Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
651/23.5T8PTM.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: DESPEDIMENTO SEM JUSTA CAUSA
CONTRATO DE TRABALHO A TERMO CERTO
COMPENSAÇÃO POR CADUCIDADE
CONFISSÃO
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Sumário:
1. Um escrito, relatando factos objecto da instrução produzida nos autos, assinado por várias pessoas, entre elas uma das testemunhas ouvidas em audiência (mas não assinado pela parte contrária, não constituindo assim confissão por esta de factos desfavoráveis), não tem valor probatório especial e está sujeito à livre apreciação do tribunal.
2. O depoimento escrito apenas pode ter lugar nas condições previstas nos arts. 518.º e 519.º do Código de Processo Civil; se tais condições não ocorreram, tal escrito não possui valor probatório para ajuizar da efectiva assinatura (ou recusa de assinatura) do contrato de trabalho, tanto mais que a sua produção não foi submetida ao contraditório das partes e à mediação do tribunal.
3. Declarada a ilicitude de despedimento em caso de contrato de trabalho a termo certo, ao trabalhador é também devida a compensação por caducidade dessa espécie contratual, calculada nos termos do art. 344.º n.º 2 do Código do Trabalho.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Portimão, AA demandou Herdade da Praia do Canal – Empreendimentos Turísticos e Florestais, Lda., pedindo a declaração de ilicitude do seu despedimento promovido pela Ré, e a condenação desta a pagar-lhe uma indemnização no valor de € 11.833,33, acrescida de juros vencidos e vincendos.
Na sua contestação, a Ré impugnou a matéria de facto alegada pela A., alegando que a despediu no período experimental, e pediu a sua condenação como litigante de má-fé, em multa e indemnização de valor não inferior a € 5.000,00.
Após julgamento, a sentença decidiu julgar a acção parcialmente procedente, declarando ilícito o despedimento promovido pela Ré e condenando-a a pagar à A. a quantia de € 11.251,33, acrescida de juros contados à taxa legal desde 05.01.2023 e até integral pagamento, se a sentença não transitasse até 03.11.2023, ou o correspondente às quantias mensais de € 970,00, acrescida dos proporcionais dos subsídios de Natal e férias, contadas desde 05.01.2023 e até ao trânsito em julgado da sentença, se esse trânsito ocorresse antes daquela data de 03.11.2023.

Ambas as partes interpuseram recurso da sentença.
Nas suas conclusões – que não são propriamente um modelo de capacidade de síntese exigida pelo art. 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil – a Ré coloca as seguinte questões:
a) Impugnação da matéria de facto:
- devem ser declarados não provados os factos constantes do elenco de factos provados nos pontos 1.8 e 1.11?
- devem ser declarados provados os factos constantes do elenco de factos não provados nas alíneas e), f), g), h), i), j) e k)?
b) Em consequência da procedência da impugnação fáctica, deve ser declarada a licitude da cessação do contrato mediante denúncia ocorrida no período experimental?

Por seu turno, nas suas conclusões, a A. coloca a seguinte questão:
· Terá direito à indemnização prevista no art. 393.º do Código do Trabalho, nela incluindo não apenas as retribuições salariais, mas também a compensação prevista no n.º 2 do art. 344.º do Código do Trabalho?

Não houve respostas aos recursos apresentados pelas partes.
Produziu a Digna Magistrada do Ministério Público junto desta Relação o respectivo parecer, o qual foi notificado às partes.
Cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto:
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – art. 607.º n.º 5 do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”
Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[1].
Por outro lado, o art. 662.º do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Deste modo, na reapreciação da matéria de facto o Tribunal da Relação deve lançar mão de todos os meios probatórios à sua disposição e usar de presunções judiciais para obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, não incorrendo em excesso de pronúncia se, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retirar dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso[2].
Ponderando, ainda, que o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640.º do Código de Processo Civil, “não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado; nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação e, que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, maxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica”[3], proceder-se-á à análise desta parte dos recursos, no uso da referida autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto.
Consigna-se que se procedeu à audição da prova gravada e à análise da documentação junta aos autos.
*
(…)
Diremos, ainda que, a “Declaração / Compromisso” junta como documento n.º 1 à contestação, não está assinada pela A. e como tal não possui valor confessório de factos desfavoráveis a esta. Aliás, tal documento, relatando factos objecto da instrução produzida nos autos, assinado por várias pessoas, entre elas uma das testemunhas ouvidas em audiência – BB, director-geral do hotel – não tem valor probatório especial e está sujeito à livre apreciação do tribunal. Na verdade, o depoimento escrito apenas pode ter lugar nas condições previstas nos arts. 518.º e 519.º do Código de Processo Civil, que não ocorreram no caso dos autos, motivo pelo qual tal documento não possui valor probatório para ajuizar da efectiva assinatura (ou recusa de assinatura) do contrato, tanto mais que a sua produção não foi submetida ao contraditório das partes e à mediação do tribunal.[4]
(…)
(…) a impugnação fáctica é julgada improcedente.

