Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
35/16.1GBRDD.E1
Relator: MARIA DE FÁTIMA BERNARDES
Descritores: FURTO QUALIFICADO
ARGUIDO INIMPUTÁVEL
MEDIDA DE SEGURANÇA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
RECURSO PENAL
LEGITIMIDADE DO ASSISTENTE
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA
Sumário:
I - Não invocando o assistente, no recurso que interpôs da sentença proferida nos autos, qualquer interesse específico e próprio, distinto da finalidade de «defesa social» que a aplicação da medida de segurança visa prosseguir – e cuja defesa compete ao Ministério Público –, no internamento do arguido, declarado inimputável perigoso - reportando-se a perigosidade a factos passíveis de integrar o crime de furto qualificado –, não lhe assiste legitimidade nem tem interesse em agir, para, desacompanhado do Ministério Público, recorrer da sentença, pugnando pela revogação da suspensão da execução do internamento do arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1 – RELATÓRIO
1.1. Nestes autos de processo comum, foi submetido a julgamento, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA, tendo, a final, sido proferida sentença, em 06/03/2019, com o seguinte dispositivo:

a) Julgar o arguido AA autor da prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203.º e 204.º, n.º 2, al. e) do Código Penal.

b) Julgar o arguido AA inimputável e, relativamente ao mencionado ilícito, perigoso.

c) Determinar a aplicação o arguido AA de medida de segurança de internamento, a qual cessará quando cessar o estado de perigosidade criminal, pelo período de três anos e seis meses.

d) Suspender a medida de internamento fixada, pelo período de três anos e seis meses mediante os seguintes deveres e regras de condutas:

. Submeter-se aos tratamentos psiquiátricos considerados necessários ao controlo da sua disfunção mental;

. Sujeitar-se aos exames e observações que entretanto lhe sejam exigidos pelas entidades que controlarem a sua situação durante esse período;

. Sem prejuízo do que for posteriormente definido quanto ao tratamento a seguir, tomar regularmente e de acordo com as prescrições médicas os medicamentos adequados ao controlo da sua anomalia mental;

. Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;

. Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos necessários à avaliação da sua doença mental;

. Submeter-se a todas as determinações do plano de readaptação que irá ser elaborado.

e) Absolver o arguido AA dos pedidos de indemnização civil formulados pelos ofendidos EE, GG, e C… – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A.

Sem custas, por aplicação analógica do disposto no artigo 4.º alínea l) do Regulamento das Custas Processuais.

Custas cíveis pelos demandantes.
(…).»
1.2. Inconformado com o assim decidido, o ofendido/demandante EE requereu a sua constituição como assistente, que veio a ser admitida, e interpôs recurso para este Tribunal da Relação extraindo da motivação apresentada as seguintes conclusões:

«I. O tribunal a quo condenou o Recorrido à medida de segurança de internamento, tendo, porém, suspendido o cumprimento de tal medida por considerar, nos termos do artigo 98.º do Código Penal, que fosse de prever que a suspensão alcançasse a finalidade da medida;

II. Contudo, tal suspensão ficou adstrita a certas condições, sendo uma delas a de o Recorrido tomar regularmente e de acordo com as prescrições médicas os medicamentos adequados ao controlo da sua anomalia mental;

III. Sucede que ficou provado no ponto 22 da matéria de facto provada o seguinte: “A patologia psiquiátrica de que padece não permite ao arguido reunir as condições necessárias para gerir a própria terapêutica”;

IV. Pelo que será de prever que o Recorrido não cumprirá as condições a que está sujeita a suspensão e nessa medida existe o risco de repetição de prática do ilícito pelo qual foi condenado, não se protegendo assim a segurança da comunidade, e tão pouco a sua ressocialização, finalidades que a medida de segurança de internamento visam salvaguardar;

V. Assim, deverá a decisão que decretou a suspensão de medida de segurança de internamento ser revogada por não se preencherem as condições exigidas e plasmadas no artigo 98.º do Código Penal;

VI. Por outro lado, o tribunal a quo julgou improcedente o pedido de indemnização cível peticionado pelo Recorrente, pelo facto de o Recorrido ter sido declarado inimputável, na disposição do artigo 489.º, n.º 1 do Código Civil,

VII. Não obstante, por motivos de equidade, o responsável pelo dano pode ser condenado ao pagamento de indemnização por juízos de equidade;

VIII. Só que não resultam dos autos factos suficientes para o tribunal a quo decidir com rigor sobre o pedido de indemnização cível;

IX. Deste modo, e em cumprimento do artigo 82.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, o tribunal a quo deveria ter remetido as partes para os tribunais civis, o que não sucedeu.

