Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5/22.0GAPTM-A.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
REGISTO DA PROVA
REGISTO DE VOZ E IMAGEM
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A avaliação global e interligada das circunstâncias do caso em análise – mormente as relativas à variedade de produtos estupefacientes, que inclui drogas duras, associada à organização de meios, revelada pela existência de intermediários distribuidores, com vista à difusão dos produtos estupefacientes em meio escolar, com venda direta a adolescentes – conduz-nos a um quadro de ilicitude que, a nosso ver, não se enquadra na razão de ser do tipo privilegiado constante do artigo 25º do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, encontrando-se, de outra sorte, indiciada a prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p no artigo 21º do mesmo diploma legal e incluído no catálogo constante do artigo 1º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.
II - Nos termos do artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, só será tolerável a compressão dos direitos à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, tutelados pelo artigo 26, n.º 1 da Constituição, se os registos de voz e imagem forem o meio adequado a produzir prova relevante e se, perante a factualidade indiciada na investigação, se revelarem necessários para prosseguir os respetivos fins, o que sucede na investigação do crime de tráfico de estupefacientes, atendendo às dificuldades de recolha de prova associadas às estratégias dissimuladoras utilizadas pelos traficantes e à dificuldade de obtenção de prova testemunhal.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos autos de inquérito que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de Portimão -J1 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, com o n.º 5/22.0GAPTM-A, no qual se investiga a pática do crime de tráfico de estupefacientes, por despacho do JIC, datado de 27.04.2022, foi indeferido o requerimento apresentado pelo Ministério Público de autorização para registo de voz e imagem, com recolha de imagens dos suspeitos e dos consumidores de forma a confirmar as transações e ainda com vista a apurar a identidade do fornecedor, ao abrigo do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.
Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“i. O presente recurso vem interposto no seguimento do despacho proferido pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal, no dia 27.04.2022, no Processo n.º 5/22.0GAPTM, em fase de inquérito, que indeferiu o pedido de autorização de registo de voz e imagem nos termos e com os fundamentos ali expostos.
ii. O presente inquérito teve origem no auto de notícia, através do qual se dá conta que, no dia 22.02.2022, na Escola Básica e Integrada ..., em ..., AA, aluna daquela escola, nascida em .../.../2008 (13 anos de idade), estava na posse de uma beata de cigarro composto por tabaco e cannabis (resina), vulgo “charro”, produto estupefaciente que adquirira no dia anterior a BB, nascido em .../.../1996, na residência deste, sita na Rua ..., ..., em ....
iii. Em acréscimo, no dia 24.02.2022, foi elaborado Relatório de Serviço, pela GNR ..., a relatar que, no âmbito do programa “Escola Segura”, foram recolhidas informações junto da comunidade escolar da sobredita Escola Básica, no sentido de que o mencionado suspeito, BB, fornece produtos estupefacientes, designadamente cannabis, cocaína e ácidos, a CC, nascido em .../.../2007 (15 anos de idade), o qual, por sua vez, abastece alguns alunos dos 7.º, 8.º e 9.º anos, que consumem, nas imediações do recinto escolar.
iv. Nessa sequência, foram iniciadas as diligências de investigação, sendo que das diligências externas efectuadas, durante o mês de Março de 2022, logrou observar-se uma grande afluência de indivíduos à residência do mencionado suspeito, BB, e do seu irmão, DD, existindo indícios de que os mesmos se dedicam à venda de produtos estupefacientes a vários indivíduos (aquele a indivíduos mais jovens, nomeadamente menores) que ali se dirigem, e permanecem por curtos espaços de tempo, nomeadamente após prévio contacto telefónico, a fim de se encontrarem com os mesmos para tal fim.
v. Acresce que é comum os suspeitos, antes da saída das pessoas que aí se deslocam, espreitarem para ambos os lados da rua, junto à porta da entrada da habitação, cujo acesso é exclusivamente pedonal e estreito, dificultando a vigilância e a identificação destas.
vi. Ademais, tudo indica que a companheira do suspeito DD, EE, tenha conhecimento, visto que, em algumas das ocasiões em que se dirigiram indivíduos à residência comum, a mesma estava em casa, com os 3 (três) filhos menores.
vii. Nessa sequência, por se entender que se encontra indiciado o crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, e face à necessidade da continuação da realização de diligências externas (vigilâncias) e operações de seguimento aos suspeitos por forma a apurar a identidade do fornecedor, além do registo das tansacções efectuadas com os vários indivíduos que ali se dirigem e que com eles contactam, foi requerida, ao abrigo do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 1101, a recolha de imagens e som, mediante o recurso aos meios técnicos necessários, nomeadamente filmagens de vídeo e fotografia na via pública.
viii. O crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art.º 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, tem lugar sempre que a ilicitude se mostrar consideravelmente diminuída, em função do desvalor da acção e do resultado, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a quantidade ou a qualidade das plantas ou substâncias estupefacientes, como factos-índice a atender numa valoração global, não isolada.
ix. Dos elementos probatórios carreados para os autos resultam já indícios, e não apenas suspeitas, de que os suspeitos vendem a um indeterminado número de indivíduos quantidades não apuradas de estupefaciente, ou seja, existem já indícios, e não somente suspeitas, de que não estamos perante uma considerável diminuição da ilicitude.
