Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4375/12.0TBPTM-B.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: PROCESSO TUTELAR CÍVEL
MEIOS DE PROVA
RESERVA DA VIDA PRIVADA
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - De acordo com o preceituado no artigo 100.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, o processo de promoção e protecção, é um processo de jurisdição voluntária, significando que «o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admissíveis as provas que o juiz considere necessárias».
II - Com este pano de fundo poderia pensar-se que o direito à prova é uma espécie de direito absoluto, mormente quando e se, respaldado por uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respectiva produção, actuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC.
III - Mas não é assim, bastando para tanto atentar na expressa ressalva que o n.º 3, alíneas b) e c) deste preceito efectua relativamente aos casos em que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima, sendo-o designadamente quando a obediência importar a intromissão na vida privada ou familiar ou violação do sigilo profissional.
IV - No caso vertente, ao invocado princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias, e conjugado com o disposto no artigo 35.º, n.º 4, da CRP, de proibição de acesso a dados pessoais por parte de terceiros, onde naturalmente se incluem os dados respeitantes à saúde da Apelante, contrapõe-se o direito à proteção efectiva do seu filho, ainda menor de idade, consagrado no artigo 69.º da CRP.
V - Estando em causa a protecção da criança que foi provisoriamente entregue à avó materna por existirem indícios de que a saúde psicológica da mãe coloca em perigo a saúde daquela, obviamente que a situação de saúde da sua progenitora é essencial para apurar da capacidade parental desta e, nessa medida, da possibilidade de o filho lhe ser novamente entregue.
VI - À semelhança do que acontece nos demais casos de colisão de direitos, também quando estamos perante o confronto de duas espécies de direitos com tutela constitucional, outros princípios importa ter em conta, porquanto tal decorre designadamente do comando constitucional ínsito no artigo 16.º da CRP, salvaguardando que os direitos fundamentais consagrados na constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras de direito internacional, devendo ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
VII - No confronto dos direitos constitucionalmente protegidos em presença, afigura-se-nos, que no caso concreto, deverá prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança, porquanto não só o direito à reserva privada da progenitora admite restrição constitucional, como a mesma visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, sendo apta e adequada para o efeito pretendido porque se destina apenas a proteger o superior interesse da criança e nem sequer põe em causa o conteúdo essencial de direito à reserva da vida privada da progenitora, que continuará salvaguardado, tanto mais que estamos perante um processo de promoção e proteção de natureza sigilosa e carácter reservado, nos termos definidos no artigo 88.º, da LPCJP.
VIII - Assim, a documentação clínica em apreço, que se reputa essencial a possibilitar uma completa avaliação médico-legal do estado de saúde da Apelante, determinante para apurar da sua capacidade para o pleno exercício, por si só, das responsabilidades parentais relativamente à criança que este processo visa proteger, deve permanecer nos autos para aquele indicado fim que, em concreto, prevalece sobre o direito à reserva da vida privada da progenitora.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 4375/12.0TBPTM-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]
*****
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I. RELATÓRIO
1. BB, mãe da criança CC, e Requerida no Processo de Promoção e Proteção instaurado pelo Ministério Público em 25.10.2018, a favor daquela criança, que constitui o apenso A dos autos supra identificados, tendo sido notificada do despacho proferido em 21.11.2018, no qual o Tribunal se pronunciou sobre o requerimento em que a ora Apelante havia pedido o desentranhamento da documentação clínica a seu respeito junta pela sua mãe, DD, determinando que «os documentos ficam nos autos, por poderem ser importantes para decidir a causa; aliás, qualquer informação clínica ou médica que seja junta aos autos pela avó materna, relativamente à progenitora, foi na sequência do determinado a fls. 146, considerando que está em causa apenas o bem-estar da criança», e não se conformando com o mesmo apresentou o presente recurso de apelação, finalizando a respectiva minuta recursória com as seguintes conclusões[3]:
«12. A admissão aos autos, pelo Tribunal a quo dos documentos clínicos [pertencentes à Recorrente] pela sua progenitora, a Sra DD, onde nem sequer é atestado qualquer existência de eventuais patologias psiquiátricas, sem que estes tenham alguma vez sido tornados públicos pela Recorrente, ou prestado consentimento à sua progenitora para os divulgar, constitui prova ilícita por violadora, dos direitos fundamentais desta, dos dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de proteção legal e constitucional do direito à reserva da intimidade da vida privada, verificando-se também violação do sigilo profissional clinico por parte da unidade hospitalar.
13. Constituindo meio de prova obtido de forma ilícita, não podendo ser admitida a junção, em processo civil, documentação clinica não consentida pela Recorrida.
14. O direito de acesso aos tribunais não impõe a admissibilidade de qualquer meio de prova, em especial quando este for obtido com violação de direitos fundamentais.
15. Não sendo defensável que a ilicitude da obtenção da prova se tenha por justificada quando o agente visa exclusivamente a aquisição de um meio de prova sobre factos que dificilmente poderiam ser provados por outra forma e utiliza o material obtido somente com essa finalidade probatória, porquanto, a Recorrente nem sequer tinha conhecimento da existências de tais documentos (à data da emissão menor de idade), e por lado, aceitou sujeitar-se a exame psiquiátrico no Instituto Medicina Legal e Ciências Forenses, IP, e nesta sede, com a devida reserva, apurar-se, ou não, se padece atualmente de alguma doença do foro psiquiátrico.