X. Por esses motivos, deve a decisão que absolveu o Recorrido do pedido de indemnização cível ser revogada e as partes remetidas para a competente instância civil.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA:

a) Ser revogada a decisão que suspendeu a medida de internamento fixada ao Recorrido AA, em cumprimento do artigo 98.º do Código Penal; e,

b) Ser revogada a decisão que absolveu o Recorrido AA e remeter as partes para a instância cível competente, em cumprimento do artigo 82.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!»

1.3. O recurso foi admitido.

1.4. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso, pronunciando-se no sentido de dever o mesmo ser julgado improcedente.

1.5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido de o recurso dever ser rejeitado, relativamente à parte penal, nos termos do disposto nos artigos 401º, n.º s 1, alínea b), e 2, 414º, nº 2, e 420º, nº 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, por, não ter legitimidade para impugnar a decisão, uma vez que não deduziu acusação contra o arguido e, como tal, não tem a posição de vencido nem foi diretamente prejudicado pela decisão, não tendo, por isso, a mesma posto em causa um seu interesse digno de proteção.

1.6. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, o recorrente apresentou resposta, defendendo que tem legitimidade para sindicar a decisão do Tribunal a quo, não devendo, por isso, o recurso interposto pelo Assistente ser rejeitado.

1.7. Por decisão sumária de 25.11.2019 foi o recurso interposto pelo assistente, rejeitado, sendo, na parte penal, por falta de legitimidade e interesse em agir do assistente, ora recorrente (artigos 414º, n.º 2 e 420º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal) e, na parte cível, por inadmissibilidade legal do recurso (cf. artigos 400º, n.º 2 e 420º, n.º 1, al. b), ambos do CPP).

1.9. Notificado desta decisão sumária, veio o recorrente reclamar para a conferência, da decisão sumária de rejeição do recurso, pugnando pela revogação de tal decisão e para que o recurso seja submetido à apreciação “do órgão decisório”.

1.10. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, tendo vista no processo, apôs “Visto”. 1.11. Colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

2 – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. A decisão sumária, na parte que aqui releva, é do seguinte teor:

«(…)
O assistente/recorrente insurge-se contra a suspensão da execução do internamento do arguido, decidida pelo Tribunal a quo, sustentando que atenta a matéria factual dada como provada no ponto 22 será de prever que o arguido «não cumprirá as condições a que está sujeita a suspensão e nessa medida existe o risco de repetição de prática do ilícito pelo qual foi condenado, não se protegendo assim a segurança da comunidade, e tão pouco a sua ressocialização, finalidades que a medida de segurança de internamento visam salvaguardar», pugnando o assistente/recorrente pela revogação da decisão que decretou tal suspensão, por, na sua perspetiva, não estarem preenchidas os requisitos previstos no artigo 98.º do Código Penal.

Suscita o Exm.º PGA a questão da legitimidade do assistente EE para recorrer na parte penal.

Vejamos:

Sobre a epígrafe «Posição processual e atribuições dos assistentes», dispõe o artigo 69º do CPP:

1 - Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.

2 - Compete em especial aos assistentes:
a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias e conhecer os despachos que sobre tais iniciativas recaírem;

b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;

c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça.

E no referente à legitimidade e interesse em agir, estatui o artigo 401º do CPP:

1 - Têm legitimidade para recorrer:

a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;

b)
O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;

c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;

d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão.

2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

A expressão «decisões contra ele proferidas», da al. c) do n.º 1 do artigo 401º que se acaba de citar, deve entender-se como as decisões que contrariem as posições processuais sustentadas pelo assistente, quaisquer que elas sejam (neste sentido, cf., entre outros, Cons. Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, pág. 1215 e Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Editorial Verbo, 1994, pág. 315).

