Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
419/16.5GBTVR.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
CULPA CONCRETA
PENA DE MULTA
Data do Acordão: 02/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário:
I - Comete o crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Cód. Penal, a condutora que, ao se ter encadeado pelo sol, não tomou de imediato todas as devidas precauções para evitar que esse encadeamento levasse ao embate do veículo por si conduzido no velocípede e na pessoa que em cima dele circulava.

II - Tendo em conta que a condutora conhecia bem o local do embate, sendo que no mesmo circulava diariamente, o encadeamento pelo sol era-lhe previsível e não pode ser considerado circunstância imprevista.

III- Sendo, no entanto, essa circunstância exterior o início do processo causal do embate, deve ser considerada diminuída a sua culpa, de tal forma que, conjugando isso com as demais circunstâncias do caso concreto, a pena de multa se revela adequada às finalidades da punição.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

RELATÓRIO

No âmbito do processo comum singular em referência, oriundo do tribunal judicial da comarca de Faro, foi a arguida MG condenada pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artºs 69º, nº 1, al. a) e 137º, nº 1, ambos do Cód. Penal, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período de um ano, com a condição de a mesma pagar no prazo de seis meses, o montante de € 500,00 ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de um ano.

Foi ainda condenada a pagar ao Centro Hospitalar do Algarve o montante indemnizatório de € 379,71, acrescido de juros.

A arguida, inconformada com tal condenação, recorreu, tendo terminado a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1. A sentença recorrida condenou a arguida MG pela prática em autoria material e na sua forma consumada de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível, pelas disposições conjugadas dos arts.º 69.º, n.º1, al. a) e 137.º nº 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão a qual, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts.º 2º, nº 4, 50º, 51º, nº 1, alínea c) todos do Código Penal, suspendo na sua execução, pelo período de 1 (um) ano, sujeita à condição da arguida, no prazo de seis meses, entregar o montante de € 500,00 (quinhentos euros) ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão devendo comprovar tal nos autos e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 1 (um) ano e no pagamento da taxa de justiça, a qual fixo em duas UC’s e, ainda, nas demais custas do processo. E foi julgado totalmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar do Algarve, E.P.E., pelo que, condeno a arguida/demandada civil a pagar-lhe o montante de € 379,71 (trezentos e setenta e nove euros e setenta e um cêntimos), acrescido de juros de mora, à taxa legal em vigor e que é, actualmente de 4%, vencidos desde a notificação à arguida/demandada civil para contestar o referido pedido de indemnização civil e vincendos, até efectivo e integral pagamento.

2. A arguida ora recorrente não se conforma com a sentença recorrida desde logo porque se considera que estamos perante um vício de insuficiência da matéria dada como provada.

3. O tribunal “a quo” concluiu que a arguida apesar do encandeamento pela luz solar para além de ter desacelerado a marcha imprimida ao veículo automóvel por si conduzido, não adoptou qualquer outro comportamento por forma a minimizar os efeitos de tal encadeamento solar (v.g. baixar a pala interior do automóvel; usar óculos escuros; adaptar/ajustar a posição da condução), porém tal conclusão não se encontra alicerçada na matéria de facto dada como provada e como não provada.

4. Dado que nem dos factos dados como provados nem dos factos dados como não provados consta que a arguida baixou a pala do interior do automóvel; usava óculos escuros; adaptou/ajustou a posição da condução.

5. O que faz com que a matéria de facto provada seja insuficiente para a condenação, situação que é subsumível ao artigo 410.°, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal, devendo a sentença recorrida ser revogada por insuficiência da matéria de facto dada como provada.

6. Sem prescindir, os factos provados n.º s 2, 3, 4 e 5 encontram-se mal julgados e mal apreciados.

7. O facto provado n.º 4 encontra-se em contradição com os factos dados como provados n.º 6, 9, 10 e 11 pois se resulta do facto provado n.º 4 que atenta a posição e trajetória da arguida à data e hora do embate era suscetível de provocar o encandeamento, não podendo ser dado como provado nos factos 6, 9, 10 e 11 que a arguida conduzia desatenta, de forma descuidada e incauta e que actou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

8. Aliás, resulta e bem dos factos dados como não provados n.ºs 4 e 9 in fine que a arguida foi encandeada pela luz solar e que nessa sequência desacelerou a marcha imprimida ao veículo por si conduzido.

9. Ao que acresce que não resulta nem dos factos dados como provados, nem dos factos dados como não provados que a arguida tenha violado o dever de cuidado, ou que tenha procedido com o cuidado a que estava obrigada ou que não tenha usado óculos escuros de sol, baixado a pala, ajeitado o banco de modo a permitir melhor a visibilidade face ao encadeamento súbito e inopinado.

10. Na esteira daquele que tem sido o entendimento da nossa jurisprudência nomeadamente do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 9110350, datado de 27-02-1991, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário ora se transcreve: “Dizendo-se na sentença que "o arguido encandeou-se com o sol ", tal expressão apresenta-se, no contexto da decisão, como demasiado genérica e não concretiza devidamente o encandeamento e os seus efeitos, interessando averiguar: o momento e intensidade do mesmo, se antes o arguido já tinha avistado o outro veiculo, qual a reacção do arguido perante o encadeamento -se parou, reduziu a velocidade, se guinou para a esquerda ou para a direita -se o encandeamento surgiu de subito e inesperado e o ponto do embate, para o que se anula o julgamento e se determina o reenvio do processo para novo julgamento.”.

11. A verdade é que dos factos dados como provados n.º 4 e 9 resulta que a arguida foi encandeada pelo sol, não tendo sido concretizado mais nenhum facto sobre a postura adoptada.

12. Sendo o próprio facto dado como provado n.º 9 contraditório poi é referido que a arguida não adoptou qualquer postura que lhe permitisse minimizar os efeitos do encadeamento solar, constando da mesma linha do facto dado como provado n.º 9 que a arguida desacelerou a marcha imprimida ao veículo automóvel por si conduzido, o que significa que a arguida quando inopinadamente foi surpreendida pelo encandeamento solar reduziu a velocidade, tendo adoptado uma postura para minimizar os efeitos desse mesmo encandeamento.

13. O que faz com que estejamos assim perante um vício de contradição insanável da matéria de facto dada como provada, isto é, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados colidem inconciliavelmente entre si e ainda, com os factos dados como não provados e com a fundamentação da decisão.

14. O que faz com que para além de uma contradição insanável entre os factos provados, conforme dispõe o artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) e b) do C.P.P.

15. Pelo que se pode concluir que os factos dados como provados n.ºs 4, 6, 9 e 10 se encontram incorrectamente julgados por serem contraditórios entre si e estão os mesmos em contradição com a decisão proferida, conforme dispõe o artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) do Código de Processo Penal.

16. O erro em questão, quando resulta da decisão recorrida, constitui vício que implica a anulação daquela e o reenvio do processo para novo julgamento.

17. Tendo igualmente sido violados os princípios da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal e o princípio in dúbio pro reo previsto no artigo 32.º da nossa constituição.

18. Ao que acresce que o tribunal “a quo” ao julgar que se verificou o tipo de culpa negligente violou o vertido no artigo 15.º do Código Penal e bem assim a nossa jurisprudência dominante.

19. Pese embora se considere do supra exposto que o tribunal “a quo” se alicerçou factos que não foram provados nem discutidos, conforme supra já melhor referenciamos, e que a arguida não violou norma, regra de cuidado ou criou um risco juridicamente proibido.

20. Andou mal o tribunal “ a quo” ao julgar que se verificou o tipo de culpa negligente em virtude de a arguida não ter procedido com o cuidado devido a que segundo as circunstâncias estava obrigada e de que era capaz.

