Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1646/14.5TBFAR.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: LEGITIMIDADE ACTIVA
INSOLVÊNCIA
SUPRIMENTOS
Data do Acordão: 09/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A requerente, enquanto sócia da requerida, e alegadamente responsável pelas suas dívidas, não preenche os requisitos exigidos pelo artº 20º, n.º 1, do CIRE, conjugado com o seu artº 6º, n.º 2, para se lhe reconhecer legitimidade para o exercício do direito de acção de insolvência.
Decisão Texto Integral: Apelação 1646/14.5TBFAR.E1 (2ª secção cível)




ACORDAM 0S JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

(…), veio requerer a declaração da insolvência de (…), Lda., com sede na Rua da (…), 2 e Praça Dr. (…), 24, em Faro, alegando, para tanto, e em síntese:
- (…), sócio da sociedade Requerida e já falecido, ao longo de vários anos financiou a Requerida, efectuando diversos pagamentos que totalizam a quantia de 163.601,26 euros, sucedendo a ora requerente nesse direito de crédito. Por isso, e também por ser sócia da Requerida e responsável pelas suas dívidas, entende que lhe assiste legitimidade para requerer a insolvência daquela;
- A Requerida tem um passivo de 164.519,30 euros (correspondendo 163.601,26 euros ao crédito da Requerente, e inexistindo dividas fiscais e à segurança social), não tem activo e desde o ano de 2009 que não apresenta receitas, pelo que se encontra em situação de insolvência.
Citada a Requerida, não deduziu oposição.
Posteriormente veio a ser proferida sentença pela qual se julgou improcedente a acção e, em consequência, se absolveu a Requerida do pedido de declaração da sua insolvência.
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Inconformada veio a Requerente interpor recurso tendo apresentado alegações terminando por formular as seguintes conclusões:
I. A sentença Recorrida dá como assente que a Requerida se encontra em situação de insolvência.
II. A sentença Recorrida dá como assente que a Requerida tem um passivo superior ao activo, sendo aquele no valor de 164.519,30 € e este de 0 €.
III. A sentença Recorrida dá como assente que a Requerida não tem receitas.
IV. É manifesta a superioridade do activo sobre o passivo, pelo que está verificado o disposto no artigo 20.º n.º 1, alínea h), do CIRE;
V. Está preenchido o plasmado no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, ou seja, suspensão generalizada do pagamento de obrigações vencidas por parte da requerida.
VI. Existe falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações pelo que se encontra preenchido o disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do CIRE.
VII. Está também verificado o plasmado no artigo 20.º, n.º 1, alínea g), ponto iv), do CIRE uma vez que a Requerida não tem as rendas do seu locado em dívida junto do respetivo senhorio.
VIII. A sentença recorrida dá como assentes factos que comprovam a insolvência da Requerida, mas não a decreta invocando que a Requerente não tem legitimidade para peticionar a referida falência e/ou quebra como lhe chamavam os antigos.
IX. A Requerente é parte legítima nos termos do artigo 20.º, n.º 1 e artigo 6.º do CIRE.
X. A Requerente é sócia e responsável pelas dívidas da Requerida.
XI. Não estamos perante qualquer contrato de suprimento.
XII. Não existiram quaisquer empréstimos feitos à Requerida por parte da Sra. (…) ou pelo pai desta, o Sr. (…).
XIII. Estes apenas efectuaram pagamentos de dívidas da firma Requerida, como por exemplo: água, gás, luz, telefones, finanças, segurança social, taxas a câmaras municipais etc.
XIV. Razão pela qual assumem a posição de credores da Requerida.
XV. Não estão preenchidos os pressupostos do artigo 243.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais.
XVI. Razão pela qual é mal aplicado ao caso o artigo 245.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais.
XVII. Não existe carácter de permanência de empréstimos de dinheiros à firma comercial requerida que girava sob o nome (…), Lda.
XVIII. Os balanços da firma dão conta da posição de credor do Sr. (…) e da sua filha (…).
XIX. Termos em que deverá proceder o presente recurso com as legais consequências, nomeadamente, procedendo-se à declaração de insolvência da Requerida.
Em suma a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 243.º e seguintes do CSC, nomeadamente o disposto no artigo 245.º, n.º 2, e não aplicou quando deveria ter aplicado ao caso o disposto no artigo 20.º, n.º 1, alíneas a), b) g), ponto iv) e h), do CIRE.

