Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
53/19.8GACUB-B.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: ARGUIDO ESTRANGEIRO
GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO
TRADUÇÃO DE DOCUMENTOS
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
NULIDADE ABSOLUTA
PRIMADO DO DIREITO DA UE
Data do Acordão: 08/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Encontrando-se verificados todos os requisitos dos quais depende a atribuição de efeito direto vertical às Diretivas e considerando o primado do Direito da União, somos a concluir que as Diretivas n.ºs 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, concretamente as normas constantes dos artigos 1º a 3º da Diretiva n.º 2010/64/EU e 3º da Diretiva n.º2012/13/EU, têm efeito direto vertical em Portugal, pelo que poderão ser aplicadas nos presentes autos, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno.
II - Todos os atos processuais levados a efeito nas fases preliminares do processo penal com intuito eminentemente informativo e concretizador das garantias de defesa dos arguidos deverão ser objeto de tradução para língua dominada pelos seus destinatários, sob pena de total esvaziamento dos referidos atos, que, praticados no processo sem tradução, mais não assegurariam do que o cumprimento estritamente formal de normas processuais, sem qualquer correspondência material no que diz respeito aos fins que visam prosseguir.
III - Entre os referidos atos – e pese embora o único artigo do CPP português que prevê o direito à tradução, o artigo 92º, não os contemple em previsão expressa – contam-se, indubitavelmente, pela sua importância ao nível das garantias de defesa dos arguidos, decorrente das informações processuais que aportam, a prestação de Termo de Identidade e Residência realizada nos termos 196º do CPP, a notificação do arguido nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e a notificação do despacho de revogação da suspensão da execução da pena, atos que deverão ser qualificados como «documentos essenciais» na aceção do artigo 3.°, n.ºs 1 e 2, da Diretiva 2010/64.
IV - A imperatividade resultante da aplicação das normas das Diretivas e da Jurisprudência do TJ, atendendo ao princípio do primado do Direito da União reconhecido pelo artigo 8º, nº 4 da CRP, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União, o que, no que à economia do caso dos autos diz respeito, determina a desaplicação do regime da sanação das nulidades estabelecido pelo artigo 120º, nº 3 do CPP aplicado na decisão recorrida, em virtude de o mesmo se não revelar compatível com os direitos fundamentais a um processo equitativo e com o respeito pelos direitos de defesa decorrentes dos artigos 47.° e 48.°, n.° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como do artigo 6.° da CEDH, à luz dos quais deverão ser interpretados os artigos 2.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1 da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos autos de processo sumário que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Cuba, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, com o n.º 53/19.8GACUB-B, por acórdão desta Relação datado 08.03.2022, foi determinado o reenvio prejudicial dirigido ao Tribunal de Justiça da EU, nos termos previstos no artigo 267º do TFUE, no qual foi expressa e autonomamente colocada a seguintes questão:
“Podem os artigos 1º a 3º da Diretiva n.º 2010/64/EU e 3º da Diretiva n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, isoladamente ou em conjunto com o artigo 6.º da C.E.D.H., ser interpretados no sentido de não se oporem a uma norma de direito nacional que comine com o vício de nulidade relativa, dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete e de tradução de atos processuais essenciais a arguido que não compreenda a língua do processo, permitindo a sanação de tais vícios com o decurso do tempo?”
No âmbito do pedido de reenvio prejudicial, ao qual foi conferida tramitação urgente, ao abrigo do disposto nos artigos 267.º do TFUE, 4º parágrafo, 105.º e seguintes do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e 23.º-A do Estatuto do TJUE, nos termos solicitados por este tribunal[1], foi proferido acórdão pelo Tribunal de Justiça da EU, publicado no dia de ontem, 01.08.2022, que respondeu à questão colocada da seguinte forma:
“O artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, lidos à luz do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual a violação dos direitos previstos nas referidas disposições destas diretivas deve ser arguida pelo beneficiário desses direitos num determinado prazo, sob pena de sanação, quando esse prazo começa a correr ainda antes de a pessoa em causa ter sido informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados.”
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Recordamos que o presente recurso tem por objeto a apreciação do despacho que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido de verificação das nulidades decorrentes da falta de nomeação de intérprete ou da omissão de tradução - sendo o arguido de nacionalidade ... e não entendendo, nem se expressando na língua portuguesa - aquando do ato de prestação de T.I.R., bem como aquando da notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e da notificação do despacho de revogação de suspensão da execução da pena, por ter entendido que, constituindo nulidades relativas ou dependentes de arguição, as mesmas se encontravam sanadas, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea c) e nº 3, alíneas a) e d) do C.P.P., por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado do despacho que revogou a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido.
No recurso solicitou o arguido a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que declarasse inexistentes o auto de constituição de arguido, a prestação do T.I.R., o despacho revogatório da suspensão da execução da pena e respetiva notificação, com determinação da ineficácia do processado posterior.
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Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo o Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitido parecer igualmente no sentido da improcedência do recurso.
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No acórdão que determinou o reenvio prejudicial foi delimitado o objeto do recurso, com enunciação das questões a apreciar e a decidir, questões que, por clareza de exposição passamos a reproduzir:
A) Determinar se as Diretivas n.ºs 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, que consagram, respetivamente, o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal, têm aplicação na ordem interna nacional, por via de um “efeito direto vertical”, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno ou, alternativamente, inexistindo esse efeito, por via de interpretação do direito nacional de acordo com o “princípio da interpretação conforme” (nos termos consagrados no Acórdão Marleasing, respetivo n.º 8).
B) Em qualquer caso – efeito direto vertical; interpretação conforme – haverá que determinar, de seguida, se os atos processuais cuja validade vem posta em causa pelo arguido – auto de constituição de arguido, prestação de TIR, notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e notificação do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão – se incluem no conceito de “documentos essenciais” a que alude o artigo 3º da Diretiva n.º 2010/64/EU, por forma a acautelar os “minimum rights” previstos no artigo 6.º, n.º 3 da C.E.D.H, e se nos mesmos deveriam ter sido assegurados os direitos à nomeação de intérprete e à tradução a que aludem o artigo 1º a 3º da mesma Diretiva e o artigo 3º, nº 1, alínea d) da Diretiva 2012/13/UE.
C) Em caso de resposta afirmativa à questão precedente, importará estabelecer as consequências jurídico-processuais da falta de nomeação de intérprete e de tradução dos referidos atos, e, consequentemente, determinar se a interpretação do artigo 120.º, n.º 3 do C.P.P. propugnada pelo Tribunal “a quo” – no sentido de considerar sanadas as nulidades por omissão de tradução na constituição de arguido, na prestação de T.I.R., na notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e na notificação do despacho que determinou a revogação da suspensão da pena, por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado daquele despacho – se revela compatível com a aplicação das identificadas Diretivas Comunitárias.