21. Pois no presente caso concreto não estamos perante a violação de nenhum dever objectivo de cuidado, nem perante a produção de um resultado danoso que a agente pudesse ou devesse prever, nem o resultado desvalioso se pode imputar à violação do dever de cuidado por parte da arguida, aqui recorrente.

22. Aliás resulta da nossa jurisprudência que se um condutor de um veículo é encandeado pelo sol imediatamente antes da eclosão do acidente, deixando de avistar o espaço visível à sua frente, não lhe é exigível que reduza a velocidade ou faça parar o veículo, citamos a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 20/09.0TBAVV.G1, datado de 06-01-2011, disponível em www.dgsi.pt.

23. E o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 1068, datado de 1611-1988, disponível na Col. Jur., ano XIII-1988, tomo V, pág. 95, cujo sumário ora se transcreve:

“I – A negligência grosseira – art. 136.º, n.º 2 do C.P. – consiste em não se tomarem as precauções aconselhadas pela previsão mais elementar, ou em adoptar uma conduta de manifesta irreflexão ou ligeireza.

II – Não revela negligência grosseira a conduta do agente condutor de automóvel que, por encandeamento solar e brilho da estrada, e por falta de cuidado, colide com ciclista circulando no mesmo sentido, ao ultrapassá-lo.”.

24. Impõe-se ainda subjectivar o dever de cuidado, estabelecendo um nexo psicológico entre o agente e o facto que é consequência da violação do dever de diligência.

25. Mas para tal - para aferir essa possibilidade de previsão - importa determinar qual o cuidado especifico que a arguida não cumpriu, que podia ter cumprido e era adequado a evitar o resultado.

26. Ora no caso em apreço, dos factos provados, sabe-se apenas que a arguida se encandeou com a luz solar e que reduziu a velocidade daí resultando a morte da vítima que seguia na estrada com o velocípede, sem capacete e sem colete reflector ou qualquer elemento sinalizador.

27. No entanto não é seguro, sem mais, que dai possa extrair-se a ilação de que a arguida, aqui Recorrente procedeu culposamente.

28. Ficando desde logo por demonstrar as causas ou a causa concreta do embate, se a vítima ia a pé com o velocípede se ia em cima do velocípede a pedalar, se a arguida baixou a pala interior do veículo automóvel, se a arguida usava óculos escuros, se a arguida adaptou/ajustou a posição de condução -que a acusação também não descreve.

29. Não tendo sido ponderados os artigos 40.º e 70.º do Código Penal, nem aplicada a teoria dos fins das penas existente no nosso sistema penal.

30. O que determinou uma escolha da medida da pena desajustada e em sentido contrário com o critério da escolha da pena.

31. Termos em que deverá a arguida, ora Recorrente ser absolvida, porém e caso assim não se entenda sempre se dirá que a medida da pena aplicada é excessiva, bem como a pena acessória, pelo que e caso se entenda pela aplicação de uma pena a mesma deverá sempre ser fixada pelos mínimos legais.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá V. Exa. dar provimento ao presente recurso, e em consequência revogar a sentença recorrida e absolver a arguida MG, assim se
fazendo JUSTIÇA!”
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A Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a sua resposta cos as seguintes conclusões:

“1 -Vem o recurso interposto da sentença proferida nos autos que condenou a arguida, pela prática, como autora material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelas disposições conjugadas do art.º 69.º, n.º 1 al. a) e 137.º1 do Código Penal, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de a arguida entregar a quantia de € 500 ( quinhentos euros) ao Centro de Medicina e Reabilitação de Alcoitão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de um ano.

2 - Sustenta a recorrente que se verifica a insuficiência da matéria de facto dada como provada – art.º 410.º, n.º 2 do C.P.P., dado que o tribunal a quo considerou que a arguida não adoptou qualquer outro comportamento para minimizar os efeitos do encadeamento solar, conclusão que não se encontra alicerçada nos factos provados ou não provados;

3 – Ao impugnar a matéria de facto dada como provada e não provada, verifica-se que a recorrente não cumpriu a obrigação de impugnação especificada que impende sobre a mesma e resulta do art.º 412.º, n.sº 3 e 4 do C.P.P., o que determina a rejeição da apreciação do mérito do recurso interposto.

– Ao impugnar a matéria de facto dada como provada e não provada, verifica-se que a recorrente não cumpriu a obrigação de impugnação especificada que impende sobre a mesma e resulta do art.º 412.º, n.sº 3 e 4 do C.P.P., o que determina a rejeição da apreciação do mérito do recurso interposto.

4 – Caso assim não se entenda, e reportando-nos às questões concretamente suscitadas pela recorrente, é nosso entendimento que:

5 - Quanto à alegação da recorrente de que o tribunal a quo deu como provado que a arguida foi encandeada pelo sol e que esta, para além de ter desacelerado a velocidade do seu veículo, não praticou qualquer outra conduta adequada a diminuir os efeitos de tal encandeamento, “sem que tal conclusão resulte dos factos dados como provados e não provados”, o que consubstancia o vício da insuficiência da matéria de facto dada com provada,

6 - Salvo o devido respeito, os factos em questão constam claramente no ponto 9 da factualidade dada como provada na sentença em apreço, pelo que é manifesto que improcede o pugnado pela recorrente, nesta parte.

7 – O mesmo se dirá quanto à alegada existência de contradição insanável entre a matéria de facto e a fundamentação / decisão proferida, dado que da mera análise literal da factualidade dada como provada e não provada na sentença, resulta claro e manifesto que tal vício não se verifica.

8 – Tal alegação, carece de qualquer fundamento, pelo que se pugna igualmente pela improcedência do recurso nesta parte.

9 - No que concerne à alegada violação do princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º do C.P.P., sustenta a recorrente que tal sucedeu quando o Mm.º Juiz a quo “presumiu” que a arguida violou um dever objectivo de cuidado e criou um risco juridicamente protegido (…)”.

10 – Ora, da mera leitura da sentença ora em crise, é manifesto que o Mm.º Juiz a quo não presumiu, mas antes deu como provada, com base na prova produzida em sede de julgamento -que nem sequer foi devidamente impugnada nesta sede -, factualidade, de onde se infere claramente que a arguida violou várias normais estradais, exaustivamente analisadas na motivação da sentença proferida, e que infirmam o sustentado pela recorrente nesta parte.

11 – A alegada violação do princípio in dúbio pro reo, na medida em que “toda a fundamentação da sentença, não assenta nos factos dados como provados é antes uma construção aparentemente lógica-dedutiva, completamente desfasada e contrária ao que ficou provado em sede de audiência de discussão e julgamento”.

12 – Carece de qualquer fundamento.

13 - Desde logo porque a aplicação de tal princípio pressupõe que o tribunal, face a prova produzida, incorra em dúvida séria, insanável e insuprível acerca do sucedido.

14 - Ora, conforme resulta do teor da sentença proferida, o tribunal a quo fundou a sua convicção no sentido de a arguida ter praticado os factos de que vinha pronunciada, não se vislumbrando quaisquer dúvidas que justifiquem a aplicação do aludido princípio.

15 - As dúvidas surgem apenas e tão só à recorrente que considera, sem mais, que não se logrou apurar com o grau de certeza exigível, que a arguida cometeu o tipo-de –ilícito pelo qual foi condenada.

16 - Contudo, como anteriormente referido, não foi esse o entendimento do tribunal a quo que formou a sua convicção em relação aos factos provados no sentido de a arguida vir a ser condenada pela prática dos mesmos, convicção esse devidamente fundamentada e que não merece qualquer censura.

17 - Pelo exposto, também nesta parte deverá improceder o alegado.