x. Com efeito, existem indícios seguros de que, pelo menos, o suspeito BB, fornece produto estupefaciente, onde se incluem drogas “pesadas”, a menores– sendo acentuada a sua (deles) tenra idade (13 – 15 anos) –, um dos quais inclusivamente já abastecerá outros menores de idade, pelo que tal suspeito não procederá tão-só à cedência directa de produto estupefaciente, mas com recurso a uma cadeia de distribuição, envolvendo no circuito crianças e jovens menores de idade.
xi. Nesta senda, não se afigura razoável o enquadramento dos factos investigados num contexto de ilicitude diminuída, menos ainda de ilicitude consideravelmente diminuída, o mesmo é dizer no domínio da desqualificação do ilícito típico ínsito no artigo 25.º do D.L. n.º 15/93, de 22.01.
xii. Contrariamente à situação de facto subjacente ao douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.04.2014, citado no despacho a quo, o registo de voz e imagem não só não constituiu o primeiro meio de obtenção de prova de que se lançou mão no inquérito, como inclusivamente resultam índicos suficientes (e não só suspeitas) de crime de catálogo.
xiii. S.m.e., encontram-se já verificados os pressupostos requeridos para a recolha de voz e imagem, pelo que a ter acolhimento a posição do despacho recorrido e a seguir-se a metodologia pelo mesmo preconizada, tal meio de obtenção de prova não seria necessário ou muito raramente seria utilizado pelos investigadores, porquanto demandaria que, no inquérito, existisse a prova necessária para imputar ao agente tal ilícito criminal.
xiv. Somente com o decurso da investigação se poderá apurar, em concreto, a dimensão da actividade investigada, nomeadamente o período temporal, o número de indivíduos a quem foi vendido produto estupefaciente, bem como que tipo(s) de produto(s) estupefaciente e as quantidades vendidas.
xv. O único critério para aferir da considerável diminuição da ilicitude não consiste no facto de a actividade ilícita constituir o modo de vida do agente do crime, como parece resultar do despacho recorrido.
xvi. Sem embargo, se assim fosse, e pese embora não constasse do requerimento apresentado pelo Ministério Público, constava dos autos que não era conhecida a um dos suspeitos qualquer actividade profissional lícita, ou seja, os elementos probatórios constantes dos autos indiciavam a conclusão contrária invocada no despacho recorrido para fundamentar a qualificação jurídica dos factos.
xvii. A apreciação da promoção do Ministério Público, pelo Juiz de Instrução Criminal, terá que incindir sobre todos os elementos probatórios constantes dos autos, sob pena de se esvaziar por completo a competência e funções atribuídas no ordenamento jurídico português a esta Autoridade Judiciária, na fase de inquérito.
xviii. Salvo o devido respeito, impõe-se ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal decidir sobre o promovido e não efectuar sugestões sobre as diligências que devem (ou devem continuar a) ser realizadas e relegar a decisão para momento posterior, como parece resultar do despacho recorrido, visto que o dominus do inquérito e da inerente investigação é o Ministério Público e não o Juiz de Instrução Criminal, cabendo a este decidir apenas sobre o que lhe é promovido/requerido, em tal momento, e, oficiosamente, sobre eventuais nulidades.
xix. Destarte, s.m.e., o despacho a quo deverá ser revogado, por ter violado o disposto nos artigos 21.º, n.º 1 do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01, 6.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2002, de 11.01 e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, e substituído por outro que, ao abrigo do disposto nos ora mencionados preceitos legais, autorize a captação de imagens e som, nos termos promovidos pelo Ministério Público..”
Termina pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que autorize o registo de voz e imagem dos suspeitos e dos consumidores nos termos solicitados.
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O recurso foi admitido.

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A Exm.ª Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso.
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Atendendo à inexistência de sujeitos processuais afetados pelo recurso – uma vez que os suspeitos não foram ainda constituídos arguidos – não foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:
- Determinar se o despacho recorrido, ao indeferir o requerimento de autorização para registo de voz e imagem, com recolha de imagens dos suspeitos e dos consumidores, violou o critério legal estabelecido pelo artigo 6.º, nº 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.
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II.II - O despacho recorrido.
Em resposta ao requerimento apresentado pelo Ministério Público em 26.04.2022, foi proferida a decisão recorrida com o conteúdo que passamos a transcrever, na sua parte B, da qual consta concretamente o segmento recorrido:
“(...)B. Do registo de imagem e voz
O Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11.01, requer o registo de voz e imagem, com recolha de imagens dos suspeitos e dos consumidores, de forma a confirmar as transacções e ainda a apurar a identidade do fornecedor.
Cumpre apreciar e decidir.
Na fase em que nos encontramos, a do inquérito, a aquisição da prova incumbe ao seu dominus, o Ministério Público, mas a realização de determinadas diligências probatórias, ou são realizadas pelo juiz de instrução, ou têm que ser, previamente, ordenadas ou autorizadas por este.
Assim acontece com o registo de voz e imagem sem consentimento do visado que, nos termos dos artigos 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2002, de 11.01, depende de autorização do juiz.
