Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1818/17.0T8STB.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: CONTAS BANCÁRIAS
ANIMUS DONANDI
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – No caso da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, não se deve confundir omissão de pronúncia ou excesso de pronúncia com fundamentação deficiente ou exagerada.
II – Na doação de coisas móveis, para além da intenção de doar tais coisas, o doador, caso não utilize a forma escrita, apenas concretiza tal doação se a acompanhar da tradição da coisa móvel ou do seu título representativo.
III – A simples co-titularidade em contas colectivas e solidárias não consubstancia, por si só, a intenção de doar o saldo dessas contas no exacto momento da atribuição dessa co-titularidade, sendo sempre necessário, a quem se arroga de donatário, alegar e provar a intenção de doar por parte do titular originário da conta.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1818/17.0T8STB.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
(…) (A.) intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Herdeiros Incertos de (…) (RR.), solicitando, a final, que:
- os herdeiros incertos de (…) sejam condenados a reconhecer a A. como única e exclusiva proprietária dos montantes depositados no Banco (…) e co-titulados pela falecida, com as legais consequências;
- sejam os RR. condenados no pagamento das custas e legais acréscimos.
Para o efeito, alegou, em síntese, que a falecida (…) doou à A., em 05-01-2015, as quantias depositadas ou a depositar nas suas contas bancárias do Banco (…), agência de Almeirim, tendo manifestado essa vontade, verbalmente e de forma expressa, razão pela qual a falecida procedeu à inclusão do nome da A. como co-titular das suas contas bancárias.
Mais alegou que (…) veio a falecer em 04-07-2016 e, apesar de a A. não ser herdeira da falecida, é dona, porque donatária, dos valores depositados naquelas contas, os quais lhe foram doados verbalmente pela falecida, tendo a A. declarado aceitar tal doação e, em consequência, por tal motivo foram alteradas aquelas contas para uma conta solidária em nome de ambas, sendo que a co-titularidade de uma conta bancária, colectiva e solidária, consubstancia uma doação manual com tradição simbólica.
Alegou ainda que a doação ocorreu em simultâneo com a constituição da conta bancária solidária em nome conjunto com a falecida (…) e a A., sendo o animus donandi a única razão que justificou a iniciativa da falecida em incluir a A. na titularidade da conta, a qual passou a poder dispor livremente do dinheiro depositado nessas contas, o que consubstancia uma autêntica forma de tradição da coisa doada para a A..
Os RR., representados pelo M.º P.º, contestaram por excepção, considerando não estar em causa uma situação de herdeiros incertos, e por impugnação.
Realizada a audiência prévia, não foi possível resolver por acordo o litígio, tendo sido fixado o valor da causa em € 461.731,92 e proferido despacho saneador stricto sensu, onde se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
Após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença, em 15-07-2019, com o seguinte teor decisório:
Em face ao exposto, julgo a ação totalmente improcedente e, em consequência:
i. Absolvo os réus do peticionado.
Custas pela autora (artigo 527.º/1/2 do Código de Processo Civil).
Não se conformando com a sentença, veio a A. (…) interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações com as conclusões que se seguem:
A. Vem o presente recurso interposto na sentença prolatada pelo tribunal a quo, a qual julgou totalmente improcedente a acção interposta pela aqui Recorrente, constituindo thema decidendum, ser a Recorrente reconhecida como exclusiva proprietária dos montantes depositados no Banco (...) e co-titulados pela aqui Recorrente e por (…), falecida em 04/07/2016.
B. A sentença recorrida assenta a denegação da pretensão da Recorrente em dois pilares, de facto, e de direito:
- De facto, ao não haver conferido credibilidade ou comprometimento das declarações de parte da A., e a prova testemunhal por si arrolada, o seu marido (…), e, tendo como contraponto, a credibilidade do depoimento da testemunha (…), funcionário do Banco (…);
- De direito, pela consideração de não haver considerado provada a existência de uma doação dos valores depositados, cuja autora foi a falecida (…) e donatária a aqui Recorrente.
C. Os fundamentos do presente recurso assentam pois, de facto, no entender da Recorrente, sobre pontos de facto que foram incorrectamente julgados, mormente por não consideração absoluta de meios probatórios constantes dos autos que podiam e deviam ter levado a conclusões probatórias diametralmente opostas àquelas a que chegou o tribunal recorrido, e bem assim sobre pronúncia sobre factos relativamente aos quais não foi produzida qualquer prova; de direito, funda-se na violação das normas dos Arts. 940.º, 945.º, 947.º e 1263.º, al. b), do CC.
DO RECURSO EM MATÉRIA DE FACTO
DOS CONCRETOS PONTOS DE FACTO INCORRECTAMENTE JULGADOS – Art.º 640.º, n.º 1, a), CPC
D. A Recorrente entende terem sido erradamente julgados na sentença recorrida – no sentido de deverem ser dados como provados – os factos constantes dos pontos A. e B. dos factos não provados, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
E. E tal vício verifica-se, ora por se abrrogarem ou desconsiderarem genericamente quer as declarações de parte da A., quer o depoimento do seu marido, arrolado como testemunha, quer por se desconsiderarem elementos de prova documental existentes dos autos que impunham resposta diversa aqueles pontos da matéria de facto
F. O tribunal decide segundo a sua livre convicção, mas tendo desconsiderado ou considerados comprometidos os depoimentos da A. e do seu marido, decidiu segundo princípios de absoluto arbítrio.
G. Não pode, o facto de constituirem parte interessada no desfecho dos autos, de per si, provocar o afastastamento da credibilidade da declaração de parte da Recorrente e o depoimento da testemunha (…), com fundamentos como sejam os apontados na sentença recorrida: nervosimo e profundo comprometimento.
H. A sentença recorrida limita-se a afirmar tal nervosimo, não descrevendo em termos fácticos em que pontos o genericamente descrito estado de nervosimo perturbou ou infuenciou negativamente em matéria de prova, o juízo crítico que sobre o mesmo incidiu, e não extraí qualquer correlação entre o descrito estado nervoso e os factos objecto do depoimento cuja deturpação ou comprometimento haja sido determinado por aquele suposto estado,
I. No que tange ao comprometimento profundo do marido da A., da mesma forma que se considerou para o estado de nervosismo desta, o tribunal recorrido não identifica, mais uma vez, que factos, que matéria do depoimento gerou no julgador a inverossimilhança do mesmo, ao ponto de conduzir à consideração genérica de que o depoente, no caso de procedência da acção, iria beneficiar do acréscimo patrimonial.
J. Tais (des)considerações ofendem frontalmente normas legais vigentes – Arts.º 495.º a 497.º CPC, visto que o legislador, se pretendesse afastar de todo o depoimento dos cônjuges, tê-lo-ia enunciado de forma clara nas disposições processuais em vigor, tornando sentença nula por violação destes normativos, e impondo-se a sua nulidade.
K. A sentença recorrida limitou-se a assentar o lugar comum – alegando o parentesco da testemunha com a A. e o putativo benefício patrimonial – para descredibilizar os depoimentos, sem, porém, lhes apontar deficiências, incongurências, ou divergências da realidade que o façam afastar do facto de a testemunha haver presenciado e acompanhado a Recorrente e a falecida (…) ao banco, e presenciado a doação dos valores em depósito.
L. Para a sentença recorrida, o conhecimento pessoal dos factos foi postergado, considerando o suposto nervosismo e comprometimento, e impede a verossimilhança, o que de todo não se pode aceitar.
DOS MEIOS PROBATÓRIOS CONCRETOS QUE IMPUNHAM DECISÃO DIVERSA – Art.º 640.º, n.º 1, b), CPC
M. Nos autos consta um documento – fls. 112 a 114 dos autos, que aqui se dá por intergralmente reproduzido – que não só demonstra a veracidade dos depoimentos da A. e do seu marido, como demonstra a falsidade do teor do depoimento da testemunha (…).
N. O aludido documento de fls. 112 a 114 dos autos, não contribuíu, erradamente, em nada, para a formulação da convicção do tribunal, não sendo sequer mencionado ou aludido na sentença recorrida.
O. Tal documento contém uma descrição da situação pessoal, social e clínica da falecida, onde consta o seguinte:
- “ (…) foi aplicado à D. (…) a ficha de avaliação diagnóstica, a avaliação das necessidades, entre outros, em que demonstrou nas respostas um discurso coerente e lúcido. (…)
- “ Relativamente ao pagamento das mensalidades, as mesmas eram efectuadas pelo cônjuge da D. (…), com o cartão multibanco da D. (…), no terminal multibanco instalado na secretaria, de fácil acesso à utente.”
- “Num dos domínios abordados na avaliação das necessidades, a utente referiu «agora já nem sou dona do meu dinheiro» (sic)” sublinhado nosso.
P. Os elementos contidos no documento, e redigidos por técnica da instituição em causa – aliás terceira descomprometida em relação à matéria dos autos, permitem desde logo afastar o pressuposto de que a falecida ainda se considerasse dona do seu dinheiro, e, por algum motivo o afirmava perante terceiros.
Q. O facto de a donatária ter ou não procedido ao levantamento de tais valores em vida da doadora não descaracteriza aquela entrega simbólica, já que a donatária passou a poder dispor dos fundos ali provisionados como, pelo menos, contitular dos mesmos, segundo a vontade expressamente manifestada pela doadora.
R. Inexistem nos autos registos dos movimentos das contas em causa, pelo que a sentença recorrida faz uma extrapolação dedutiva acerca de um facto que não está de forma alguma demonstrado, e com isso também violando o disposto na segunda parte da alínea d) do n.º 1 do Art.º 615.º CPC, que expressamente se invoca.
DA DECISÃO QUE DEVIA SER PROFERIDA SOBRE AS QUESTÕES DE FACTO IMPUGNADAS – Art.º 640.º, n.º 1, c), CPC
S. Mal andou o tribunal recorrido ao desconsiderar os depoimentos da A. e do seu marido – considerando-os comprometidos – e ao valorar em exclusivo o depoimento do funcionário bancário (…), considerando-o descomprometido, tudo no que toca à resposta à questão de facto que era saber se a falecida (…) havia ou não verbalizado qualquer intenção de doar o dinheiro depositado à A.
T. Foi a própria falecida quem, aquando da eleboração de um relatório por parte da Fundação José Relvas já em 26/12/2014, assumiu “já nem ser dona do seu dinheiro”.
U. Dúvidas não deviam restar ao tribunal recorrido que, independentemente da forma como se achavam co-tituladas as contas e da presunção de solidariedade, 11 dias antes de a aqui Recorrente ingressar naquela titularidade – por acto voluntário e com espírito de liberalidade – a falecida co-titular já não se considerava dona do seu dinheiro,
V. E não se considerava dona porque, embuída de intuito de liberalidade, já pensava fazer ingressar a Recorrente na titularidade das contas, como aliás veio a ocorrer em 5/01/2015 – esta deveria ter sido a correcta interpetação do tribunal recorrido no que tange à intenção que havia presidido ao ingresso das Recorrente na titularidade das contas, considerada a forma como no espírito da falecida se estruturava já, antecipadamente, a doação efectuada.
W. O intuito liberatório nasce na manifestação de vontade da falecida – necessariamente em momento anterior à deslocação ao banco para proceder às devidas alterações – e vem a concretizar-se com a alteração de titularidade que veio a ocorrer.