18 - Invoca a recorrente a violação do art.º 15.º do Código Penal, dado que, segundo a mesma não foi violada “qualquer norma ou regra estradal dos factos dados como provados que se mostram inconcludentes para deles inferir o elemento subjectivo da negligência”;

19 – O M.º P.º considera que, do teor da motivação da sentença proferida nos autos resulta evidente que a conduta concretamente assumida pela arguida ( acção/ omissão do dever de cuidado) consubstancia e integra de facto o elemento subjectivo do crime em apreço – negligência.

20 - Tal questão mostra-se devida e exaustivamente enunciada na motivação da sentença, quer de facto quer de direito, pelo que nada temos a apontar em relação ao decidido nesta parte.

21 - Por último, no que concerne à violação do disposto nos art.ºs 40.º e 70.º ambos do Código Penal, por falta de ponderação sobre a aplicação da teoria dos fins das penas,

22 - Por a recorrente ter sido condenada numa pena de prisão, quando deveria ter sido absolvida, apenas cumpre dizer que da análise da motivação da sentença proferida nos autos, resulta patente que o disposto em tais preceitos legais foi devidamente apreciado e ponderado pelo Mm.º juiz a quo,

23 - Não se pode considerar excessiva uma pena fixada a 1/3 do seu limite máximo, mas antes proporcional e adequada às circunstâncias do caso concreto e aos princípios norteadores da determinação da medida concreta da pena.

24 - A pena concretamente aplicada à recorrente afigura-se-nos justa, adequada e proporcional ao circunstancialismo do caso concreto, tendo sido fixada de acordo com a culpa manifestada pela arguida no ilícito cometido, com as exigências de prevenção geral e especial e com as demais circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor e contra “o agente”.
Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso interposto, por ausência de fundamentos de facto ou de Direito que inquinem a decisão proferida, mantendo-se a sentença proferida nos seus precisos termos, com o que se fará JUSTIÇA!”
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Neste tribunal da Relação, o Exmº Procurador da República emitiu parecer no sentido da total improcedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P..
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APRECIANDO

As questões que importa apreciar nos presentes autos, delimitadas pelas conclusões do recurso, como é pacificamente entendido, são as seguintes:

- Ocorreu o vício previsto no artº 410º, nº 2, al. a), do C.P.P. por virtude de se ter considerado que a arguida, para além de ter desacelerado a marcha do seu veículo, não adoptou qualquer outro comportamento por forma a minimizar os efeitos do encadeamento solar (v.g baixar a pala interior do automóvel, usar óculos escuros, adaptar/ajustar a posição da condução), quando é certo que não consta na matéria provada ou não provada que a arguida baixou a pala, usava óculos escuros, adaptou/ajustou a posição de condução?

- O facto provado sob o nº 4 encontra-se em contradição com os factos provados nºs 6, 9 10 e 11 e o facto dado como provado sob o nº 9 é contraditório em si mesmo, ocorrendo por isso o vício previsto na al. b) do nº 2 do artº 410º do C.P.P.?.

- Foi violado o princípio da livre apreciação da prova previsto no artº 127º do C.P.P., padecendo, por isso, a sentença de nulidade nos termos do artº 379º, nº 1, al. c), do C.P.P., como pretende a recorrente?

- Foi violado princípio “in dubio pro reo”?

- Foi violado o artº 15º do Cód. Penal por não se poder concluir que a arguida não actuou com o cuidado devido?

- A pena aplicada foi excessiva, não tendo sido ponderados os artºs 40º e 70º do Cód. Penal?
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A sentença recorrida, na parte que nos interessa é do seguinte teor:

“2. Fundamentação

2.1. Matéria de facto provada

Da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos – mas apenas para conhecimento da responsabilidade jurídico-penal da arguida e do pedido de indemnização civil que foi deduzido pelo Centro Hospitalar do Algarve, E.P.E.:

1.º No dia 14 de Outubro de 2016, pelas 08h30, a arguida MG conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com o número de matrícula DI, da marca Citroen, modelo C4 Diesel, do ano de 2007, com 1560cc de cilindrada, na Rua 1.º de Maio, em Santa Catarina da Fonte do Bispo.

2.º Na mesma ocasião, JR tripulava o seu velocípede, circulando na EN n.º 270, Santa Catarina da Fonte do Bispo, no sentido São Brás de Alportel – Tavira, junto à linha delimitadora entre a berma e a faixa de rodagem, à frente do cruzamento entre a Rua 1.º de Maio e a EN 270.

3.º A arguida aproximou-se do cruzamento entre a Rua 1.º de Maio e a EN 270, desferiu a curva aí existente à esquerda, na qual se encontra aposto um sinal Stop, pelo que, parou no mesmo e, após, entrou na referida EN 270 – que no local se desenvolve em recta, com ligeira inclinação ascendente – no mesmo sentido em que circulava JR.

4.º O pavimento estava em bom estado de conservação, com superfície seca e limpa; fazia sol, sendo que, atenta a posição e trajectória do mesmo à data e hora do embate referido em 6º infra era susceptível de provocar o “encandeamento” da arguida no exercício da condução do seu veículo automóvel.

5.º No momento em que a arguida desferiu a curva e se aproximou do velocípede, não circulava qualquer outro veículo em sentido contrário, nem na mesma faixa de rodagem, isto é, entre o veículo automóvel conduzido pela arguida e o velocípede tripulado pelo JR.

6.º Após ter percorrido cerca de 18 metros na EN 270, a arguida, por circular desatenta e também por via do referido em 4º supra, 2ª parte, embateu com o lado dianteiro direito do veículo automóvel que conduzia no velocípede tripulado por JR e neste último.

7.º Em resultado do embate, JR caiu contra o automóvel, colidindo com o capot e o pára-brisas, sendo depois projectado para o solo.

8.º Em consequência directa e necessária, o ofendido sofreu edema cerebral difuso e hematoma subdural agudo consecutivo a traumatismo crânio-meningo encefálico grave, o que lhe causou a sua morte.

9.º Ao não circular com a atenção necessária para que pudesse visualizar outros veículos que circulavam na EN 270 à sua frente, via para onde entrou e ao não adoptar qualquer postura que lhe permitisse minimizar os efeitos do encandeamento solar – apenas desacelerou a marcha imprimida ao veículo automóvel por si conduzido – a arguida não conseguiu evitar o embate, violando os mais elementares deveres de cuidado na condução, e as regras prudenciais a que estava obrigada e de que era capaz.

10.º A arguida bem sabia que, ao conduzir daquela forma descuidada e incauta, poderia embater contra o velocípede ou outros veículos que ali circulassem, provocando a morte aos respectivos condutores ou tripulantes, confiando, contudo, que tal se não verificaria.

11.º A arguida actuou de forma livre, voluntária, e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

Mais se apurou que:

12.º À data dos factos subjacentes ao presente processo, a arguida MG e respetivo núcleo familiar (que engloba, para além do cônjuge, dois descendentes menores de idade, com 10 e 8 anos de idade, respectivamente, estudantes em escola pública) residia numa habitação propriedade do agregado de origem, contígua à residência dos pais bem como à do agregado familiar do único irmão, situação que se mantém na atualidade.

A arguida usufrui de um enquadramento familiar protetor, sendo a dinâmica marital e/ou relacional com a família alargada caracterizada como gratificante, em termos psicoafectivos.

Tendo concluído o ensino secundário com cerca de 20 anos de idade, a arguida iniciou então atividade remunerada como empregada de escritório numa fábrica de bolos e pastelaria, onde se manteve por um período de cerca de 3 anos.

A frequência/conclusão do curso de formação profissional de Técnicas de Contabilidade viria a possibilitar a reintegração laboral da arguida, como assistente de contabilidade, numa firma sita em Faro, onde se mantinha activa à data dos factos subjacentes aos autos.

Posteriormente, a conjugação de dificuldades de concentração e/ou de adequada gestão das responsabilidades inerentes à função com anterior processo de desmotivação relativamente à sua situação laboral esteve na génese da desvinculação de MG da entidade patronal onde se mantivera durante cerca de 11 anos.