Está bom de ver que, com essa diligência, agride-se a esfera de realização da personalidade individual, pois implica uma intromissão na vida privada que pode contender com o direito à privacidade constitucionalmente garantido e protegido.
A captação de imagem às ocultas - que supera, por natureza, qualquer possibilidade de expressão da vontade do visado - como é a que resulta da utilização do meio de obtenção de prova requerido, acarreta, inexoravelmente e à margem de qualquer dúvida, um ataque ao direito fundamental previsto no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa.
Logo daqui brota um sinal de cuidado a fazer-se sentir no que concerne à utilização da imagem captada no âmbito de um processo penal em curso.
Não obstante, a luta contra a criminalidade organiza-se tipicamente através da limitação de direitos fundamentais.
Aliás, a protecção dos direitos e garantias só é pensável e exequível à custa da sua própria e inevitável limitação e restrição.
A busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico, mas o Estado, como titular que é do ius puniendi, também está interessado em que só os culpados de actos criminosos sejam punidos (satius esse nocetem absolvi innocentem damnari).
E é precisamente enquanto concretização infraconstitucional das restrições aos direitos fundamentais, maxime o direito à imagem, que surge a Lei n.º 5/2002, de 11.01.
Este diploma legal, sob a epígrafe “criminalidade organizada e económico-financeira”, dispõe, logo no seu artigo 1.º, n.º 1, alínea a), que “a presente lei estabelece um regime especial de recolha de prova (...) relativa aos crimes de:
a) Tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21º a 23º e 28º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro”.
Essa mesma Lei estabelece, no seu artigo 6.º: “é admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado” (nº 1); “a produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos” (nº 2); “são aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188º do Código de Processo Penal” (nº 3).
Como limpidamente salienta o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.04.2014, “o registo de voz e de imagem não deve ser determinado como primeiro meio de obtenção de prova, logo na abertura do inquérito, nem pode ser autorizado com base em meras denúncias anónimas ou a partir de fracos indícios da prática de um dos crimes do catálogo legal”, acrescentando de seguida que “no início do inquérito, a natureza precoce do processo deve aconselhar a máxima prudência, não se devendo, por princípio, optar pela utilização de um meio de prova como o agora em análise, o qual possui um grande impacto intrusivo, e o qual pode, posteriormente, revelar-se manifestamente desnecessário e/ou desproporcional ( Proc. n.º 695/13.5PALGS-A.E1, disponível em www.dgsi.pt.)
Neste conspecto, e pese embora a Lei, numa leitura singela, apenas convoque a necessidade deste meio de prova para a investigação, o juiz de instrução não pode eximir-se da verificação de indícios fundados da prática de um desses crimes do catálogo legal, sob pena de serem pretextados crimes do catálogo só para, por esse meio, poder investigar-se crimes para os quais não poderia recorrer-se ao registo de voz e imagem.
Ou seja: não são exigidos fortes indícios da prática de um crime do catálogo, mas é mister a observância de suspeitas fundadas (fundamentadas em dados objectivos e em elementos probatórios minimamente consistentes) da prática do crime de catálogo para poder ser autorizada a recolha de som e imagem.
Feitas estas considerações analisemos o caso decidendo.
Como refere o Ministério Público no requerimento que antecede, o presente inquérito teve origem no auto de notícia constante de 4-5, através do qual se dá conta que, no dia 22.02.2022, na Escola Básica e Integrada ..., em ..., AA, aluna daquela escola, nascida em .../.../2008 (13 anos de idade), estava na posse de uma beata de cigarro composto por tabaco e cannabis (resina), vulgo “charro”, produto estupefaciente que adquirira no dia anterior a BB, nascido em .../.../1996, na residência deste, sita na Rua ..., ..., em ....
De outra banda, foi elaborado Relatório de Serviço (fls. 22-23), pela GNR ..., a relatar que, no âmbito do programa “Escola Segura”, foram recolhidas informações junto da comunidade escolar da sobredita Escola Básica, que o mencionado suspeito, BB, fornece produtos estupefacientes, designadamente cannabis, cocaína e ácidos, a CC, nascido em .../.../2007 (15 anos de idade), o qual, por sua vez, abastece alguns alunos dos 7.º, 8.º e 9.º anos, que consumem, nas imediações do recinto escolar.
Posto isto, e em face das suspeitas da prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, foram iniciadas diligências de investigação, as quais assentam, essencialmente, nos relatórios de vigilância levadas a cabo pelo órgão de polícia criminal e vertidas a fls. 31-34, 40-41, 46-47, 55-56 e 58-65.
Do compulso dos respectivos autos podemos constatar, à semelhança do detentor da acção penal, que existe uma relativa afluência de vários indivíduos à residência do suspeito BB e do seu irmão, DD.
Também concordamos que, perante a inquirição de AA, o circunstancialismo inerente às movimentações dos indivíduos que se deslocam a casa dos suspeitos, o comportamento destes e o carácter frequente e fugaz dessas deslocações, existem indícios da prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes.
Todavia, e com o devido respeito pelo Ministério Público, nada mais se pode inferir daqueles relatórios de vigilância, mormente que estamos perante uma actividade de tráfico de produtos estupefacientes que cai no âmago do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, o tal crime de “catálogo”.