A matéria de facto provada fica assim estabelecida, nos exactos termos da sentença recorrida:
1. No âmbito de negociações para ocupação de vaga na ré para a categoria de empregada de mesa de 1.ª, que tinha sido publicitada, a Autora reuniu com o Director Geral da Ré, BB, em Outubro de 2022.
2. No âmbito das referidas negociações, o representante da ré foi claro ao ter manifestado a intenção de contratar a trabalhadora por um período de 12 (doze) meses.
3. Em 12 de Outubro de 2022, depois dessa entrevista, foi enviada uma mensagem à Autora onde se podia ler o seguinte: “Boa tarde Cara AA, No seguimento do seu processo de admissão para a função de Empregado Mesa 1ª do …, vimos por este meio enviar a nossa Carta de Intenções. Peço que analise e nos dê uma resposta assim que possível. Informo que estou ao dispor para qualquer esclarecimento adicional, ficando a aguardar o seu feedback. Obrigado. BB”.
4. A mensagem em causa, conforme sequência de mensagens de correio electrónico vinha acompanhada de uma carta de intenções.
5. A Ré propunha à Autora que a mesma celebrasse um contrato por um período de 12 meses, para exercer as funções inerentes à categoria profissional de Empregada de Mesa de 1ª na “…”, mediante o pagamento de uma remuneração base ilíquida de 970 €.
6. A Autora procurou negociar o valor da remuneração, contudo, e sem sucesso, no mesmo dia veio a aceitar a proposta referida acima, tendo comunicado no dia seguinte que teria disponibilidade para iniciar o seu trabalho no dia 3 de Novembro.
7. Assim, como havia sido combinado entre Autora e Ré, a Autora iniciou a sua prestação de trabalho no dia 3 de Novembro de 2022.
8. Não obstante não lhe ter sido, logo nessa data, dado a assinar um contrato de trabalho, tal sucedeu alguns dias depois.
9. No contrato em causa foi aposta uma cláusula sobre o período experimental, tendo sido o mesmo acordado como sendo de 30 dias (cf. Cláusula 4ª).
10. Em contrapartida pela prestação do trabalho, a Autora receberia da Ré a quantia mensal de 970€ (cf. Cláusula 6ª).
11. Em data não apurada, a Autora assinou o referido contrato, que já estava assinado por representante da Ré.
12. Com data de dia 5 de Janeiro de 2023, os representantes da Ré entregaram uma carta à Autora com o seguinte teor: “dando cumprimento ao disposto no n.º 1 do artº 114 da Lei 7/2009 de 12 de Fevereiro, vimos por este meio comunicar que o contrato de trabalho celebrado com esta empresa em 3 de Novembro de 2022 termina na data de 5 de Janeiro de 2023, data a partir da qual deixa de exercer a sua actividade nesta empresa”.
13. No dia 6 de Janeiro de 2023 representante da Ré enviou para o email da Autora declaração de situação de desemprego e declaração de trabalho, datadas de 5 de Janeiro de 2023.
14. A Autora recebia, nessa data, um vencimento base mensal de 970€.