16. No âmbito da proteção da esfera da vida pessoal dos cidadãos, a Constituição reconhece, entre outros, o direito à reserva da intimidade da vida privada (art. 26.º, n.º 1), proíbe toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em processo criminal (n.º 4 do mesmo art. 34.º) e fulmina, no âmbito do processo penal, com a nulidade todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência (art. 32.º, n.º 8).
18. A infração à proibição constitucional de ingerências na documentação privada há-de, pois, ter, nos processos cíveis e em matéria de prova, a mesma sanção radical: a nulidade. Apesar do art. 32.º, n.º 8, da CRP estar inserido entre as garantias de processo criminal, é também aplicável em sede de processo civil a proibição de meios de prova obtidos com violação de direitos fundamentais.
20. Deste modo, a obtenção e revelação dos documentos em análise, consiste em prova proibida e nula.
22. Se é certo que tais limitações não podem ser arbitrárias ou desproporcionadas, devia o Tribunal a quo ter ponderado minimamente as circunstâncias concretas do caso, não se podendo afirmar que a documentação em análise, constitua meio de prova insubstituível para demonstração dos factos a que se destina, tanto mais que a Recorrente aceitou sujeitar-se a exame psiquiátrico.
23. Estando assim violado pelo Tribunal a quo no douto Despacho em Recurso, um critério ou princípios de proporcionalidade, de razoabilidade, de adequação, à reserva da intimidade da vida privada.
25. Atento o exposto supra, violou o Tribunal a quo, o disposto nos art.ºs 18º n.º 2, 26º n.º1, 32º nº 8, 34º n.º4, 35º n.º 4 todos da CRP».

2. Pelo Ministério Público foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela confirmação do despacho recorrido em virtude de, no caso concreto, no confronto dos direitos constitucionalmente protegidos, dever prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança.

3. Observados os vistos, cumpre decidir.
*****

II. Objecto do recurso
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, a única questão a apreciar no presente recurso é a de saber se deve ou não ser revogado o despacho recorrido substituindo-o por outro que que determine a não admissão aos autos e o imediato desentranhamento, da documentação clínica/médica da Apelante que foi junta aos autos pela sua mãe, por constituírem prova ilícita.
*****
III – Fundamentos
III.1. – De facto
A tramitação processual relevante para a decisão do presente recurso é a constante do relatório supra e ainda a decorrente do Processo de Promoção e Proteção da Criança[5], assim sintetizada:
- O Ministério Público instaurou, em 25 de Outubro de 2018, o presente processo judicial de promoção e protecção a favor da criança CC, nascida no dia 12 de outubro de 2011, filha de BB e de EE, invocando, em síntese, que a criança se encontra numa situação de perigo junto da progenitora, por haver fundadas suspeitas de que a mesma padece de problemas psiquiátricos graves que a fazem atentar contra a sua saúde e a do próprio filho, encontrando-se a criança sujeita a comportamentos que afectam a sua saúde, segurança, e equilíbrio emocional.
- Por despacho proferido nesse mesmo dia, a Senhora Juíza, ponderando «que em causa apenas está o bem-estar da criança, e enquanto se procede ao diagnóstico mais aprofundado da sua situação» decidiu, «na salvaguarda do seu superior interesse, aplicar provisoriamente a medida de apoio junto de outro familiar, no caso, dos avós maternos – arts. 35º, n.º 1, al. b) e 37º, ambos da LPCJP, mais precisamente, da avó materna e do companheiro desta, DD e FF.
- O tribunal fundamentou tal decisão na seguinte factualidade resultante do processo de promoção e proteção da CPCJ de Portimão e alegada pelo Ministério Público no requerimento inicial:
«- O menor tem 7 anos de idade e é filho de EE e de BB, sendo que na sequência da separação dos pais foram reguladas as responsabilidades parentais, tendo a criança ficado a residir com a mãe, sendo desconhecido o paradeiro do pai.
- Além deste filho, a mãe tem uma filha mais nova, (GG), filha de outro companheiro, HH, de quem se separou no passado mês de Agosto.
- O menor foi sinalizado à CPCJ de Portimão, em Junho de 2018, por um grupo de amigos da mãe, dando conta de que a mãe não lhe prestava os cuidados adequados, e andava a fazer peditórios via internet destinados a angariar fundos, a pretexto do estado de saúde da criança.
- Tais factos originaram uma denúncia, por suspeita de crime de burla, que deu origem ao NUIPC nº 72/18.1JAPTM, a qual se encontra em investigação na Polícia Judiciária.
- À data, o menor frequentava equipamento educativo, pré-escolar, fazendo-se transportar em cadeira de rodas, aparentando sofrer de doença grave.
- Quando a CPCJ contactou a mãe, esta apresentou vários relatórios clínicos sobre a doença do filho, um deles assinado pelo avô materno, que é médico em Inglaterra, e acabou por confirmar aos técnicos da CPCJ, que o mesmo era falso, não sendo da sua autoria, tendo sido forjado pela sua filha.
- Confrontado com a situação de saúde do menor, o pai da irmã uterina, que à data ainda vivia com a mãe, referiu que nas consultas em que o acompanhou, o diagnóstico clínico efectuado, sempre foi o de que o CC “tinha um atraso de desenvolvimento moderado”, o que foi confirmado pela Drª. II, pediatra no CHBA.
- Os avós maternos tentaram informar-se sobre o estado de saúde do menor, junto de outros médicos, os quais lhe confirmaram que o menor não tinha qualquer fractura óssea, nem sofria de epilepsia, como a mãe alegava, e que o facto de se encontrar em cadeira de rodas lhe atrofiava os músculos, não sendo recomendável.