Face a apetência e motivação na área de confecção de doçaria, a arguida, com o apoio da família, estabeleceu-se por conta própria, tendo recorrido a crédito bancário para o efeito, sendo a respetiva amortização mensal estimada em cerca de € 200,00.

Na actualidade e face à recente actividade em nome individual, a arguida MG por não deter ainda uma carteira de clientes ou um grande volume de trabalho apenas retira do exercicio de tal actividade a quantia líquida mensal de € 400,00; nesse contexto, o rendimento familiar assenta no vencimento mensal do cônjuge (estimado em cerca de € 900,00), com recurso pontual ao apoio económico dos pais da arguida.

Não foram detectadas eventuais referências sociais estigmatizantes (de situações e/ou comportamentos de risco), sendo que o percurso vivencial da arguida (tal como a vítima) decorreu na comunidade da área de residência.

A arguida MG denotou consistente penosidade face à existência de uma vítima (elemento da comunidade que inclusive, colaborava, por vezes, no Café explorado pelos pais da arguida), bem como respeito pelo sistema legal, enquadrando os factos subjacentes ao processo num contexto circunstancial.

A arguida não tem antecedentes criminais registados; também não regista qualquer infracção rodoviária.

Tem carta de condução desde 01.10.1999 e conhecia, desde sempre, o local onde ocorreu o embate, sendo que, no mesmo, circulava diariamente. Conduzia, em média e mensalmente, cerca de 1 000 Km.

A arguida ficou extremamente transtornada e pesarosa com o sucedido; evidenciando arrependimento pelo resultado do ocorrido (a morte do JR).

13.º O JR era um condutor de velocípedes com muita experiência e conhecia muito bem a via por onde circulava; contava com 70 anos de idade; era saudável.

Na altura do embate, não trazia capacete, nem envergava qualquer material reflector.

14.º O episódio de urgência relativo a JR e o custo das diversas análises clínicas a que o mesmo foi submetido no Centro Hospitalar do Algarve, E.P.E. ascendeu a € 379,71 (trezentos e setenta e nove euros e setenta e um cêntimos), montante que ainda não se encontra pago.

2.2. Factos não provados

Para além dos atrás descritos não se provaram quaisquer outros factos, com relevância para a decisão da causa, nomeadamente, não se provou que:

1. No momento em que a arguida desferiu a curva e se aproximou do velocípede, na mesma faixa de rodagem, atrás do velocípede e da arguida, circulava o veículo conduzido por EE.

2. No momento do embate ou imediatamente antes, o JR circulasse a pé na EN 270, trazendo o velocípede pela mão.

Os factos não compreendidos em 2.1. (factos provados) e em 2.2. (factos não provados) ou são conclusivos, ou mostram-se prejudicados pelos ali expendidos ou não revelam qualquer interesse para a boa decisão da causa.

2.3. Motivação da decisão de facto

No apuramento da factualidade julgada provada, o Tribunal formou a sua convicção:

- Nas declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento pela arguida MG, as quais, no que tange ao modo como ocorreu o acidente de viação, não foram minimamente esclarecedoras. Com efeito, a arguida afirmou, em síntese útil, que não viu o velocípede, nem o seu tripulante e só se apercebeu do embate com o “estrondo” pelo mesmo provocado e que de imediato parou o veículo automóvel que conduzia.

Instada sobre as razões de não ter visto o velocípede disse que na ocasião estava encandeada pela luz solar – o que é possível de ter ocorrido (vide, fls. 136 a 143 dos autos) – porém verifica-se que a mesma, ainda antes do embate, percorreu na EN 270, cerca de 18 metros, igualmente sob o aludido encandeamento solar e tendo-lhe sido perguntado que comportamento adoptou face a tal limitou-se a afirmar que apenas desacelerou a marcha que imprimia ao veículo automóvel por si conduzido, não tendo adoptado qualquer outro comportamento que poderia minimizar os efeitos da referida luz solar (por exemplo, baixar a pala interior do veículo automóvel; usar óculos escuros; adaptar/ajustar a posição de condução). Por outro lado, o mesmo – encandeamento solar – não poderia ter surpreendido a arguida no exercício da condução do seu veículo automóvel, já que, aquela e sensivelmente à mesma hora deslocava-se diariamente para o seu local trabalho na referida via de trânsito.

Assim, no que se reporta aos factos que se deixaram demonstrados, as declarações da arguida relevaram, sobretudo, para aferir do sucedido antes e imediatamente após o referido embate.

Aqui chegados, relativamente ao modo como terá ocorrido o acidente de viação em causa, a par das regras da experiência comum, da lógica e das demais circunstâncias do caso, o Tribunal considerou o depoimento prestado pela testemunha HC (com 41 anos de idade, militar da GNR desde 2001 e a prestar serviço no posto territorial de Tavira desde 2005), o qual elaborou a participação de fls. 3 a 5 dos autos e em julgamento corroborou o seu teor, a par da prova documental infra referenciada.

Relativamente às declarações prestadas pelo demandante civil NR (com 42 anos de idade, filho do malogrado JR) importa dizer que o mesmo não presenciou o acidente de viação em causa, desconhecendo o modo como o mesmo se produziu. Mas deslocou-se ao local do acidente quando a ambulância do INEM estava a chegar tendo visto o seu pai prostrado no solo, à frente do veículo automóvel. Assim, o seu depoimento relevou sobretudo para o apuramento dos factos que se deixaram vertidos em 2.1.13º supra.

O depoimento efectuado em audiência de discussão e julgamento pela testemunha EE (com 48 anos de idade, residente na EN nº 270) foi relevante, não só, para se darem como não provados os factos vertidos em 2.2.1º e 2º (veja-se que a testemunha viu o JR a pedalar o velocípede que assim tripulava e que o viu imediatamente antes de ouvir o estrondo provocado pelo embate). Por outro lado, tal testemunho também foi determinante para infirmar o depoimento da testemunha HH (com 65 anos de idade, engenheiro mecânico e autor do parecer que se mostra junto a fls. 485-verso a 493-verso dos autos), maxime, da premissa de que o mesmo partiu e/ou do resultado a que chegou: o JR seguia a pé na referida EN nº 270 e levava o velocípede pela mão).

Acresce que tal testemunha descreveu as condições meteorológicas que na altura se faziam sentir (“o sol estava mesmo de frente” para a condutora (arguida) do veículo automóvel) e o traçado da via; explicitou, ainda, sobre o modo como ficaram o veículo automóvel e o JR após o embate.

A par de tal depoimento e, ainda, sob as circunstâncias atrás referenciadas, o Tribunal considerou, igualmente, o que foi prestado pela testemunha FF (com 56 anos de idade, motorista de transporte de medicamentos), o qual chegou ao local logo após o embate, tendo sido ele quem chamou o 112

A testemunha TR (com 33 anos de idade empregada de balcão no Posto de abastecimento de combustível de Santa catarina), não presenciou o acidente de viação e apenas se limitou a reproduzir aquilo que ouviu dizer sobre o mesmo, pelo que, o seu testemunho, no mínimo, revelou-se inócuo.