X. Tal conclusão permitia, concatenando os demais depoimentos – mormente o da A. e do seu marido – considerar como provados os pontos A. e B. da Matéria de Facto Não Provada, ou seja:
- dar como provado que (…) declarou em 5/1/2015 (data da efectiva alteração da titularidade das contas, conforme Docs. 3 e 4 juntos com a Petição Inicial) doar à A. as quantias depositadas ou a depositar nas contas de depósito n.º (…), (…) e (…) do Banco (…), agência de Almeirim;
- e bem assim como provado que a (…) tinha a intenção de doar as referidas quantias à aqui Recorrente.
Y. Ao decidir da forma como decidiu, a sentença deixou de pronunciar sobre questões que devia apreciar, o que constitui nulidade nos termos da primeira parte da alínea d) do n.º 1 do Art.º 615.º CPC, que expressamente se invoca, e que deverá determinar a anulação da sentença.
Z. Já no que tange às considerações sobre a não movimentação da conta por parte da Recorrente por período superior a um ano, entende-se que a douta sentença se pronunciou sobre questão sobre a qual não devia sequer tomar conhecimento, por falta de qualquer prova produzida sobre tal facto, fazendo uma extrapolação dedutiva acerca de um facto que não está de forma alguma demonstrado, visto nos autos não constar sequer qualquer listagem dos movimentos da conta, e com isso também violando o disposto na segunda parte da alínea d) do n.º 1 do Art.º 615.º CPC, que expressamente se invoca.
DO RECURSO EM MATÉRIA DE DIREITO DA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 940.º, 945.º, 947.º e 1263.º, al. b), do CC
AA. Se considera e dá como provado que as contas em causa passaram a ser co-tituladas a partir de 5/1/2015, e se existiam dois cartões de débito, um em nome de cada uma das co-titulares, forçoso seria concluir que a autora da sucessão, ao colocar a Recorrente com co-titular das contas bancárias, tivesse intenção de que o dinheiro depositado em tais conta passasse a ser propriedade da nova titular, podendo dele dispor como entendesse.
BB. A autora da liberalidade considerava, em Dezembro de 2014 “já nem ser dona do seu dinheiro”, e tornando em Janeiro de 2015 a Recorrente co-titular das suas contas bancárias, é nítido o espírito de liberalidade, e o animus donandi com que esta agiu, de onde, (…) mais não fez do que exteriorizar de forma evidente a intenção de doar o dinheiro aquela.
CC. Considerar-se na sentença recorrida uma interpetação dos factos segundo a qual inexiste declaração de vontade em matéria de doação, só foi possivel admitir eliminando os depoimentos da aqui Recorrente, e do seu marido, e postergando os restantes elementos de prova constantes dos autos – cfr. fls 112 a 114, cuja desconsideração gera a nulidade supra já invocada.
DD. A co-titularidade de uma conta bancária, coletiva e solidária, consubstancia uma doação manual com tradição simbólica.
EE. Se a (…) pretendesse que a Recorrente a auxiliasse apenas a acautelar a eventualidade de não se poder deslocar ao banco, teria introduzido o seu nome como autorizada e já não como co-titular, visto que tal era opção, e não foi, definitivamente, exercida.
FF. Constando de fls. 112 a 114, que a mensalidade da Fundação José Relvas era paga através de cartão de débito dentro da própria instituição, demonstra-se não ter sido acidental e desprovida de animus donandi a inclusão da Recorrente como titular da conta.
GG. (…) pretendeu “chamar” a aqui Recorrente, tendo em vista, pelo menos, a partilha do domínio e propriedade sobre os activos monetários existentes nas contas em causa nos autos, e isso compreendeu todos os activos depositados, de tal modo que a conta passou a ser configurada como conta solidária, e não como conta conjunta, nem de titular único.
HH. A validade de doação verbal de coisa móvel depende da prova de que essa doação foi acompanhada da entrega da coisa doada, nos termos do artigo 947.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC., e tal prova foi efectuada.
II. Tal entrega não tem de ser necessariamente simultânea da declaração de doar, podendo ser anterior ou mesmo posterior a esta e podendo consistir seja numa entrega material da própria coisa doada seja numa entrega simbólica do bem doado, por exemplo do seu título representativo, como decorre do disposto nos artigos 945.º, n.º 2, e 1263.º, alínea b), do CC.
JJ. A postura, quer anterior, quer posterior da doadora – confissão perante terceiro de que “já nem dona do seu dinheiro era” – provada por documento constante nos autos de fls. 112 a 114, confirmam que os actos subsequentes demonstram uma efectiva declaração negocial com animus donandi.
KK. Se, por decorrência de uma doação verbal de valores pecuniários a depositar numa conta bancária, a doadora alterar a titularidade singular que detinha nessa conta para uma titularidade solidária com a donatária e seguidamente ali depositar esses valores, tais factos são, em correspondência com o animus donandi, representativos da entrega simbólica dos valores assim doados, nos termos e para os efeitos do artigo 947.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC.
LL. O facto de a donatária ter ou não procedido ao levantamento de tais valores em vida da doadora não descaracteriza – como parece resultar da sentença recorrida ao aludir ao facto de a Recorrente não ter movimentado ou levantado o dinheiro do decurso do período, superior a um ano, em que (…) foi viva após a alegada doação – por si só, aquela entrega simbólica, já que a donatária passou a poder dispor dos fundos ali provisionados como, pelo menos, contitular dos mesmos, segundo a vontade expressamente manifestada pela doadora.
MM. O “animus donandi” foi a única razão que justificou a iniciativa da falecida (…) em incluir a Recorrente na titularidade da conta, tanto mais que, a Recorrente passou a ser co-titular da conta bancária (05.1.2015), numa altura em que – note-se – a falecida (…), mantinha toda a autonomia, inclusivamente quanto à gestão do seu património e o seu estado de saúde não carecia minimamente que a Recorrente gerisse (ou passasse a gerir) a sua vida financeira, sendo os actos correntes assegurados através de pagamento por multibanco na própria fundação.
NN. O conjunto dos atos da doadora, a falecida (…), consubstancia uma autêntica forma de tradição da coisa doada para a Recorrente: o “animus donandi” é acompanhado duma entrega, aqui a titularidade do depósito, ou seja, um meio suscetível de tornar efetivo o apossamento;
OO. Constitui entendimento da doutrina e da jurisprudência que, no caso das contas solidárias, que podem ser livremente movimentadas por qualquer dos seus titulares, provado que foi intenção do titular que depositou o numerário, que este passasse a ser propriedade do outro titular, podendo dele dispor como entendesse, então, estamos face a uma doação acompanhada de “tradição” do bem doado, pois que a conta conjunta solidária funciona como meio idóneo para operar a tradição, para tornar efetivo o apossamento das quantias depositadas;
PP. Não obsta à conclusão anterior o facto de a conta bancária ter continuado a ser titulada pela falecida, que podia por isso também continuar a movimentá-la, porque para haver doação esta não tem que envolver sempre a transmissão de bens, como resulta do âmbito traçado pelo artigo 940.º do CC e já há muito havia sido referido por Galvão Telles, ob. cit., “pode-se doar por outras formas: pondo em comum um direito, constituindo sobre coisa própria um direito real menor, assumindo para com outrem uma obrigação. O que importa (a par do empobrecimento do doador) é a valorização do activo do donatário, a atribuição a este de um direito, e essa atribuição pode revestir qualquer das configurações indicadas.”
QQ. O facto de a ora Recorrente ter movimentado ou não a conta a débito em seu favor em vida da doadora não implica a inexistência nem da declaração negocial, nem da tradição do bem doado, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, porque o n.º 1 do art.º 945.º do CC refere-se apenas à aceitação da doação e o n.º 2 da mesma disposição limita-se a considerar que esta existe se houve a tradição material da própria coisa móvel doada ou do seu título representativo para o donatário, mas não estabelece que só há tradição da coisa doada quando a própria coisa ou o seu título representativo mude de mão para o donatário;
RR. A tradição não tem necessariamente que ser material, com mudança de mão da própria coisa ou do título, pois que como dispõe a alínea b) do artigo 1263.º do CC, a posse pode adquirir-se pela tradição simbólica da coisa1,
SS. Na verdade, o STJ adotou idêntica posição, nomeadamente, nos acórdãos de 27/05/2003, Proc. n.º 03B1251 (Conselheiro Abílio Vasconcelos), in www.dgsi.pt; de 03/06/2003, Proc. n.º 03A1615 (Conselheiro Silva Salazar), in www.dgsi.pt; de 03/ 03/2005, Proc. n.º 04B3711 (Conselheiro Bettencourt de Faria), in www.dgsi.pt; de 06/10/2005, Proc. n.º 04B2753 (Conselheiro Pereira da Silva), in www.dgsi.pt; de 18/12/2008, Revista n.º 3759/08 - 6ª Secção (Conselheiro João Camilo), in Sumários do STJ (Boletim), e Ac. 16/06/2016, Proc. 865/13.6TBDL.L1.S1) Conselheiro Tomé Gomes, in www.dgsi.pt;
TT. Esta orientação foi, também, adotada nos acórdãos da Relação do Porto, de 21/05/1992, Recurso 280/92 – 3.a Secção (Desembargador Pais de Sousa), sumariado no BMJ n.º 417, pág. 821; e de 19/09/2011, Proc. n.º 82/1999.P1 (Desembargador António Mendes Coelho), in www.dgsi.pt; e no acórdão da Relação de Coimbra de 29/01/2013, Proc. n.º 1504/09.5TBFIG.C1 (Desembargadora Sílvia Pires), in www.dgsi.pt;
UU. Os mesmos princípios e orientações estão ínsitos nos acórdãos do STJ de 12/06/2012, Proc. n.º 1874/09.5TBPVZ. P1. S1, (Conselheiro Salazar Casanova), in www.dgsi.pt; de25/06/2015, Proc. nº 26118/10.3T2SNT.L1.S1 (Conselheiro Gregório Silva Jesus), in www.dgsi.pt, embora se pronunciem sobre situações de facto diferentes da que enforma o caso sub judice;
VV. Reconduz-se a situação a uma doação verbal dos valores do saldo da conta ao momento da abertura da conta solidária, que releva enquanto tradição nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art.º 947.º do CC, pois no caso, a doação foi manifestada de forma expressa, embora verbal, aquando da alteração de titularidade da conta solidária, momento em que a Odete Martins evidenciou que com aquele ato quis que o saldo desta passasse a ser propriedade da outra contitular aqui Recorrente, que passava a poder dispor desses valores como entendesse;
WW. Assim, em face da factualidade que enforma a situação “sub judice”, do regime legal aplicável, da jurisprudência e da doutrina referenciadas, tem de se considerar não apenas que a falecida Odete Martins doou o dinheiro à Recorrente, mas também que se verificou a tradição dos valores doados, da doadora para a donatária;
XX. A propriedade dos saldos das contas bancárias em questão transmitiu-se para a esfera jurídica da ora Recorrente, por efeito da doação efetuada, pelo que já não pertencia à falecida (...), à data da sua morte, mas sim à ora Recorrente;
YY. Decorre do comportamento de (…) a clara intenção de doar – animus donandi, através da inclusão da Recorrente nas contas coletivas solidárias – não só da parte correspondente a metade das quantias monetárias depositadas – corpus donandi, por aplicação do disposto no art.º 516º do CC – acompanhada da traditio simbólica – longa manu – que emana da própria configuração da modalidade da conta, coletiva solidária, in casu, activa, mas da totalidade dos valores depositados.