Sobre a questão da (i)legitimidade do assistente para recorrer, na parte penal, o Supremo Tribunal de Justiça já fixou jurisprudência, sendo:

- No Assento n.º 8/99, de 02 de julho de 1998, in DR I-A, de 10/08/1999, no sentido de que: «O assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do Ministério Público, relativamente á espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.»

- No AUJ n.º 11/2011, in DR I-Série, de 11 de março de 2011, no sentido de que: «Em processo por crime público ou semipúblico, o assistente que não deduziu acusação autónoma nem aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia, em instrução requerida pelo arguido, e da sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do Ministério Público.»

A questão da legitimidade e do interesse em agir do assistente para recorrer, na parte penal, em função da delimitação da expressão «das decisões contra ele proferidas» empregue na al. b) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, não tem reunido, na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, designadamente, do Supremo Tribunal de Justiça, um entendimento uniforme, existindo conceções mais estritas e mais amplas sobre a matéria.

Acolhendo uma conceção mais ampla dos poderes do assistente, nesse âmbito, cf., entre outros, Acórdãos do STJ de 22/01/2015, Proc. n.º 520/13.7PHLSB.L1.S1 e de 27/05/2015, Proc. n.º 118/08.1GBAND.P1.S1 e sufragando uma conceção mais restrita, vide, por exemplo, Acórdãos do STJ de 18/01/2012, Proc. n.º 1740/10.1JAPRT.P1.S1, de 10/04/2014, Proc. n.º 400/12.3JAAVR.S1 e de 12/10/2016, Proc. n.º 1960/14.0PAALM.L1.S1, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt, cujos sumários se passam a citar:

- Ac. de 22/01/2015:
«I - O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/99 (DR, I série-A, 10.08.1999, p. 5192 e ss) veio uniformizar jurisprudência no sentido de admitir que o assistente, autonomamente, tem legitimidade para interpor recurso restrito à medida e espécie da pena, sempre que “demonstrar um concreto e próprio interesse em agir”.

II - Comparando este aresto como um outro posterior - acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 5/2011 (DR, I série- A, 11.03.2011, p. 1410 e ss) - vemos que, embora referindo-se a situação diferente, os argumentos para afirmar a legitimidade do assistente para a interposição de recurso são também diversos, considerando-se, no entanto, relevantes para a questão aqui a decidir: (i) o assistente tem poderes autónomos, e entre eles o de interpor recurso; (ii) a sua intervenção no processo penal, sendo embora legitimada pela ofensa a um interesse individual, que pretende afirmar, contribui ao mesmo tempo para a realização do interesse público da boa administração da justiça; (iii) o assistente tem legitimidade para interpor o recurso quando tem interesse em agir: deste modo, para o assistente poder recorrer, não há que fazer-lhe outras exigências para além das que o artigo 401.º, n.º 1, al. b), comporta: que a decisão seja relativa a um crime pelo qual se constitua assistente (legitimidade) e seja contra ele proferida (interesse em agir)”; (iv) “o assistente tem um interesse próprio e concreto na resposta punitiva que é paralelo ao interesse comunitário na realização da justiça” (Cláudia Santos).

III - Entendemos que o assistente, que viu os seus bens jurídicos lesados com a prática do crime, tem também um interesse próprio na resposta punitiva dada pelo Estado: há um interesse concreto do assistente em uma resposta punitiva que entenda como justa tendo em conta os bens jurídicos que foram ofendidos.
(…).»
- Ac. de 27/05/2015:
«I - A força orientadora do Assento 8/99, publicado no DR - I Série - A, n.º 185, de 10-08-1999, cinge-se à (im)possibilidade de recurso pelo assistente com fundamento em discordância quanto à espécie e medida da pena e não já relativamente à qualificação jurídica.

II - Tem legitimidade processual e interesse em agir, a assistente que recorre do acórdão da 1.ª instância, que desqualificou o homicídio, adoptando solução diversa da defendida pela assistente que aderiu à acusação pública (que imputava ao arguido a prática de um homicídio qualificado), lançando mão da forma de impugnação mais ampla e abrangente, nos termos do art. 412.°, n.º 3 e 4, do CPP, e igualmente, com invocação de vícios decisórios - als. a) e c) do n.º 2 do art. 410.° do CPP -, com vista à modificação da factualidade dada por provada e não provada na primeira instância e da qualificação do homicídio como qualificado e da medida da pena.