- O menor demonstra querer sair da cadeira de rodas, a que a mãe o confinou, e numa das vezes, foi visto pelo pai da irmã, a deslocar-se pelo seu próprio pé até à janela, altura em que a mãe apareceu, e voltou a colocá-lo na cadeira de rodas, pondo-lhe uma máscara de oxigénio.
- Após a intervenção da CPCJ, a mãe retirou o menor do equipamento educativo que frequentava, e não permitiu que o mesmo fosse sujeito a avaliação clínica, conforme lhe foi proposto pelos técnicos.
- Segundo os avós maternos, a mãe, no passado teve problemas do foro psiquiátrico, apresentando tendências suicidas, tendo tido acompanhamento entre os 14/15 anos de idade, estado que se tem vindo a agravar desde há cerca de um ano, quando uma tia se suicidou.
- O CC tem sido visto, a pedido da mãe, por um número interminável de médicos, o que o tem perturbado de forma grave, em termos emocionais e tem desgastado muito fisicamente, desconhecendo-se o seu verdadeiro diagnóstico clínico.
- Segundo a mãe, o uso da cadeira de rodas foi-lhe recomendado por um médico há cerca de dois anos, tendo o menor tido a última consulta, com a Drª. II, no dia de ontem (24.10.2018), a qual estará a fazer um relatório sobre o seu estado de saúde geral.
- Declarou ainda que o menor está a ter consultas de genética, cardiologia, gastroenterologia, pneumologia e neurologia, por recomendação da Drª. II e toma vários tipos de medicação.
- A mãe evidencia sofrer de perturbação psicológica grave e emocional, necessitando de tratamento médico urgente.
- Os avós maternos, residentes em Inglaterra, deslocaram-se a Portugal, por se encontrarem muito preocupados com o neto, tendo-se disposto a cuidar dele, com o apoio do pai da neta mais nova, a fim de o mesmo ser submetido a avaliação clínica, para se apurar o seu verdadeiro estado de saúde.
- Segundo eles, o estado de saúde da filha agravou-se consideravelmente, estando a atravessar uma crise psicótica, havendo sério de risco de que a mesma atente contra a sua vida ou a do filho.
- Em face da situação descrita, os técnicos da CPCJ deliberaram aplicar a favor do menor a medida de apoio junto de familiar, no caso, juntos dos avós maternos, por terem demonstrado serem idóneos, e terem o apoio do pai da neta mais nova, enquanto permanecessem em Portugal, tendo proposto à mãe assinar APP nesse sentido, o que a mesma recusou, tendo retirado o consentimento para a intervenção da CPCJ, por declaração subscrita na presente data (25.10.2018.).»
- Nesse despacho foi ainda declarada aberta a instrução do processo judicial, sendo solicitado relatório social à equipa técnica do SATT do ISS de Faro, sobre a situação da criança e da progenitora, os quais ainda não se encontravam realizados à data da interposição do presente recurso.
- Foram juntos aos autos uma informação escolar do Colégio do Rio, frequentado pela criança, assinada pela sua educadora de infância e pela Coordenadora Pedagógica do Colégio e ainda relatórios médicos sobre a sua situação clínica.
- No dia 31-10-2018 procedeu-se à audição da técnica do SATT, Dra. JJ; da pediatra da criança, Dra. II; dos progenitores da criança, BB e EE; do padrasto da criança HH, e da avó materna da criança e do companheiro desta, DD e FF.
- Na sequência de tais inquirições, foi proferido o seguinte despacho: «Extraia certidão de fls.96 e 97 e remeta aos serviços do Ministério Público, por poder estar em causa, além de um crime de burla, um crime de maus-tratos praticado pela progenitora, porquanto, em momento algum a criança padeceu de qualquer problema cancerígeno, nomeadamente cancro na cabeça, nunca ter feito quimioterapia e/ou radioterapia e, nas declarações ora prestadas no dia de hoje, não resultou que a criança alguma vez tivesse tido qualquer problema nos ossos, nomeadamente ossos frágeis, que justificasse a permanência numa cadeira de rodas, imobilizando o menor por tempo indeterminado.
Solicite ao GML a realização de uma avaliação psiquiátrica à progenitora em ordem a apurar se esta padece de alguma doença de foro psiquiátrico (síndrome de Münchausen e/ou de factício por procuração) e, na afirmativa, qual. (…)
Notifique a avó materna e o Sr. FF para juntarem aos autos elementos clínicos/médicos sobre a progenitora, a fim de serem remetidos ao perito médico-legal, juntamente com cópia da Petição inicial, documentos de fls. 96 e 97, e os demais elementos médicos já juntos, a título confidencial».
*****
III.2. – O mérito do recurso
Pretende a Apelante por via do presente recurso que não seja admitida e consequentemente seja desentranhada a documentação clínica que a seu respeito foi junta aos autos pela sua mãe, sem que a mesma alguma vez os tenha tornados públicos ou prestado consentimento à sua progenitora para os divulgar, a qual constitui prova ilícita por violadora dos seus direitos fundamentais, já que os dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de proteção legal e constitucional do direito à reserva da intimidade da vida privada, verificando-se também violação do sigilo profissional clínico por parte da unidade hospitalar.
Por seu turno, o Ministério Público sublinha que não só o direito à reserva privada da vida da progenitora admite restrição constitucional, como a mesma, no caso concreto em apreço, visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, sendo apta para o efeito pretendido e limitada apenas a alcançar tal desiderato, nem sequer pondo em causa o conteúdo essencial de direito à reserva privada da progenitora, que continuará salvaguardado, tanto mais que estamos perante um processo de promoção e proteção de natureza sigilosa e caráter reservado (cfr. art. 88º, da LPCJP).