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No mesmo acórdão conheceu este Tribunal das identificadas questões, nos termos aí explanados e para os quais remetemos na íntegra, tendo decidido, em síntese:
- Quanto à questão enunciada em A), que as Diretivas n.ºs 2010/64/EU e n.º 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, que consagram, respetivamente, o direito à interpretação e tradução e o direito à informação em processo penal, têm aplicação na ordem interna nacional, por via do “efeito direto vertical”, impondo-se e prevalecendo sobre o direito interno.
- Quanto à questão enunciada em B), que os atos processuais cuja validade vem posta em causa pelo arguido – auto de constituição de arguido, prestação de TIR, notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e notificação do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão – se incluem no conceito de “documentos essenciais” a que alude o artigo 3º da Diretiva n.º 2010/64/EU, por forma a acautelar os “minimum rights” previstos no artigo 6.º, n.º 3 da C.E.D.H, e que nos mesmos deveriam ter sido assegurados os direitos à nomeação de intérprete e à tradução a que aludem o artigo 1º a 3º da mesma Diretiva e o artigo 3º, nº 1, alínea d) da Diretiva 2012/13/UE.
- Quanto à questão enunciada em C), com vista a estabelecer as consequências jurídico-processuais da falta de nomeação de intérprete e de tradução dos referidos atos, e, consequentemente, determinar se a interpretação do artigo 120.º, n.º 3 do C.P.P. propugnada pelo Tribunal “a quo”no sentido de considerar sanadas as nulidades por omissão de tradução na constituição de arguido, na prestação de T.I.R., na notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e na notificação do despacho que determinou a revogação da suspensão da pena, por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado daquele despacho – se revela compatível com a aplicação das identificadas Diretivas Comunitárias, foi determinado o reenvio prejudicial ao TJ, nos termos sobreditos, com a formulação da questão acima transcrita.
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II.II - Apreciação do mérito do recurso.
Conforme deixámos já consignado no acórdão que determinou o reenvio prejudicial, para decisão do recurso, releva a seguinte factualidade:
- O arguido é de nacionalidade ... e não compreende nem se expressa na língua portuguesa.
- Foi constituído arguido em 10.07.2019, tendo o respetivo auto sido redigido em língua portuguesa e traduzido para a língua oficial da ..., a língua ..., conforme resulta do respetivo auto assinado pelo arguido.
- O arguido foi sujeito a Termo de Identidade e Residência em 10.07.2019, tendo sido fixada em tal documento a seguinte morada: Rua ..., ... ....
- Não foi facultada ao primeiro a tradução do Termo de Identidade e Residência para a língua oficial da ..., a língua ....
- Nos atos de constituição de arguido e de prestação de TIR não foi nomeado intérprete ao arguido.
- Em audiência de julgamento o arguido foi assistido por defensora, tendo sido nomeada intérprete para proceder à tradução dos atos da audiência, intérprete que prestou compromisso legal de bem desempenhar as suas funções.
- Por sentença proferida nos autos em 11.07.2019 e transitada em julgado a 26.09.2019, o arguido foi condenado, em cúmulo jurídico, pela prática dos crimes de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 2 do Código Penal, condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. no artigo 291º, alíneas a) e b) e 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.º, n.º s 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período com subordinação a regime de prova, na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 12 meses e na pena de 80 dias de multa, à razão diária de €6,00, num montante total de €480,00.
- O arguido não respondeu às diversas tentativas de contacto efetuadas pela D.G.R.S.P. na morada constante do TIR.
- O arguido não comunicou qualquer alteração de morada aos autos.
- Em 12 de Janeiro de 2021, na sequência de despacho proferido a 07.01.2021, foi o arguido notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 495.º n.º 1 e 2 do C.P.P., por via postal simples com prova de depósito, enviada para o endereço constante do TIR – a Rua ..., ... ... – para comparecer no tribunal a fim de ser ouvido relativamente ao incumprimento dos deveres, regras de conduta e obrigações que lhe haviam sido impostas na sentença.
- Em 6 de abril de 2021 foi repetida tal notificação, para a mesma morada, por carta simples com prova de depósito, a notificar o arguido de uma nova data.
- Tais notificações foram efetuadas na língua portuguesa.
- Na data designada o arguido não compareceu em Tribunal.
- No dia 9 de junho de 2021 foi proferido despacho no qual se revogou a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido e se determinou a emissão de mandados de detenção e condução do mesmo ao estabelecimento prisional.
- Este despacho foi notificado à defensora do arguido e a este último, por via postal simples com prova de depósito enviada para a morada do TIR, em 25 de junho de 2021, tendo transitado a 20 de setembro de 2021.
- O referido despacho foi notificado ao arguido na língua portuguesa, não lhe sido facultada a respetiva tradução para a língua oficial da ..., a língua ....
- A 30 de Setembro de 2021 foi o condenado detido para cumprimento da pena de 3 anos de prisão, tenho o mandado sido cumprido na nova morada do mesmo, sita na Rua ..., ..., ..., ..., encontrando-se o arguido preso desde tal data.
- A 11 de Outubro de 2021 o arguido constituiu advogado nos autos, tendo juntado a respetiva procuração forense.
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No presente recurso impugna o recorrente a validade dos atos processuais consubstanciados na sua constituição como arguido, na prestação de TIR, na notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e na notificação do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada nos autos, por violação das garantias de defesa face à não disponibilização de tradução do conteúdo de tais atos para a sua língua materna. A juiz “a quo” não perfilhou o entendimento exposto pelo arguido, tendo, ao invés, subscrito a argumentação expendida pelo Ministério Público na sua resposta, com base na qual proferiu a decisão recorrida indeferindo o requerimento do arguido, sustentando que as faltas de nomeação de intérprete e de tradução dos mencionados atos processuais consubstanciam nulidades relativas e, portanto, dependentes de arguição no prazo legal, encontrando-se, à data da prolação do despacho, já sanadas.
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Encontrando-se já decidido no acórdão datado de 08.03.2022 que os atos processuais cuja validade vem posta em causa pelo arguido se incluem no conceito de “documentos essenciais” a que alude o artigo 3º da Diretiva n.º 2010/64/EU e que nos mesmos deveriam ter sido assegurados os direitos à nomeação de intérprete e à tradução consagrados nos artigos 1º a 3º da mesma Diretiva e no artigo 3º, nº 1, alínea d) da Diretiva 2012/13/EU, para decidirmos a questão atinente às consequências jurídico-processuais da falta de nomeação de intérprete e de tradução dos referidos atos, importa neste momento dar cumprimento ao acórdão do TJ que decidiu o pedido de reenvio prejudicial.