IV - A pretensão recursiva da assistente neste caso concreto, não visava apenas a pena e sua medida, mas antes se situava a montante, ao nível, em primeira linha, da fixação da matéria de facto, a que se seguiria requalificação jurídica no pressuposto daquela alteração da matéria de facto e só supervenientemente surgiria a questão da pena.

V - A questão da alteração da matéria de facto como antecâmara da alteração da qualificação jurídica pode ter reflexo na componente sancionatória civil, já que um dos critérios é o grau de culpa do infractor, e não será indiferente os contornos, da causa, de pedir da acção hospedeira da conformação do concreto crime que substancia a violação do direito à vida, elemento a ter em conta na definição da dimensão do quantum indemnizatório.

VI - Atendendo à intervenção processual pretérita da assistente, considera-se preenchido o pressuposto da legitimidade e do interesse em agir, não sendo caso de rejeição do recurso, rejeição essa que, no caso concreto, se traduziu-se em violação do direito ao recurso, determinando a revogação do acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro que conheça das questões suscitadas pela recorrente.»

- Ac. de 18/01/2012:
«I - A circunstância de haver ou não recurso do MP não condiciona as possibilidades de recurso do assistente. A única exigência da lei como pressuposto do recurso de uma decisão é que seja proferida contra o assistente, isto é, que tenha interesse em agir – n.º 2 do art. 401.º do CPP.

II - O interesse em agir do assistente, como pressuposto do recurso, significa a necessidade que tenha de usar este meio para reagir contra uma decisão que comporte uma desvantagem para os interesses que defende, ou que frustre uma sua expectativa ou interesse legítimos, que significa que só pode recorrer de uma decisão que determine uma desvantagem; não poderá recorrer quem não tem qualquer interesse juridicamente protegido na correcção da decisão.

III - A definição do concreto interesse em agir supõe, pois, que se identifique qual o interesse que, no caso, a assistente pretende realizar no processo, e especificamente em cada fase do processo. O interesse em agir consiste na necessidade de apelo aos tribunais para acautelar um direito ameaçado que necessite de tutela e só por essa via possa obtê-la; o interesse em agir radica na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários para assegurar um direito em perigo: trata-se de uma posição objectiva perante o processo, que é ajuizada a posteriori.

IV - O STJ (Assento de 30-10-97) ficou jurisprudência no sentido de o assistente não ter legitimidade para recorrer, desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir. Na interpretação do sentido da jurisprudência fixada, o assistente não fica impedido de recorrer, desacompanhado do MP, no que respeite à espécie e medida concreta da pena; impõe-se-lhe, no entanto, a obrigação ou o ónus processual de demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.

V - As finalidades da punição, que justificam a espécie e a medida da pena, não visam dar satisfação ao ofendido pelo crime; a determinação da concreta medida da pena não pode, por isso, considerar-se que possa afectar os interesses do assistente.

VI - A decisão que condene o arguido como autor de um crime de homicídio simples não poderá considerar-se proferida contra o assistente se houver discordância no estrito aspecto da qualificação jurídico-penal dos factos. E também não se poderá dizer que, por essa razão, o assistente tem um interesse concreto em agir, no sentido de necessidade de tutela dos tribunais para defender um direito seu. O assistente não pretende propriamente uma mera discussão jurídica sobre a correcta qualificação dos factos, mas sim o agravamento da pena através da alteração da qualificação; tal agravamento insere-se no exercício do jus puniendi do Estado, que ao MP cabe promover, e cabendo a promoção de tal interesse ao MP, o assistente não pode recorrer por falta de interesse em agir.

VII - Não tendo invocado qualquer interesse específico – um «concreto e próprio» interesse ou vantagem – na aplicação de uma pena mais elevada ao arguido, distinto das finalidades públicas de aplicação da pena, não apresenta ao tribunal base suficiente para poder determinar se a decisão, que foi de condenação, foi proferida «contra» a assistente, e se existe «interesse em agir» relevante que possa integrar o pressuposto de admissibilidade do recurso.»