Assim, ponderando os valores em causa, defende que a balança deverá pender no sentido da manutenção de tais documentos clínicos nos autos, pelo menos, até à realização da perícia psiquiátrica à progenitora da criança.
Vejamos, então, se a pretensão da Apelante deve ou não proceder.
Em primeiro lugar, importa salientar que os documentos cujo desentranhamento a Apelante pretende, foram juntos aos autos de Promoção e Protecção de que o presente recurso em separado constitui apenso, os quais têm por objecto a protecção da criança[6] CC por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, nos termos previstos no artigo 1.º, da Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo[7], aplicável às crianças e jovens que se encontram em perigo (artigo 2.º da LPCJP), visando a aplicação de medidas de promoção dos direitos e de protecção a crianças e jovens em situações de risco que ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação, nomeadamente, com vista a proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover todos os referidos aspectos e bem assim o seu bem-estar e desenvolvimento integral.
Assim, de acordo com o preceituado no artigo 3.º da LPCJP, a legitimidade da intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais (…) ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento (…).
Conforme adverte TOMÉ RAMIÃO[8], «o perigo a que se reporta este normativo traduz a existência de uma situação de facto que ameace a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança ou do jovem, não se exigindo a verificação da efectiva lesão (…). Basta, por isso, a criação de um real ou muito provável perigo, ainda longe de dano sério (…).
Assim, só é legítima a intervenção desde que o perigo afecte ou possa afectar a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou do jovem.
Por outro lado, essa intervenção terá de ter por finalidade o afastamento do perigo em que a criança ou o jovem se encontra e proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, como se enuncia no artigo 34.º».
No caso em apreço, o processo iniciou-se com a sinalização da situação da criança à CPCJ de Portimão, por parte de amigos da mãe, tendo pela Comissão sido realizadas as diligências tendentes ao conhecimento da vida familiar e sido proposta a medida de apoio junto da avó materna e companheiro, o que a mãe recusou, retirando o consentimento para a intervenção da CPCJ, o que determinou a remessa dos autos para o Ministério Público.
Como é sabido, atenta a natureza subsidiária da intervenção judicial, expressa no artigo 4.º, alínea j), da LPCJP, a mesma só ocorreu neste caso precisamente porque, existindo informações que suportam a sinalização efectuada, a mãe recusou o consentimento para a intervenção da CPCJ.
Ora, em face da ilustrativa materialidade decorrente do processo da Comissão que o Tribunal teve em consideração no despacho inicial, não restam quaisquer dúvidas de que a intervenção efectuada em benefício da criança, teve como finalidade imediata o afastamento da situação de potencial perigo em que a mesma foi colocada pela progenitora.
De facto, conforme assertivamente já se observou no Acórdão deste Tribunal da Relação de 08.07.2010, «a incapacidade de exercer uma paternidade ou maternidade responsável pode configurar uma situação que pode qualificar-se de maus tratos. Na verdade, por maus tratos não se entende só a agressão física ou psicológica, mas também “o insucesso na garantia do bem-estar material e psicológico da criança, necessário ao seu desenvolvimento saudável e harmonioso”»[9].
No caso, decorre ainda dos elementos recolhidos pela CPCJ, e tal foi corroborado pelas inquirições efectuadas pelo Tribunal, que a mãe não permite a avaliação da situação de saúde real do filho e o tem sujeitado a um número interminável de exames médicos desnecessários e confinado a uma cadeira de rodas, que lhe atrofia o desenvolvimento, em virtude de perturbação psicológica grave de que esta evidencia padecer, que se agravou consideravelmente, estando a atravessar uma crise psicótica, e necessitando de tratamento médico urgente.
Ou seja, existe uma correlação directa entre a situação de saúde em que a mãe coloca a criança e a sua situação de saúde psicológica, que a avó materna e o padrasto daquela relataram ao tribunal ter já sido evidenciada na adolescência da progenitora, que igualmente dizia padecer de doenças de que não sofria, tendo sido por essa razão que o tribunal determinou a junção aos autos dos elementos clínicos de que aqueles dispusessem, para serem apreciados na perícia médica que foi determinada para avaliação do estado de saúde da ora Apelante, do qual, tudo indica que dependerá a determinação da sua capacidade para, por si só, exercer as suas responsabilidades parentais.
De acordo com o preceituado no artigo 100.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, o processo de promoção e protecção, é um processo de jurisdição voluntária, significando que «o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admissíveis as provas que o juiz considere necessárias»[10].
Com este pano de fundo poderia pensar-se que o direito à prova é uma espécie de direito absoluto, mormente quando e se, respaldado por uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respectiva produção, actuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC.
Mas não é assim, bastando para tanto atentar na expressa ressalva que o n.º 3, alíneas b) e c) deste preceito efectua relativamente aos casos em que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima, sendo-o designadamente quando a obediência importar a intromissão na vida privada ou familiar ou violação do sigilo profissional.
Importa ainda ter presente a força jurídica atribuída pelo artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa[11] aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, e às regras ali vertidas quanto à respectiva restrição, directamente aplicáveis e vinculativas para as entidades públicas e privadas, havendo consequentemente que sopesar, em face de dois direitos constitucionalmente consagrados que colidam, qual dos dois deve prevalecer, à luz do sobredito e devidamente enquadrados pelo princípio da proporcionalidade.