Reafirmando o que consignámos já no acórdão anterior, fazemos notar estarmos perante normas de Direito da União, concretamente normas emanadas das instituições da União Europeia, que produzem os seus efeitos na ordem jurídica interna ao abrigo do artigo 8º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa. Sobre a interpretação deste preceito constitucional (no contexto de um pedido de fiscalização de constitucionalidade de uma norma de um Regulamento da EU) pronunciou-se o Tribunal Constitucional, pela primeira vez, no recente Acórdão nº 422/2020 relatado pelo Conselheiro José Teles Pereira, tendo-se aí afirmado o princípio do primado do direito da EU sobre o direito interno[2].
Atentemos, pois, nos termos do acórdão do TJ publicado em 01.08.2022 e que foi junto aos autos na mesma data, ao qual devemos obediência, e que, por clareza de exposição, passamos a transcrever nas partes que, a nosso ver, assumem maior relevância para a questão decidenda:
“(…) 37 No âmbito do processo de cooperação previsto no artigo 267.° TFUE, embora, no plano formal, o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado a sua questão à interpretação de uma disposição específica do direito da União, tal circunstância não obsta a que o Tribunal de Justiça lhe forneça todos os elementos de interpretação desse direito que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que requerem uma interpretação tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (Acórdão de 15 de julho de 2021, …, C-190/20, EU:C:2021:609, n.° 23 e jurisprudência referida).
38 Uma vez que a questão prejudicial visa os artigos 1.° a 3.° da Diretiva 2010/64 e o artigo 3.° da Diretiva 2012/13, considerados isoladamente ou em conjunto com o artigo 6.° da CEDH, importa recordar, por um lado, que esta disposição garante o direito a um processo equitativo e o respeito pelos direitos de defesa, o que inclui, em conformidade com o disposto neste artigo 6.°, n.° 3, o direito de o acusado ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada, bem como de se fazer assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo.
39 Por outro lado, o artigo 52.°, n.° 3, da Carta especifica que, na medida em que esta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa convenção. Além disso, em conformidade com as anotações relativas ao artigo 47.° e ao artigo 48.°, n.° 2, da Carta, que, como resulta do artigo 6.°, n.° 1, terceiro parágrafo, TUE e do artigo 52.°, n.° 7, da Carta, devem ser tidas em conta para a interpretação da Carta, estas disposições correspondem, respetivamente, ao artigo 6.°, n.° 1, e ao artigo 6.°, n.os 2 e 3, da CEDH [v., neste sentido, Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio), C-564/19, EU:C:2021:949, n.° 101].
40 Acresce que, no que respeita à interpretação das diretivas em causa no processo principal, há que recordar que, por força dos considerandos 5 a 7, 9 e 33 e do artigo 1.° da Diretiva 2010/64, bem como dos considerandos 5, 7, 8, 10 e 42 e do artigo 1.° da Diretiva 2012/13, estas diretivas visam estabelecer regras mínimas comuns em matéria de proteção das garantias e dos direitos processuais decorrentes do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta, bem como do artigo 6.° da CEDH, em particular nos domínios da interpretação, tradução e informação em processo penal, e que estas regras devem ser interpretadas e aplicadas de forma coerente com esses direitos e garantias, reforçando a confiança mútua nos sistemas de justiça penal dos Estados-Membros, a fim de aumentar a eficiência da cooperação judiciária neste domínio.
41 Assim, o artigo 2.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64 exige que os Estados-Membros assegurem que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa beneficiem, sem demora, de interpretação durante a tramitação penal perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais, ao passo que o artigo 3.°, n.° 1, desta diretiva exige que assegurem que aos suspeitos ou acusados que não compreendem tal língua seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo. Por seu turno, o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13 impõe aos Estados-Membros que assegurem que os suspeitos ou acusados de uma infração penal recebam prontamente informações sobre o direito à interpretação e à tradução, a fim de permitir o seu exercício efetivo.
42 Por conseguinte, há que constatar, por um lado, que este artigo 2.°, n.° 1, e este artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como este artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, são concretamente os que estão em causa no processo principal e, por outro, que estas disposições concretizam os direitos fundamentais a um processo equitativo e ao respeito pelos direitos de defesa, consagrados, nomeadamente, no artigo 47.° e no artigo 48.°, n.° 2, da Carta e devem ser interpretados à luz destes últimos.
43 Nestas condições, deve considerar-se que o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.°, n.°l, eo artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, lidos à luz do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual, por um lado, a violação dos direitos consagrados nas referidas disposições destas diretivas apenas pode ser utilmente arguida pelo beneficiário desses direitos e, por outro, essa violação deve ser suscitada num prazo determinado, sob pena de sanação.
44 A este respeito, importa salientar, antes de mais, que resulta da decisão de reenvio que TL não beneficiou da assistência de um intérprete quando da elaboração do TIR e que este documento não foi traduzido para uma língua que ele fale ou compreenda. Além disso, nem o Despacho de 7 de janeiro de 2021 que o notificou para comparecer em tribunal na sequência dos incumprimentos alegados das obrigações decorrentes do regime de prova nem o Despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 9 de junho de 2021 foram traduzidos para uma língua compreendida por TL.
45 Em seguida, embora a decisão de reenvio não mencione expressamente que TL não foi informado, aquando da sua constituição como arguido, do direito que lhe assistia de beneficiar de intérprete e da tradução dos documentos essenciais do processo penal contra si instaurado, afigura-se que o órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa implícita de que essa informação não existiu, razão pela qual interroga o Tribunal de Justiça não só sobre a interpretação da Diretiva 2010/64 mas também sobre a interpretação da Diretiva 2012/13.
46 Por último, essa mesma decisão especifica que o artigo 92.°, n.° 2, do CPP, aplicável aos factos do processo principal, impõe a nomeação de um intérprete nos processos relativos a pessoas que não conhecem ou que não dominam a língua portuguesa e que, em conformidade com o disposto no artigo 120.° do CPP, a falta de nomeação de um intérprete num ato a que a pessoa em causa assista é suscetível de determinar a nulidade desse ato, na dupla condição, por um lado, de o pedido de declaração de nulidade provir dessa pessoa e, por outro, de esse pedido ser apresentado antes de o ato estar terminado.
47 Por conseguinte, é à luz deste contexto que há que examinar a questão, conforme reformulada no n.° 43 do presente acórdão.
48 Para responder a esta questão, importa constatar, em primeiro lugar, que, mesmo na hipótese de o artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, não terem sido transpostos ou terem sido transpostos de maneira incompleta para a ordem jurídica portuguesa, hipótese que o órgão jurisdicional de reenvio considera assente, ao passo que o Governo português parece contestá-la, TL pode invocar os direitos decorrentes destas disposições, uma vez que, como observaram tanto esse órgão jurisdicional como todos os interessados que intervieram no processo no Tribunal de justiça, estas disposições têm efeito direto.
