Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
74/19.0T8STR.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
DOAÇÃO
VALOR DA CAUSA
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Tendo a ação por objeto a impugnação pauliana visando a doação outorgada pela Ré e pelos respetivos pais relativa ao bem imóvel a que atribuíram o valor € 214,45 (duzentos de catorze euros e quarenta e cinco cêntimos), por força do regime inserto no artigo 310.º/1, do CPC, o valor da ação não pode ser outro senão aquele valor estipulado pelas partes.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…)
Recorrido / Autor: Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…) e (…), CRL

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual a formulou os seguintes pedidos:
«- Ser declarada a ineficácia em relação à A. do contrato de doação referido no artigo 7º da petição.
- Ser ordenada a restituição do imóvel ao património dos 1ºs RR.
- Reconhecido à A. o direito de executar o imóvel diretamente no património da 2ª Ré, na medida do necessário para assegurar o pagamento da dívida.
- Declarado ineficaz e sem qualquer efeito o registo de aquisição a favor da 2.ª R. e/ou outros que venham a ser lavrados».
Alegou, para tanto, deter sobre os primitivos RR, já falecidos, um crédito cambiário titulado por livrança por eles avalizadas decorrente da celebração de contrato de mútuo de € 10.000,00 (dez mil euros), sendo que, por documento autenticado outorgado em 10/01/2014, aqueles doaram à 1.ª Ré, sua filha, o prédio rústico identificado nos autos, atribuindo-lhe o valor correspondente ao valor patrimonial tributário ou seja, de € 214,45 (duzentos de catorze euros e quarenta e cinco cêntimos) – cfr. contrato de doação por conta da quota disponível junto com a p.i. Assim dissiparam do seu património o seu único bem de que eram titulares, o que implicou na impossibilidade de a Autora obter a satisfação integral do seu crédito.
O A atribuiu à ação o valor de € 10.000,00 (dez mil euros).
A R apresentou-se a contestar, defendendo-se por exceção, invocando a prescrição do crédito cambiário e a caducidade do direito à impugnação pauliana, não se pronunciando pelo valor da causa atribuído pelo Autor.

II – O Objeto do Recurso
Dispensada que foi a realização da audiência prévia, foi facultada às partes a oportunidade de discussão de facto e de direito das questões atinentes ao mérito da causa.
Foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente.
A decisão de mérito foi antecedida do seguinte despacho:
«Valor da Causa
Conforme impõe o artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, o Tribunal deve fixar o valor da causa, o que é efetuado no despacho saneador quando a este haja lugar ou, não havendo, na sentença.
O valor da causa será, em princípio, aquele que as partes tiverem acordado, expressa ou tacitamente, salvo se o juiz entender que o acordo está em flagrante oposição com a realidade. Neste caso, o juiz fixará o valor que considere adequado, tendo em mente que o valor da causa deve representar a utilidade económica do pedido (cfr. artigos 306.º, n.º 1 e 296.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil).
Como critério geral, estabelece a lei que, se pela ação se pretender obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa e, cumulando-se vários pedidos, o valor da ação é a quantia correspondente à soma do valor de todos eles (cfr. artigos 297.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Mas existem critérios legais especiais para fixação do valor da causa.
Assim, «quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes» (cfr. artigo 301.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).
Ora, a fixação do valor da ação de impugnação pauliana deve, justamente, observar este último critério legal (cfr., acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 11.03.2021, processo n.º 4651/19.1T8STB.E1, relator José Lúcio; e acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 26.10.2017, processo n.º 523/17.2T8EVR-A.E1, relator Sequinho dos Santos, in www.dgsi.pt; e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, 2014, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 594).
E bem se compreende, já que a impugnação pauliana visa atacar judicialmente um ato jurídico a fim de destruir, ainda que parcialmente, os seus efeitos.
Acontece que, na presente ação, a Autora atribuiu à causa o valor de € 10.000,00.
Não é este, porém, o valor da doação aqui impugnada estipulado pelas partes no negócio.
A este propósito, elucidam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (op. cit., pág. 594) que, na escritura de doação, o «valor estipulado pelas partes» para efeitos do artigo 301.º, n.º 1, do Código de Processo Civil é aquele que estas tenham atribuído aos bens doados.
Cotejado o acordo intitulado «Contrato de Doação Por Conta da Quota Disponível», aqui impugnado, constata-se que as partes no negócio atribuíram ao prédio rústico doado o valor patrimonial de € 214,45.
É, pois, este o valor da causa, segundo o critério legal supramencionado.
Face ao exposto, fixo à presente causa o valor de € 214,45.»

Inconformada, a Ré apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1- A recorrida fixou, ao interpor a ação de impugnação pauliana em apreço, o valor de 10.000,00 euros por entender que o prédio doado garantia o seu crédito.
2- A recorrente não se pronunciou quanto ao valor em questão, pelo mesmo motivo.
3- Não houve lugar a audiência prévia, nem a despacho saneador.
4- O valor das taxas de justiça pagas por cada uma das partes, é superior ao valor da ação fixada pelo tribunal.
5- É pois manifesto que o valor da doação é apenas e só, o valor patrimonial tributário do prédio.
6- Como é manifesto que o valor adotado pelos doadores, e pela donatária, na doação é simulado.
7- Dizendo a experiência do homem médio que o valor do prédio doado é sempre superior a 8.720,00 euros.
8- E por conseguinte, superior à alçada do tribunal recorrido.
9- Como manifesto é também que o tribunal não deu possibilidade à recorrente de se pronunciar quanto ao valor que no seu entender, fixou na sentença.
10- Violou, com o devido respeito, o tribunal a quo um dos princípios fundamentais do processo civil, constante do n.º 3 do artigo 3.º do Código do Processo Civil.
11- Nessa conformidade, espera-se que V. Exªs. revoguem a douta sentença proferida quanto ao valor da ação, anulando todo o processado e ordenando que o processo baixe ao tribunal recorrido para que seja dada possibilidade à ora recorrente de ter a possibilidade de sobre o assunto se pronunciar.
Não foram apresentadas contra-alegações.

