Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
412/17.0T8ORM-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: RECURSO PARA A RELAÇÃO
VALOR DA CAUSA
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Sumário: A fim de não esvaziar ou inutilizar o direito de acesso aos Tribunais e a obtenção de protecção jurídica, excepcionalmente, por ausência de possibilidade de fixação do valor à causa, deve ser admitido o recurso.
Decisão Texto Integral: Processo nº 412/17.0T8ORM-A.E1


I – Relatório:

“(…) – Auto-Estradas do Litoral (…), SA”, expropriante nos presentes autos, notificada que foi da não admissão do recurso por si interposto, veio reclamar, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 643.º do Código de Processo Civil.

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O Tribunal «a quo» não admitiu o referido recurso, fundando-se no valor da causa, o qual considera estar fixado em € 1.486,00 (mil, quatrocentos e oitenta e seis euros).

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A expropriante entende que, nos processos processo de expropriação, o valor da alçada só é apurável após a apresentação do recurso da arbitragem, nos termos do artigo 58.º do Código das Expropriações, pois, na sua perspectiva, «só então, e com base nos critérios indicados no artigo 38.º[1] do Código das Expropriações, é fixado o valor da alçada».

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II – Enquadramento jurídico:

Do despacho que não admita o recurso pode o recorrente reclamar para o Tribunal que seria competente para dele conhecer no prazo de 10 dias contados da notificação da decisão (artigo 643º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Como regra base do sistema de impugnações vigora a regra que «o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa» (artigo 629º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A propósito da admissão dos recursos ordinários, Alberto dos Reis sublinha que «é condição primária que o recurso seja interposto de decisão proferida em causa que, pelo seu valor, exceda a alçada do tribunal respectivo, isto é, do tribunal de cujo despacho ou sentença se pretende recorrer»[2].
Dispõe o artigo 24º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais que «em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00 e a dos tribunais de 1.ª instância é de € 5.000,00».
A alçada é precisamente o limite do valor até ao qual o tribunal julga definitivamente, não sendo admitido recurso das decisões proferidas em causas cujo valor se contenha dentro desse limite[3].
No entanto, para além de excepções consagradas em normas extravagantes, está salvaguarda a recorribilidade nas situações inscritas nos números 2 e 3 do citado artigo 629.º do Código de Processo Civil.
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Na presente situação ainda não está definido o valor da causa, dado que, em sede de expropriações, por força da disciplina consagrada no artigo 38.º do Código das Expropriações, isso apenas sucede no momento em que é interposto o recurso da decisão arbitral.
Estamos perante um nó górdio interpretativo. Por um lado, o único valor provisório é o da decisão arbitral, por outro, face ao conteúdo da decisão recorrida, os autos não vão permitir que se defina o valor tributário da acção, uma vez que o despacho que declarou deserta a instância assim o impede.
O valor indicado no despacho de não admissão do recurso é um valor meramente indicativo e não existe uma regra consagrada no ordenamento jurídico português que regule directamente esta situação. Nesta ordem lógica, está-se assim perante um cenário de integração de lacunas da lei nos termos contemplados no artigo 10º do Código Civil[4] [5] [6] [7] [8] [9] [10] [11] [12].
A lacuna da lei é (seria), assim, a constatação da existência de um concreto conflito de interesses insusceptível de ser enquadrado na hipótese de uma norma de direito positivo ou de direito consuetudinário, uma ausência de resposta do sistema normativo a uma questão juridicamente relevante. Esta noção pressupõe que o caso que levou à detecção da lacuna é um caso que merece ou postula uma resposta do ordenamento, de acordo com a lógica intrínseca do mesmo[13].
E a integração dessa lacuna terá de ser resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema, à luz dos princípios gerais que regulam a matéria dos recursos e da garantia de protecção jurídica e de acesso ao Direito.
O artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa garante a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesse legalmente protegidos».

Como tem sido afirmado reiteradamente pelo Tribunal Constitucional, o direito à tutela jurisdicional efectiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20º, nº 1, da Constituição, implica o «direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras»[14] [15].