(…)
53 Em segundo lugar, importa salientar que os três atos processuais em causa no processo principal, a saber, o TIR, o Despacho de 7 de janeiro de 2021 que notificou TL para comparecer em tribunal e o Despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 9 de junho de 2021, estão abrangidos pelo âmbito de aplicação das Diretivas 2010/64 e 2012/13 e constituem, designadamente, documentos essenciais cuja tradução escrita devia ter sido facultada a TL por força do artigo 3.°, n.° 1, da primeira destas diretivas.
54 A este respeito, cabe recordar que, em conformidade com o disposto no artigo l.°, n.° 2, da Diretiva 2010/64 e no artigo 2.°, n.° 1, da Diretiva 2012/13, os direitos aí reconhecidos são conferidos a qualquer pessoa, a partir do momento em que lhe seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal, até ao termo do processo penal, ou seja, até ser proferida uma decisão definitiva sobre a questão de saber se o suspeito ou acusado cometeu a infração penal que lhe é imputada, inclusive, se for caso disso, até que a sanção seja decidida ou um eventual recurso seja apreciado.
55 Assim, decorre das disposições referidas no número anterior que estas diretivas são aplicáveis aos processos penais na medida em que estes visem determinar se o suspeito ou o acusado cometeu uma infração penal [v., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2021, AB eo. (Revogação da amnistia), C-203/20, EU:C:2021:1016, n.° 69],
(…)
58 Neste contexto, como enunciam designadamente os seus considerandos 14, 17 e 22, a Diretiva 2010/64 visa garantir que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo tenham direito a interpretação e a tradução, facilitando o exercício desse direito, com vista a garantir a essas pessoas o direito de beneficiar de um processo equitativo. Deste modo, o artigo 3.°, n.os 1 e 2, desta diretiva prevê que os Estados-Membros asseguram que a estas pessoas seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais, o que inclui, designadamente, as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças proferidas a seu respeito, para lhes permitir exercer os seus direitos de defesa e a fim de garantir a equidade do processo (v., neste sentido, Acórdão de 9 de junho de 2016, …, C-25/15, EU:C:2016:423, n.° 38).
59 Ora, há que observar que, contrariamente às situações em causa nos processos que deram origem aos Acórdãos de 16 de dezembro de 2021, AB e o. (Revogação da amnistia) (C-203/20, EU:C:2021:1016), e de 9 de junho de 2016, … (C-25/15, EU:C:2016:423), os três atos processuais em causa no processo principal fazem parte integrante, como salientaram, em substância, o órgão jurisdicional de reenvio e todos os interessados que intervieram no âmbito do processo no Tribunal de Justiça, do processo que determinou a responsabilidade penal de TL, e a aplicação das Diretivas 2010/64 e 2012/13 a esses atos justifica-se plenamente pelos objetivos que prosseguem.
60 Assim, no que se refere, por um lado, ao TIR, resulta da decisão de reenvio e do artigo 196.° do CPP que este termo, que é elaborado com a constituição de arguido como fase do processo penal, constitui uma medida de coação prévia que enuncia uma série de obrigações que impendem sobre essa pessoa, bem como as consequências processuais em caso de incumprimento dessas obrigações, e que permite às autoridades competentes, nomeadamente, tomarem conhecimento da morada na qual é suposto a dita pessoa manter-se à disposição delas, devendo esta, entre outros, comunicar qualquer alteração a este respeito. Esta medida de coação fica em vigor até à extinção da pena na qual essa mesma pessoa seja, eventualmente, condenada. Assim, o incumprimento dessa medida de coação é suscetível de determinar a revogação da suspensão da execução da pena aplicada. Atendendo às obrigações e às consequências significativas resultantes do TIR para a pessoa em causa ao longo de todo o processo penal e ao facto de esta ser informada dessas obrigações e consequências por meio do TIR, tal documento constitui, como o órgão jurisdicional de reenvio considera com razão, um «documento essencial» na aceção do artigo 3.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2010/64, especificando, aliás, o n.° 3 deste artigo que «as autoridades competentes devem decidir, em cada caso, se qualquer outro documento é essencial».
61 Por conseguinte, por força do artigo 2.°, n.° 1, e do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, TL tinha direito à tradução escrita do TIR e à assistência de um intérprete quando da elaboração do TIR. Além disso, em conformidade com o disposto no artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, TL tinha o direito de ser informado sobre esses direitos. Quanto a este último aspeto, resulta do considerando 19 desta última diretiva que as informações por ela abrangidas devem ser prestadas prontamente no decurso do processo e, o mais tardar, antes da primeira entrevista oficial do suspeito ou acusado, a fim de permitir o exercício prático e efetivo dos seus direitos processuais.
62 Embora, na audiência no Tribunal de Justiça, o Governo português tenha indicado que, regra geral, os direitos previstos nas disposições mencionadas no número anterior são respeitados no âmbito dos processos penais conduzidos em Portugal contra as pessoas que não compreendem a língua portuguesa, decorre, todavia, da decisão de reenvio que não foi o que se passou na situação em causa no processo principal, porquanto TL não foi informado da obrigação, prevista no artigo 196.° do CPP, de não mudar de residência sem comunicar a sua nova morada e, assim, não pôde cumprir essa obrigação. Daí resultou que as autoridades competentes para a implementação das obrigações decorrentes do regime de prova tentaram, em vão, entrar em contacto com TL na morada indicada no TIR. De igual modo, o Despacho de 7 de janeiro de 2021 que o notificou para comparecer em tribunal na sequência do incumprimento dessas obrigações e o Despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 9 de junho de 2021 foram notificados nessa morada e não na nova morada, ficando TL impossibilitado de tomar conhecimento desses despachos.
63 Por outro lado, cabe notar que, como observaram o Governo português e a Comissão, os referidos despachos constituem atos processuais complementares à condenação da pessoa em causa e que ainda fazem parte do processo penal, na aceção das Diretivas 2010/64 e 2012/13.
64 A este respeito, a aplicação das Diretivas 2010/64 e 2012/13 aos atos processuais relativos a uma eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão em que a pessoa em causa foi condenada, sem ter tido a possibilidade de compreender os documentos essenciais elaborados durante o processo penal, é necessária à luz do objetivo destas diretivas de assegurar o respeito pelo direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 47.° da Carta, bem como o respeito pelos direitos de defesa, garantido no artigo 48.°, n.° 2, da Carta, e de, assim, reforçar a confiança mútua nos sistemas de justiça penal dos Estados-Membros, a fim de aumentar a eficiência da cooperação judiciária neste domínio.