O comprometimento dos suspeitos com a actividade de tráfico de produtos estupefacientes, repita-se, é inferida mediante o cruzamento da prova até aqui recolhida.
A tónica coloca-se, todavia, na parca existência de indícios, por ora, que permitam visualizar um crime de tráfico de produtos estupefacientes do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01.
Repare-se que o próprio órgão de polícia criminal, no relatório elaborado a fls. 66-70, linha 171, menciona, acertadamente, que “a presente investigação ainda está no início”.
Precisamente por isso que convém relembrar o seguinte: no início do inquérito, a natureza precoce do processo deve aconselhar a máxima prudência, não se devendo, por princípio, optar pela utilização de um meio de prova como o agora em análise, o qual possui um grande impacto intrusivo, e o qual pode, posteriormente, revelar-se manifestamente desnecessário e/ou desproporcional.
Ora, a análise dos elementos acima referidos leva-nos a concluir que estamos, por ora, perante um tráfico simples, caracterizado pela venda directa de estupefacientes a várias pessoas, alegadamente precedidos de contactos telefónicos, situações que os Tribunais Superiores têm subsumido ao âmbito de aplicação do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, a não ser que se consiga estabelecer que tal tráfico constitui um modo de vida, com o que, acertadamente, se não vislumbraria qualquer considerável diminuição da ilicitude e cairíamos no âmbito de previsão do artigo 21.º, n.º 1, daquele diploma legal.
Da quantidade [desconhecida] e qualidade dos produtos estupefacientes traficados, do número de pessoas envolvidas [ainda indeterminado], das circunstâncias e da perdurabilidade dos actos indiciados - mercê do estado muito embrionário da investigação - não é possível concluir, com consistência mínima, pela actividade, pelos suspeitos, de venda de produtos estupefacientes numa modalidade que possa integrar a prática do crime previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01.
Assim, e a nosso ver, deve continuar-se, por mais algum tempo, e além do mais (que compete ao Ministério Público definir), com as vigilâncias policiais ao local dos factos e com a caracterização, sustentada e pormenorizada, do modo de actuação dos suspeitos.
Termos em que, e por ora, se indefere o requerido pelo Ministério Público.
Notifique.
Devolva os autos ao Ministério Público. (…)”
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II.III - Apreciação do mérito do recurso.
Retiramos da leitura global da motivação de recurso, com reflexo nas conclusões da mesma extraídas, que o recorrente questiona os fundamentos nos quais o JIC fez assentar a sua decisão de indeferimento do pedido de autorização para registo de voz e imagem, com recolha de imagens dos suspeitos e dos consumidores, de forma a confirmar as transações e ainda com vista a apurar a identidade do fornecedor, no âmbito da investigação relativa à atividade de tráfico de estupefacientes que se encontra a ser realizada no inquérito.
Analisemos então se lhe assiste razão.
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A Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, que veio estabelecer medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, consagra, entre o mais, um regime específico de recolha de prova em relação aos crimes enunciados no seu artigo 1.º, n.º 1.
Integrado no Capítulo III, intitulado de “Outros meios de produção de prova”, dispõe o artigo 6.º, n.º 1 de tal diploma legal:
“Artigo 6.º
Registo de voz e de imagem
1 - É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado.
2 - A produção destes registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os casos.
3 - São aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.”
Verificamos, assim, pela leitura de tal preceito que, quando se revele necessário para a investigação de crimes referidos no artigo 1.º, é admissível o registo de voz e de imagem, por qualquer meio e sem o consentimento do visado. Mais constatamos que a realização de tais registos, nos termos previstos no n.º 2 do artigo transcrito, depende de prévia autorização ou ordem do juiz, e que, em conformidade com o disposto no nº 3 do mesmo artigo, são aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.
Como bem se compreende, atendendo à limitação que tal regime de recolha de prova acarreta aos direitos, liberdades e garantias das pessoas constitucionalmente protegidos[1], a produção de registo de voz e de imagem no âmbito da investigação criminal está necessariamente sujeita a controlo jurisdicional. Tal controlo encontra regulamentação expressa nos nºs 1, 2 e 3 do citado artigo 6º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, tendo o legislador optado por estabelecer as formalidades aplicáveis a tal meio de produção de prova por remissão para o regime das formalidades das escutas telefónicas previsto no artigo 188º do CPP.
No que diz respeito aos pressupostos de autorização do registo de voz e imagem, a verificar pelo Juiz de Instrução Criminal, o legislador foi menos exigente do que relativamente aos requisitos de autorização de interceções telefónicas.
Assim, o artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, que acima transcrevemos, não exige, como requisito de admissibilidade do registo de voz e de imagem, a indispensabilidade[2] de tal meio de produção de prova, mas sim a sua necessidade para a investigação. A verificação de tal juízo de necessidade deverá ser feita atendendo às circunstâncias determinadas pelo estado do processo e condicionadas pelo evoluir da investigação, sempre com respeito pelos princípios constitucionais da adequação, da necessidade e da proibição de excesso, com respaldo no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição.[3] Só será tolerável a compressão dos direitos à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, se os registos de voz e imagem forem o meio adequado a produzir prova relevante e se, perante a factualidade indiciada na investigação, se revelarem necessários para prosseguir os respetivos fins.
