Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
558/20.8T8PTM-A.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
ADITAMENTO
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 02/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Tendo o cabeça-de-casal, na resposta à reclamação de bens, aditado novos bens à relação de bens inicialmente apresentada, não resultando tal aditamento da reclamação apresentada e tendo tal aditamento sido admitido nos autos, assiste à interessada reclamante o direito de apresentar requerimento onde se pronuncia sobre o referido aditamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
No processo de inventário (competência facultativa), que corre termos no juízo e processo supra identificado, para partilha de bens do extinto casal, que foi constituído por AA e BB, em 15-06-2022, foi proferido despacho que ordenou o desentranhamento do requerimento apresentado pela interessada AA, lendo-se na fundamentação do decidido:
«(…)
No caso concreto, o cabeça-de-casal apresentou a relação de bens que consta de fls. 33 e ss.
Notificada, veio a interessada apresentar a reclamação que consta de fls. 51 e ss. e cujos fundamentos aqui se dão por reproduzidos.
O cabeça-de-casal, notificado e mediante o pagamento de multa (ref. 123792358 e 124022643), vem apresentar a sua resposta à contestação da interessada – fls. 105 e ss.
Entretanto, de forma inopinada, vem a interessada apresentar novo articulado para, desta forma, responder à resposta do cabeça-de-casal – Fls. 117 e ss (ref. 9934495).
Conforme decorre do supra exposto, o processo de inventário tem regras claras e próprias:
- o cabeça-de-casal apresentou a relação de bens – art. 1102º CPC (a relação de bens deve ser apresentada nos termos do disposto no art. 1098º CPC)
- a interessado foi notificada para, querendo, reclamar – art. 1104º CPC;
- o cabeça-de-casal foi notificado para responder - art. 1105º CPC, tendo apresentado a sua
reposta a fls. 106 e ss.
Ora, a seguir a esta “resposta” não existe qualquer outro articulado, por conseguinte, ao apresentar o articulado junto a fls. 117 e ss., a interessada extravasa o legalmente admissível – arts. 1105º do CPC.
Assim, o articulado de fls. 117 e ss. apresentado pela interessada na sequência da “resposta” do cabeça-de-casal à sua contestação não tem qualquer cabimento legal, configurando um acto nulo, porque não permitido por lei, pelo que determino o seu desentranhamento e remessa à parte.
Custas a cargo da interessada.
DN pela sua eliminação do sistema informático (ref. ref. 9934495).»

Inconformada, a interessada AA interpôs recurso, apresentando a seguintes CONCLUSÕES:
«1. O presente recurso é interposto da decisão que determinou o desentranhamento do requerimento apresentado pela Interessada (Ref. 9934495) em resposta ao aditamento de bens à relação de bens, bem como aos créditos aditados/alegados pelo Cabeça-de-casal sobre a Interessada, requerendo desde já a atribuição de efeito suspensivo ao recurso.
2. Considerando as diligências previstas na tramitação dos presentes autos, deverá ser atribuído efeito suspensivo ao recurso, sob pena de afetar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas.
3. Termos em que deverá ser atribuído efeito suspensivo ao recurso.
4. Da decisão recorrida resulta por um lado a determinação de não admissão do articulado da Interessada em resposta aos factos novos aditados na resposta do Cabeça-de-casal, pelo cabeça-de-casal, sendo determinado o desentranhamento da peça processual, por outro lado a omissão do Tribunal quanto aos alegados factos novos, tanto que, na parte final da decisão refere a decisão recorrida – mantendo, no essencial os termos da relação de bens que apresentou – não vemos como pôde o Tribunal a quo decidir assim, quando foram aditados bens e direitos de crédito.
5. Ora, aquando da Resposta à impugnação/reclamação da interessada, o cabeça-de-casal na sua resposta referiu o seguinte: “O cabeça de casal, durante o período que mediou, entre a junção da Relação de Bens e a presente Resposta à Reclamação de bens, efetuada pela Interessada, detetou a existência de outros bens a serem relacionados, assim como direitos de crédito que detém, relativamente à interessada, os quais vem requerer a V. Exa. o seu aditamento, nos seguintes termos: …”.