Cotejada com a prova supra enunciada o Tribunal considerou, igualmente, a prova pericial e documental nos autos produzida, nomeadamente, o teor do relatório de autópsia, de fls. 24 e 25 do apenso ----/16.9T9FAR, a estes autos anexo; o teor da participação de acidente de viação, de fls. 3 e segs.; a folha de anexo, de fls. 6; os elementos clínicos, de fls. 23 e segs.; o aditamento, de fls. 68; o teor do relatório toxicológico, de fls. 71; o auto de exame directo ao local, de fls. 51 e segs.; as fotografias, de fls. 57 a 64; o teor do croquis, de fls. 79; o RIC da arguida, de fls. 529 e 530 e do qual nada consta contra a mesma em termos de infracções rodoviárias; as fotografias, de fls. 105 a 111; o teor da reconstituição de acidente, de fls. 119 a 143 dos autos; as facturas de fls. 250 e 251 dos autos emitidas pelo Centro Hospitalar do Algarve, E.P.E. (cujo teor foi determinante para a prova dos factos constantes em 2.1.14º supra) e o teor da cópia actualizada do certificado de registo criminal da arguida de fls. 553 dos autos e da qual nada consta contra o mesmo

Relativamente à situação socioeconómica, profissional e familiar da arguida, assim como, ao comportamento social da mesma e a forma como a mesma sentiu o acidente e viação e a consequente morte do JR (conf. 2.1.º supra) relevaram as declarações pela mesma prestadas, a tal propósito, em audiência de discussão e julgamento, a par do teor do relatório social elaborado pela DGRSP que se mostra junto a fls. 525 e 526 dos autos e os depoimentos das testemunhas SP (com 45 anos de idade, psicóloga clínica há cerca de 20 anos e de quem a arguida é paciente) e PG (com 34 anos de idade, trabalha numa empresa de alarmes de incêndio, marido da arguida).

Os factos não provados assim foram considerados por não ter sido produzida qualquer prova (pericial, documental ou testemunhal) que permitisse

concluir em sentido diverso evitando-se aqui repetir o por nós já dito a tal propósito.

Relativamente à fundamentação de facto entendemos que o que se deixa dito basta para dar cumprimento integral ao disposto no art.º 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, já que como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/1997, in, CJSTJ, tomo I, pág. 172 e segs. “o artº 372º do Código de Processo Penal não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas serviram para formar a convicção do Tribunal, não impondo a lei a menção das inferências injuntivas levadas a cabo pelo Tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contra provas”, o que ainda assim foi feito por este Tribunal e quanto ao núcleo essencial dos factos em apreciação.
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As duas primeiras questões a resolver são as que se prendem com a eventual ocorrência dos vícios previstos na al. a) e/ou na al. b) do nº 2 do artº 410º do C.P.P..

Quanto ao 1º, por virtude de se ter considerado que a arguida, para além de ter desacelerado a marcha do seu veículo, não adoptou qualquer outro comportamento por forma a minimizar os efeitos do encadeamento solar (v.g baixar a pala interior do automóvel, usar óculos escuros, adaptar/ajustar a posição da condução), quando é certo que não consta na matéria provada ou não provada que a arguida baixou a pala, usava óculos escuros, adaptou/ajustou a posição de condução;

Quanto ao 2º, por virtude de o facto provado sob o nº 4 se encontrar em contradição com os factos provados nºs 6, 9 10 e 11 e de o facto dado como provado sob o nº 9 ser contraditório em si mesmo, ocorrendo por isso o vício previsto na al. b) do nº 2 do artº 410º do C.P.P.

Uma vez que a recorrente, ao mesmo tempo que alega a verificação dos dois referidos vícios, solicitando, em consequência, o reenvio do processo para novo julgamento (cfr. conclusão 16ª), alude também a erro de julgamento e má apreciação dos factos nºs 2, 3, 4 e 5 (cfr. conclusão 6ª), importa fazer as seguintes observações:

Uma vez que as relações conhecem de facto e de direito (artº 428º do C.P.P.), o recurso pode ter como fundamento a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, devendo, nesse caso, o recorrente dar cumprimento ao disposto no artº 412º, nº 3, do C.P.P..

Sendo utilizada tal forma de pôr em crise a matéria de facto, o Tribunal poderá modificar a decisão sobre a matéria de facto nos termos do artº 431º, al. b), do C.P.P..

Significa isto que o tribunal, reapreciando a prova produzida, na parte concretamente indicada pelo recorrente (als. a) e b) do nº 3 do artº 412º do C.P.P.), e sem prejuízo de poder ouvir ou visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do artº 412º do C.P.P.), caso se trate de depoimentos gravados, ou renovando a prova, se tal lhe for requerido (artº 412º, nº 3, al. c) e 431º, al. c), do C.P.P.), vai averiguar se perante a prova produzida, o tribunal procedeu adequadamente ao fixar a matéria de facto provada e não provada.

Outra forma de colocar em crise a decisão sobre a matéria de facto é invocando qualquer dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do C.P.P., sem prejuízo de os mesmos deverem ser conhecidos, mesmo que não tenham sido invocados.

Neste caso, o que está em causa é a apreciação da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como expressamente se prevê no indicado nº 2 do artº 410º do C.P.P..

Do que se trata, neste caso, é apenas de analisar a decisão recorrida e nada mais.

É preciso é não confundir as duas situações que são bem distintas:

Na impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal de recurso pode “sair” da decisão recorrida e indagar se a prova produzida deveria ter levado a conclusão contrária; na apreciação dos vícios do nº 2 do artº 410º do C.P.P., o Tribunal analisa apenas a decisão recorrida.

Assim, para a apreciação dos referidos vícios, o tribunal deverá ter em conta apenas a decisão recorrida, por si, ou conjugada com as regras da experiência comum e não tecer considerações acerca da eventual modificação da matéria de facto provada/não provada, tendo em conta a prova produzida.

Ora, a recorrente não impugna a matéria de facto nos termos do artº 412º, nº 3, do C.P.P., o que poderia decorrer da alegação de que os factos 2 a 5 estão mal julgados.

A recorrente não dá qualquer tipo de cumprimento ao disposto no indicado nº 3 do artº 412º do C.P.P..

Estamos, pois, apenas no âmbito dos vícios do artº 410º, nº 2, do C.P.P..

É certo que, persistindo no que vem alegando desde o início do processo, a recorrente, mais uma vez, alega que não se sabe se a vítima ia a pé ou se ia em cima do velocípede (cfr. último parágrafo da pág. 50 da motivação de recurso e conclusão 28ª). É uma persistência inconsequente, uma vez que a recorrente, nem quanto a isso, nem quanto a tudo o mais, não indicou qualquer meio de prova concreto que impusesse decisão diversa no que diz respeito ao que provado se considerou a esse propósito: a vítima circulava em cima de velocípede (factos provados 2º e 6º e facto não provado 2). Ou seja: não deu cumprimento ao disposto no nº 3, als. a) e b), do artº 412º do C.P.P..

Concentremo-nos, portanto, apenas na questão dos vícios.

Quando se entende que os factos dados como provados não poderiam levar à conclusão de direito a que se chegou, verifica-se o vício da insuficiência para a decisão (que só poderá ser a de direito) – al. a) do nº 2 do artº 410º;

Uma das razões para esse entendimento poderá ser a necessidade de investigar mais matéria.

Refira-se a este propósito o Ac. do S.T.J. de 7/1/99, procº nº 1055/99: “Ocorre vício de insuficiência da matéria de facto provada [artº 410º, nº 2, al. a), do C.P.P.] quando, da factualidade vertida na decisão de recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo, e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição”.

Também como bem se refere no Ac. do S.T.J. de 21/6/07, Procº 07P2268, Rel. Simas Santos:

“Na verdade, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do princípio da livre apreciação da prova (artº 127º) que é insidicável em reexame da matéria de direito”.

Igualmente no Ac. do S.T.J. de 16/4/98, www.dgsi.pt:

“A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é um vício que se nos depara quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal recorrido deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar, dentro do objecto do processo, tal como este está enformado pela acusação e defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique”.

E mais recentemente o acórdão do S.T.J. de 10/4/2016 (Proc. 06P2678. Rel. Cons. Santos Cabral):

“I - O vício de «insuficiência para a decisão» relevante para integração do normativo do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP não pode ser confundido, como frequentemente sucede, com erro de julgamento, que resultaria de errada apreciação da prova ou insuficiência desta para fundamentar a decisão recorrida.