65 Com efeito, estes direitos fundamentais seriam violados se uma pessoa que foi condenada por uma infração penal numa pena de prisão suspensa na sua execução com subordinação a regime de prova fosse — devido à omissão de tradução da convocatória ou à falta de intérprete na audiência sobre a eventual revogação dessa suspensão — privada da possibilidade de ser ouvida, designadamente, sobre as razões por que não cumpriu as obrigações decorrentes do regime de prova. Assim, tal possibilidade pressupõe, por um lado, que a pessoa em causa receba a convocatória para a audiência para eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão, numa língua que fale ou compreenda, sem o que não se pode considerar que foi devidamente convocada e informada dos motivos dessa convocatória, e, por outro, que possa beneficiar, se necessário, de intérprete nessa audiência, para estar efetivamente em condições de explicar as razões na origem do incumprimento das obrigações decorrentes do regime de prova, razões que, eventualmente, podem ser legítimas e justificar assim a manutenção da suspensão da execução.
66 Além disso, na medida em que a decisão de revogação da suspensão determina a execução da pena de prisão aplicada à pessoa em causa, esta decisão também deve ser objeto de tradução quando a referida pessoa não fala ou não compreende a língua do processo, para que ela possa, nomeadamente, compreender as razões que fundamentam essa decisão e, se for caso disso, interpor recurso da mesma.
67 Esta interpretação é corroborada pela sistemática da Diretiva 2010/64. Com efeito, se, por um lado, em conformidade com o disposto no artigo 1.°, n.° 2, esta visa expressamente a «decisão da sanção» e se, por outro, em conformidade com o disposto no artigo 3.°, n.° 2, o conceito de «documentos essenciais» inclui expressamente «decisões que imponham uma medida privativa de liberdade», seria incoerente excluir do âmbito de aplicação desta diretiva os atos relativos a uma possível revogação da suspensão da execução, dado que, a final, esses atos são suscetíveis de conduzir à prisão efetiva da pessoa em causa e, assim, a uma ingerência mais significativa nos seus direitos fundamentais no decurso do processo penal.
68 Além do mais, o Tribunal de Justiça já declarou que, quando um ato processual é enviado apenas na língua do processo em causa a uma pessoa que não domine essa língua, essa pessoa não está em condições de compreender o que lhe é imputado e não pode, portanto, exercer validamente os seus direitos de defesa se não lhe for facultada a tradução do referido ato numa língua que fale ou compreenda (v., neste sentido, Acórdão de 12 de outubro de 2017, …, C-278/16, EU:C:2017:757, n.° 33).
69 Ora, no presente caso, resulta da decisão de reenvio que nem o Despacho de 7 de janeiro de 2021 que notificou TL para comparecer em tribunal nem o Despacho de revogação da suspensão da execução da pena de prisão de 9 de junho de 2021 foram traduzidos para a língua romena. Além disso, afigura-se que TL não foi informado do direito de receber a tradução desses despachos. Por último, não resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que, na audiência relativa ao incumprimento das obrigações decorrentes do regime de prova, TL tenha beneficiado de interpretação ou mesmo sido informado desse direito.
70 Nestas condições, e como resulta dos n.os 61 e 69 do presente acórdão, os direitos que o artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, conferem a TL foram violados no âmbito do processo penal em causa no processo principal.
71 Em terceiro lugar, quanto às consequências destas violações, resulta das constatações do órgão jurisdicional de reenvio que a violação do direito à interpretação constitui, na ordem jurídica portuguesa, um vício processual que, em conformidade com o disposto no artigo 120.° do CPP, comina com nulidade relativa os atos processuais correspondentes. Todavia, por um lado, de acordo com o n.° 2, alínea c), deste artigo, cabe à pessoa em causa arguir a violação do direito em questão. Por outro lado, nos termos do n.° 3, alínea a), desse mesmo artigo, o vício processual deve ser arguido, tratando-se de um pedido de declaração de nulidade de um ato a cuja elaboração a pessoa em causa assista, antes de este ato estar terminado, sob pena de sanação da nulidade.
72 Em resposta a uma pergunta feita pelo Tribunal de Justiça na audiência, o Governo português confirmou que o artigo 120.° do CPP também era aplicável à arguição dos vícios relativos à violação do direito à tradução dos documentos essenciais do processo penal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, bem como a aplicabilidade desta disposição à violação do direito de ser informado dos seus direitos à interpretação e à tradução de documentos essenciais.
73 A este respeito, cabe recordar que o artigo 2.°, n.° 5, e o artigo 3.°, n.° 5, da Diretiva 2010/64 impõem aos Estados-Membros que assegurem que, nos termos da lei nacional, as pessoas em causa tenham o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária a interpretação ou a tradução.
74 No entanto, nem esta diretiva nem a Diretiva 2012/13 especificam as consequências que devem decorrer da violação dos direitos nelas previstos, nomeadamente na hipótese, como a que está em causa no processo principal, de a pessoa em questão não ter sido informada nem da existência dessa decisão, nem do seu direito de obter a assistência de um intérprete e uma tradução dos documentos controvertidos, nem mesmo da elaboração de alguns desses documentos.
75 Em conformidade com jurisprudência constante, na falta de regulamentação específica na matéria, as modalidades de exercício dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União são as previstas na ordem jurídica interna dos Estados-Membros, em virtude do princípio da autonomia processual destes.
Todavia, essas modalidades não devem ser menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) nem ser concebidas de modo a, na prática, tornarem impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2021, …., C-776/19 a C-782/19, EU:C:2021:470, n.° 27 e jurisprudência referida).
76 Quanto ao princípio da equivalência, sob reserva das verificações a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, nada nos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça mostra que a aplicação do artigo 120.° do CPP às eventuais violações dos direitos decorrentes das Diretivas 2010/64 e 2012/13 infrinja tal princípio. Com efeito, este artigo regula as condições de arguição das nulidades, independentemente de a nulidade resultar da violação de uma regra que tenha por base disposições do direito nacional ou disposições do direito da União.
77 Relativamente ao princípio da efetividade, importa recordar que, embora as Diretivas 2010/64 e 2012/13 não regulem as modalidades referentes ao exercício dos direitos nelas previstos, essas modalidades não podem prejudicar o objetivo, prosseguido por estas diretivas, de garantir o caráter equitativo do processo penal e o respeito pelos direitos de defesa dos suspeitos e acusados em processo penal (v., neste sentido, Acórdãos de 15 de outubro de 2015, …, C-216/14, EU:C:2015:686, n.° 63, e de 22 de março de 2017, …., C-124/16, C-188/16 e C-213/16, EU:C:2017:228, n.° 38).
78 Ora, por um lado, a obrigação, imposta às autoridades nacionais pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, de informar os suspeitos e os acusados sobre os seus direitos à interpretação e à tradução, previstos no artigo 2.°, n.° 1, e no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, assume uma importância essencial para a garantia efetiva desses direitos e, assim, para a observância do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta. Com efeito, sem essa informação, a pessoa em causa não pode saber da existência e do alcance desses direitos nem reclamar que estes sejam respeitados, pelo que não pode exercer plenamente os seus direitos de defesa nem beneficiar de um processo equitativo.