- Ac. de 10/04/2014:
«I - De acordo com a jurisprudência obrigatória constante do AFJ 8/99 «O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».

II - Se a discordância deriva de causa que afectou o interesse do assistente e em razão de tal se possa considerar vencido [CPP – arts. 401.º, n.ºs 1, al. b), e 2, e 69.º, n.ºs 1 e 2, al. c)], tem este interesse em agir, pelo que pode recorrer. Este interesse em agir tem de ser concreto e do próprio, pelo que é insuficiente se o assistente não demonstrar um real e verdadeiro interesse, oriundo duma posição equidistante que visa a salvaguarda de valores jurídicos, mas pretende fazer valer uma ideia de vindicta privada.

III -No vertente caso, os assistentes recorrentes não invocam qualquer interesse próprio, e concreto, em agir na alteração da medida concreta da pena, para além das necessidades de prevenção a nível geral, mas a defesa destas é tarefa do MP, que, ao não interpor recurso, entendeu a pena como ajustada, tendo mesmo manifestado essa opinião na resposta ao recurso da recorrente. Não sendo invocado qualquer interesse específico ou vantagem na aplicação de uma pena mais elevada, distinto das finalidades públicas da aplicação da pena, não pode este tribunal dizer que a decisão foi proferida contra o assistente e se existe interesse em agir relevante que possa integrar o pressuposto de admissibilidade do recurso nesta parte.


IV - Consequentemente, por falta de legitimidade do assistente, rejeita-se o recurso interposto, nos termos dos arts. 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, ambos do CPP.»

- Ac. de 12/10/2016:
«I - Não invocando o assistente qualquer interesse específico ou vantagem na aplicação de uma pena mais elevada, distinto das finalidades públicas da aplicação da pena – as necessidades de prevenção a nível geral, cuja defesa compete ao MP, que, ao não interpor recurso, julga justa e adequada a pena aplicada –, não se pode dizer que a decisão foi proferida contra o assistente e que existe interesse em agir relevante que possa integrar o pressuposto de admissibilidade de recurso.

II - Constitui decisão proferida contra o assistente a decisão que, tendo em conta a acusação por aquele deduzida ou sufragada e as pretensões por ele formuladas no âmbito das suas atribuições, com vista ao julgamento e à decisão da causa, julga as mesmas improcedentes, total ou parcialmente.

III - A assistente insurge-se contra a injustiça, a brandura, da pena aplicada, porque entende não se coadunar com as finalidades da punição definidas nos arts. 40.º e 71.º, do CP, não se vislumbrando que a reclamada agravação da mesma pena tenha ou possa ter qualquer reflexo na satisfação dos seus interesses próprios, designadamente no montante da indemnização fundada na prática do crime. Pelo que, não se pode dizer que a decisão foi proferida contra a assistente e que existe interesse em agir relevante que possa integrar o pressuposto de admissibilidade do recurso.»

Revertendo ao caso dos autos:
O ora recorrente só se constituiu na qualidade de assistente, após a prolação da sentença, no decurso do prazo para a interposição do recurso.

A pretensão do recorrente, no aspeto penal, cinge-se à questão da revogação da decisão, na parte em que decretou a suspensão da execução do internamento do arguido, declarado inimputável perigoso, por entender que o mesmo «não cumprirá as condições a que está sujeita a suspensão e nessa medida existe o risco de repetição de prática do ilícito pelo qual foi condenado, não se protegendo assim a segurança da comunidade, e tão pouco a sua ressocialização, finalidades que a medida de segurança de internamento visam salvaguardar».

Não invoca o recorrente qualquer interesse específico ou, como se refere no Assento[1] n.º 8/99, um concreto e próprio interesse – distinto da finalidade de «defesa social»[2] que a aplicação da medida de segurança visa prosseguir e cuja defesa compete ao Ministério Público, que não interpôs recurso – no internamento do arguido.

Neste quadro, entendemos assistir razão ao Exm.º PGA, quando defende que por não ter a posição de vencido nem ter sido diretamente prejudicado pela decisão, por esta não ter sido proferida contra posição por ele tomada no processo, não tem o assistente legitimidade para a impugnar, visto a mesma não ter posto em causa um seu interesse digno de proteção.