ZZ. A sentença recorrida ao julgar a acção improcedente, fez uma errada interpretação da lei aplicável ao caso, nomeadamente, os artigos 940.º, 945.º, 947.º e 1263.º, al. b), do CC, e contrariou, manifestamente, as orientações da jurisprudência e da doutrina, e por isso deve ser declarada nula;
TERMOS EM QUE, DANDO PROVIMENTO AO RECURSO ORA INTERPOSTO, FARÃO V.ª Ex.ª A COSTUMADA JUSTIÇA.
OS RR., devidamente representados pelo M.º P.º, apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1ª- A A./Recorrente (…) interpôs o presente recurso da douta sentença proferida nos autos à margem identificados que não condenou os RRs a reconhecer a A. como única e exclusiva proprietária dos montantes depositados no Banco (…) e co-titulados pela identificada (…), já falecida.
2º- Fundamenta as suas alegações impugnando a matéria de facto, designadamente alegando que a sentença recorrida não conferiu credibilidade às declarações de parte da A. nem à prova testemunhal por si arrolada, o seu marido (…), tendo como contraponto a credibilidade do depoimento da testemunha (…), funcionário do Banco (…) e omitindo na sua apreciação o documento junto pelos RRs. A fls. 112 a 114, considerando, por isso, nula a sentença, nos termos do disposto no artº 615º. nº 1, alínea b), do CPC e violado o disposto no artº 640º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
3º- Fundamenta ainda o seu recurso invocando violação de normas jurídicas, alegando que a conta bancária constitui meio idóneo de tradição simbólica do dinheiro, integrando uma doação, e assim tem como violado o disposto nos artº 940º, 945º, 947º e 1263º, al. b), do C. Civil.
4º- Sucede que o artº 615º, nº 1, al. b), do C. P. Civil comina com nulidade a sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, impondo ao juiz deve conhecer todas as questões que lhe são submetidas- pedidos, causas de pedir e excepções invocadas ou que sejam de conhecimento oficioso.
5º- Contudo, não constitui nulidade da sentença a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes das que constam da sentença, que as partes tenham invocado, nem constitui nulidade subsumível a este dispositivo legal a não valoração de determinados documentos, omitindo pronúncia sobre eles – cfr., neste sentido, Ac. Relação de Évora de 10.05.2018, in Proc. 1577/14.9 T8STR.
6º- Deve, assim, improceder a arguida nulidade da sentença, vicio a que alude o artº 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil.
7º- Também não tem razão a recorrente ao considerar violado o disposto no artº 640º do Código de Processo Civil, por não se encontrar incorrectamente julgada a matéria de facto, o que é desde logo perceptível pelo teor das declarações prestadas pela testemunha (…), que pela sua clareza deixamos transcritas supra.
8º- Na verdade, ao contrario do que alega a recorrente, o Tribunal justificou o seu juízo critico em dados objectivos, considerando os meios de prova produzidos em julgamento e elencados no texto da sentença, como seja o depoimento da testemunha (…) que, de modo desinteressado, sustentou que a cotitularidade das contas foi o meio utilizado para permitir a movimentação das contas de (…) pela Autora (…), para que esta a auxiliasse caso não se pudesse movimentar, assim descartando de forma inequívoca que a falecida (…) alguma vez tenha referido que era sua intenção proceder a uma doação.
9º- Ao apelar ao depoimento descomprometido desta testemunha, a douta sentença recorrida justificou, sem margem para dúvidas, o afastamento do depoimento da testemunha indicada pela A., seu marido, bem como o depoimento de parte desta que, aliás, só se impõe que seja valorado enquanto confessório de factos que lhe sejam desfavoráveis.
10º- E estranho seria se, ao contrario do decidido, tivesse sido atribuída ao marido da autora a credibilidade por esta pretendida pois que, embora não sendo parte na medida em que não figura como Autor, não deixa, obviamente, de ter um interesse directo no resultado da acção pelo que o seu depoimento deve ser valorado com essa contingência.
11º- O depoimento da testemunha (…) afastou de forma clara o animus donandi essencial à procedência da acção, na falta de outra prova que contradissesse o seu esclarecido depoimento, designadamente ao referir que “Teria havido algum episódio em termos de saúde da D. (…), que se fez acompanhar da D. (…), com intenção de a colocar na conta também como titular, para a eventualidade de vir a acontecer alguma coisa, ela não se poder deslocar ao balcão (….)” – sessão de 22.06.2019, minutos 02.45 a 03.15.
12º - E, perguntado sobre se foi verbalizado em qualquer momento a intenção da falecida proceder à doação das quantias respondeu: “Que eu tenha memória não. A intenção acho que estava mais nessa situação de poder intervir na conta” e ainda: “Ou seja, dá ideia que quando se deslocaram lá a situação já estava mais ou menos definida no sentido, foi sempre apresentado no sentido de colocarem a D. (…) na conta já existente, com esse intuito” – cfr. sessão de 22.06.2019, min. 04.40 a 04.53.
13º- e ainda perguntado pela Mmª Juiz: ”De movimentação! de…movimentação da conta e também de ajuda…” a testemunha (…) respondeu: “sim de ficar também como titular da conta, caso acontecesse alguma coisa, se ficasse acamada, salvo erro a D. (…) uns tempos antes tinha tido um problema de saúde”.
14º- A Autora alega ainda que o documento junto pelos RRs a fls. 112 a 114 não contribuiu para a formulação da convicção do tribunal, não sendo sequer mencionado ou aludido na sentença recorrida, quando do seu teor resulta, segundo diz, que a afirmação “agora já nem sou dona do meu dinheiro” tem o sentido de confirmar que o dinheiro já não é seu, porque o doou.
15º- Sucede, à evidência e em termos de normalidade, que esta afirmação não constitui uma confissão, mas, pelo contrario, contém um queixume da falecida (…), no sentido de que não lhe é possível dispor do que é seu, ao mesmo tempo que, ao contrario do sustentado pela recorrente, afirma inequivocamente que o dinheiro ainda é seu (“não posso dispor do meu dinheiro”).
16º- Esta afirmação faz tanto mais sentido quando percebemos, pela prova produzida, o estado de debilidade física da falecida (…), nesta fase da sua vida em que deixou de poder residir sozinha para ser internada numa instituição, cuja mensalidade era paga, ao balcão da Fundação, pelo marido da Autora, com o cartão multibanco desta ((havia dois cartões, é certo, porque existia um em nome de cada titular, como é normal).
17º- No conjunto da prova produzida, relacionando as declarações do gerente de conta (…) com o teor deste documento, tendo ainda presente que, em momento algum, (…) terá verbalizado a quem quer que fosse, que tal doação tenha ocorrido, o sentido daquele desabafo só pode ter uma interpretação e, justamente, a contrária à pretendida pela Autora: na verdade, a falecida (…) sentia-se…desapossada!!!
18º- A postura da Autora neste processo é a de quem não se conformou, na posição de cotitular, em guardar para si metade da quantia titulada, a que formalmente poderia ter acesso sem problemas, deixando livre a outra metade – posição assumida pela entidade bancária, após a própria Autora (…) ter declarado aos seus balcões (e assumido na petição inicial) que o dinheiro não era seu.
19º- Em conclusão, não se vislumbra que exista qualquer erro na apreciação da matéria de facto sendo que o documento que a A. realça, e, neste caso, com razão, ter sido omitido na sentença (o documento produzido pela Fundação José Relvas, apresentado pelo Ministério Público), na verdade não lhe é favorável nem permite retirar a ilação pretendida, de que a expressão “já nem sou senhora do meu dinheiro” tenha a virtualidade de constituir uma admissão da pretendida doacção.
20º - Quanto à matéria de direito, entende a recorrente que se encontram violados os artº 940º, 945º, 947º e 1263º al. b), todos do C. Civil, pois que, em síntese, a conta bancária seria meio idóneo de tradição simbólica do dinheiro, formando um contrato de doação.
21º- Sucede que tal interpretação só é admissível, como resulta da jurisprudência citada pela própria recorrente, quando simultaneamente se prove o animus donandi.
22º- O animus donandi constitui matéria de facto, sujeita a prova que, in casu, não foi produzida, pelo que não se vê que a aplicação do Direito aos factos enferme de erro ou que o enquadramento jurídico realizado possa ter sentido diverso do que foi tomada pela douta sentença absolutória.
Sem conceder,
23º- Com a disponibilização da movimentação das verbas a favor de terceiro, a alegada doadora continuou teoricamente a poder dispor das quantias depositadas até ao seu falecimento, como sucede quando se mantem a cotitularidade, mas a verdade é que não as doou, antes as reservou para si até à sua morte, não se presumindo a traditio pois a proprietária das quantias pode, teoricamente, proceder a qualquer momento ao reembolso da totalidade do valor depositado, sendo este, aliás, o sentido que a jurisprudência tem tomado em situações idênticas - cfr. Ac. STJ de 25.06.2015, proc. 26118/10.3T2SNT e de 09.07.2003, proc. 2339/03, Ac. Rel. Lisboa de 15.12.2012 e de 17.12.2015, este no proc. 865/13.6 TBPDL, proc. 124110.8 TJLSB, Ac. Rel. de Coimbra de 07.12.2004, proc. 33004/04, Porto de 02.05.1991, todos in www.dgsi.pt.
24º- Se, por hipótese, o donatário pretende que os efeitos sejam produzidos após a sua morte, não se trata verdadeiramente de uma doação em vida mas sim por morte, a qual só é válida quando sejam observadas as formalidades dos testamentos, o que não ocorre numa doacção meramente verbal, que hipoteticamente tivesse existido.
25º- Do que se conclui que, ainda que, por hipótese, tivesse existido doacção, a mesma seria inválida, pelo que, ainda que subsidiariamente, sempre se dirá que nenhuma possibilidade existe de existir qualquer direito da autora sobre a quantia peticionada, quantia essa que deve, por lei, ser atribuída aos herdeiros da falecida.
26º- Termos em que não foi violada qualquer norma jurídica, designadamente os artº 615º e 640º do CPC e 940º, 945º, 947º e 1263º al. b), todos do C. Civil.
Termos em que mantendo a douta sentença recorrida farão Vª Exª a costumada JUSTIÇA
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II – Objecto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Nulidade da sentença;
2) Impugnação da matéria de facto;
3) Existência de uma doação manual com tradição simbólica.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1) A conta bancária domiciliada no Banco (…) com o número (…) foi aberta como solidária em 22.12.1999, tendo como única titular (…).
2) A 17.05.2018 tal conta apresentava o saldo de € 230.756,06.
3) A conta poupança associada a esta conta com o número (…) foi aberta a 05.11.2012, encontrando-se atualmente liquidada.
4) A autora ingressou como interveniente titular nas referidas contas de 06.01.2015 a 05.05.2017.
5) Existem dois cartões de débito associados à conta cartão número (…), um em nome de (…), ativo de 27.02.2013 a 01.03.2016 e o outro em nome de (…), ativo de 27.02.2013 a 01.03.2016.
6) À data do óbito da falecida (…), a A. era co-titular, com esta, das contas de depósito n.º (…), e, do Banco (…), agência de Almeirim.
7) A falecida (…) procedeu, em 06/01/2015, à inclusão do nome da A. como cotitular das contas de depósito n.º (…), (…) e (…), do Banco (…), agência de Almeirim.
8) (…) faleceu em 04/07/2016.
9) No âmbito do processo número 473/17.2T8ALR, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Almeirim, por sentença transitada em julgado a 11.03.2019, foi declarada vaga a favor do Estado a herança de (…), constituída pelo saldo da conta bancária número (…) do Banco (…), balcão de Almeirim, no montante de € 461.731,92 e pelo prédio urbano sito na Rua (…), número (…), em Alpiarça.