Com efeito, estabelece o n.º 2, do indicado preceito que a lei só pode restringir os direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Conforme sublinha o Ministério Público, «a restrição desses direitos terá que ser feita numa ponderação de interesses conflituantes e através da "avaliação comparativa dos interesses ligados à confidencialidade e à divulgação". (…)
Só através de uma casuística ponderação, com vista a uma possível harmonização dos direitos em causa conflituantes, deverá, portanto, ser solucionado cada caso».
Efectivamente, à semelhança do que acontece nos demais casos de colisão de direitos, também quando estamos perante o confronto de duas espécies de direitos com tutela constitucional, outros princípios importa ter em conta, porquanto tal decorre designadamente do comando constitucional ínsito no artigo 16.º da CRP, salvaguardando que os direitos fundamentais consagrados na constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras de direito internacional, devendo ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No caso vertente, ao invocado princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias, e conjugado com o disposto no artigo 35.º, n.º 4, da CRP, de proibição de acesso a dados pessoais por parte de terceiros, onde naturalmente se incluem os dados respeitantes à saúde da Apelante, contrapõe-se o direito à proteção efectiva do seu filho, ainda menor de idade, consagrado no artigo 69.º da CRP, cujo n.º 2 estabelece que «as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições». Ora, quando é da própria família que a criança tem de ser protegida, ainda que transitoriamente, e esta recusa a intervenção das CPCJ, a proteção da criança compete ao Tribunal de Família e Menores, por força das disposições conjugadas do artigo 123.º, n.º 1, alínea g), da Lei de Organização do Sistema Judiciário, e nomeadamente dos artigos 1.º, 2.º, 3.º 6.º e 100.º e ss. da LPCJP.
Na situação em apreço, e conforme refere o Ministério Público, na sequência das diligências inicialmente efectuadas pela CPCJ e das inquirições realizadas pelo tribunal, tendo resultado fortemente indiciado que a progenitora da criança, ora Apelante, padece de graves problemas psiquiátricos, designadamente de síndrome de Münchhausen por procuração - doença definida como uma forma de abuso infantil, em que os cuidadores provocam de forma deliberada, ou informam falsamente, a existência de alguma doença em crianças como forma de chamarem atenção para si mesmos – foi determinada a realização de uma perícia psiquiátrica à mesma, tendo sido solicitado ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) a indicação de perito médico para o efeito.
Concomitantemente foi solicitada à avó materna da criança e ao companheiro desta, médico reformado, a junção aos autos dos elementos clínicos que tinham acerca da patologia da progenitora da criança a fim de ser remetidos ao perito médico-legal para realização da perícia.
De acordo com o preceituado no artigo 341.º do Código Civil[12] que rege sobre a função das provas, estas visam a demonstração da realidade dos factos.
Conforme temos vindo a sublinhar[13], estando em causa a admissão de um meio de prova, em primeiro lugar, importa verificar se o mesmo é ou não relevante para a prova dos factos, porquanto tal é o critério essencial para aferir da respectiva admissibilidade[14].
Efectivamente, e para o que ora importa, a prova por documentos e a prova pericial, previstas respectivamente nos artigos 423.º e ss., e 467.º e ss. do CPC, constituem meios de prova subordinados às disposições gerais sobre a instrução do processo a que se referem os artigos 410.º e ss. da mesma codificação, sublinhando-se logo neste preceito que a instrução tem por objecto… os factos necessitados de prova.
Deste modo, só podem ser requeridos ou oficiosamente determinados meios de prova quanto a factos necessitados de prova, ou seja, importa que aqueles tenham potencial relevância para prova de factos objecto do litígio e, por consequência, da instrução da causa, sendo nesse caso irrelevante que tenham ou não emanado da parte que devia produzir tais meios de prova, por via do princípio da aquisição processual consagrado no artigo 413.º do CPC.
Assim sendo, poderá afirmar-se sinteticamente que devem ser admitidos os meios de prova requeridos pelas partes que se apresentem como podendo ter relevância para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, e ainda que pelo juiz deve ser oficiosamente determinada, ao abrigo do princípio do inquisitório vertido no artigo 411.º do CPC, a realização de todas as diligências necessárias à prossecução daqueles indicados fins, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Tendo presente a especificidade do objecto do litígio em causa nos presentes autos, a referida relevância dos meios de prova a produzir, há-de aferir-se pela possibilidade de os meios de prova em questão relevarem para a formação da convicção do julgador relativamente aos factos que careçam de prova e importem à definição da dimensão da necessidade de intervenção do tribunal no seio da família, para a protecção do superior interesse da criança em questão.
Deste modo, meios de prova relevantes para a fixação da matéria de facto serão então aqueles que se apresentem como potencialmente úteis para a decisão dos factos necessitados de prova, tanto dos factos essenciais que, directa e nuclearmente se reportem ao objecto do processo como de outros que, embora mediata ou indirectamente relacionados, sejam necessários ou instrumentais para a prova daqueles primeiros e para o apuramento da verdade material[15], tendo-se não obstante presente que o «direito à prova» tem que ser conjugado com outros preceitos legais e desde logo, com o princípio da limitação dos actos vertido no artigo 130.º do CPC, de acordo com o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis.
Ora, estando em causa a protecção da criança que foi provisoriamente entregue à avó materna por existirem indícios de que a saúde psicológica da mãe coloca em perigo a saúde daquela, obviamente que a situação de saúde da mãe é essencial para apurar da sua capacidade parental e, nessa medida, da possibilidade de o filho lhe ser novamente entregue, se necessário, após tratamento prévio que seja considerado adequado, pelo que só com a devida avaliação médico-legal o tribunal terá o necessário enquadramento para uma tomada de decisão consciente sobre a situação de vida familiar em presença, já que somente as provas são o substrato da formação da respectiva convicção quanto à base factual do litígio, e sobre o juiz impende a obrigação de julgar, prevista no artigo 8.º do CC, não podendo abster-se de o fazer invocando dúvida insanável acerca dos factos objecto de controvérsia.