Assim, por falta de legitimidade e interesse em agir do assistente EE, nos termos estabelecidos nos artigos 69º, n.º 2, al. c) e 401º, n.º 1, al. b) e n.º 2, ambos do CPP, rejeita-se o recurso, na parte penal (cf. artigos 414º, n.º 2 e 420º, n.º 1, al. b), ambos do CPP).

(…).»
2.2. Na reclamação ora em apreciação, sustenta o assistente/recorrente que, contrariamente, ao que foi entendido na decisão sumária, tem legitimidade para impugnar a espécie e a medida da pena, conforme jurisprudência já fixada pelo STJ, no AFJ n.º 8/99, divergindo do entendimento perfilhado na decisão sumária sobre a amplitude do “concreto e próprio interesse em agir”, ancorando a posição que defende no entendimento acolhido nos Acórdãos do STJ de 18/01/2012 e de 22/01/2015, proferidos, respetivamente, nos processos n.º 1740/10.1JAPRT.P1.S1 e n.º 520/13.7PHLSB.L1.S1, cujo sumários se transcreveram na decisão sumária e que supra se reproduziram e na doutrina, por Helena Mourão[3], que refere: “Na medida em que a finalidade de prevenção especial positiva também se destina a reincidência, deve admitir-se o recurso do assistente quando este entenda que a pena aplicada não é suficiente para garantir a sua própria segurança”.

Considera o assistente, ora recorrente que, perante a matéria factual dada como provada na sentença de que interpôs recurso e as considerações expendidas na respetiva fundamentação [“existir uma forte probabilidade de o Arguido vir a cometer novos factos ilícitos, pelo menos, de semelhante gravidade aos presentes, o que, aliado à constatada necessidade de receber tratamento pela sua doença, conduz-nos à conclusão que se encontram reunidos os pressupostos necessários à aplicação de uma medida de segurança de internamento ao Arguido, adequada a evitar o risco de ele vir a cometer outros factos da mesma espécie” e tendo sido dado como provado no ponto 22 da matéria de facto provada que: “A patologia psiquiátrica de que padece não permite ao arguido reunir as condições necessárias para gerir a própria terapêutica”] e o que alegou na motivação de recurso, acrescentando na reclamação sob apreciação que:
«(…)

20. Havendo probabilidade de o Recorrido não se medicar devidamente, tal situação levará a estados psíquicos que possibilitarão a reincidência dos actos criminosos provados em 1.ª instância;

21. Após ter-se encontrado na situação de ter a sua propriedade invadida pelo Recorrido subsiste no Assistente o receio de que tais atos voltem a reiterar-se;

22. Não só em relação à comunidade que o rodeia, mas, principalmente, em relação a si, na medida em que o Arguido já logrou invadir a sua propriedade;

23. O que á agravado pelo facto de o próprio Tribunal a quo considerar que o Recorrido não será capaz de gerir a sua medicação e, ao mesmo tempo, surpreendentemente suspender a medida de internamento (…)”, na ótica do recorrente, haverá que concluir que demonstrou ter interesse em agir “próprio e concreto, na revogação da suspensão da medida de internamento, pelo que, nos termos e para efeitos do artigo 401º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CPP e, de acordo com a jurisprudência fixada no Assento n.º 8/99, o Assistente tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada.

Apreciando:
Salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos não existir fundamento para alterar o sentido da decisão sumária proferida.

De facto, confrontando a motivação do recurso interposto pelo assistente, afigura-se-nos claro que o recorrente não demonstrou, nem sequer, nessa sede, alegou matéria de que resultasse ter “um concreto e próprio interesse”, entenda-se distinto da finalidade de «defesa social» que a aplicação da medida de segurança visa prosseguir – e cuja defesa compete ao Ministério Público, que não interpôs recurso –, na revogação da suspensão da medida de internamento do arguido e no efetivo internamento deste.

Na sentença recorrida, foi o arguido declarado inimputável perigoso, reportando-se a perigosidade a factos passíveis de integrar o crime de furto qualificado.