Cumpre apreciar e decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.

Tendo por alicerce as conclusões, a questão que importa apreciar consiste em saber se a requerente detêm legitimidade para requerer a insolvência da requerida.

A matéria factual a ter em conta para apreciação questão e que foi tida em conta, como relevante na 1ª instância, é a seguinte:
1º - A Requerida tem presentemente como sócios:
- a ora Requerente como titular das quotas no valor de 3.416,00 euros e 748,00 euros;
- (…), (…) e (…) como titulares de uma quota no valor de 2.570,00 euros;
- (…) como titular de uma quota no valor de 748,00 euros.
2º - No registo comercial consta como gerente da Requerida o acima referido (…);
3º - (…) foi sócio da sociedade Requerida, com uma quota no valor de 748,00 euros, que se por sua morte em 5/10/2013, se transmitiu para a Requerente;
4º - Pelo menos desde o ano de 1999 e até data anterior à da sua morte, (…) efectuou regularmente diversos pagamentos relativos a despesas da sociedade Requerida, totalizando 163.601,26 euros.
5º - A referida quantia de 163.601,26 euros foi considerada contabilisticamente na sociedade Requerida como “financiamentos obtidos”;
6º - Pelo menos desde o ano de 2009 que a Requerida não tem receitas;
7º - A Requerida não tem activo.
8º- A Requerida tem um passivo no valor de 164.519,30 euros correspondente a “financiamentos obtidos”, e onde se inclui a quantia de 163.601,26 euros referida no facto 5º.