II - É um dado adquirido em termos dogmáticos que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, visto a sua importância para a decisão, por exemplo para a escolha ou determinação da pena.”

Também neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 2ª edição, pág. 410: “Mas não se pode invocar a insuficiência da matéria de facto para uma decisão de facto diferente da que foi proferida, uma vez que aquela insuficiência tem que ser apreciada em função da solução adoptada para o caso na decisão recorrida. Isto é, a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida. Esta é uma questão que respeita ao recurso da matéria de facto”.

Da limitação prevista no nº 2 do artº 410º do C.P.P. resulta, no dizer de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 339, “desde logo vedada a consulta a outros elementos do processo nem é possível a consideração de quaisquer outros elementos que lhe sejam externos. É que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida”.

Segundo o mesmo autor (ob. cit., 340) para se verificar o fundamento previsto na alínea a) ” é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito”(...) ”é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”.

Quando se conclui que a matéria de facto provada, e/ou não provada, está em contradição com a respectiva fundamentação ou que na fundamentação já existe contradição, verifica-se o vício previsto na al. b) do nº 2 do artº 410º do C.P.P..

Também apenas a título de exemplo, refira-se o Ac. do S.T.J. de 15/1/98, procº nº 1212/97: “A contradição insanável da fundamentação verifica-se quando analisando a matéria de facto provada e não provada – em certo casos com ligação à respectiva fundamentação – se chega a conclusões contraditórias, insanáveis, irredutíveis, que não podem ser ultrapassadas, recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e com o recurso às regras da experiência comum.”

Revertendo ao caso concreto:

A recorrente alega que ocorre o vício previsto na al. a) do nº 2 do artº 410º do C.P.P. porque o tribunal refere na fundamentação da decisão recorrida que a arguida, para além de desacelerar a marcha, não adoptou qualquer outro comportamento que poderia minimizar os efeitos da referida luz solar (por exemplo, baixar a pala interior do veículo automóvel, usar óculos escuros, adaptar/ajustar a posição de condução), sem que tais circunstâncias constem na matéria provada ou não provada.

É certo que tais circunstâncias concretas não constam no elenco da matéria provada ou não provada, para além da diminuição da velocidade (cfr. facto provado 9º), mas daí não decorre a existência do apontado vício.

Com efeito, a referência feita na fundamentação de facto às referidas circunstâncias, ou melhor, à sua não ocorrência, serviu para fundamentar o que provado se considerou nos pontos 9º e 10º.

Tratou-se de explicitar o raciocínio lógico que serviu para o tribunal recorrido formar a sua convicção quanto ao que provado se considerou nos pontos 9º e 10º.

Nem essas circunstâncias concretas (pála, óculos e posição de condução) foram novidade para a arguida com a prolação da sentença. Tal como consta na fundamentação de facto (fls. 568) a arguida foi confrontada com elas no decurso do julgamento, tendo feito alusão positiva apenas à desaceleração da marcha do veículo por virtude do encadeamento.

Nem na contestação escrita que apresentou a fls. 485 e 486 a arguida fez qualquer alusão ao que quer que fosse, tendo-se limitado o oferecer o merecimento dos autos.

Bem se sabe que não é à arguida que cabe alegar e provar circunstâncias que eventualmente conduzissem à sua absolvição, mas a partir do momento em que é o veículo por si conduzido que embateu no velocípede, se ocorreram as referidas circunstâncias (baixar a pála, usar óculos escuros e ajustar a posição de condução) a arguida certamente que as alegaria.

Mas não foi por isso que o tribunal recorrido deixou de se interessar em averiguar a eventual ocorrência de tais circunstâncias, tendo chegado à conclusão que não ocorreram e daí retirou a conclusão que se encontra vertida nos pontos 9º e 10º da matéria provada.

Ao segmento do ponto 9º “ao não adoptar qualquer postura que lhe permitisse minimizar os efeitos do encadeamento solar” poderia seguir-se concretização com inclusão das referidas circunstâncias?

Poderia, mas não é por não existir essa concretização que ocorre o apontado vício.
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Quanto ao vício da al. b) do nº 2 do artº 410º do C.P.P.:

Não se vislumbra a existência da apontada contradição entre o facto provado 4 e os factos provados 6, 9, 10 e 11.

O que resulta do facto 4 é que o sol era susceptível de encandear a arguida e dos factos 6, 9 e 10 (o ponto 11 tem que ver com o elemento subjectivo), é que por via do encandeamento não tomou as cautelas devidas ou a atenção que se exigia, e daí ter embatido no velocípede.

A referência à atenção tem que ser conjugada com o restante. Não há contradição.

Não há dúvidas de que a arguida se encadeou, mas não foi só por causa do encadeamento que se deu o embate. Foi também porque a arguida ao não adoptar qualquer outro comportamento que evitasse os efeitos desse encadeamento (para além da desaceleração), não ficou devidamente atenta à circulação dos restantes veículos e, por tudo isso, conduzia de forma descuidada e incauta.

É, assim, que devem ser lidos os artºs 4, 6, 9 e 10 da matéria considerada provada.

Por outro lado, que o artº 9º da matéria provada não contém qualquer contradição em si mesmo é por demais evidente. Considerou-se provado que a arguida desacelerou mas não fez mais nada para evitar os efeitos do encadeamento. “Apenas” (como se refere no artº 9º) desacelerou, sendo a desaceleração uma excepção ao que aí se concluiu: “não adoptou qualquer postura lhe permitisse minimizar os efeitos do encadeamento”.

Não há, pois, qualquer contradição; há, sim, uma excepção (daí, até, estar entre travessões).

Face ao até agora referido, há que concluir que não se verifica na sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, qualquer dos apontados vícios.
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Importa agora verificar se foi violado o princípio da livre apreciação da prova previsto no artº 127º do C.P.P., padecendo, por isso, a sentença de nulidade nos termos do artº 379º, nº 1, al. c), do C.P.P., como pretende a recorrente, ou se foi violado o princípio “in dubio pro reo”.

Em primeiro lugar importa referir que não se compreende a relação que se estabelece entre a pretensa violação do princípio da livre apreciação da prova e a eventual nulidade da sentença nos termos do artº 379º, nº 1, al. c), do C.P.P..

Nem no corpo da motivação de recurso (pág. 45 e 1º parágrafo de pág. 46), nem nas conclusões (17ª), é apontada qualquer questão que devesse ter sido apreciada em concreto e não foi, ou qualquer questão que tenha sido apreciada sem dever ter sido.

Seja com for, não se verifica violação de qualquer dos referidos princípios.

O que aconteceu foi que o tribunal recorrido formou a sua convicção, com base na prova que foi produzida ou examinada em audiência, de determinada forma, conforme lhe permitia o artº 127º do C.P.P., entendendo a recorrente que a deveria ter formado de outra forma.

Ou seja: a recorrente pretende substituir a sua convicção à convicção do julgador, o que não pode acontecer, precisamente por virtude do princípio da livre apreciação da prova, contido na indicada disposição legal.

É certo que tal princípio não significa que o julgador possa arbitrariamente decidir sobre a matéria de facto, fazendo-o como muito bem entender.

Também não significa isto que a convicção se possa formar com base numa “impressão”.

Como se refere no Ac. do S.T.J. de 4/11/98, C.J., III, 209, o princípio da livre apreciação da prova “não é, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos e, dessa forma, determinar uma convicção racional, logo, também ela objectivável e motivável”.

No caso em apreço, o tribunal recorrido explicitou bem em que meios de prova se baseou para formar a sua convicção e referiu o raciocínio lógico que serviu para formar a sua convicção, tendo em conta que “a decisão do juiz há-de ser sempre uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo, não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (vg. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais.” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 204.