APLICANDO O DIREITO
Da inclusão da compensação prevista no n.º 2 do art. 344.º do Código do Trabalho no valor indemnizatório do art. 393.º do mesmo diploma
Quanto a esta questão, do art. 393.º n.º 2 al. a) do Código do Trabalho não se pode concluir que a indemnização pela ilicitude do despedimento se resuma ao pagamento das retribuições devidas até ao termo do contrato, e exclua a compensação devida pela caducidade dessa espécie contratual.
Neste sentido, Pedro Furtado Martins escreve que deverão ser pagas não apenas as referidas retribuições, mas também “a compensação que a lei associa à caducidade por verificação do termo, nos moldes estabelecidos nos arts. 344/2 e 345/4”. E mesmo que o termo ocorra após o trânsito em julgado da sentença que declara a ilicitude, “fará também sentido acrescentar o valor da compensação que o trabalhador receberia caso o contrato terminasse em razão da verificação do termo.”[5]
De igual modo se pronuncia João Leal Amado, no seguinte excerto: “A declaração de ilicitude/invalidade do despedimento reconstituirá a relação jurídico-laboral que o empregador tentou, sem êxito, dissolver. Mas essa reconstituição apenas valerá até à verificação do evento resolutivo a que as partes haviam subordinado a extinção do contrato. O contrato cessará então aquando da verificação do termo, por caducidade, pelo que o empregador, exonerado embora da obrigação reintegratória e da alternativa obrigação indemnizatória, deverá, todavia, ser condenado a pagar ao trabalhador uma compensação pela caducidade do contrato, por força dos arts. 344º, nº 2, e 345º, nº 4, do CT.”[6]
Este é também o entendimento que vem sendo adoptado na jurisprudência mais recente sobre este tema – aqui se citando o Acórdão da Relação do Porto de 25.03.2019 (Proc. 9002/18.0T8PRT.P1) e o Acórdão da Relação de Lisboa de 25.05.2022 (Proc. 1651/21.5T8BRR.L1-4), ambos publicados em www.dgsi.pt.
Citando o dito aresto da Relação do Porto, “não se compreenderia que não se admitisse a compensação no caso de declaração de despedimento ilícito, que tem como consequência primordial a manutenção da relação jurídico-laboral, presumindo-se embora que, pelo despedimento, o empregador manifestou a sus intenção de não renovação do contrato a termo.”
O recurso da A. tem, pois, fundamento legal e está alinhado com a doutrina e a jurisprudência relevantes acerca desta questão, motivo pelo qual merece provimento.

Quanto ao recurso da Ré, assentava na procedência da impugnação fáctica, onde decaiu.
Não colocando questões jurídicas a apreciar em caso de improcedência dessa impugnação, resta negar provimento ao seu recurso.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso interposto pela Ré, e concede-se provimento ao interposto pela A., indo a Ré também condenada a pagar-lhe a quantia de € 582,00, a título de compensação pela caducidade do seu contrato de trabalho, acrescidas de juros legais contados desde 03.11.2023 e até integral pagamento.
As custas de ambos os recursos serão suportadas pela Ré.

Évora, 11 de Janeiro de 2024
Mário Branco Coelho (relator)
Emília Ramos Costa
Paula do Paço (com a seguinte declaração de voto)

Declaração de voto da 2.ª Adjunta:
No Acórdão de 21-02-2013, proferido por esta Secção Social no Proc. 435/11.3TTFAR.E1, em que fui relatora (e que vem mencionado na sentença recorrida), entendeu-se que não seria devida a compensação por caducidade no caso de declaração de despedimento ilícito em contrato de trabalho a termo certo.
Este acórdão encontra-se acessível em www.dgsi.pt.
Porém, tendo em consideração a alteração do colectivo e a reponderação da questão, afigura-se-nos que a posição anteriormente defendida deve ser revista e, em conformidade, subscrevemos o presente acórdão.
a) Paula do Paço

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[1] Neste sentido, vide os Acórdãos da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1) e do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2015 (Proc. 219/11.9TVLSB.L1.S1), na mesma base de dados.
[3] Citação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1184/10.5TTMTS.P1.S1), também publicado na dita base de dados.
[4] Vide, numa situação semelhante, o caso analisado pelo Acórdão da Relação do Porto de 07.11.2016 (Proc. 11694/15.2T8PRT.P1), publicado em www.dgsi.pt.
[5] In A Cessação do Contrato de Trabalho, Principia, 4.ª ed., págs. 561 e 562.
[6] In Contrato de Trabalho, À luz do novo Código do Trabalho, 2009, pág. 430.