6. Salvo melhor opinião, sempre teria a Interessada o Direito de se pronunciar acerca do aditamento efetuado pelo Cabeça-de-casal, a menos que o Tribunal tomasse posição clara de não admitir tal aditamento, o que não resulta da decisão recorrida, conforme se lê.
7. Da decisão recorrida, não resulta que em momento algum tenha a interessada, ora recorrente oportunidade para se pronunciar quanto aos factos novos. O exercício do contraditório tão pouco foi relegado para audiência prévia cuja data foi designada.
8. Estamos claramente perante a alegação de factos novos, recorde-se que foram aditados bens à relação de bens inicialmente apresentada pelo Cabeça-de-casal bem como Direitos de crédito do Cabeça-de-casal sobre a interessada.
9. A circunstância de o processo de inventário ter regressado ao CPC evita uma exaustiva regulação de todos os aspectos relevantes, dado que são aplicáveis à tramitação desse processo as disposição da parte geral do CPC, bem como as regras respeitantes à tramitação do processo comum de declaração que se mostrem compatíveis com o inventário judicial (art.º 549.º n.º1). Deste modo, a regulação deste processo especial apenas deve conter os seus aspectos específicos, não sendo necessário prever tudo o que é aplicável por via do art. 549.º n.º1. – cfr. “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes, Pedro Pinheiro Torres – Almedina 2020
10. O princípio do contraditório constitui um princípio estruturante no nosso regime processual civil e tem assento legal no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, estabelecendo a obrigatoriedade de cumprimento ao longo de todo o processo, estando vedado ao juiz decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, salvo caso de manifesta desnecessidade.
11. O princípio do contraditório deve ser conjugado com outros princípios igualmente estruturantes do processo civil, como sejam, entre outros, o princípio da igualdade das partes (artigo 4.º do CPC), o princípio da adequação formal (artigo 547.º do CP) e o princípio da boa-fé processual (artigo 8.º do CPC), sempre submetidos à concreta tramitação legal para cada espécie processual, em ordem a munir o tribunal de todos os factos e provas que lhe permitam proferir uma decisão justa e equitativa como imposto pelo artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, e que corresponda a uma tutela jurisdicional efetiva (n.º 5 do mesmo preceito) onde pontua a prevalência da «(…) da decisão de fundo sobre a decisão formal e com adopção do princípio da adequação formal (…).»
12. Como refere o STJ no acórdão de 20-09-2016, a propósito da caraterização e função do princípio do contraditório, «(…) no plano da alegação dos factos e da produção das provas, o princípio traduz-se na faculdade conferida a cada uma das partes de se pronunciar sobre os factos alegados pela contraparte e de impugnar a admissibilidade e força probatória das provas e de intervir na sua produção; no plano do direito (subsunção dos factos às soluções previstas na lei), o princípio consubstancia-se na exigência de que às partes seja facultada a discussão dos aspetos jurídicos em que a decisão se venha a fundamentar, visando-se assim afastar a denominada decisão-surpresa, ou seja a decisão que se funda numa perspetiva não suscitada ou antevista pelas partes.»
13. “ (…) O problema da alegação de factos novos no próprio articulado de resposta não se coloca exatamente nos mesmos termos, nomeadamente porque a tramitação do processo de inventário não comporta qualquer tréplica ao articulado de resposta. Isto justifica as seguintes soluções:
a) Antes do mais, importa verificar se o interessado invoca um facto novo no articulado de resposta se encontra de boa fé, isto é, se a esse interessado não teria sido exigível que tivesse alegado o facto em momento anterior (que pode ser o do requerimento inicial ou o do articulado de contestação). Não há justificação para um requerente de inventário alegar um facto novo (não superveniente) no articulado de resposta, a não ser que a sua alegação resulte de algum facto que tenha sido invocado, pela primeira vez, no articulado de contestação. Por exemplo: no articulado de contestação, um interessado alega a existência de um sucessor testamentário; qualquer outro interessado pode alegar no articulado de resposta a invalidade do respetivo testamento.