Assim sendo, e observando agora o que vimos de dizer à luz do princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva vertido no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP, podemos estabelecer como ponto de partida que o direito de acesso à justiça constitucionalmente consagrado comporta o direito das partes à produção de prova sobre os factos carecidos de demonstração[16], atendendo ainda, no âmbito do direito civil, ao facto de a referida garantia constitucional de acesso aos tribunais, se encontrar desde logo plasmada no artigo 2.º, n.º 2, do CPC, de acordo com o qual a todo o direito corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.
Ademais, a perícia é um meio de prova técnico/científica que visa a comprovação por pessoa, com reconhecida competência e idoneidade na matéria em causa, conforme expressa previsão do artigo 467.º, n.º 1, do CPC. Logo, está sempre salvaguardado carácter confidencial de tal documentação clínica, devendo também notar-se que a Senhora Juíza teve o cuidado de sublinhar o carácter confidencial da mesma, e que esta se destina a fornecer ao perito médico elementos clínicos, cuja valia e relevância para a situação clínica da ora Apelante, o mesmo avaliará e verterá no relatório médico-legal a elaborar.
Portanto, na vertente situação a reserva da vida privada da Apelante, apesar de comprimida, é-o dentro de uma esfera de reserva profissional que assegura igualmente a confidencialidade dos elementos clínicos no âmbito de um processo de natureza urgente e confidencial.
Assim, se atento o preceituado no já citado artigo 16.º da Constituição da República Portuguesa, importa desde logo atentar no que a respeito da tutela da vida privada estabelecem a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, cujos artigos 12.º e 8.º regem sobre esta matéria, estatuindo respectivamente que «ninguém poderá ser objecto de ingerências arbitrárias na sua vida privada» e que «toda a pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada», não podendo «haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito», a qual não tem protecção absoluta, porque logo ali se refere também «senão tanto quanto esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e liberdades dos outros» (o sublinhado é nosso). Estando consequentemente protegida a vida privada dos indivíduos mesmo da ingerência das autoridades públicas, a lei, a constituição e os instrumentos internacionais ressalvam a possibilidade de intromissão na mesma, quando for necessária, para o que ora importa, à protecção dos direitos de outros, no caso, à protecção do seu filho.
Ora, a intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo obedece aos princípios orientadores vertidos no artigo 4.º da LPCJP, de cuja alínea a) resulta logo que a intervenção, judiciária e não judiciária, deve atender prioritariamente, aos direitos e interesses da criança ou jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto, ou seja, tem como primeiro princípio orientador e estruturante do direito das Crianças e Jovens, o interesse superior da criança e jovem em perigo, correspondente «aos interesses e direitos supremos da criança ou jovem, internacional, constitucional e legalmente consagrados»[17].
Efectivamente, este princípio mostra-se internacionalmente consagrado no artigo 3.º, n.º 1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança o qual prevê que «[t]odas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança»; constitucionalmente protegido nos artigos 36.º, n.º 6, de acordo com o qual, os filhos não podem ser separados dos pais (presume-se ser esse o seu superior interesse), salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles, e sempre mediante decisão judicial - artigo 69.º, n.º 1, que estabelece o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, designadamente contra todas as formas de abandono de exercício abusivo da autoridade na família; e legalmente consagrado quer no já citado preceito, quer ainda no n.º 2 do artigo 1978.º do Código Civil, onde se refere que na verificação das situações previstas no número anterior o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.
Portanto, na ponderação dos dois interesses em presença, afigura-se-nos fora de dúvida que deve prevalecer o interesse do filho da Apelante, designadamente a estar com a mãe se e quando se comprovar que a sua situação de saúde o permita.
Acresce ainda referir, que pese embora entendamos que não houve qualquer intromissão abusiva da avó materna da criança na obtenção da documentação clínica em apreço, já que ao tempo da sua elaboração a filha era menor e, portanto, a mesma terá sido entregue à sua progenitora e não à ora Apelante - o que igualmente afasta qualquer violação de sigilo profissional porque nada nos autos sugere que tal documento foi agora obtido, já que está datado de 28 de Março de 2007 -, a verdade é que já não estamos perante ponderação a efectuar no momento da aquisição da prova, mas sim no momento da produção de prova e da possibilidade da respectiva valoração em concreto, isto ainda que tal prova tivesse sido obtida de forma que até pudesse considerar-se ilícita.
Efectivamente, conforme observa MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[18]:
«no âmbito dessa insusceptibilidade de valoração das provas ilícitas, parece haver ainda que distinguir, em processo civil, entre os meios de prova que não podem ser considerados atendendo à forma como foram obtidos: - é o caso das provas conseguidas mediante os métodos proibidos no art. 32°, n° 8, CRP - e aqueles outros que foram obtidos ilicitamente mas cuja produção não representa, em si mesma, qualquer ilicitude. (…)

Também é defensável que a ilicitude da obtenção da prova se tenha por justificada quando o agente visa exclusivamente a aquisição de um meio de prova sobre factos que dificilmente poderiam ser provados por outra forma e utiliza o material obtido somente com essa finalidade probatória (…) ainda que a prova seja ilícita quanto ao método da sua obtenção, a sua valoração em processo não está forçosamente excluída».