79 Assim, exigir à pessoa em causa num processo penal conduzido numa língua que ela não fala ou não compreende que alegue, num determinado prazo e sob pena de sanação, que não foi informada dos seus direitos à interpretação e à tradução, previstos no artigo 2.°, n.° 1, e no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, esvaziaria de conteúdo o direito de ser informado, garantido pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, o que poria em causa os direitos dessa pessoa a um processo equitativo e ao respeito pelos direitos de defesa, consagrados, respetivamente, no artigo 47.° e no artigo 48.°, n.° 2, da Carta. Com efeito, na falta dessa informação, a referida pessoa não pode ter conhecimento de que o seu direito à informação foi violado, ficando impossibilitada de arguir essa violação.
80 Além disso, pela mesma razão, tal conclusão também se impõe no que se refere aos direitos à interpretação e à tradução previstos, respetivamente, no artigo 2.°, n.° 1, e no artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, quando a pessoa em causa não é informada da existência e do alcance desses direitos.
81 No presente caso, atendendo a que, como salientado no n.° 45 do presente acórdão, a decisão de reenvio não menciona expressamente que TL não foi informado, ao ser constituído arguido, do seu direito de beneficiar de intérprete e da tradução dos documentos essenciais do processo penal contra si conduzido, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, sendo caso disso, se tal informação lhe foi efetivamente prestada.
82 Por outro lado, mesmo que a pessoa em causa tenha efetivamente recebido essa informação em tempo útil, é ainda necessário, como salientou, em substância, o advogado-geral nos n.os 83 a 87 das suas conclusões, que ela tenha conhecimento da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos que lhe estão associados, para que possa arguir a violação do seu direito à tradução desse documento ou do seu direito à interpretação aquando da respetiva elaboração, garantidos pelo artigo 2.°, n.° 1, e pelo artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, e, assim, beneficiar de um processo equitativo no respeito pelos seus direitos de defesa, como exigem o artigo 47.° e artigo 48.°, n.° 2, da Carta.
83 Por conseguinte, há violação do princípio da efetividade se o prazo a que uma disposição processual nacional sujeita a possibilidade de arguir a violação dos direitos conferidos pelo artigo 2.°, n.° 1, e pelo artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, começar a correr ainda antes de a pessoa em causa ser informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados (v., por analogia, Acórdão de 15 de outubro de 2015, …., C-216/14, EU:C:2015:686, n.os 66 e 67).
84 Ora, no presente caso, decorre das constatações do órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para interpretar as disposições do seu direito nacional, que a simples aplicação do artigo 120.° do CPP à situação em causa no processo principal, como parece ter sido feita pelo órgão jurisdicional de primeira instância, não permitia assegurar o respeito pelas exigências decorrentes do número anterior.
85 Em especial, resulta das informações de que dispõe o Tribunal de Justiça que, em aplicação do artigo 120.°, n.° 3, alínea a), do CPP, a nulidade de um ato a que a pessoa em causa assista deve ser arguida, sob pena de sanação, antes de esse ato estar terminado.
86 Isso implica, nomeadamente para um ato como o TIR, que a pessoa que se encontre numa situação como a de TL fica, de facto, privada da possibilidade de arguir a nulidade. Com efeito, quando essa pessoa, que não conhece a língua do processo penal, não está em condições de compreender o significado do ato processual e as suas implicações, não dispõe de informações suficientes para apreciar a necessidade da assistência de um intérprete quando da sua elaboração ou da tradução escrita desse ato, o qual pode aparentar ser uma mera formalidade. Além disso, a possibilidade de arguir a nulidade do referido ato fica prejudicada no futuro, por um lado, por falta de informação sobre o direito de beneficiar dessa tradução e da assistência de um intérprete, bem como, por outro, por o prazo para arguir essa nulidade terminar, em substância, instantaneamente, com a simples prática do ato em causa.
87 Nestas condições, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se pode fazer uma interpretação da legislação nacional que permita respeitar as exigências decorrentes do n.° 83 do presente acórdão e, assim, garantir o exercício dos direitos de defesa no âmbito de um processo equitativo.
88 Caso o órgão jurisdicional de reenvio venha a considerar que não é possível tal interpretação da legislação nacional em causa no processo principal, cumpre recordar que o princípio do primado impõe ao juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito da União a obrigação, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme com as exigências do direito da União, de assegurar o pleno efeito das exigências deste direito no litígio que lhe foi submetido, não aplicando, se necessário, por sua iniciativa, qualquer regulamentação ou prática nacional, mesmo posterior, que seja contrária a uma disposição do direito da União de efeito direto, sem ter de pedir ou esperar pela supressão prévia dessa regulamentação ou prática nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional [Acórdão de 8 de março de 2022, …. (Efeito direto), C-205/20, EU:C:2022:168, n.° 37].
89 Atendendo às considerações anteriores, há que responder à questão prejudicial que o artigo 2.°, n.° 1, e o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, lidos à luz do artigo 47.° e do artigo 48.°, n.° 2, da Carta e do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual a violação dos direitos previstos nas referidas disposições destas diretivas deve ser arguida pelo beneficiário desses direitos num determinado prazo, sob pena de sanação, quando esse prazo começa a correr ainda antes de a pessoa em causa ter sido informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados. (…)”[3]
*
Conforme referimos no nosso anterior acórdão que determinou o reenvio para o TJ, a forma dos atos processuais e a sua documentação em processo penal, no que diz respeito à língua a utilizar e à nomeação de intérprete, encontra-se regulada no artigo 92º do CPP, nos seguintes termos:
“Artigo 92.º
Língua dos atos e nomeação de intérprete
1 - Nos atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.
2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao ato ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.
3 - O arguido pode escolher, sem encargo para ele, intérprete diferente do previsto no número anterior para traduzir as conversações com o seu defensor.
4 - O intérprete está sujeito a segredo de justiça, nos termos gerais, e não pode revelar as conversações entre o arguido e o seu defensor, seja qual for a fase do processo em que ocorrerem, sob pena de violação do segredo profissional.
5 - Não podem ser utilizadas as provas obtidas mediante violação do disposto nos n.ºs 3 e 4.
6 - É igualmente nomeado intérprete quando se tornar necessário traduzir documento em língua estrangeira e desacompanhado de tradução autenticada.
7 - O intérprete é nomeado por autoridade judiciária ou autoridade de polícia criminal.
8 - Ao desempenho da função de intérprete é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 153.º e 162.º.”
*
Sobre as nulidades, sua natureza, regime de arguição, formas de sanação e efeitos da sua declaração, dispõem os artigos 118º a 122º do CPP.