b) Se o interessado puder ser considerado como agindo de boa-fé, então o juiz deve admitir a alegação do facto novo no articulado de resposta. Nesta hipótese, há que garantir o contraditório dos demais interessados, cabendo ao juiz, através dos poderes de gestão processual (art.º 6.º n.º1) e de adequação formal (art.º 547.º), admitir um articulado de resposta ou, por analogia com o disposto no art.º 3.º n.º4, deferir esse contraditório para a audiência prévia (art.º 1109.º) ou para a conferência de interessados (art.º 1111.º). – cfr. “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes, Pedro Pinheiro Torres – Almedina 2020.
14. Termos em que, deverá esse Venerando Tribunal, revogar a decisão recorrida, e determinar que:
Seja a decisão recorrida substituída por outra que admita o articulado apresentado pela interessada;
Ou assim não se entendendo, que se pronuncie sobre a tomada de posição pela Recorrente relativamente aos factos novos em sede de audiência prévia já designada pelo Tribunal.
15. A decisão recorrida viola as disposições legais constantes nos art.ºs 3.º, 4.º, 8.º, 549.º do CPC e 20.º da CRP.»
Não houve resposta ao recurso.
O recurso foi admitido por despacho de 09-11-2022, como apelação, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), a questão essencial a apreciar é a da alegada violação do princípio do contraditório por o despacho recorrido ter ordenado o desentranhamento do requerimento apresentado pela interessada na sequência da resposta à reclamação apresentada pelo cabeça-de-casal.

B- De Facto
Os factos e ocorrências processuais relevantes para o conhecimento do recurso constam do antecedente Relatório, a que se acrescenta o seguinte:
1. A interessada AA apresentou reclamação à relação de bens invocando a falta de relacionamento de bens, a exclusão de bens do ativo e do passivo e do direito de crédito da interessada em relação ao cabeça de casal, tendo ainda impugnado o valor da verba 4 do ativo.
2. O cabeça de casal respondeu à reclamação, aceitando nos pontos I a IV da sua resposta alguns bens reclamados pela interessada, impugnando o valor apresentado pela mesma.
3. No ponto V da resposta à reclamação, o cabeça de casal fez constar o seguinte: «O Cabeça de Casal, durante o período que mediou, entre a junção da Relação de Bens e a presente Resposta à Reclamação de bens, efetuada pela Interessada, detetou a existência de outros bens a serem relacionados, assim como direitos de crédito que detém, relativamente à interessada, os quais, vem requerer a V. Ex.ª, o seu aditamento nos seguintes termos:
«VI - Bens que deverão ser aditados à Relação de Bens e que se encontram na posso da Requerente» (dando seguimento à numeração da Relação de Bens apresentada pelo Cabeça de Casal»)», as verbas 5, 6, 7, 8, 9 e 10 , e no ponto «VII - Direito de crédito do Cabeça de Casal relativamente à Interessada», aditou sob os n.ºs 8, 9, 10 e 11 os direitos de crédito que alega ter sobre a interessada AA, sendo que tais verbas correspondem a despesas e impostos relativos às verbas 1 e 3 da relação de bens, que o cabeça-de-casal alega ter vindo a pagar desde a separação, mas que são despesas da responsabilidade de ambos.
4. Notificada da resposta à reclamação, a interessada apresentou requerimento onde suscitou a questão prévia da falta de pagamento da taxa devida pela resposta à reclamação e, nos pontos I e II do mesmo requerimento, pronunciou-se sobre o aditamento de bens ao ativo e sobre os direitos de créditos do cabeça-de-casal sobre a interessada que resultam da resposta à reclamação apresentada pelo cabeça de casal.