E deu como não provados os seguintes factos:
A. A falecida (…) declarou doar à autora, em 5/01/2015, as quantias depositadas ou a depositar nas contas de depósito n.º (…), (…) e (…), do Banco (…), agência de Almeirim, tendo a autora declarado aceitar tal doação.
B. A falecida (…) tinha intenção de doar as quantias referidas no ponto antecedente à autora.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) a sentença recorrida é nula; (ii) o tribunal a quo errou na apreciação da matéria de facto; e (iii) a sentença deveria ter considerada a existência de uma doação manual com tradição simbólica.
1 – Nulidade da sentença
Segundo a Apelante, a sentença recorrida é nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, uma vez que não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, ao ter desconsiderado o depoimento de parte da A. e o depoimento testemunhal do seu marido, alegando apenas, quanto a este último, o seu parentesco com a A. e o putativo benefício patrimonial, sem, porém, apontar deficiências, incongruências ou divergências da realidade no seu depoimento, pelo que violou o disposto nos arts. 495.º a 497.º do Código de Processo Civil, visto que o legislador, se pretendesse afastar de todo o depoimento dos cônjuges, tê-lo-ia enunciado de forma clara nas disposições processuais em vigor. De igual modo, não se pronunciou sobre o documento de fls. 112 a 114 e deveria tê-lo feito.
A sentença é igualmente nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, uma vez que se pronunciou sobre questão sobre a qual não devia sequer tomar conhecimento, ao ter feito considerações sobre a não movimentação da conta por parte da Apelante por período superior a um ano, inexistindo nos autos registos dos movimentos das contas em causa, pelo que fez uma extrapolação dedutiva acerca de um facto que não está de forma alguma demonstrado.
Dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, que:
1 - É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

