na definição de Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, t. II, pág. 301, “condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo – a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade -, se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro”.
Ou, na definição

[23] cfr. Comentário …, t. II, pág. 298.

[24] Neste sentido, Almeida Costa, Comentário…, t. II, pág. 298.

[25] cfr. Comentário…, t. II, págs. 292-293.

[26] cfr. Ac. STJ de 23/1/97, proc. 96P1191.

[27] cfr. Comentário…, tomo II, pág. 277

[28] Sendo irrelevante que o ofendido não tenha confiado, porque vítima directa do engano foi esta testemunha, não exigindo o tipo legal de crime, como resulta inequivocamente do seu teor literal, que exista coincidência entre a pessoa que é enganada e aquela que é prejudicada.

[29] cfr., por todos, o Ac.RE 30/9/14, proc. nº 344/08.3 GAOLH.E1 ( em que a ora relatora interveio como adjunta).