5. Foi, então, proferido o despacho recorrido que ordenou o desentranhamento do requerimento referido em 4.
6. E de seguida, com a mesma data, proferiu ainda outro despacho com o seguinte teor:
«O cabeça-de-casal apresentou a relação de bens que consta de fls. 33 e ss.
Notificada, veio a interessada apresentar a reclamação que consta de fls. 51 e ss. e cujos fundamentos aqui se dão por reproduzidos, e muito em suma, arguindo a falta de relacionamento de bens, exclusão de bens (do activo e do passivo), direito de crédito da interessada relativamente ao CC e valor do bem descrito na V. 4 do activo.
Citados os credores, veio a “Caixa Económica Montepio Geral S.A.” reclamar o seu crédito no valor de 61.965,06 € – fls. 73 e ss.
O cabeça-de-casal, notificado, vem apresentar a sua resposta nos termos que contam de fls. 106 e ss., aceitando a inclusão de alguns bens reclamados pela interessada, embora impugne os valores por aquela apresentados, bem assim, mantendo, no essencial os termos da relação de bens que apresentou.
No caso concreto, o tribunal considera conveniente a realização de uma audiência prévia, tendo como objecto a audição dos interessados relativamente à reclamação apresentada e respectiva resposta, com vista a um possível acordo relativamente à inclusão ou exclusão dos bens controvertidos, bem como alcançar possível acordo quanto ao valor dos bens a aditar (e sobre os quais existe consenso) e sem prejuízo de avaliar a possibilidade de possível acordo quanto à partilha - (art. 1109º CPC).
Para o efeito, designa-se o próximo dia 18.10.2022, às 11h00, neste Juízo de Família e Menores
Notifique nos termos previstos no citado artigo.
Notifique, ainda, o(s) credor(es).»

C- De Direito
Estamos perante um processo de inventário para partilha de bens do extinto casal, ao qual se aplica o regime do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 117/2019, de 13-09, encontrando-se a respetiva tramitação inserida no Código de Processo Civil (CPC).
As normas que regulam este tipo de inventário encontram-se enunciadas no artigo 1084.º, aí se definindo que ao inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária se aplica o disposto no capítulo II (integrado pelos artigos 1097.º a 1130.º) e que aos inventários destinados à realização dos demais fins previstos no artigo 1082.º se aplica o disposto no capitulo III (composto pelos artigos 1131.º a 1135.º, aplicáveis, concretamente, aos casos de justificação de ausência, à separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento e a separação de bens em casos especiais) e, subsidiariamente, em tudo o que não esteja aí especialmente previsto, as disposições integrantes do capítulo II, reguladoras do inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária (cfr. artigos 1082.º, alínea d), 1084.º, n.º 2, todos do CPC).
Não cabendo na economia deste acórdão escalpelizar as inovações introduzidas pelo legislador em relação ao processo de inventário, é mister mencionar que o legislador reforçou os «poderes inquisitórios e de direção e gestão processual do Juiz, que resulta desde logo dos princípios gerais constantes do CPC, os quais passaram a ser diretamente aplicáveis ao processo de inventário, a partir do momento em que este passou a integrar aquele código.
No processo de inventário este reforço do inquisitório e dos poderes de direção e gestão processual do juiz mostra-se explicitamente acolhido, entre outras, nas normas constantes dos artigos 1105.º, n.º 4 (possibilidade de realização oficiosa de quaisquer diligências probatórias antes da decisão de saneamento), 1109.º (decisão acerca da utilidade ou necessidade de convocação de conferência prévia), 1110.º (saneamento do processo e marcação de conferência de interessados, com particular relevância para a prolação de despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha), 1118.º, n.º 3 (possibilidade de determinação oficiosa da avaliação de bens no incidente de inoficiosidade) e 1120.º (organização do mapa de partilha), cabendo-lhe solucionar as divergências que existam entre as várias propostas do mapa de partilha (artigo 1120.º, n.º 2, e, finalmente, proferir decisão sobre os aspetos ainda controversos entre as partes quanto ao projeto de mapa de partilha, objeto de eventuais reclamações. (artigo 1120.º, n.º 5).» [1]
Mas também introduziu regras de preclusão e de concentração no que diz respeito à alegação das questões relevantes e demonstração probatória do alegado, incrementando, assim, a autorresponsabilidade das partes na prática dos atos processuais (cfr. artigos 1097.º e 1099.º do CPC).