Acresce que a autorização do registo de voz e de imagem só poderá ser concedida no âmbito da investigação do catálogo fechado de crimes previsto no artigo 1º da Lei nº 5/2002. É o que expressamente resulta da previsão do nº 1 do artigo 6º da mesma Lei, pelo que, quando lhe for solicitada autorização para realização do registo de voz e de imagem, o juiz terá que verificar se existem, em tal momento da investigação, indícios da prática de um desses crimes, ou seja, se os alvos do registo de voz e de imagem são suspeitos da prática de factos que integrem um crime do referido catálogo legal e se tal suspeição encontra sustentação na prova já recolhida no inquérito.[4]
Verifiquemos então o que se passou no caso concreto.
No despacho recorrido entendeu-se que a diligência requerida pelo Ministério Público carecia de fundamento legal uma vez que os elementos constantes do processo não permitiam, no momento da prolação do despacho, concluir pela existência de indícios da prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do D.L. nº 15/93, de 22/01.
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Compulsados os autos, constatamos que, para análise da questão que somos chamados a apreciar, releva a seguinte factualidade apurada no decurso da investigação e que é tida por indiciada no próprio despacho recorrido:
- O inquérito teve origem no auto de notícia constante de 4-5, através do qual se dá conta que, no dia 22.02.2022, na Escola Básica e Integrada ..., em ..., AA, aluna daquela escola, nascida em .../.../2008 (13 anos de idade), estava na posse de uma beata de cigarro composto por tabaco e cannabis (resina), vulgo “charro”, produto estupefaciente que adquirira no dia anterior a BB, nascido em .../.../1996, na residência deste, sita na Rua ..., ..., em ....
- Foi elaborado Relatório de Serviço (fls. 22-23), pela GNR ..., a relatar que, no âmbito do programa “Escola Segura”, foram recolhidas informações junto da comunidade escolar da sobredita Escola Básica, segundo as quais o mencionado suspeito, BB, fornece produtos estupefacientes, designadamente cannabis, cocaína e ácidos, a CC, nascido em .../.../2007 (15 anos de idade), o qual, por sua vez, abastece alguns alunos dos 7.º, 8.º e 9.º anos, que consumem, nas imediações do recinto escolar.
- Em face das suspeitas da prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, foram iniciadas diligências de investigação, as quais assentaram, essencialmente, nos relatórios de vigilância levadas a cabo pelo órgão de polícia criminal e constantes de fls. 31-34, 40-41, 46-47, 55-56 e 58-65.
- Dos mencionados relatórios de vigilância resulta que existe uma afluência de vários indivíduos à residência do suspeito BB e do seu irmão, DD.
- As deslocações de tais indivíduos a casa dos suspeitos têm carácter frequente e fugaz.
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A) Dos fundamentos do indeferimento constantes do despacho recorrido
No despacho recorrido consignou o tribunal “a quo” como fundamento do indeferimento do requerimento do Ministério Público, que:
“(…) concordamos que, perante a inquirição de AA, o circunstancialismo inerente às movimentações dos indivíduos que se deslocam a casa dos suspeitos, o comportamento destes e o carácter frequente e fugaz dessas deslocações, existem indícios da prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes.
Todavia, e com o devido respeito pelo Ministério Público, nada mais se pode inferir daqueles relatórios de vigilância, mormente que estamos perante uma actividade de tráfico de produtos estupefacientes que cai no âmago do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, o tal crime de “catálogo”.
O comprometimento dos suspeitos com a actividade de tráfico de produtos estupefacientes, repita-se, é inferida mediante o cruzamento da prova até aqui recolhida.
A tónica coloca-se, todavia, na parca existência de indícios, por ora, que permitam visualizar um crime de tráfico de produtos estupefacientes do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01.
Repare-se que o próprio órgão de polícia criminal, no relatório elaborado a fls. 66-70, linha 171, menciona, acertadamente, que “a presente investigação ainda está no início”.
Precisamente por isso que convém relembrar o seguinte: no início do inquérito, a natureza precoce do processo deve aconselhar a máxima prudência, não se devendo, por princípio, optar pela utilização de um meio de prova como o agora em análise, o qual possui um grande impacto intrusivo, e o qual pode, posteriormente, revelar-se manifestamente desnecessário e/ou desproporcional.
Ora, a análise dos elementos acima referidos leva-nos a concluir que estamos, por ora, perante um tráfico simples, caracterizado pela venda directa de estupefacientes a várias pessoas, alegadamente precedidos de contactos telefónicos, situações que os Tribunais Superiores têm subsumido ao âmbito de aplicação do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, a não ser que se consiga estabelecer que tal tráfico constitui um modo de vida, com o que, acertadamente, se não vislumbraria qualquer considerável diminuição da ilicitude e cairíamos no âmbito de previsão do artigo 21.º, n.º 1, daquele diploma legal.
Da quantidade [desconhecida] e qualidade dos produtos estupefacientes traficados, do número de pessoas envolvidas [ainda indeterminado], das circunstâncias e da perdurabilidade dos atos indiciados - mercê do estado muito embrionário da investigação - não é possível concluir, com consistência mínima, pela atividade, pelos suspeitos, de venda de produtos estupefacientes numa modalidade que possa integrar a prática do crime previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01.