Decidamos.
Esta nulidade, quando se reporta a uma situação de omissão de pronúncia, ocorre quando o juiz não se pronuncia sobre todas as questões que lhe tenham sido submetidas pelas partes, excluindo aquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução já dada a outras.
Por outro lado, quando se reporta a uma situação de excesso de pronúncia, trata-se de uma nulidade que ocorre quando o juiz se pronuncia sobre questões que não lhe tenham sido submetidas pelas partes e não se reconduzem a questões de conhecimento oficioso.
Porém, não se deve confundir questões com considerações, argumentos ou razões.
Conforme bem referiu Alberto dos Reis[2]:
São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.

E, a ser assim, a sentença não padece de nulidade quando não aborda todos os fundamentos invocados pela parte para justificar determinada opção jurídica, desde que aprecie a questão jurídica invocada, apresentando a sua própria fundamentação.
Cita-se a este propósito o acórdão do STJ, proferido em 15-12-2011, no âmbito do processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
IV - A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art. 660.º, n.º 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
V - Como uniformemente tem sido entendido no STJ, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.

E isto é assim quer quanto à circunstância de o tribunal não se encontrar obrigado a pronunciar-se sobre toda a argumentação apresentada pelas partes quer quanto à circunstância de poder apresentar argumentação diversa da invocada.
Por outro lado, não se pode confundir omissão de pronúncia, que se terá de entender como ausência de apreciação, com deficiente ou obscura fundamentação.
Cita-se a este propósito, o acórdão do STJ, proferido em 22-01-2015, no âmbito do Proc. 24/09.2TBMDA.C2.S2, consultável em www.dgsi.pt:
(…) a nulidade por omissão de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal deixa de apreciar questões que tinha de conhecer, mas já não quando, no entender do recorrente, as razões da decisão resultam pouco explicitadas ou não se conhecem de argumentos invocados.