Em relação ao princípio da concentração, o legislador procurou concentrar os meios de defesa dos interessados (oposição, impugnação e reclamação), fixando o prazo de 30 dias, contados desde a citação para os termos da ação, estabelecendo o artigo 1104.º que, nesse prazo, deve ser deduzida oposição ao inventário, impugnar-se a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros, impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações e apresentar reclamação à relação de bens ou impugnar os créditos e as dívidas da herança.
No que diz respeito à relação de bens, prescreve o referido artigo 1104.º, n.º 1, alínea e), do CPC, que o interessado pode apresentar reclamação à relação de bens, prescrevendo o artigo 1105.º a sequência da tramitação da reclamação, ou seja, notifica-se a reclamação ao cabeça-de-casal, cabendo ao mesmo apresentar a respetiva resposta também no prazo de 30 dias.
Segue-se, no figurino da lei, a realização de prévias diligências probatórias que couberem ao caso, requeridas ou ordenadas oficiosamente (n.º 3, do referido artigo 1105.º), a eventual realização de uma conferência prévia (artigo 1109.º) ou o saneamento do processo (artigo 1110.º), decidindo-se, então, as questões suscitadas pelas partes (incluindo os eventuais incidentes), devendo ser elaborado um despacho, cuja finalidade e conteúdo decorre das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 1110.º do CPC, devendo o juiz, nesse despacho, resolver todas as questões suscetíveis de influenciarem a partilha e a determinação dos bens a partilhar, ordenando a notificação dos interessados (e do Ministério Público, sendo o caso) para, querendo, proporem a forma à partilha, designando dia para a conferência de interessados, seguindo-se a demais tramitação processual prevista nos artigos 1111.º e ss.
Esta tramitação evidencia, como faz notar LOPES DO REGO, que «(…) toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo da oposição, dando origem à apresentação de um verdadeiro articulado superveniente), que a lei admita expressamente passado esse momento (como sucede com a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respetiva avaliação, que, por razões pragmáticas, o legislador admitiu que pudesse ser deduzido até ao início das licitações) ou com as questões que sejam de conhecimento oficioso pelo tribunal.
Daqui decorre, por exemplo, que as reclamações contra a relação de bens tenham de ser necessariamente deduzidas, salvo demonstração de superveniência objetiva ou subjetiva, na fase das oposições – e não a todo o tempo, em termos idênticos à junção de prova documental, como parecia admitir o art. 1348.º, n.º 6, do anterior CPC[2]
Na tramitação assim sucintamente enunciada, não se encontra contemplada a situação que os presentes autos revelam.
Efetivamente, após a resposta do cabeça-de-casal à reclamação da interessada, não prevê a lei que haja qualquer resposta por parte da reclamante.
Mas a lei também não prevê que, na resposta à reclamação, para além do cabeça de casal se pronunciar sobre a reclamação (aceitando ou não os seus termos) venha a aditar novos bens ao ativo ou passivo, que não decorram da reclamação apresentada, com o fundamento que, entretanto, detetou outros bens e direitos que devem ser relacionados.
O princípio da concentração e da autorresponsabilidade das partes também funciona em relação à apresentação da relação de bens que, na perspetiva das novas regras, deve funcionar como uma verdadeira petição inicial, pelo que os aditamentos só serão justificados, tal como ocorre com a oposição e a alegação de impugnação ou exceções por parte dos interessados, se tiverem natureza objetiva ou subjetivamente superveniente, devendo ser tramitados através de requerimento próprio para esse efeito.