Não houve qualquer “presunção de que a arguida violou um dever de cuidado e que criou um risco juridicamente proibido”, como se alega no 1º parágrafo da pág. 46 da motivação de recurso.

O que acontece, repete-se, é que a convicção do tribunal foi uma (bem explicitada na sentença como foi formada) e a recorrente entende que essa convicção deveria ter sido outra.

E com isto prende-se também a questão da pretensa violação do princípio in dúbio pro reo.

Na verdade, o referido princípio, corolário do princípio de presunção de inocência previsto no artº 32º, nº 2, da C.R.P., apenas actua em caso de dúvida quanto à verificação de determinado facto: existindo essa dúvida, deve o tribunal decidir em benefício do arguido.

Como refere Heinrich Jescheck, em Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª ed., pág. 127, tal princípio “serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do Direito que surjam numa situação probatória incerta”.

No caso em apreço, não se vislumbra que o tribunal recorrido se tenha deparado com qualquer situação de dúvida. Para que tivesse ocorrido violação do indicado princípio era necessário que perante a leitura da fundamentação da decisão recorrida se percebesse que o tribunal ficou perante uma dúvida e que a resolveu em prejuízo da arguida.

Nada disso ocorreu, pelo que não se verifica qualquer violação do referido princípio.
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Apreciemos agora a pretensa violação do artº 15º do Cód. Penal

O alegado pela recorrente quanto a esta matéria é um pouco equívoco: tece considerações não sobre a matéria de facto que se considerou provada mas sobre aquela que ela própria entende que se provou ou não provou. Volta a referir “factos não provados ou discutidos”, volta a referir “non liquet” que tem que ser decidido a favor do arguido, volta, como já acima se referiu, a pôr em causa que a vítima seguisse a tripular o velocípede.

Ora, de tudo o acima referido, resulta que a matéria de facto provada deve permanecer inalterada e, consequentemente, é com base nela que se deve apreciar se a arguida incorreu na prática do crime pelo qual foi condenada, ou não.

Perante isso, não temos dúvidas que, face ao que provado se considerou, a arguida incorreu na prática do crime de homicídio por negligência, conforme foi condenada.

Com refere Eduardo Correia, Direito Criminal, 1971, I, pág. 431: “(…) a negligência é a omissão de um dever de cuidado, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que se traduz num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização, e que o agente (segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidades pessoais) podia ter cumprido”.

É certo que provado está que o início do processo causal do embate foi o encadeamento com o sol. Ora, provado ficou também que a arguida conhecia desde sempre o local onde ocorreu o embate, circulando diariamente no mesmo (cfr. penúltimo parágrafo do ponto 12º).

A arguida sabia, pois, que naquele sítio, àquela hora da manhã, era provável que o sol a pudesse encadear.

Mas mais: todo condutor deve saber que àquela hora e naquela época do ano quando se circula no sentido Nascente ou próximo disso, tal como ao fim da tarde quando se circula no sentido poente, ou próximo disso, ocorre a possibilidade de encadeamento com o sol.

E por isso há que tomar as devidas precauções e se ninguém é obrigado a conduzir com óculos escuros, ao menos é obrigado a regular a pála do veículo (por isso é que elas são movimentáveis) e adoptar uma posição de condução que evite que com o encadeamento pelo sol o condutor fique sem ver de modo a conseguir parar no espaço livre e visível à sua frente.

Como já se referiu, não se apurou que, para além da desaceleração, a arguida tenha tomado qualquer outro tipo de atitude para evitar que o encadeamento levasse a que ocorresse qualquer embate. Por acaso foi no velocípede/vítima, mas poderia ter sido em qualquer outro veículo que ali circulasse.

Para a arguida, nas circunstâncias em que ocorreu, o encadeamento pelo sol não foi nenhum acontecimento completamente imprevisível e, por isso, obrigava-a a ter outro comportamento.

Como, novamente bem refere Eduardo Correia, Direito Criminal, ob. cit., pág. 425: “De maneira geral, de qualquer actividade se exige que seja levada a cabo com cuidado, uma destreza e uma atença próprios que permitam evitar a produção de certos eventos proibidos. Resumindo, pois, diremos que o dever, cuja violação a negligência supõe, consiste antes de tudo em o agente não ter usado aquela diligência exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento”.

Sempre se acrescentará que o ac. da Relação de Guimarães de 6/1/2011, referida pela recorrente em abono da sua tese, assenta em pressupostos de facto e de direito diferentes: para já tratava-se de uma acção cível; foi interveniente um peão que levava um animal à mão; desconhece-se que conhecimento tinha a condutora do veículo do local em causa; ocorrem presunções de culpa, etc., etc..

O mesmo se diga quanto ao outro acórdão referido pela recorrente – ac. da relação de Coimbra de 16/1/88.

Embora este último acórdão tivesse sido proferido no âmbito de processo criminal, o que aí se discutia era se o arguido tinha actuado com negligência grosseira, ou não.

Curiosamente, se se ler todo o seu conteúdo, conclui-se que também aí (condutor de veículo que embateu em ciclista, encadeado pelo sol) se entendeu que o condutor do veículo agiu com culpa porque “das duas uma: ou o réu se tinha apercebido previamente de que a sua faixa de rodagem estava inteiramente livre, podendo prosseguir a marcha momentaneamente encadeado; ou, caso contrário, devia ter parado imediatamente. No entanto, o réu rodou, durante alguns segundos, encadeado, apercebendo-se do embate através do barulho provocado. Está, assim, caracterizada a culpa do réu. Simplesmente, a sua negligência não pode considerar-se como grosseira.” (os sublinhados são nossos).

A situação em análise é idêntica: a recorrente ainda percorreu cerca de 18 metros encadeada pelo sol e limitou-se a reduzir a marcha que já deveria ser reduzida pois que a mesma tinha acabado de entrar na E.N..

Mas segundo o entendimento expresso no acima referido acórdão (trazido à colação pela própria recorrente), com o qual concordamos (como já se viu), a recorrente deveria até ter parado e agiu com culpa, o que só vem sustentar ainda mais o que se decidiu na 1ª instância e aqui se reitera.

As disposições legais contidas no Código da Estrada a ter em conta são as referidas na decisão recorrida, com especial relevância para o artº 24º, no segmento em que se alude expressamente às condições meteorológicas, como um dos factores a ter em conta de modo a ser possível parar o veículo no espaço livre e visível.

E que foi a recorrente que embateu no velocípede/vítima ninguém tem dúvidas, pelo que era ela, salvo situação completamente inesperada e imprevisível (por exemplo, uma mancha de óleo no chão que provocasse a mudança de trajectória do veículo) que tinha a obrigação de o evitar, já que, também por outro lado, não se apurou que a vítima tivesse contribuído por qualquer forma para o embate (não é obrigatório o uso de capacete ou de colete reflector para os ciclistas).

Temos, portanto, que concluir que a recorrente não actuou com o cuidado a que, segundo as circunstâncias que provadas ficaram (e não quaisquer outras) estava obrigada e era capaz.

É indiscutível que a arguida actuou com negligência inconsciente, tal como prevê a al. b), do artº 15º Cód. Penal, e dessa forma foi pronunciada e condenada.

É também questão incontrovertida que a negligência não se pode considerar como grosseira, precisamente porque, apesar de tudo, o encadeamento pelo sol foi o início do processo causal do acidente. O condutor não pode evitar ser momentaneamente encadeado pelo sol, mas pode, e deve, de imediato providenciar para que esse encadeamento não seja causa de embate nos outros utentes da via.

E aqui é que está o cerne da questão.
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Quanto à pena aplicada e alegada desconsideração dos artºs 40º e 70º do Cód. Penal

Nos termos do artº 137º, nº 1, do Cód. Penal, a conduta da arguida recorrente é punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Na decisão recorrida teceram-se considerações acerca do artº 70º do Cód. Penal, tendo-se concluído que, por razões de prevenção geral positiva, se deveria optar pela pena de prisão, aludindo-se em abono desse entendimento a um acórdão desta relação de Évora de 6/3/2012.