Transcreve-se ainda o que consta da obra O Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[3]:
4. Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso.

Por outro lado, a sentença não padece de nulidade por excesso de pronúncia se der como provados factos sobre os quais não foi realizada prova, ou apresentar argumentação deficiente, não assente em meios de prova.
Citando-se uma vez mais Alberto dos Reis[4]:
Se deu como provado factos sobre os quais se não produzira prova, julgou mal; mas julgar mal é espécie diversa de emitir pronúncia sobre questão não suscitada pelas partes.

No caso em apreço, e quanto à primeira nulidade invocada (omissão de pronúncia), é manifesto que a Apelante confundiu aquilo que entendeu como deficiente fundamentação (não invocou as razões pelas quais entendeu que não deveria ser valorado o depoimento da testemunha …, marido da Apelante, e não se pronunciou sobre o documento de fls. 112 a 114) com omissão de pronúncia, uma vez que a questão que foi colocada pelas partes (ter existido ou não doação) foi expressamente decidida pelo tribunal a quo.
Também relativamente à segunda nulidade invocada (excesso de pronúncia), a Apelante confundiu, uma vez mais, deficiente fundamentação da matéria de facto (onde se terá feito menção a factos que não resultaram provados) com excesso de pronúncia, uma vez que nessa fundamentação (ainda que deficiente) o tribunal a quo não decidiu sobre qualquer questão.
Assim, por ser manifesto que a Apelante confundiu fundamentação apresentada com questões a decidir, improcedem ambas as nulidades, quer por omissão de pronúncia quer por excesso de pronúncia, nos termos da al. d) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil.
2) Impugnação da matéria de facto
No entender da Apelante os factos A e B, que foram dados como não provados, deveriam ter sido dados como provados, em face do depoimento de parte da Apelante, das declarações da testemunha (…), marido da Apelante, e do documento de fls. 112 a 114 dos autos.
Importa, então, apreciar se se mostram cumpridos os requisitos impostos pelo art. 640.º do Código de Processo Civil.
Relativamente à interpretação das obrigações que impendem sobre a Apelante, nos termos do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, cita-se, entre muitos, o acórdão do STJ, proferido em 03-03-2016, no âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III – O ónus a cargo do Recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado.
IV – Nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, máxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica.