De igual forma, ISABEL ALEXANDRE[19] conclui que «a violação de direitos fundamentais aquando da obtenção da prova não é circunstância de que dependa a admissibilidade da prova ilícita, na falta de norma a prevê-lo.
Há que distinguir entre os momentos da obtenção e da produção da prova, já que só o momento da produção é decisivo para determinar a existência de uma proibição de prova, ou seja, a relevância processual da ilicitude material».
Também SALAZAR CASANOVA[20] afirma que mesmo «quando estão em causa certos direitos fundamentais (intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações), não decorre da lei a proibição absoluta de admissibilidade da prova que, em função das circunstâncias como foi obtida, será ou não valorizada pelo tribunal».
Do mesmo modo, o Supremo Tribunal de Justiça, considerou justificada a ilicitude do modo como a prova foi obtida, num caso em que uma certidão obtida mediante uma actuação ilícita da mandatária da autora, visava a obtenção de prova relevante para o processo sendo essa, exclusivamente, a finalidade prosseguida pela mesma, porquanto, «pese embora aquela actuação censurável, um juízo de proporcionalidade [que implica a ponderação dos interesses em jogo], é decisivo para saber que interesses devem prevalecer, tendo em conta aqui a verdade material»[21].
Em suma, afigura-se-nos ser prevalecente a ideia de que mesmo a prova ilícita deve admitir-se desde que num juízo de proporcionalidade e de ponderação dos interesses em presença, se conclua que a mesma é a única existente ou a determinante para provar os factos controvertidos, e o bem jurídico a ser protegido seja de maior relevância do que aquele que com a sua produção se venha a sacrificar[22].
Revertendo ao caso em apreço, e louvando-nos no que impressivamente se refere nas contra-alegações, ao contrário do que alega a Apelante, não é só em matéria de direito processual penal, em que a finalidade última é a descoberta da verdade dos factos e, consequentemente, a realização da justiça, que em determinadas circunstâncias e verificados determinados pressupostos o direito à reserva da vida privada e de acesso a dados pessoais de terceiro pode validamente ceder perante o princípio da investigação, pois também no direito processual civil, se prevê o “dever de colaboração para a descoberta da verdade” (cfr. art. 417.º do CPC), aplicando-se inclusivamente, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, as disposições do processo penal quando estejam em causa a dispensa do dever de sigilo, e permitindo-se, ainda, o acesso a determinada informação pessoal, limitando embora a utilização da mesma ao “estritamente indispensável à realização dos fins que determinaram a sua requisição, não podendo ser injustificadamente divulgadas nem constituir objeto de ficheiro de informações nominativas” (cfr. art. 418º nº2, do CPC).
Ora, no caso em apreço, como antedito, havendo fundadas suspeitas em como a progenitora da criança padece de graves transtornos psiquiátricos, designadamente do síndrome de Münchausen por procuração, já que de acordo com os depoimentos dos técnicos, médicos e testemunhas já ouvidas e dos elementos juntos aos autos pela avó materna da criança, a ora Apelante, de uma forma persistente e reiterada terá inventado sintomas de doenças no filho e até forjado comunicações e documentos de médicos para que a criança fosse considerada doente, colocando em perigo a saúde e vida deste, afigura-se-nos essencial e justificado para uma eficaz promoção dos direitos da criança e protecção efectiva da mesma (e também da própria progenitora) o apuramento cabal dos problemas psiquiátricos de que a apelante padeça, para possibilitar o tratamento dos mesmos, sendo, do nosso ponto de vista, de capital importância o conhecimento dos seus antecedentes clínicos para a investigação da sua doença e realização da perícia psiquiátrica determinada.
Daí que no confronto dos direitos constitucionalmente protegidos em presença, se nos afigure, que no caso concreto, deverá prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança, porquanto não só o direito à reserva privada da progenitora admite restrição constitucional, como a mesma visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, sendo apta e adequada para o efeito pretendido porque se destina apenas a alcançar tal desiderato e nem sequer põe em causa o conteúdo essencial de direito à reserva privada da progenitora, que continuará salvaguardado, tanto mais que estamos perante um processo de promoção e proteção de natureza sigilosa e carácter reservado, nos termos definidos no artigo 88.º, da LPCJP, e a documentação clínica em apreço se reputa essencial a possibilitar uma completa avaliação médico-legal do estado de saúde da Apelante, determinante para apurar da sua capacidade para o pleno exercício, por si só, das responsabilidades parentais relativamente à criança que este processo visa proteger.
Pelo exposto e ponderando os valores e interesses em presença, concluímos pela proporcionalidade e necessidade da manutenção de tais documentos clínicos nos autos, porque se nos afiguram essenciais para a realização da perícia psiquiátrica à progenitora da criança, que, aliás, já se encontra designada.
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, improcedem ou mostram-se deslocadas as conclusões do recurso.
Vencida, a Apelante suportará as custas de parte devidas, atento o princípio da causalidade vertido no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, e de harmonia com o preceituado no artigo 529.º, n.ºs 1 e 4, ambos do CPC.
*****
III.2.3. - Síntese conclusiva:
I - De acordo com o preceituado no artigo 100.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, o processo de promoção e protecção, é um processo de jurisdição voluntária, significando que «o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admissíveis as provas que o juiz considere necessárias».
II - Com este pano de fundo poderia pensar-se que o direito à prova é uma espécie de direito absoluto, mormente quando e se, respaldado por uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respectiva produção, actuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC.