Assim, e a nosso ver, deve continuar-se, por mais algum tempo, e além do mais (que compete ao Ministério Público definir), com as vigilâncias policiais ao local dos factos e com a caracterização, sustentada e pormenorizada, do modo de atuação dos suspeitos.
Termos em que, e por ora, se indefere o requerido pelo Ministério Público.(…)”
*
Resulta da análise do despacho transcrito que o fundamento apresentado para o indeferimento da pretensão do recorrente foi a falta de indícios de que as condutas dos suspeitos integram o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no artigo 21º da Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
Conforme já acima referimos, a autorização judicial do registo de voz e imagem no âmbito da investigação criminal, atendendo à limitação que acarreta aos direitos, liberdades e garantias das pessoas singulares ou coletivas constitucionalmente protegidos, dependerá da verificação no caso concreto dos seguintes requisitos:
- Indiciação nos autos da prática de um dos crimes catalogados no artigo 1º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro;
- Necessidade da realização de tal diligência de prova para prossecução dos fins visados na investigação, máxime, para descoberta da verdade material.
Ora, ressalvado o devido respeito por entendimento diverso, na decisão recorrida, o JIC, considerando a factualidade que considerou indiciada e que acima elencámos, não poderia ter concluído, como concluiu, não se encontrar minimamente sustentada a “(…) a atividade, pelos suspeitos, de venda de produtos estupefacientes numa modalidade que possa integrar a prática do crime previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01(..)”.
Com vista à adequada sindicância do decidido no despacho recorrido, é mandatório que nos detenhamos um pouco na apreciação dos crimes de tráfico previstos e punidos nos artigos 21.º e 25.º do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro.
A conduta típica do crime de tráfico de estupefacientes encontra-se prevista no artigo 21.º do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro, norma que constitui o que se pode designar de tipo legal de base. Estabelece tal preceito que comete o crime de tráfico, “1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.”
O artigo 25.º do citado diploma constitui um tipo legal privilegiado, aplicável em função da diminuição da intensidade da ilicitude, e dispõe da seguinte forma: Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”.
No artigo 25.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro encontram-se previstos os casos de tráfico de «menor gravidade», aqui se pretendendo incluir as situações em que o tráfico de substâncias estupefacientes se realiza em termos que tornam a ilicitude dos factos consideravelmente diminuída. O preceito em causa indica como critérios orientadores algumas circunstâncias suscetíveis de revelarem a diminuição acentuada da ilicitude prevista na norma. São elas: “os meios utilizados”, “a modalidade ou as circunstâncias da ação”, “a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações” objeto do tráfico.
Na hermenêutica do tipo legal tem a jurisprudência delineado, de forma praticamente unânime, um critério norteador da aferição do que deverá entender-se por ilicitude “consideravelmente diminuída”, nos termos do qual deverá ponderar-se globalmente o facto por forma a concluir-se se a ilicitude da conduta fica aquém da gravidade pressuposta na previsão legal do tipo base consagrado no artigo 21º do citado diploma legal, uma vez que no artigo 25.º se encerra um tipo legal privilegiado daquele.[5]
Na situação dos autos, o Tribunal recorrido entendeu que os factos objetivos até agora indiciados não integram o tipo base de tráfico de estupefacientes do artigo 21º, n.º 1.
Não subscrevemos tal entendimento. Não temos dúvida de que os autos contêm elementos de prova sustentadores de uma suspeita fundada da prática do crime de tráfico de estupefaciente e de quem são os seus agentes, sendo certo que as dúvidas – que no presente momento da investigação, compreensivelmente, ainda não foi possível sanar – relativamente à dimensão de tal tráfico, não legitimam, a nosso ver, a conclusão de que os indícios abrangem apenas o crime de tráfico de estupefacientes com ilicitude diminuída previsto no artigo 25º do D.L. nº 15/93, de 22/01, especialmente se levarmos em consideração os seguintes fatores:
- A indiciação da existência de uma estratégia de vendas reveladora de uma organização de meios, com o desvalor acrescido de na cadeia de distribuição dos produtos se encontrarem envolvidos menores com idades que rodam os 13 a 15 anos;
- A diversidade de drogas traficada, que inclui algumas das chamadas drogas duras, como a cocaína;
- A circunstância de os produtos estupefacientes serem difundidos em contexto escolar, tendo como destinatários adolescentes.
Efetivamente, do cotejo dos factos indiciados e que acima enumerámos consta que o suspeito, BB, fornece produtos estupefacientes, designadamente cannabis, cocaína e ácidos, a CC, de 15 anos de idade, o qual, por sua vez, abastece alguns alunos dos 7.º, 8.º e 9.º anos, que consumem, nas imediações do recinto escolar. Mais se indicia que existe uma afluência de vários indivíduos à residência do suspeito BB e do seu irmão, DD e que as deslocações de tais indivíduos a casa dos suspeitos têm carácter frequente e fugaz.