Relativamente à apreciação da matéria de facto em sede de recurso, importa acentuar que o disposto no art. 640.º do Código de Processo Civil consagra actualmente um duplo grau de jurisdição, persistindo, porém, em vigor o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz da 1.ª instância, previsto no art. 607.º, n.º 5, do mesmo Diploma Legal.
No entanto, tal princípio da livre apreciação da prova mostra-se condicionado por uma “prudente convicção”, competindo, assim, ao Tribunal da Relação aferir da razoabilidade dessa convicção, em face das regras da experiência comum e da normalidade da vida, da ciência e da lógica.
Veja-se sobre esta matéria o sumário do acórdão do STJ, proferido em 31-05-2016, no âmbito do processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
I - O tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.
II - Desde que o recorrente cumpra as determinações ínsitas no art. 640.º, o tribunal da Relação não poderá deixar de fazer a reapreciação da matéria de facto impugnada, podendo alterar o circunstancialismo dado como assente na 1.ª instância.

Cita-se ainda o sumário do acórdão do TRG, proferido em 04-02-2016, no âmbito do processo n.º 283/08.8TBCHV-A.G1, consultável em www.dgsi.pt:
I- Para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.

E, a ser assim, o Tribunal da Relação, aquando da reapreciação da matéria de facto, deve, não só recorrer a todos os meios probatórios que estejam à sua disposição e usar de presunções judiciais para, desse modo, obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, como também, sem incorrer em excesso de pronúncia, ao alterar a decisão de determinados pontos da matéria de facto, retirar dessa alteração as consequências lógicas inevitáveis que se repercutem noutros pontos concretos da matéria de facto, independentemente de tais pontos terem ou não sido objecto de impugnação nas alegações de recurso.
Cita-se a este propósito, o sumário do acórdão do STJ, proferido em 13-01-2015, no âmbito do processo n.º 219/11.9TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
XIII - Não ocorre excesso de pronúncia da decisão, se a Relação, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retira dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso.

Por fim, importa ainda esclarecer que o Tribunal da Relação, na sua reapreciação da prova, terá sempre que atender à análise crítica de toda a prova e não apenas aos fragmentos de depoimentos que, por vezes, são indicados, e que retirados do seu contexto, podem dar uma ideia bem distinta daquilo que a testemunha efectivamente mencionou, bem como daquilo que resultou da globalidade do julgamento.
Importa, desde já, esclarecer que a Apelante cumpriu com as obrigações impostas pelo n.º 1 do 640.º do Código de Processo Civil.
Consigna-se que se procedeu à audição de todo o julgamento.
Cumpre decidir.
1) Os factos A e B que foram dados como não provados deveriam ter sido dados como provados
Segundo a Apelante deveriam, assim, ter acrescido à matéria dada como assente os seguintes factos:
- (…) declarou em 5/1/2015 (data da efectiva alteração da titularidade das contas, conforme Docs. 3 e 4 juntos com a Petição Inicial) doar à A. as quantias depositadas ou a depositar nas contas de depósito n.º (…), (…) e (…) do Banco (…), agência de Almeirim; e
- (…) tinha a intenção de doar as referidas quantias à aqui Recorrente.

Alegou a Apelante que esta era a decisão factual que se impunha, uma vez que apesar de o tribunal decidir segundo a sua livre convicção, não pode decidir segundo princípios de absoluto arbítrio, sendo que a circunstância de alguém ser parte interessada, não pode, de per si, provocar o afastamento da sua credibilidade, acrescentando que não basta invocar nervosismo e profundo comprometimento para justificar a falta de credibilidade, devendo esta falta de credibilidade estar consubstanciada em factos que indiquem deficiências, incongruências, inverosimilhanças e divergências da realidade.
Alegou ainda que o documento de fls. 112 a 114 comprova a intenção da falecida (…) em doar o seu dinheiro à Apelante.
Cumpre apreciar.
Desde já, importa esclarecer que é incontestável que a testemunha (…), sub-gerente da agência do Banco (…), em Almeirim, não representa qualquer dos interesses em conflito, diferentemente da situação da Apelante, que é a A. nos autos, e da testemunha (…), que é marido da A..
Assim, o que a sentença recorrida analisou, e bem, foi a circunstância de, perante declarações divergentes, a quem deveria atribuir maior credibilidade, designadamente por não ter qualquer interesse no desfecho da causa.
Existindo, como é notório, total divergência entre as declarações da Apelante e do marido desta, por um lado (que afirmaram que a falecida … declarou perante o sub-gerente da agência do Banco que ia doar todo o seu dinheiro à Apelante, razão pela qual esta passou a ser co-titular das suas contas bancárias), e da testemunha (…), por outro (que afirmou não ter memória de ter sido mencionada qualquer doação, recordando-se sim que a falecida … tinha receio de ficar incapacitada para movimentar as suas contas, razão pela qual colocou a Apelante como co-titular nessas contas), e inexistindo por parte desta última qualquer interesse na causa, é compreensível que o tribunal a quo tenha atribuído maior relevância à versão desta última testemunha.
Acresce que esta testemunha mencionou os factos com total segurança e serenidade, como é audível nas gravações, diferentemente das declarações prestadas pela Apelante que hesita e se enerva várias vezes.
Importa ainda acentuar que existem relevantes contradições entre as próprias declarações da Apelante e as declarações do marido desta. Assim, segundo a Apelante, no dia em que esta passou a ser co-titular das contas da falecida (…), esta sugeriu que o dinheiro que estava nessas contas poderia ser, todo ele, transferido para uma conta da Apelante, tendo a própria Apelante e o sub-gerente do Banco desaconselhado a falecida (…) a fazê-lo. Já segundo as declarações da testemunha (…), a falecida (…) nunca falou em fazer qualquer transferência para uma conta da Apelante, o que, aliás, é totalmente corroborado pelo depoimento da testemunha (…). De acordo com a versão desta testemunha, a falecida (…), deslocou-se com a Apelante ao Banco, uma vez que tinha tido problemas de saúde e tinha receio de ficar acamada, pelo que pretendia colocar a Apelante também como titular da sua conta, de forma a que esta pudesse ser movimentada caso lhe acontecesse alguma coisa que a impedisse de a movimentar. Mais acrescentou esta testemunha não ter memória de ter sido verbalizada qualquer intenção de doar os montantes constantes na conta da falecida (…) à Apelante, tendo sido manifestada, sim, pela referida (…) apenas a intenção de colocar a Apelante como co-titular da sua conta para poder intervir nesta, caso houvesse necessidade.
Na realidade, atentas as regras da experiência comum e da normalidade da vida, é bastante credível esta versão, tanto mais que a circunstância de a Apelante ter passado a ser co-titular da conta de (…) ocorreu após esta ter ficado um mês internada e ter piorado bastante o seu estado de saúde, designadamente, ter diminuído as suas capacidades de locomoção, tendo sido necessário ir viver para um lar.
Por fim, relativamente ao documento de fls. 84, o qual foi elaborado em 02-01-2015, consta do mesmo que:
Atualmente, a cliente encontra-se desiludida com a sua vida – “agora já nem sou dona do meu dinheiro” (sic) – e demonstra vontade em regressar para o seu domicílio.