O vício arguido pelo recorrente, decorrente da falta de tradução e de nomeação de intérprete, não se encontrando incluído no elenco das nulidades insanáveis constante do artigo 119º do CPP, encontra previsão expressa na alínea c) do nº 2 do artigo 120º do CPP, que estabelece as nulidades dependentes de arguição, dispondo da seguinte forma:
“Artigo 120.º
Nulidades dependentes de arguição
1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
(…)
c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;
(…)
3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:
a) Tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assista, antes que o ato esteja terminado;
b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;
d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.”
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Por seu turno, artigo 122º, estabelecendo os efeitos da declaração de nulidade, estatui que:
“Artigo 122.º
Efeitos da declaração de nulidade
1 - As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.
2 - A declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respetivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.”
***
Tendo por base o enquadramento normativo definido, vertendo à situação dos autos, e dando cumprimento ao decidido pelo TJ no acórdão acima transcrito, impõe-se desaplicar[4] a norma aplicada na decisão recorrida, que prevê a necessidade de arguição, em determinado prazo, sob pena de sanação, da nulidade decorrente da falta de nomeação de intérprete e de tradução do TIR, da notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e da notificação do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão[5], concretamente o artigo 120º nº 3, alíneas a) e c) do CPP, em virtude de o mesmo se não revelar compatível com os direitos fundamentais a um processo equitativo e com o respeito pelos direitos de defesa decorrentes dos artigos 47.° e 48.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como do artigo 6.° da CEDH, à luz dos quais devem ser interpretados os artigos 2.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1 da Diretiva 2010/64, bem como o artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, nos termos amplamente explanados pelo TJ no acima acórdão transcrito.
Levando em conta a fundamentação do acórdão do TJ, consigna-se que nem no auto de constituição de arguido, nem em qualquer outro momento processual subsequente, o arguido veio a ser informado relativamente à existência do seu direito à informação, à tradução e à nomeação de intérprete, nem lhe vieram a ser traduzidos para a língua romena, a prestação de TIR, a notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e notificação do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão. Assim, no caso que nos ocupa, é imperioso concluir que, conforme refere o TJ, “há violação do princípio da efetividade [uma vez que o] prazo a que uma disposição processual nacional sujeita a possibilidade de arguir a violação dos direitos conferidos pelo artigo 2.°, n.° 1, e pelo artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2010/64, bem como pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2012/13, [começou] a correr ainda antes de a pessoa em causa ser informada, numa língua que fale ou compreenda, por um lado, da existência e do alcance do seu direito à interpretação e à tradução e, por outro, da existência e do conteúdo do documento essencial em questão, bem como dos efeitos a ele associados.
Acresce que, tal como sinalizámos já no acórdão que determinou o reenvio, a diligência de audição a que alude o artigo 495.º, n.º 2 do C.P.P. se realizou sem presença do arguido, não tendo o mesmo sido ouvido e não lhe tendo sido dado conhecimento prévio dos argumentos invocados para justificar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão. Ademais, segundo o arguido, a frustração dos contactos que a DGRSP tentou estabelecer para implementar o regime de prova fixado como condição da suspensão – que constituiu, aliás, o fundamento único da revogação da suspensão – e, bem assim, o não recebimento efetivo das notificações para comparecer em Tribunal nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do C.P.P. e do despacho que procedeu à revogação da suspensão da execução da pena de prisão, ficaram a dever-se à mudança de residência do mesmo[6], alegando o recorrente não ter recebido tais notificações em virtude de ter deixado de residir na morada constante do TIR, desconhecendo que deveria comunicar tal alteração de residência ao processo em virtude de o TIR não lhe ter sido traduzido.
Nesta conformidade, constatamos que a simples aplicação do artigo 120.°, nº 3 do CPP à situação em causa no processo principal, como foi feita pelo órgão jurisdicional de primeira instância, não permitiu assegurar o respeito pelos direitos de defesa do arguido e pelo direito a um processo equitativo garantidas pelas normas do Direito da União acima indicadas. Reiteramos que nos encontramos a dar aplicação ao direito da União Europeia, revelando-se imperioso o respeito pelos fins visados pelas Diretivas em causa, sendo certo que constitui um dever dos Estados-membros a aplicação do Direito da União na respetiva ordem interna “com respeito pelas suas características próprias e específicas” em cumprimento do disposto no artigo 291.º do T.F.U.E. Assenta tal premissa nos princípios da lealdade comunitária, da leal cooperação e da coerência global do sistema jurídico da União, decorrendo da referida premissa que as violações das normas do Direito da União não poderão deixar de ser sancionadas com salvaguarda do prosseguimento dos fins visados pelas normas violadas.
Temos por certo – conforme, aliás, expressamente fez notar o TJ no ponto 83. do acórdão que decidiu o pedido de reenvio prejudicial – que a imperatividade resultante da aplicação das normas das Diretivas, “in casu” por efeito direto vertical, e da Jurisprudência do TJ, atendendo ao princípio do primado do Direito da União, implica a desaplicação de todas as normas do direito nacional que se revelem contrárias ao consagrado nos referidos atos da União. No que à economia do caso dos autos diz respeito, dando cumprimento ao decidido no acórdão do TJ proferido no âmbito do pedido de reenvio prejudicial, importa decidir que o regime da sanação das nulidades estabelecido pelo artigo 120º, nº 3 do CPP, aplicado na decisão recorrida[7], se revela verdadeiramente contrário às normas das Diretivas que pretendemos aplicar, não podendo com ele coexistir. A não sanação das nulidades implicará a aplicação do regime relativo aos efeitos da declaração de nulidade previsto no artigo 122.º do CPP, acima transcrito, nos termos do qual “1 - As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.” Ou seja, no caso dos autos, a nulidade do TIR determina a invalidação de todo o processado subsequente – porque dele dependente, na medida em que a nulidade de tal ato, por falta de tradução, põe necessariamente em causa os direitos de defesa do arguido, maxime a efetividade do direito a um processo justo e equitativo garantido pelos artigos dos artigos 47.° e 48.°, n.° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e pelo artigo 6.° da CEDH incluindo a realização da audiência, a prolação da sentença e, consequentemente, a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada, determinando a imediata libertação do arguido.
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III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, declarando nulos os atos processuais cuja validade se encontra posta em causa pelo arguido, por falta de tradução ou de nomeação de intérprete, concretamente, o TIR, a notificação nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e a notificação do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão e declarando, consequentemente, nulo todo o processado subsequente à prestação do TIR, com a imediata libertação do arguido. Outra solução, designadamente a que propendesse para salvar atomisticamente alguns atos processuais subsequentes ao TIR nulo, relativizaria o Direito da União nos termos interpretados pelo TJ e não traduziria o cumprimento cabal do acórdão que decidiu o reenvio prejudicial, nos termos impressivos em que o mesmo se pronunciou. O mesmo é dizer que o caráter global do processo justo e equitativo, na construção que do mesmo é apresentada pelo TJ, pressupõe uma visão de conjunto e não particularizada dos atos que o compõem.