Resulta, assim, indubitavelmente, da factualidade indiciada que os suspeitos destinavam os produtos estupefacientes à comercialização, existindo suspeita que o faziam com uma organização de meios que permitia a difusão dos produtos numa escala considerável, sobretudo em contexto escolar, o que, a nosso ver, permite sustentar os indícios de que a atividade investigada se diferencia do pequeno tráfico de rua. É sobre este quadro global da atuação dos suspeitos que deverá fazer-se o juízo indiciário – o possível, no momento atual da investigação – sobre o grau de ilicitude da atividade ilícita desenvolvida, tendo por referência os critérios que vêm sendo definidos para aferir a diminuição considerável da ilicitude prevista no artigo 25º. Ora, reiteramos, os factos indiciados, embora parcos, permitem, em nosso entender, que se formule um juízo indiciário da existência de um esquema elaborado com alguma sofisticação – não se processando o tráfico apenas através da venda direta, mas principalmente através de uma cadeia de distribuição que envolve menores – na execução do crime, não viabilizando, ao invés, a conclusão de que a ilicitude do crime investigado se revela consideravelmente diminuída.
Efetivamente, a avaliação global e interligada das circunstâncias do caso em análise – mormente as relativas à variedade de produtos estupefacientes, que inclui drogas duras, associada à organização de meios, revelada pela existência de intermediários distribuidores, com vista à difusão dos produtos estupefacientes em meio escolar, com venda direta a adolescentes – conduz-nos a um quadro de ilicitude que, a nosso ver, não se enquadra na razão de ser do tipo privilegiado constante do artigo 25º, conquanto tal ilícito penal se destina a sancionar o tráfico de estupefacientes de pequena dimensão, entendido este como o que se verifica em escala reduzida, relativo a quantidades não significativas de estupefacientes, operando sem recurso a métodos organizados e sem qualquer tipo de sofisticação, praticado pelos chamados “dealers” de rua e que claramente se demarca do tráfico de grande ou de média dimensão previsto e punido pelo artigo 21º do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Nesta conformidade, somos a concluir pela improcedência do fundamento do indeferimento da solicitação do Ministério Público constante do despacho recorrido.
Acresce que, não se descortinando na decisão recorrida qualquer outro fundamento para o não deferimento da referida pretensão, que não seja o da não indiciação da prática de um ilícito penal que legitimaria a autorização do registo de voz e imagem, assiste a nosso ver razão ao recorrente na sua alegação de que não foi realizada adequadamente a ponderação da necessidade de realização de tal diligência probatória.
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B) Da necessidade para a investigação da produção de registo de voz e de imagem sem consentimento dos visados, imposta pelo artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro
Concluindo-se como se concluiu no item precedente que a investigação contém já indícios da prática do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, importa realizar o juízo de necessidade que o artigo 6º, nº 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro estabelece como critério de decisão, com respeito pelos princípios da adequação e da proporcionalidade que devem assegurados, o que deverá ser feito ponderados os interesses em causa e atendendo à necessidade de restrição mínima dos direitos fundamentais à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, protegidos pelas disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2 e 26.º, n.º 1 da CRP.
Impunha-se, assim, ao tribunal recorrido que, analisado todos os elementos factuais e todas as informações já obtidos nos autos, tivesse procedido à avaliação concreta da necessidade, da adequação e da proporcionalidade da realização do registo de voz e imagem, em face do prejuízo que o indeferimento de tal solicitação pudesse causar aos interesses da investigação.
Ora, em nosso entender, as diligências realizadas até ao momento atual são já reveladoras das dificuldades da investigação, conforme resulta do requerimento de realização do registo de voz e imagem apresentado pelo Ministério Público e indeferido pelo despacho recorrido.
São conhecidas as estratégias utilizadas pelos traficantes de estupefacientes para obviarem ao controlo policial e para dificultarem a recolha de prova da sua atividade, beneficiando todos de grande mobilidade, utilizando meios de dissimulação das condutas e fazendo-as cessar sempre que se apercebem da presença dos agentes ou das suas viaturas. Acresce que na investigação do crime de tráfico de estupefacientes a obtenção de prova testemunhal revela-se extremamente difícil, para não dizer impossível, atendendo às fortes relações de dependência e/ou de cumplicidade que se estabelecem entre os vendedores e entre estes e os consumidores.
E não sucedeu de forma diferente na situação que nos ocupa, conforme se encontra explicitado no requerimento apresentado pelo Ministério Público, o que torna evidente que o registo voz e de imagem constitui um instrumento de recolha de prova particularmente adequado, eficaz e, sem dúvida, necessário, na investigação do crime de tráfico de estupefacientes que se encontra a ser realizada nos autos principais. E não olvidemos que o registo de voz e imagem consubstancia um meio de prova documental, no sentido de ser uma declaração corporizada num suporte técnico (artigos 164.º do Código de Processo Penal e 255.º, alínea a) do Código Penal), meio que está sujeito ao controlo judicial com o propósito de verificação da sua relevância para a prova.
Subscrevemos, por outro lado, o entendimento segundo o qual, atendendo à grande danosidade social de que se reveste o crime de tráfico de estupefacientes, a compressão dos direitos individuais resultante da utilização do meio de obtenção de prova em causa no presente recurso não pode considerar-se desproporcionada.[6] Ponto é que tal registo de voz e imagem se revele adequado para conseguir o objetivo pretendido, necessário, por não existir outro meio igualmente capaz de atingir esse objetivo, e não excessivo relativamente à restrição do direito fundamental, ponderando às finalidades para que é produzido.