Entende a Apelante que a expressão “agora já nem sou dona do meu dinheiro” comprova, por parte de (…), a intenção de doar o seu dinheiro à Apelante.
Na realidade, tal expressão sempre teria de representar uma doação já efectuada e não a ocorrer (atente-se que a alegada doação apenas ocorre em 06-01-2015), sendo que, conforme decorre do contexto onde tal expressão se mostra inserida, se tratou de um desabafo desiludido, reportado às limitações físicas de que a referida (…) se encontrava a padecer.
Atente-se ainda, por ser profundamente revelador para a situação em apreço, que (…) manifestou a intenção de regressar ao seu domicílio, não demonstrando, por isso, qualquer intenção de se integrar no lar e nas suas actividades (conforme se menciona mais à frente nesse documento), o que torna ainda menos credível a versão da doação de todo o seu dinheiro, pois diferentemente da sua vivência num lar, a vivência no seu domicílio sempre implicaria despesas imediatas que necessariamente a obrigariam a ter dinheiro seu.
Nesta conformidade, apenas nos resta concluir que andou bem o tribunal a quo ao considerar tais factos como não provados, improcedendo, nesta parte, a pretensão da Apelante.
3) Existência de uma doação manual com tradição simbólica
No entender da Apelante, ao ser colocada como co-titular das contas de (…), tal circunstância revelou o espírito de liberalidade, o animus donandi, desta em lhe doar aquele dinheiro.
Mais referiu que a co-titularidade de uma conta bancária, coletiva e solidária, consubstancia uma doação manual com tradição simbólica, nos termos dos arts. 945.º, n.º 2, 947.º, n.º 2, 1.ª parte, e 1263.º, al. b), do Código Civil.
Concluiu, por fim, que se deve, não só considerar que a falecida (…) doou o dinheiro das suas contas bancárias à Apelante, como também que se verificou a tradição dos valores doados, da doadora para a donatária, quando a Apelante passou a ser co-titular das contas daquela, razão pela qual, aquando do falecimento de (…), o saldo dessas contas já não pertencia à falecida, mas sim à Apelante.
Cumpre decidir.
O contrato de doação é aquele pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente (art. 940.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que a doação apenas se verifica com a aceitação do donatário, considerando-se aceitação a tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo (art. 945.º, nºs. 1 e 2, do Código Civil).
Acresce que a doação de coisas móveis não depende de formalidade externa desde que seja acompanhada de tradição da coisa móvel, caso contrário só pode ser feita por escrito (art. 947.º, n.º 2, do Código Civil).
Veja-se sobre este assunto, o acórdão do TRL, proferido em 17-12-2015, no âmbito do processo n.º 865/13.6TBPDL.L1-8, consultável em www.dgsi.pt[5]:
- Se a doação tem por objecto bens móveis, a lei exige a forma escrita, a menos que ocorra a tradição da coisa concomitantemente ao acto. A dispensa da forma escrita apenas ocorre na doação de coisas móveis acompanhada da tradição da coisa, constituindo porém, nesse caso a tradição uma formalidade essencial ao contrato, não se podendo considerar válida a doação se esta não se verificar – cfr. artigo 497º, 2 do C.Civil.

Resulta, assim, dos artigos citados que, para além da intenção de doar coisas móveis, o doador, caso não utilize a forma escrita, apenas concretiza tal doação se a acompanhar da tradição da coisa móvel ou do seu título representativo.
No caso em apreço, em face da matéria dada definitivamente por assente, não resultou provada a intenção de (…) em doar o dinheiro constante das suas contas bancárias à Apelante quando constituiu esta como co-titular dessas contas, ou seja, não resultou expressamente provada a intenção de liberalidade.
Porém, será que a simples co-titularidade em contas colectivas e solidárias poderá consubstanciar, por si só, a intenção de doar o saldo dessas contas no exacto momento da atribuição dessa co-titularidade?
Afigura-se-nos que não.
Desde logo, porque estamos perante uma conta solidária, existindo regras próprias supletivas de atribuição de titularidade em situações de credores solidários (art. 516.º do Código Civil), pelo que, não sendo efectuada qualquer prova que contrarie tais regras de supletividade, terão de ser estas a vigorar.
A nossa jurisprudência tem, aliás, sido bastante prolixa sobre esta matéria.
Cita-se, a propósito, o acórdão do TRL, proferido em 15-10-2013, no âmbito do processo n.º 15238/10.4T2SNT.L1-7, consultável em www.dgsi.pt:
O simples facto de se constituir um depósito bancário, solidário, em nome da dona do dinheiro e de uma outra pessoa não permite, por si só, a conclusão de que houve uma doação por parte da primeira à segunda, devendo ainda demonstrar-se a efectiva existência da intenção de doar.

Ora, como já se mencionou supra, no caso dos autos não se demonstrou a efectiva existência da intenção de doar, pelo que, inexistindo tal intenção, a simples entrada como co-titular da Apelante nas contas da falecida (…) não se traduziu numa doação manual com tradição simbólica.
Cita-se ainda, por relevante, o acórdão do STJ, proferido em 25-06-2015, no âmbito do processo n.º 26118/10.3T2SNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt[6]:
V - O simples facto de existirem contas bancárias conjuntas, na modalidade de solidárias, que se caracterizam por poder ser livremente movimentadas por qualquer dos seus titulares, não significa, só por si, que tenha havido “tradição” das respectivas quantias entre os seus contitulares. Importa apurar se foi intenção do titular que depositou o dinheiro que este passasse a ser propriedade do contitular, podendo dele dispor como entendesse.

Assim, competindo à Apelante o ónus da prova da intenção de lhe doar, por parte de (…), o saldo das suas contas bancárias, e não tendo conseguido efectuar tal prova, por tal intenção não se revelar, por si só, na simples constituição da Apelante como co-titular solidária dessas contas, improcede totalmente a pretensão da Apelante.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Notifique.
Évora, 30 de Janeiro de 2020
Emília Ramos Costa (relatora)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura

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[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Conceição Ferreira; 2.º Adjunto: Rui Machado e Moura.
[2] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 143.
[3] Almedina, 2018, p.737.
[4] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 144.
[5] Veja-se igualmente o acórdão do STJ, proferido em 16-06-2016, no âmbito do processo n.º 865/13.6TBDL.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Veja-se, igualmente, o acórdão do STJ, proferido em 16-06-2016, no âmbito do processo n.º 865/13.6TBDL.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.