III - Mas não é assim, bastando para tanto atentar na expressa ressalva que o n.º 3, alíneas b) e c) deste preceito efectua relativamente aos casos em que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima, sendo-o designadamente quando a obediência importar a intromissão na vida privada ou familiar ou violação do sigilo profissional.
IV - No caso vertente, ao invocado princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias, e conjugado com o disposto no artigo 35.º, n.º 4, da CRP, de proibição de acesso a dados pessoais por parte de terceiros, onde naturalmente se incluem os dados respeitantes à saúde da Apelante, contrapõe-se o direito à proteção efectiva do seu filho, ainda menor de idade, consagrado no artigo 69.º da CRP.
V - Estando em causa a protecção da criança que foi provisoriamente entregue à avó materna por existirem indícios de que a saúde psicológica da mãe coloca em perigo a saúde daquela, obviamente que a situação de saúde da sua progenitora é essencial para apurar da capacidade parental desta e, nessa medida, da possibilidade de o filho lhe ser novamente entregue.
VI - À semelhança do que acontece nos demais casos de colisão de direitos, também quando estamos perante o confronto de duas espécies de direitos com tutela constitucional, outros princípios importa ter em conta, porquanto tal decorre designadamente do comando constitucional ínsito no artigo 16.º da CRP, salvaguardando que os direitos fundamentais consagrados na constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras de direito internacional, devendo ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
VII - No confronto dos direitos constitucionalmente protegidos em presença, afigura-se-nos, que no caso concreto, deverá prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança, porquanto não só o direito à reserva privada da progenitora admite restrição constitucional, como a mesma visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, sendo apta e adequada para o efeito pretendido porque se destina apenas a proteger o superior interesse da criança e nem sequer põe em causa o conteúdo essencial de direito à reserva da vida privada da progenitora, que continuará salvaguardado, tanto mais que estamos perante um processo de promoção e proteção de natureza sigilosa e carácter reservado, nos termos definidos no artigo 88.º, da LPCJP.
VIII - Assim, a documentação clínica em apreço, que se reputa essencial a possibilitar uma completa avaliação médico-legal do estado de saúde da Apelante, determinante para apurar da sua capacidade para o pleno exercício, por si só, das responsabilidades parentais relativamente à criança que este processo visa proteger, deve permanecer nos autos para aquele indicado fim que, em concreto, prevalece sobre o direito à reserva da vida privada da progenitora.
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido.
Custas pela Recorrente.
*****´
Évora, 28 de Fevereiro de 2019
Albertina Pedroso [23]
Tomé Ramião
Francisco Xavier

__________________________________________________
[1] Juízo de Família e Menores de Portimão - Juiz 3
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Que pela sua extensão e repetição aqui se reduzem às que se consideram pertinentes para a compreensão do objecto do recurso.
[4] Doravante abreviadamente designado CPC.
[5] Síntese do PPP que constitui o apenso A), cujo acesso electrónico foi solicitado pela ora Relatora, ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 1, alínea d), do CPC,
[6] Note-se que falamos hoje da Criança, e já não do menor, que anteriormente constava no próprio nome da lei de protecção, em evolução que tem subjacente a ideia de que a Criança é «a peça mais importante de todas, porque mais indefesa e vulnerável», cfr. PAULO GUERRA e HELENA BOLIEIRO, in Os Novos rumos do Direito da Família e das Crianças e Jovens, I Congresso de Direito da Família e das Crianças, Almedina 2016, pág. 284.
[7] Doravante abreviadamente designada LPCJP.
[8] Ora 1.º Adjunto, in Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada e Comentada, 4.ª edição revista e aumentada, Quid Juris, pág. 26.
[9] Proferido no processo n.º 100/09.1TMFAR.E1, e disponível em www.dgsi.pt.
[10] Cfr. TOMÉ RAMIÃO, ob. cit., pág. 151.
[11] Doravante abreviadamente designada CRP.
[12] Doravante abreviadamente designado CC.
[13] Designadamente no Acórdão desta conferência, proferido em 13.07.2017, no processo n.º 1860/15.6T8FAR.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[14] Cfr. no mesmo sentido, Ac. TRP de 19-09-2011, proferido no processo n.º 6074/09.1 TBMAI-A.P1, disponível em www.dgsi.pt
[15] Cfr. neste sentido, exemplificativamente e por mais recente, Acórdão do TRC de 17-01-2017, proferido no processo 143/13.0TBCDN-A.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[16] Cfr. neste sentido, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, in As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, págs. 228 e segs., e ISABEL ALEXANDRE in As Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina 1998, pág. 76.
[17] Cfr. Autores e obra citados, pág. 26.
[18] Obra citada, pág. 229.
[19] Obra citada, pág. 287, onde constam as citadas conclusões, por referência aos capítulos onde a autora trata mais desenvolvidamente a matéria.
[20] In “Provas ilícitas em processo civil. Sobre a admissibilidade e valoração de meios de prova obtidos pelos particulares”, DIREITO E JUSTIÇA, vol. XVIII, tomo I, 2004, pág. 128.
[21] Cfr. Acórdão de 19.05.2010, proferido no processo n.º 158/06.5TCFUN.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[22] Cfr. a súmula das teses em presença e a conclusão pela preponderância das denominadas «teses intermédias», efectuada por ISABEL MARIA FERNANDES BRANCO, In “As Gravações e fotografias ilícitas como prova a valorar no âmbito do processo penal e civil (Tendências Jurisprudenciais)”, Junho 2015, disponível em http://www.verbojuridico.net/.
[23] Texto elaborado e revisto pela Relatora.