Não podemos ainda deixar de assinalar que, como bem fez notar o Ministério Público, na sua resposta ao recurso, “(…) a ter acolhimento a posição do despacho recorrido e a seguir-se a metodologia pelo mesmo preconizada, tal meio de obtenção de prova não seria necessário ou muito raramente seria utilizado pelos investigadores, porquanto demandaria que, no inquérito, existisse a prova necessária para imputar ao agente tal ilícito criminal.
Ora, só com o decurso da investigação se poderá apurar, em concreto, a dimensão da atividade investigada, nomeadamente o período temporal, o número de indivíduos a quem foi vendido produto estupefaciente, bem como que tipo(s) de produto(s) estupefaciente e as quantidades vendidas, sendo certo, porém, salvo o devido respeito por opinião diversa, que o único critério para aferir da considerável diminuição da ilicitude não consiste no facto de a atividade ilícita constituir o modo de vida do agente do crime, como parece resultar do despacho recorrido.(…)”
Deste modo, havendo razões para crer não só que o recurso ao registo de voz e imagem se mostra necessário para a descoberta da verdade material, como ainda que a recolha de prova do crime investigado seria de outra forma impossível, ou muito difícil de obter, e bem assim que a compressão do os direitos à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar protegidos pelo artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, não se revela desproporcional, justifica-se a autorização da referida diligência probatória.
Afigura-se-nos, pois, sensato e sustentado o juízo de adequação, de necessidade e de proporcionalidade que, sopesando os interesses da investigação e a necessidade de restrição mínima dos identificados direitos dos suspeitos, permitirá autorizar o registo de voz e imagem, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, nº 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, solicitado pelo titular da ação penal, o que se decidirá.
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III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em alterar a decisão recorrida, autorizando o registo de voz e imagem dos suspeitos e dos consumidores de forma a confirmar as transações e ainda com vista a apurar a identidade do fornecedor, ao abrigo do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, nos termos requeridos pelo Ministério Público.
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Sem custas.
(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)
Évora, 13 de julho de 2022
Maria Clara Figueiredo
Maria Margarida Bacelar
Fernanda Palma


[1] A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 26.º, n.º 1, tutela os direitos à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, impondo à lei ordinária, no n.º 2 de tal preceito, a obrigação de estabelecer as efetivas garantias de respeito por tais direitos.
[2] Para a autorização das escutas telefónicas a lei exige que tal meio de produção de prova seja “indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova [seja] de outra forma impossível ou muito difícil de obter” (artigo 187.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
[3] A respeito da comparação entre os regimes de autorização das escutas telefónicas, previsto no artigo 187º, nº 1 do CPP e da autorização de recolha de voz e imagem, previsto n artigo 6º, nº 1 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, refere Paulo Pinto de Albuquerque, na anotação 12 ao artigo 187º do CPP, no Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição atualizada, página 528, “o catálogo legal do artigo 6.º da Lei n.º 5/2002 é mais apertado do que o do artigo 187.º, n.º 1 do CPP, mas o crivo “da necessidade para a investigação” é mais lasso que o crivo da “indispensabilidade para a descoberta da verdade” do CPP”.
[4] Neste sentido cfr. Acórdão da Relação de Évora de 08.04.2014, relatado pelo Desembargador João Amaro; Acórdão da Relação de Coimbra de 11.05.2016, relatado pelo Desembargador Fernando Chaves; Acórdãos da Relação de Lisboa de 11.05.2016, relatado pelo Desembargador Cid Geraldo e de 11.09.2018, relatado pelo Desembargador José Adriano e Acórdão da Relação do Porto de 16.12.2020, relatado pelo Desembargador Francisco Mota Ribeiro, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] A este propósito cfr., entre outros, os seguintes acórdãos dos tribunais superiores: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.03.2019, relatado pelo Conselheiro Maia Costa; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.2022, relatado pelo Conselheiro Lopes da Mota; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2022, relatado pelo Conselheiro Cid Geraldo; acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22.05.2019, relatado pelo Desembargador Belmiro Andrade; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13.01.2020, relatado pela Desembargadora Ausenda Gonçalves; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.10.2020, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 09.06.2020, relatado pela Desembargador Maria Isabel Duarte; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22.09.2020, relatado pelo Desembargador Moreira das Neves; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22.06.2021, relatado pelo Desembargador Edgar Valente; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14.07.2021, relatado pelo Desembargador Martinho Cardoso; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21.09.2021, relatado pelo Desembargador Martinho Cardoso; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16.12.2021, relatado pelo Desembargador José Simão e acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25.01.2022, relatado pela Desembargadora Fátima Bernardes, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 11.05.2016, relatado pelo Desembargador Fernando Chaves; Acórdãos da Relação de Lisboa de 11.05.2016, relatado pelo Desembargador Cid Geraldo e de 11.09.2018, relatado pelo Desembargador José Adriano todos disponíveis em www.dgsi.pt.