Nesta parte não se acompanha a sentença recorrida.

Entre a opção pela pena de prisão ou pela pena de multa, o artº 70º do Cód. Penal dá clara indicação de que é esta última que deve ser aplicada.

Bem se sabe que em matéria de acidentes de viação, designadamente com consequências graves, como ocorreu no caso em apreço, se tem jurisprudencialmente entendido que a pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, designadamente as que se prendem com a prevenção geral, tendo em conta o elevado número de acidentes que ocorrem em Portugal.

Mas cada caso é diferente dos demais, e o que está agora em apreciação tem as suas características peculiares.

Desde logo a culpa da arguida está sensivelmente diminuída, o que deverá relevar nos termos do artº 40º, nº 2, do Cód. Penal.

Com efeito, independentemente de se ter concluído que a recorrente não actuou com o cuidado devido, pelas razões já acima sobejamente referidas, o que é certo é que encadeamento pelo sol contribuiu de forma assaz relevante para que o embate tenha ocorrido.

Julgamos que tal circunstância deve ser ponderada na apreciação da medida da culpa da arguida de modo a diminui-la.

Não se tratou de uma falta de atenção pura e simples, como ocorreu no acórdão desta relação de 6/3/2012 acima referido e no qual, repete-se, a decisão recorrida se apoiou para decidir pela aplicação da pena de prisão.

Nessa decisão não ocorreu qualquer circunstância exterior que fosse o início do processo causal do embate, tendo-se considerado provado que pura e simplesmente o condutor do veículo circulava distraído e a uma velocidade que não lhe permitiu parar no espaço livre e visível à sua frente, e que, por isso, embateu no outro veículo que circulava à sua frente.

Por outro lado, as consequências do embate foram ainda mais graves (para além de uma vítima mortal o passageiro ficou gravemente ferido).

Por outro lado, ainda, o aí arguido era um motorista profissional e condutor de veículos pesados, o que fez acentuar muito as necessidades de prevenção especial.

Tudo isso são circunstâncias, bem diferentes das que estão aqui em causa, que levaram a que naquela decisão se tenha optado pela pena de prisão, revogando a decisão da 1ª instância que tinha aplicado pena de multa.

Não se desconhecendo que no nosso país ocorrem acidentes em elevado número, com consequências graves, e que os portugueses são conhecidos por serem condutores “temerários”, o que é certo é que a recorrente não se insere nesse quadro. Nem as circunstâncias que rodearam o acidente em causa são de molde a concluir-se dessa forma.

A arguida não tem registada a condenação pela prática de qualquer crime ou contra-ordenação rodoviária e tem carta de condução há cerca de 17 anos (por referência à data do acidente).

Por tudo o referido, as necessidades de prevenção especial são pouco significativas.

A sua inserção familiar e profissional é acentuada.

Assim sendo, julga-se que, neste caso concreto, a pena de multa realiza de forma suficiente as finalidades da punição e é mais de acordo com as circunstâncias do caso.

Nos termos dos artºs 137º, nº 1 e 47º, nº 1, do Cód. Penal, a pena de multa deverá ser fixada entre 10 e 360 dias.

Para isso há que ter em conta o que dispõe o artº 71º, nºs 1 e 2, do Cód. Penal, designadamente (em parte, repetindo, como não podia deixar de ser):

- grau de culpa da arguida diminuído por existência de factor exterior que iniciou o processo causal do acidente;

- exigência de prevenção geral em grau médio, tendo em conta as características que rodearam o acidente em causa;

- diminutas exigências de prevenção especial;

- negligência inconsciente (grau menos intenso);

- manifestação pela arguida de pesar que pareceu muito sincero pela ocorrência do acidente e consequências graves do mesmo;

- muito boa inserção familiar e profissional da arguida;

- ausência de antecedentes criminais e rodoviários.

Tendo em conta tudo o referido, e não deixando de considerar a gravidade das consequências da conduta da arguida (cfr. al. a) do nº 2 do artº 71º do Cód. Penal), entende-se adequado fixar a pena de multa em 240 dias.

Na fixação da taxa diária da multa deverá ter-se em conta a situação económica e financeira da arguida e os seus encargos pessoais (cfr. nº 2 do artº 47º do Cód. Penal).

O que quanto a isso se considerou provado foi o seguinte:

“À data dos factos subjacentes ao presente processo, a arguida MG e respetivo núcleo familiar (que engloba, para além do cônjuge, dois descendentes menores de idade, com 10 e 8 anos de idade, respectivamente, estudantes em escola pública) residia numa habitação propriedade do agregado de origem, contígua à residência dos pais bem como à do agregado familiar do único irmão, situação que se mantém na atualidade.

Face a apetência e motivação na área de confecção de doçaria, a arguida, com o apoio da família, estabeleceu-se por conta própria, tendo recorrido a crédito bancário para o efeito, sendo a respetiva amortização mensal estimada em cerca de € 200,00.

Na actualidade e face à recente actividade em nome individual, a arguida MG por não deter ainda uma carteira de clientes ou um grande volume de trabalho apenas retira do exercicio de tal actividade a quantia líquida mensal de € 400,00; nesse contexto, o rendimento familiar assenta no vencimento mensal do cônjuge (estimado em cerca de € 900,00), com recurso pontual ao apoio económico dos pais da arguida.”

Perante as circunstâncias referidas, julga-se adequado fixar a taxa diária da multa em € 8,00.
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A recorrente inclui a pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados também no que considera “excessiva” (cfr. conclusão 31ª).

É inquestionável que nos termos do artº 69º, nº 1, al. a), do Cód. Penal à arguida deve ser aplicada, como foi, a pena acessória de proibição de veículos motorizados, pena essa que deve ser fixada entre o mínimo de 3 meses e o máximo de 3 anos.

Na decisão recorrida fixou-se o período de 1 ano, o que se afigura algo desadequado, tendo em conta todas as circunstâncias que rodearam a prática do crime, já acima referidas, bem como a personalidade demonstrada pela arguida, quer em termos gerais, quer no que diz respeito ao acidente e suas consequências.

Julga-se, pois, mais adequado fixar tal pena acessória em 8 meses.
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De tudo o referido, conclui-se o seguinte:

1º - Comete o crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artº 137º, nº 1, do Cód. Penal, a condutora que, ao se ter de encadeado pelo sol, não tomou de imediato todas as devidas precauções para evitar que esse encadeamento levasse ao embate do veículo por si conduzido no velocípede e na pessoa que em cima dele circulava.

2º - Tendo em conta que a condutora conhecia bem o local do embate, sendo que no mesmo circulava diariamente, o encadeamento pelo sol era-lhe previsível e não pode ser considerado circunstância imprevista.

3º - Sendo, no entanto, essa circunstância exterior o início do processo causal do embate, deve ser considerada diminuída a sua culpa, de tal forma que, conjugando isso com as demais circunstâncias do caso concreto, a pena de multa se revela adequada às finalidades da punição.
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DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência decidem:

- Revogar a sentença recorrida na parte em que fixou a pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período;

- Revogar a sentença recorrida na parte em que fixou em um ano a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados;

- Condenar a arguida na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), o que perfaz a multa de € 1.920,00 (mil novecentos e vintes euros);

- Condenar a arguida na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 (oito) meses;

- Manter a decisão recorrida em tudo o mais.
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Sem tributação, uma vez que o decaimento no recurso não foi total (cfr. artº 513º, nº 1, do C.P.P.).
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Évora, 18 de Fevereiro de 2020

Nuno Maria Garcia

António Manuel Charneca Condesso