O fundado receio de que o arguido venha a praticar factos da mesma espécie dos cometidos, constituiu pressuposto indispensável para que lhe fosse aplicada medida de segurança, conforme resulta do disposto no artigo 91º, n.º 1, do Código Penal.

O assistente vem alegar que a situação de ter a sua propriedade invadida pelo arguido leva a que subsista no assistente o receio de que tais atos voltem a reiterar-se, principalmente, em relação a si e, daí, que exista um concreto interesse próprio, na revogação da suspensão do internamento.

A circunstância do arguido ter praticado os factos que resultaram provados, entrando, mediante, escalamento, na residência do assistente – daí retirando e levando consigo, sem autorização e contra a vontade dos seus legítimos, diversos objetos, entre os quais, facas, navalhas, espingardas de caça e cartuchos, deles se apropriando –, na ausência de outros elementos que levem a concluir que a probabilidade ou o fundado receio que existe de o arguido vir a reiterar a prática de atos da mesma natureza dos cometidos, contra o assistente, seja maior do que a de o ser contra outras pessoas, não permite afirmar a existência de “um concreto e próprio interesse” do assistente, na revogação da suspensão do internamento.

Sem entramos na apreciação do mérito do recurso, sempre se dirá que a suspensão da medida de internamento decretada pelo Tribunal a quo, não foi uma «pura e simples suspensão», antes foi acompanhada, nos termos do disposto no artigo 98º, n.º 3, do CP, da imposição ao arguido de deveres e regras de conduta, conforme resulta do dispositivo da sentença recorrida que supra se transcreveu, sendo determinado, pelo Tribunal a quo, a elaboração de um plano de readaptação, pela DGRSP, que deverá contemplar «a clara definição dos tratamentos, medicação e exames a que o arguido deve ser submetido para controlar, de forma regular e eficaz, a doença mental de que padece», ficando a DGRSP com o dever de fiscalizar o cumprimento daqueles deveres pelo arguido, podendo, nesse domínio, caso se venha a verificar que o arguido não consegue controlar a toma de medicação que lhe seja prescrita, ser esse controlo efetuado por terceiros a indicar para o efeito e avaliando-se, periodicamente, o evoluir da situação e caso de venha a verificar qualquer das situações previstas no artigo 95º, n.º 1, aplicável ex vi da al. b) do n.º 6 do artigo 98º, ambos do Código Penal, podendo ser revogada a suspensão do internamento.

Por todo o exposto e, pelos fundamentos aduzidos na decisão sob reclamação e que aqui se reiteram, não invocando o assistente, no recurso que interpôs da sentença proferida nos autos, qualquer interesse específico e próprio, distinto da finalidade de «defesa social» que a aplicação da medida de segurança visa prosseguir – e cuja defesa compete ao Ministério Público –, no internamento do arguido, declarado inimputável perigoso - reportando-se a perigosidade a factos passíveis de integrar o crime de furto qualificado –, não lhe assiste legitimidade nem tem interesse em agir, nos termos estabelecidos nos artigos 69º, n.º 2, al. c) e 401º, n.º 1, al. b) e n.º 2, ambos do CPP, para, desacompanhado do Ministério Público, recorrer da sentença, pugnando pela revogação da suspensão da execução do internamento do arguido.

Consequentemente, é de manter a decisão sob reclamação, rejeitando-se o recurso interposto pelo assistente (cf. artigos 414º, n.º 2 e 420º, n.º 1, al. b), ambos do CPP).

3 – DECISÃO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em:

a) Indeferir a reclamação, para a conferência, confirmando-se a decisão sumária proferida pela relatora, que rejeitou, também na parte penal, o recurso interposto pelo assistente.

b) Condena-se o reclamante/recorrente em 1 (uma) UC de taxa de justiça (cf. n.º 9 do artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo diploma legal - “Reclamações”).

Notifique.

Évora, 21 de janeiro de 2020

Fátima Bernardes

Fernando Pina
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[1] Atualmente com o valor de acórdão uniformizador de jurisprudência.

[2] Cf. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequência Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, págs. 429 e ss.

[3] “Da delimitação subjetiva ao direito ao recurso em matéria penal – fundamento e legitimidade para recorrer”, in Revista Anatomia do Crime, 3, 2017, pág. 25.