Assim, atentas as conclusões da alegação do recurso, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], cumpre apreciar se existe fundamento para revogar a decisão recorrida por ser indevido o valor fixado à ação e por violação do princípio do contraditório.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os relatados supra

B – As questões do Recurso
A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido – artigo 296.º, n.º 1, do CPC. A este valor se atenderá para determinar a competência do Tribunal, a forma de processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal – cfr. n.º 2 da citada disposição legal.
Os critérios gerais para a fixação do valor da causa estão plasmados no artigo 297.º do CPC, cujo n.º 1 estatui que se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício. O n.º 2 rege a fixação do valor em caso de cumulação de pedidos, o n.º 3 define os critérios em casos de pedidos alternativos e de pedidos subsidiários.
Existem, porém, critérios especiais para determinar o valor da causa – cfr. artigos 298.º e seguintes do CPC. Um deles é o que se mostra plasmado no artigo 301.º do CPC, com a seguinte redação:
1 - Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
2 - Se não houver preço nem valor estipulado, o valor do ato determina-se em harmonia com as regras gerais.
3 - Se a ação tiver por objeto a anulação do contrato fundada na simulação do preço, o valor da causa é o maior dos dois valores em discussão entre as partes.
Seguindo de perto o CPC Anotado por Abrantes Geraldes e outros[2], cumpre salientar que “este preceito cobre todos os casos em que a decisão se deva pronunciar sobre a existência, a validade, o cumprimento, a modificação ou a resolução de um negócio jurídico, sendo o valor da ação determinando por referência ao valor do ato”. Abarca toda e qualquer ação cujo objeto contenda com a apreciação das referidas questões. “A formulação legal permite abarcar outras figuras, tais como a caducidade, a impugnação pauliana, a ação para o exercício de preferência ou a ação de execução específica.
O valor do ato (e, assim, o valor da ação) apura-se por uma de duas vias: pelo preço fixado ou pelo próprio valor que as partes deram aos bens sobre que versa o negócio (RC, 03/02/2004, 3696/03). (…) Quanto ao valor estipulado, mais restritamente, respeita aos casos em que, importando embora a disposição de bens, não há uma contrapartida (doação) ou a contrapartida é igualmente em bens (permuta), pelo que o valor do negócio (e, assim, da ação) decorre do valor atribuído pelas partes aos bens envolvidos.”
A presente ação tem por objeto a impugnação pauliana, tal como é caraterizada no artigo 610.º e seguintes do CC, visando a doação outorgada pela Ré e pelos respetivos pais relativa ao bem imóvel a que atribuíram o valor € 214,45 (duzentos de catorze euros e quarenta e cinco cêntimos).
Por força do regime inserto no artigo 310.º/1, do CPC, o valor da ação não pode ser outro senão o valor estipulado pelas partes, o valor de € 214,45 (duzentos de catorze euros e quarenta e cinco cêntimos).
Porque não está em causa a anulação de contrato fundada em simulação do preço, não cabe lançar mão do regime inserto no artigo 301.º/3, do CPC.
Uma vez que o critério legal não permite que se atenda a eventual desfasamento entre o valor estipulado no ato jurídico pelas partes e o valor real ou de mercado do bem objeto do ato jurídico, implicando antes na determinação do valor da causa em conformidade com o valor que as partes atribuíram ao prédio rústico objeto de doação, afigura-se manifestamente desnecessária a auscultação das partes sobre o valor a fixar à ação (cfr. artigo 3.º/e, do CPC).
Ainda que assim não se entendesse, a prolação de decisão relativa ao valor da causa sem cumprimento do contraditório implicaria na nulidade dessa decisão, sujeita a ser substituída por decisão (conhecendo do valor da causa, nos termos antecedentes) por este Tribunal. Na verdade, «A violação da proibição da decisão-surpresa implica um vício da própria decisão-surpresa. A decisão-surpresa é, em si mesma, um vício processual que nada tem a ver com a tramitação processual e, por isso, com as nulidades processuais. É uma nulidade de um ato processual, não uma nulidade (da tramitação) processual. (b) A decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 666.º, n.º 1, e 685.º), porque o tribunal conhece de matéria que, nas condições em que o fez, não podia conhecer (RP 2/3/2015 (39/13); STJ 23/6/2016 (1937/15); RP 8/10/2018 (721/12); RG 19/3/2020 (6760/19); RL 8/10/2020 (95274/18); RG 12/11/2020 (2892/20); STJ 16/12//2021 (4260/15); RP 8/3/2022 (3281/20); também RG 25/3/2021 (2935/11); (…) Para proferir a sua decisão, o tribunal tem de ouvir previamente as partes; logo, o vício refere-se à própria decisão, e não ao que não deveria ter sido omitido para que não houvesse uma decisão-surpresa.”[3]

Improcedem as conclusões da alegação do presente recurso, inexistindo fundamento para revogação da decisão recorrida.

As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

*


Évora, 11 de janeiro de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Anabela Luna de Carvalho
Cristina Dá Mesquita
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[1] Cfr. artigos 637.º n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Vol. I, 2.ª edição, pág. 370.
[3] MTS, CPC online, artigo 3.º, 9 (a), (b).