Esta garantia é imprescindível à proteção dos direitos fundamentais e, como tal, inerente à ideia de Estado de direito: sem prejuízo da sua natureza de direito prestacionalmente dependente e de direito legalmente conformado, a Constituição assegura a todos que não se pode ser privado de levar a respectiva causa à apreciação de um tribunal[16].
Adicionalmente, a jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional aponta no sentido que a inexistência de um duplo grau de jurisdição configura a excepção no domínio do processo civil, devendo, por isso, salvo no caso de existência de norma restritiva, o intérprete optimizar a possibilidade de recurso, sempre que tal revele ser possível.
E essa exigência deve ser maximizada nos casos em que se está perante um quadro de verdadeiro acesso ao direito. Na verdade, a prevalecer a posição da Primeira Instância, aquilo que acontecerá aos expropriados é, na prática, que lhes seja negado o direito a uma indemnização justa e equitativa e, em termos práticos, a sua não chamada à acção tem uma configuração paralela ao do indeferimento liminar da petição da acção. Na verdade, apesar do processo ser impulsionado pela entidade expropriante, a fase de recurso pode assumir a faceta de obtenção de uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, uma pretensão indemnizatória distinta daquela que proposta na decisão arbitral.
Deste modo, a fim de compatibilizar a situação concreta aqui exposta com o comando constitucional impresso no artigo 20º da Lei Fundamental, é obrigação do intérprete decidir que, nos casos em que ainda não esteja definido o valor da acção, quando processualmente se verifique a impossibilidade de tal vir a acontecer, deve ser admitido o recurso, a fim de perfectibilizar o acesso ao direito.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou por, diversas vezes, a propósito de situações em que estavam em causa normas ou interpretações normativas das quais resultava uma impossibilidade ou uma acentuada dificuldade de acesso à justiça, rejeitando uma leitura restritiva das normas sub judice.

Efectivamente, independentemente da bondade da solução encontrada pela Primeira Instância, no quadro dinâmico da acção aquilo que está em causa é, na prática, é a garantia de acesso aos Tribunais e a obtenção de protecção jurídica. E, assim, a fim de não esvaziar ou inutilizar esse direito, entende-se que, excepcionalmente, por ausência de possibilidade de fixação do valor à causa, ao abrigo dos direitos constitucionais acima convocados, deve ser admitido o recurso interposto.
O presente incidente não está sujeito a tributação.

III – Decisão:

Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, defere-se a reclamação em causa, admitindo-se o recurso interposto.

Requisite o processo principal ao Tribunal recorrido.

Sem tributação.

Notifique.

Processei e revi.

Évora, 08 de Novembro de 2018

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

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[1] Artigo 38.º (Arbitragem):

1 - Na falta de acordo sobre o valor da indemnização, é este fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais comuns.

2 - O valor do processo, para efeitos de admissibilidade de recurso, nos termos do Código de Processo Civil, corresponde ao maior dos seguintes:

a) Decréscimo da indemnização pedida no recurso da entidade expropriante ou acréscimo global das indemnizações pedidas nos recursos do expropriado e dos demais interessados, a que se refere o número seguinte;

b) Diferença entre os valores de indemnização constantes do recurso da entidade expropriante e o valor global das indemnizações pedidas pelo expropriado e pelos demais interessados nos respectivos recursos, a que se refere o número seguinte.

3 - Da decisão arbitral cabe sempre recurso com efeito meramente devolutivo para o tribunal do lugar da situação dos bens ou da sua maior extensão.

[2] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra 1946, pág. 583.

[3] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra 2003, pág. 9.

[4] Manuel de Andrade, Fontes de Direito/vigência, interpretação e aplicação da lei, Boletim do Ministério da Justiça, nº 102, 1961, págs. 141-166.

[5] Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª edição (tradução de José Lamego), Fundação Calouste Gulbenkien, Lisboa, 1997, págs. 525-610.

[6] J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 13ª reimpressão, Coimbra, 2012, págs. 192-218.

[7] J. Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 13ª Edição, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 433-467.

[8] G. Marques da Silva, Introdução ao Estudo do Direito, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2007, págs. 269-278.

[9] F. José Bronze, Lições de Introdução ao Direito, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, págs. 952-976.

[10] M. Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2012, págs. 385-411.

[11] A. Santos Justo, Introdução ao estudo do Direito, 6ª dição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, págs. 347-373.

[12] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Introdução, Fontes do Direito, Interpretação da Lei, Aplicação das Leis no Tempo, Doutrina Geral, 4ª edição, almedina, Coimbra, págs. 737-784.

[13] António Agostinho Guedes, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2014, pág. 52.

[14] Acórdão n.º 86/88 do Tribunal Constitucional, in www.tribunalconstitucional.pt

[15] Esta ideia é reiterada em jurisprudência posterior nos acórdãos n.ºs 157/2008, 530/2008 ou 853/2014, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

[16] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. I ao art. 20.º, pág. 408.