Ora, no caso, o cabeça de casal não seguiu tal rito processual, sendo que a alegação que fez para justificar o aditamento posterior da relação de bens também não se encontra fundamentada de modo a poder aferir-se da razão de só ter detetado a existência de outros bens após a apresentação da relação de bens e na fase da resposta à reclamação.
Importando sublinhar que é o próprio cabeça de casal que reconhece que se trata de um aditamento à relação de bens de bens móveis e créditos que o mesmo reclama sobre a interessada e que tal não decorre da aceitação da reclamação apresentada.
Donde é inevitável interpretar-se a resposta do cabeça de casal com um conteúdo que extravasa o da resposta legalmente prevista no artigo 1105.º, n.º 1, do CPC.
Ora, não se pode coartar à interessada o direito de se pronunciar sobre esse aditamento, não só porque assim o impõe, de forma genérica, o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, que consagra o princípio do contraditório, como também se impõe em face do disposto no artigo 1104.º, n.º 1, alínea d), do mesmo diploma, onde se contempla o direito do interessado reclamar contra a relação de bens, preceito que não pode deixar de ser interpretado no sentido de esse direito também lhe assistir quando ocorre um aditamento à relação de bens inicialmente apresentada.
Sobretudo porque esse aditamento foi admitido pelo tribunal nos termos em que foi apresentado, o que resulta do despacho que foi proferido na sequência e na mesma data do despacho recorrido, designando dia para uma audiência prévia com vista à obtenção de um acordo sobre a inclusão ou exclusão de bens controvertidos, bem como sobre o valor dos bens a aditar, havendo consenso, ali expressamente se mencionado que deve ser tida em conta a «reclamação apresentada e respectiva resposta», o que evidencia que estará em apreciação o aditamento que consta da resposta à reclamação.
E sendo assim, é incontornável que tem de ser dado cumprimento ao princípio do contraditório de modo a facultar à interessada o direito de se pronunciar sobre esse aditamento.
O princípio do contraditório e o princípio da igualdade das partes impõem essa conclusão, sendo que o tribunal a quo, no âmbito dos seus poderes de gestão processual e de adequação, tem o poder-dever de providenciar pelo cumprimento daqueles princípios constitucionalmente consagrados (artigos 3.º, n.º 3, 4.º, 6.º, n.º 1 e 547.º, do CPC, e artigo 20.º da CRP).
Acrescenta-se, ainda, que não decorre do despacho recorrido que o tribunal a quo tenha perspetivado o direito à pronúncia da interessada na fase da audiência prévia que designou (o que, eventualmente, poderia ocorrer ao abrigo dos artigos 3.º, n.º 4, e 1109.º, n.º 1, do CPC), pois, ao invés, o despacho recorrido acentua que o requerimento ordenado desentranhar não tem cabimento legal, correspondendo a um ato não permitido por lei, o que parece indicar que, no modo como o tribunal a quo interpretou a sequência processual de atos praticados pelas partes, não haveria de todo lugar à pronúncia da interessada.
O que, salvo o devido respeito, não se pode sufragar pelas razões sobreditas, pelo que se impõe a revogação do despacho recorrido, ordenando-se, outrossim, que o requerimento da interessada que foi mandado desentranhar seja mantido nos autos, levando-se o mesmo em consideração na decisão que venha a ser proferida sobre a reclamação de bens.
Nestes termos, procede a apelação.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, ordenando-se, consequentemente, que o requerimento da interessada que foi mandado desentranhar seja mantido nos autos, levando-se o mesmo em consideração na decisão que venha a ser proferida sobre a reclamação de bens.
Sem custas.
Évora, 09-02-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] PEDRO PINHEIRO TORRES, Notas Breves de Apresentação do Processo de Inventário na Redação dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, in Cadernos do CEJ, Inventário: O Novo Regime, Maio 2020, p. 20-21, disponível em
https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=8LotKRQOhKg=&portalid=30
[2] A Recapitulação do Inventário, Julgar on line, Dezembro 2019, p. 12 e 13.