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Proceda à imediata libertação do arguido, passando os competentes mandados de libertação.
Comunique, também de imediato, o teor da apresente decisão à primeira instância.

Sem custas.
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(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)
Évora, 02 de agosto de 2022
Maria Clara Figueiredo
Fátima Bernardes
Canelas Brás

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[1] O artigo 267.º do TFUE, no 4º parágrafo, prevê expressamente que “Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.” Ora, é precisamente esta a situação verificada os presentes autos, uma vez que o recorrente se encontra preso desde o dia 30 de setembro de 2021 em cumprimento de uma decisão cuja validade se encontra questionada no recurso.
[2] Nos termos melhor explanados e transcritos no acórdão que determinou o reenvio prejudicial, para o qual remetemos novamente, e no qual e nos quais avulta a seguinte asserção: “Nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o Tribunal Constitucional só pode apreciar e recusar aplicação a uma norma de DUE, caso a mesma seja incompatível com um princípio fundamental do Estado de direito democrático que, no âmbito próprio do DUE – incluindo, portanto, a jurisprudência do TJUE –, não goze de valor paramétrico materialmente equivalente ao que lhe é reconhecido na Constituição, já que um tal princípio se impõe necessariamente à própria convenção do “[…] exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da União Europeia”. Ao invés, sempre que esteja em causa a apreciação de uma norma de DUE à luz de um princípio (fundamental) do Estado de direito democrático que, no âmbito do DUE, goze de um valor paramétrico materialmente equivalente ao que lhe é reconhecido na Constituição portuguesa, funcionalmente assegurado pelo TJUE (segundo os meios contenciosos previstos no DUE), o Tribunal Constitucional abstém-se de apreciar a compatibilidade daquela norma com a Constituição” (sublinhámos o trecho aqui especificamente relevante).
[3] Negritos acrescentados.
[4] Antes da prolação do acórdão do TJ de 01.08.2022 a que agora damos cumprimento, a necessidade de desaplicação do direito interno havia sido recentemente afirmada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 21.10.2021, no caso ZX, proc. n.º C-282/20 (pontos 40 e 41):
“40. Só quando é impossível proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme com as exigências do direito da União é que o juiz nacional encarregado de aplicar as disposições do direito da União tem a obrigação de assegurar o seu pleno efeito deixando inaplicada se necessário, pela sua própria autoridade, toda e qualquer disposição contrária da legislação nacional, mesmo posterior, sem ter de requerer ou esperar pela sua eliminação prévia pela via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, Acórdão de 24 de junho de 2019, …, C 573/17, EU:C:2019:530, n.o 58 e jurisprudência referida).
41. Assim, em caso de impossibilidade de interpretação conforme, qualquer juiz nacional, chamado a pronunciar se no quadro da sua competência, tem, como órgão de um Estado Membro, a obrigação de deixar inaplicada qualquer disposição nacional contrária a uma disposição do direito da União que tenha efeito direto no litígio que tem de decidir (v., neste sentido, Acórdão de 24 de junho de 2019, …, C 573/17, EU:C:2019:530, n.o 61 e jurisprudência referida). A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 6.o, n.o 3, da Diretiva 2012/13 deve ser considerado como tendo esse efeito direto (v., neste sentido, Acórdão de 14 de maio de 2020, …, C 615/18, EU:C:2020:376, n.o 72).(…)”.
[5] Tal como consignámos no nosso acórdão anteriormente proferido nos autos e como veio a ser reconhecido no acórdão do TJ, ao qual agora se dá cumprimento, na previsão dos atos e documentos relativamente aos quais deverá ser garantido o direito à interpretação e à tradução, incluem-se, indiscutivelmente, todos os que se revelem importantes ou condicionadores do direito de defesa dos arguidos. Assim, para além dos decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, da acusação ou da pronúncia das sentenças, também os atos processuais levados a efeito quer nas fases preliminares, quer nas fases subsequentes do processo penal com intuito eminentemente informativo e concretizador das garantias de defesa dos arguidos deverão ser objeto de tradução para língua dominada pelos seus destinatários, sob pena de total esvaziamento dos referidos atos, que, praticados no processo sem tradução, mais não assegurariam do que o cumprimento estritamente formal de normas processuais, sem qualquer correspondência material no que diz respeito aos fins que visam prosseguir.
Entre os referidos atos – e pese embora o único artigo do CPP português que prevê o direito à tradução, o artigo 92º, não os contemple em previsão expressa – contam-se, indubitavelmente, pela sua importância ao nível das garantias de defesa dos arguidos, decorrente das informações processuais que aportam, a prestação de Termo de Identidade e Residência realizada nos termos 196º do CPP, a notificação do arguido nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e a notificação do despacho de revogação da suspensão da execução da pena.
A notificação do arguido nos termos do artigo 495º, nº 2 do CPP e, bem assim, a notificação do despacho de revogação da suspensão da execução da pena, têm, ao nível das garantias de defesa do arguido, a relevância acrescida de, no que diz respeito à primeira, condicionar o exercício do direito à audição e ao contraditório e, relativamente à segunda, ela própria dar a conhecer ao condenado a determinação da privação da sua liberdade (como veio a suceder no caso dos autos), encontrando esta última situação previsão expressa na literalidade do nº 2 da Diretiva n.º 2010/64/EU “decisões que imponham uma medida privativa de liberdade”.
No que diz respeito ao TIR, é indiscutível que o mesmo assume hoje no processo penal português uma relevância não equiparável à assinatura de um outro qualquer documento nos autos, desde logo porquanto o mesmo aporta um conjunto de informações e de obrigações absolutamente condicionadoras do direito de defesa do arguido.
[6] A morada constante do TIR é Rua ..., ... ... e a morada para a qual o arguido alega ter mudado e na qual foi efetivamente cumprido o mandado de detenção para cumprimento de pena em 30 de setembro de 2021 é Rua ..., ..., ..., ....
[7] Tendo a decisão recorrida reconhecido a existência dos vícios resultantes da falta de nomeação de intérprete e de tradução dos mencionados atos processuais, enquadrou-os na categoria das nulidades relativas, o que fez com base na aplicação à situação vertente do disposto no artigo 120º, nº 1 e nº2 alínea c) do CPP, norma que comina com nulidade sanável, dependente de arguição, a falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considere obrigatória. Assim, considerou o tribunal “a quo” sanadas as nulidades por omissão de tradução e de nomeação de intérprete na prestação de T.I.R., na notificação do arguido para comparecer em Tribunal nos termos do artigo 495.º, n.º 2 do C.P.P. e na notificação do despacho que procedeu revogação da suspensão da execução da pena de prisão, por não terem sido suscitadas aquando da constituição de arguido, no início da audiência de julgamento ou até ao trânsito em julgado daquele despacho, em conformidade com o disposto no nº 3, alíneas a) e d) do artigo 120º do CPP.