Conhecendo da questão
A requerente veio requerer a insolvência da requerida invocando, por um lado, a qualidade de sócia responsável pelas dívidas da requerida, bem como a qualidade de credora decorrente do facto de ter sucedido no direito do credor originário, seu falecido pai, que também fora sócio da requerida.
O Julgador “a quo”, em qualquer das vertentes não lhe reconheceu legitimidade.
Vejamos então.
A requerente enquanto sócia da requerida e alegadamente responsável pelas suas dívidas não preenche os requisitos exigidos pelo artº 20 n.º 1 do CIRE conjugado com o artº 6º n.º 2 do mesmo Código para se reconhecer legitimidade para o exercício do direito de ação de insolvência.
Pois, para efeitos do CIRE, por responsável legal entende a lei “tratar-se de uma pessoa que, por força da lei, responda pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente” o que não é o caso, já que a requerente não invoca qualquer outra responsabilidade que não a simples responsabilidade de qualquer sócio de uma sociedade por quotas, nas quais, em regra, só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade nos termos do disposto no artº 197º, n.º 3, do CSC, sendo certo que, também, não apresentou qualquer documento donde resulte que, convencionalmente, a sua responsabilidade foi alterada ao abrigo do disposto no artº 198º do CSC, mas mesmo que essa fosse a realidade, tem-se entendido que essa ilimitação de responsabilidade por via convencional não está incluída na previsão do artº 6º, n.º 2, do CIRE, quando estipula que “para efeitos deste código, são considerados responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário” (v. Maria Rosa Epifânio in Manual do Direito da Insolvência, 2ª edição, 35; Catarina Serra in O Regime Português da Insolvência, 5ª edição, 39).
No que se refere à posição na qualidade de credora de que beneficia a requerente, ela advém-lhe do facto de por via sucessória ter adquiriu um direito do credor originário, o seu pai, que se encontra consubstanciado no facto de, enquanto sócio da requerida, ter procedido ao pagamento durante vários anos das dívidas da sociedade, tendo na contabilidade desta esses pagamentos sido considerados como “financiamentos”.
Em face do circunstancialismo factual apurado e do disposto no artº 243º do CSC o Julgador “a quo” entendeu, a nosso ver bem, que os créditos a que a requerente se arroga titular resultam de suprimentos feitos à sociedade pelo seu falecido pai, na qualidade de sócio.
Estamos, assim, com o Julgador “a quo”, quando refere:
Perante os factos provados, não há dúvidas que os referidos pagamentos de despesas da sociedade se apresentam como entregas de dinheiro à mesma a título de empréstimo, sendo assim, aliás, entendido pela Requerente, quando expressamente alega que a quantia de 163.601,26 euros aqui em causa corresponde a financiamentos que o seu pai fez à sociedade Requerida (não sendo alegado de qualquer modo que se trate de um acordo entre o pai da Requerente e cada um dos credores da Requerida tendo por objecto a cessão dos respectivos créditos, caso em que ainda se suscitaria a aplicação do n.º 5 do acima referido art.º 243º).
Assim sendo, estando em causa empréstimos feitos por um sócio à sociedade, importará sabendo se estamos perante um contrato de suprimento.
Na medida em que a prova do contrato de suprimento, atendendo a que os mesmos se desenrolam no âmbito da sociedade, envolvendo muitas vezes quem tem efectivamente o poder de direcção da sociedade, a lei estabelece factos que constituem indícios desse contrato de suprimento, tais como a estipulação de prazo superior a um ano para o reembolso, ou a circunstância desse reembolso não ter sido reclamado nesse prazo, sendo certo que o carácter de permanência poderá ser provado por qualquer forma. Por outro lado, dever-se-á ter em conta que salvo disposição em contrário o contrato de suprimentos nem depende de prévia deliberação dos sócios (vide n.º 3 do art.º 244º do Código das Sociedades Comerciais).
No caso em apreço, sabemos que os empréstimos sucederam-se ao longo de muitos anos, sem que tenha sido reclamado o seu reembolso, e quando é certo que em face da inexistência de receitas da Requerida, pelo menos desde o ano de 2009, bem como a inexistência de activo, fariam supor que os reembolsos nunca aconteceriam a breve trecho. Daí que a continuação dos empréstimos nessas circunstâncias apenas poderá significar que os empréstimos assumiriam um carácter de permanência, devendo, então, serem considerados como contratos de suprimento.
Aqui chegados, sabemos que o crédito invocado pela Requerente e em que a mesma funda a sua legitimidade para requerer a insolvência da Requerida tem unicamente por fonte contratos de suprimento.
Ora, tratando-se de créditos por contratos de suprimento, feito pelo sócio à sociedade Requerida neste processo, tem aplicação a restrição prevista no n.º 2 do art.º 245º do Código das Sociedades Comerciais (onde se prevê que os credores por suprimentos não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade). Note- -se que esta é uma regra especial que prevalece sobre a regra geral atinente à legitimidade constante no art.º 20º do C.I.R.E. (no sentido da ilegitimidade do credor por suprimentos para requerer a insolvência, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/5/2011, proc.º 73/10.8TBPNC.C1, in www.dgsi.pt/jtrc).
Efectivamente, estamos perante um crédito resultante de suprimentos efectuados por um sócio à sociedade, financiando-a, tendo em vista o seu bom funcionamento e as mais valias e lucros que daí lhe poderão advir, correndo naturalmente o sócio/credor ou os seus sucessores no direito, o risco acrescido de preterição na insolvência, pelo que “não podem requerer por eles a insolvência da sociedade, embora o plano de insolvência lhes seja aplicável (245º n.º 2 do CSC)” – v. Menezes Cordeiro, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª edição, 724;
Pois, admitir-se a um sócio financiador da sociedade, ou o seu sucessor no respetivo direito de crédito, a requerer a insolvência da mesma “poderia corresponder a admitir um comportamento contraditório (um venire contra factum proprium), dado que o sócio financia a manutenção da actividade social, eventualmente, criando expetativas nos credores da sociedade, e, posteriormente, valendo-se do modo de financiamento escolhido poderia vir requerer o termo da sociedade” – v. Alexandre Mota Pinto in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, vol. III, 654.
Em suma, bem andou o tribunal recorrido em negar legitimidade à requerente para instaurar a presente acção de insolvência, uma vez que a mesma enquanto credora por suprimentos, não pode requerer por esses créditos a declaração de insolvência da sociedade requerida, da qual é sócia – v. Catarina Serra in O Regime Português da Insolvência, 5ª edição, 40.
Nestes termos, irrelevam as conclusões da recorrente, sendo de confirmar a decisão recorrida.

DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Évora, 10 de Setembro de 2015
Maria da Conceição Ferreira
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes