Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
717/20.3T8BJA.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- A alínea c) do nº1 do art.º 27º do D.L. nº 291/2007, de 21.8. estabelece uma presunção legal, assente nas regras da experiência comum e da normalidade social, segundo a qual a infracção estradal cometida pelo condutor alcoolizado se deveu causalmente à taxa de alcoolemia devidamente comprovada;
II- Por consequência, a seguradora deixa de estar onerada com a prova efectiva do facto a que conduz a presunção ( cfr. art.º 350º, nº 1, do Cód.Civil) mas o próprio condutor que, se quiser afastar a sua responsabilidade em via de regresso, terá de ilidir tal presunção legal.( cfr. nº2 do mesmo normativo).
III- Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou o que estando em regime probatório apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,2 g/l.
IV- Pressuposto do direito de regresso é que a seguradora haja satisfeito a indemnização ao lesado ( cfr. artº 27º do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto).
V- De facto, o direito de regresso é um direito “ex novo”, que se constitui em virtude do pagamento de um crédito pelo que enquanto tal não suceder não pode ser exercido.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
I.RELATÓRIO
1 Generali Seguros, S.A. intentou acção declarativa comum contra AA pedindo a condenação deste no pagamento de € 48 000,00€ (quarenta e oito mil euros) acrescidos de juros de mora vencidos, desde a citação e vincendos até integral pagamento , assim como de todas as quantias que a Autora venha despender em virtude do acidente dos autos, mormente, as decorrentes do também acidente de trabalho do ocupante do veículo seguro BB que, nesta data, ainda não foram devidamente liquidadas e apuradas.
Para tanto, alegou ter direito de regresso sobre o Réu pelos montantes pagos a coberto de um contrato de seguro por responsabilidade civil automóvel, ante a circunstância de ter sido o sinistro em causa causado por condução com excesso de álcool no sangue e consumo de estupefacientes.
O Réu contestou negando a respetiva culpa na produção do acidente e referindo que fumou canábis cerca de 48h antes do acidente e que a TAS que apresentava não determina a existência de presunção para efeitos de direito de regresso.
Realizou-se audiência final vindo, subsequentemente, a ser proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
“Assim e pelo exposto, julgo a ação totalmente procedente e, em consequência:
a) Condeno o Réu a pagar à Autora a quantia de € 48.000,00 [quarenta e oito mil euros], acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal civil desde a citação até integral pagamento.
b) Condeno o Réu a pagar à Autora a quantia, que se vier a liquidar em execução de sentença, emergente do dano por perdas salariais e do dano patrimonial futuro devidos às lesões decorrentes do acidente.
c) Condeno o Réu no pagamento das custas da ação.”.

2. É desta sentença que recorre o Réu, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
(i) Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. .... dos autos, nos termos da qual foi a acção julgada procedente por provada, tendo, em consequência sido o Réu condenado a pagar à Autora a quantia de 48.000,00€ (quarenta e oito mil euros), acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal civil desde a citação até integral pagamento e ainda condenado pagar à Autora a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, emergente do dano por perdas salariais e do dano patrimonial futuro devidos às lesões decorrentes do acidente. (sublinhado nosso).
(ii) Não se conforma o Apelante com os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, com enquadramento jurídico adoptado na sentença recorrida, nem com a própria decisão recorrida.
(iii) Entende o Apelante que de acordo com a prova produzida, não poderia o tribunal a quo ter dado provado que o acidente adveio da sua condução em excesso de velocidade, desatenta e alheada à configuração da via.
(iv) Porquanto, para além do ocupante - o qual não se poderá dizer que não tenha interesse na causa – mais ninguém assistiu ao acidente.
(v) As suas declarações de parte prestadas pelo Apelante foram-no de forma sincera e verdadeira e pese embora admitisse que conduzia a uma velocidade superior a legalmente admitida, disse que o fazia de forma consciente e atenta, tendo ainda oferecido uma versão “alternativa” do acidente, afirmando que tal poderia ter ocorrido por haver brita na estrada devido ao elevado número de camiões a circular naquela estrada na sequência das obras existentes na região, o que fez com que na curva a viatura lhe fugisse.
(vi) Entende deste modo o Apelante que não ficou provado que o acidente tenha ocorrido por sua culpa exclusiva e consequentemente que tenha sido ele a dar causa ao acidente, assim como entende que não foi provado que conduzia sob o efeito do álcool e de estupefacientes, motivo pelo qual não se poderia dar como não provado que os valores de alcoolemia e canabinoides de que o Apelante era portador, não influenciaram a sua condução.
(vii) A prova documental produzida a este respeito impunha decisão diversa uma vez que os níveis apresentados pelo Apelante, permitiram que o MP de Moura arquivasse o processo crime, porquanto considerou que este não se encontrava sob a influência de quaisquer substâncias psicotrópicas na altura em que conduzia o veículo, conforme Documento oportunamente junto com a contestação.
(viii) Também nenhuma prova foi feita que demonstrasse que o Apelante tivesse sofrido alguma contraordenação estradal por conduzir sob o efeito do álcool.
(ix) Exigir-se do Apelante que provasse que os valores que apresentava no sangue de álcool e canabinoides, não influenciaram a sua condução, era exigir do mesmo a chamada prova diabólica.
(x) Baseia a Apelada o direito de regresso, que pretende lhe seja reconhecido, no estatuído na al. c), do nº1, do art.º 27.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08 por ter dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e nessa circunstancia o direito de regresso da seguradora emerge do cumprimento da obrigação por aquela para com o lesado, ficando a mesma na posição de credora relativamente ao segurado ou a terceiro, a quem incumbirá satisfazer as quantias que tenha liquidado, uma vez verificado o fundamento de tal direito de regresso.
(xi) “O direito de regresso consiste no direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta”. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, Almedina, 2014, p. 346, pelo que vigoram as regras normais de direito probatório material, incumbindo à Seguradora o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que invoca, em conformidade com o art.º 342º nº 1 do Código Civil, o que claramente não aconteceu. Neste mesmo sentido veja-se o Ac TRP de 19/05/2022, 2791/20.3T8PNF.P1.
(xii) Não desconhece o Apelante que existe jurisprudência que dispensa a seguradora de provar o nexo de causalidade entre a ocorrência do acidente e a condução sob o efeito do álcool, mas tal não significa necessariamente que o preceito em análise apenas consinta uma interpretação mecanicista que leve a desconsiderar quaisquer outras circunstâncias que tenham rodeado o acidente. Ao invés, em determinado contexto, pode justificar-se um esforço suplementar que conduza a um resultado diverso do anteriormente referido, crendo o Apelante que tal deverá suceder no caso concreto porquanto o acidente ocorreu no dia 22/06/2016 e o Apelante tinha carta desde 17/09/2014, sendo à data o regime probatório de 2 anos, pelo que se o acidente tivesse ocorrido apenas 3 meses depois da data em que ocorreu, deixariam de estar preenchidos os requisitos formais do supra referido preceito legal.
(xiii) Acresce que no caso concreto o valor apresentado pelo Apelante foi de 0,47g/l sem aplicação da margem de erro admitida inferior aos 0,5g/l previstos na lei e ainda que, em termos de direito estradal, o facto de este se encontrar em regime probatório e se presumir que ao apresentar uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 0,2g/l se encontra sob a influência do álcool, cientificamente não significa que o mesmo efectivamente se encontrasse sob o efeito do álcool no momento do acidente. Tal presunção apenas releva em termos de contravenção estradal, o que não é de todo o caso.
(xiv) Condenar o Apelante no direito de regresso seria impor-lhe um ónus excessivamente gravoso, implicando uma responsabilidade patrimonial pessoal particularmente onerosa, sendo indispensável que esta imposição de uma responsabilização definitiva pelas quantias satisfeitas pela seguradora aos lesados se possa conformar com os princípios fundamentais da proporcionalidade e da culpa.
(xv) Entende a apelante que a sentença ora recorrida é nula nos termos da alínea c) do Art.º 615.º do Código de Processo Civil, porquanto a decisão proferida é ambígua e obscura, ao condenar o Apelante a “pagar à Autora a quantia, que se vier a liquidar em execução de sentença, emergente do dano por perdas salariais e do dano patrimonial futuro devidos às lesões decorrentes do acidente.”
(xvi) Não alcança o apelante, em concreto a que foi condenado para além dos 48.000,00€ que a Autora havia inicialmente peticionado, devendo ser nesta parte a sentença considerada nula nos termos e para os efeitos da alínea c) do Art.º 615.º do CPC
Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com douto suprimento de V/ Exas, deverá ser julgado procedente o presente Recurso e, em consequência, ser revogada a decisão proferida pelo tribunal a quo e, em consequência, absolver o Apelante do pedido em que foi condenado, assim se fazendo a costumada. JUSTIÇA,

3. Não houve contra-alegações.

4. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), constata-se que nas mesmas o apelante circunscreveu a impugnação da matéria de facto aos factos vertidos nos pontos (que, aliás, nem sequer explicita) 15 e ii) dos factos “Não Provados”.
No que se refere ao facto vertido no ponto 15 entende que não deveria ter ficado provado porque os depoimentos do militar da GNR e da perita averiguadora se basearam apenas em suposições, sendo que as declarações do Réu, ao invés, permitem infirmar tal factualidade.
Porém, nem sequer no corpo das alegações dá cumprimento integral cumprimento ao disposto no art.º 640º do CPC.
Na verdade, quando pretender impugnar a matéria de facto, o recorrente terá de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC.
De tal preceito decorre que a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos:
ii) A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
ii) A indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados;
iii) A indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto;
iv) A indicação, com exactidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Deste modo, considerando que o recorrente não cumpre ( nem sequer no corpo das alegações, como se disse) a exigência transcrita supra em iv) , i.e. não faz qualquer alusão às passagens das gravações em que se funda o seu recurso, nada mais resta do que rejeitar o respectivo recurso na parte relativa à impugnação do facto vertido no ponto 15., o que se decide.
Assim, o objecto do recurso versará sobre:
4.1. Nulidade da sentença;
4.2. Impugnação da matéria de facto: O facto inserto na alínea b) dos factos “ Não provados”.
4.3. Reapreciação jurídica da causa: Da (in) existência do direito de regresso da seguradora à luz do disposto na alínea c) do nº1 do art.º 27º do D.L. nº 291/2007, de 21.8..

III. FUNDAMENTAÇÃO
5. É a seguinte a decisão de facto inserta na sentença recorrida:
1. Em 30/12/2016, a Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A. adquiriu por fusão – transferência global do património – os direitos e obrigações das extintas Açoreana Seguros, S.A., Seguros Logo, S.A. e T-Vida – Companhia de Seguros, S.A.
2. Na mesma data, a Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A. alterou a sua firma/designação social para Seguradoras Unidas S.A.
3. Em 01/10/2020, a Seguradoras Unidas, S.A. adquiriu por fusão – transferência global do património – os direitos e obrigações das extintas Generali Vida – Companhia de Seguros S.A. e Generali – Companhia de Seguros, S.A.
4. Em 02/10/2020, a Seguradoras Unidas, S.A. alterou a sua firma/designação social para Generali Seguros S.A.
5. Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, celebrado entre a Autora e a STEP-Sociedade Técnica de Estruturas Pultrudidas, Lda., transferiu esta para a Autora a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação inerentes à circulação do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca Mitsubishi, modelo Canter, com matrícula …-II-….
6. Em 22/06/2016, aproximadamente pelas 19h45m, na EN 255, ao KM 100.400 desta via, na localidade de Moura, circulava o veículo de matrícula …-II-…, tripulado pelo Réu, no sentido Pias-Moura.
7. Nestas circunstâncias, o Réu, ao descrever uma curva à esquerda, perdeu o controle do veículo, despistou-se, indo embater numas arvores que existiam na berma da estrada.
8. Quando o sinistro ocorreu o tempo apresentava-se bom e havia boa visibilidade.
9. O local do sinistro não tem iluminação pública.
10. No local do sinistro, no sentido de marcha do veículo, existe sinalização vertical sinal C13-Proibição de exceder a velocidade máxima de 50km/h e o sinal C14a-Proibição de ultrapassagem.
11. No momento do sinistro, o veículo circulava entre os 70 e os 75 km/h.
12. O Réu conduzia sendo portador de canabinóides no sangue, metabolitos THC-COOH 9,3 ng/ml e THC 2,9 ng/ml.
13. O Réu conduzia sendo portador de uma taxa de alcoolemia de 0,47 g/l, com variação de 0,06 g/l.
14. O Réu tem carta de condução desde …/…/2014.
15. O despiste supra aludido adveio da condução em excesso de velocidade, desatenta e alheada à configuração da via.
16. No veículo seguia como ocupante BB, nascido em …/…/1991.
17. Quer o condutor quer o ocupante encontravam-se destacados no Alentejo no cumprimento de funções profissionais e, no momento do acidente, iam a caminho do hotel, no fim do dia de trabalho.
18. BB sofreu danos corporais, designadamente, fratura exposta do tornozelo e pé esquerdo, fratura do côndilo femoral externo, perdeu parte do calcanhar, tendo sido sujeito a várias cirurgias, que culminaram com a amputação de 1/3 superior da perna esquerda.
19. Correu termos um processo comum sob o n.º 917/19.9T8BJA, do Juiz 1 do Juízo Central Cível e Criminal de Beja do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, intentado por BB contra a aqui Autora, nos termos da petição inicial junta aos autos em 15/12/2022 [ref.ª 33166259], aqui dada por reproduzida, tendo as partes transacionado nos seguintes termos: «1.º O autor reduz o pedido para a quantia de 48.000€ (quarenta e oito mil euros). 2.º A ré aceita e compromete-se a pagar tal montante no prazo de 30 dias, enviando o respectivo recibo e cheque para o escritório da Ilustre mandatária do autor. 3.º Com o presente acordo, o autor declara-se totalmente ressarcido por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, passados, presentes e futuros, decorrentes do acidente dos autos, com exceção dos peticionados no Processo n.º 1007/17.4T8BJA que se encontra a correr termos no Juiz 1 do Juízo de Trabalho de Sintra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.».
20. A Autora pagou a BB o valor acordado de indemnização supra aludido.
21. Correu termos um processo especial emergente de acidente de trabalho sob o n.º 1007/17.4T8BJA, do Juiz 1 do Juízo do Trabalho de Sintra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, intentado por BB contra a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., que assumiu a responsabilidade emergente de acidente de trabalho, e a STEP-Sociedade Técnica de Estruturas Pultrudidas, Lda., entidade patronal, nos termos da petição inicial junta aos autos sob o requerimento datado de 02/01/2023 [ref.ª 44274924], aqui dada por reproduzida, tendo as partes transacionado nos termos constantes desta mesma certidão.
22.a)- Aditado por nós ao abrigo do disposto no art.º 607º, nº 4 ex vi art.º 663º, nº2, ambos do CPC - É o seguinte o teor de tal transacção alcançada e homologada por sentença de 1.7.2020:
“(…)
a) As Rés pagarão ao Autor /sinistrado uma pensão anual e vitalícia, a partir de 23.11.2018 de € 5.146,90 , sendo 4.851,55 a cargo da Ré seguradora e €295,35 a cargo da Ré Empregadora, acrescida de juros de mora desde a data de vencimento de cada prestação até efectivo e integral pagamento;

b) A Ré empregadora pagará ao Autor/sinistrado a quantia de € 1240,74 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária absoluta por referência à remuneração não transferida para a Ré Seguradora, acrescida de juros de mora calculados à taxa supletiva legal actualmente de 4% desde a data de vencimento de cada prestação até efectivo pagamento.

c) A Ré seguradora pagará ainda ao Autor/sinistrado a quantia de € 15,00 a título de despesas de transporte;

d) A Ré empregadora pagará ainda ao Autor sinistrado a quantia de €5,00 a título de despesas de transporte.”.

22. A Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. já interpelou a Autora para pagamento das quantias por aquela liquidadas a BB no âmbito do processo laboral supra aludido, estando as partes, Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. e Autora, a discutir os valores em causa.
23. Correu termos um inquérito sob o n.º 59/16.9GBMRA da Procuradoria da República da Comarca de Beja para investigação do crime de condução de veículo sob influência de estupefacientes por referência à condução do Réu supra descrita, tendo sido proferido despacho de arquivamento, junto à contestação dos presentes autos e aqui dado por reproduzido.
2.2 Factos não provados
Com interesse para a causa, não se provou:
a) Que o Réu haja consumido canabinóides horas antes de iniciar a condução.
b) Que os valores de alcoolemia e de canabinóides de que o Réu era portador não influenciaram a sua condução.”.

6. Do mérito do recurso
6.1. Nulidade da sentença
Considera o apelante que a sentença recorrida enferma de nulidade à luz do disposto no art.º 615º do CPC porquanto a decisão de “condenar o Réu a pagar à Autora a quantia, que se vier a liquidar em execução de sentença, emergente do dano por perdas salariais e do dano patrimonial futuro devidos às lesões decorrentes do acidente” é ambígua e obscura” e diferente do pedido da Autora que foi a da sua condenação em “ todas as quantias que a Autora venha despender em virtude do acidente dos autos, mormente, as decorrentes do também acidente de trabalho do ocupante do veículo seguro BB que, nesta data, ainda não foram devidamente liquidadas e apuradas”.
O tribunal “a quo” pronunciou-se sobre a nulidade suscitada no sentido da sua improcedência.
Cremos que efectivamente o Tribunal, sem que entendamos o motivo, se apartou do pedido formulado pela Autora e que foi simplesmente o da condenação do Réu a pagar-lhe “todas as quantias que a Autora venha despender em virtude do acidente dos autos, mormente, as decorrentes do também acidente de trabalho do ocupante do veículo seguro BB (…) “.
À data em que o pedido foi formulado ainda não se encontrava determinado, de modo definitivo, a integralidade do montante indemnizatório que a Autora, na qualidade de seguradora do veículo …-II-…, no qual o BB seguia, poderia vir a liquidar. Daí ter sido formulado nesses moldes.
Porém, no momento da sentença já o estava mercê das transações que vieram a ter lugar no âmbito dos processos que o dito BB moveu (cfr. ponto 19 e 21) o que condicionava, por seu turno, o Tribunal “ a quo” aos montantes aí acordados, já que por mais nenhuns outros poderia a Autora vir a responder perante o dito BB, nem, por consequência, exercer o direito de regresso sobre o Réu.
Ao proferir uma condenação genérica nos moldes em que o fez, i.e. especificando que as mesmas se circunscreviam às “perdas salariais” e ao “ dano patrimonial futuro”, o tribunal “a quo” condenou em objecto diverso do pedido – que era substancialmente diferente - o que lhe estava vedado ( art.º 609º, nº1 e art.º 615º, nº1 e), ambos do CPC).

“Em suma: o tribunal apenas pode julgar procedente ou improcedente o pedido tal como foi deduzido pelo autor, mesmo que outros efeitos jurídicos equivalentes no plano jurídico ou no plano prático pudessem ser considerados e impostos ao réu, por jurídica ou facticamente mais acertados. Não só o âmbito da jurisdição que a lei lhe atribui se mede pelo pedido, como o réu não se pôde antes defender de um efeito jurídico que o tribunal decretou, ao arrepio do objeto processual contra o qual pôde concretamente deduzir contestação.”.[1]

Por conseguinte, reconhece-se a nulidade da sentença neste conspecto sendo que, oportunamente, i.e. aquando da reapreciação jurídica da causa, se retirarão as necessárias ilações de tal constatação (art.º 665º, nº1 do CPC).

4.2. Impugnação da matéria de facto: O facto inserto na alínea b) do elenco dos factos “ Não provados” ( b) Que os valores de alcoolemia e de canabinóides de que o Réu era portador não influenciaram a sua condução.”..).

Considera o apelante que se impunha decisão diversa porque os “ níveis apresentados pelo apelante permitiram que o Ministério Público de Moura arquivasse o processo crime porquanto considerou que este não se encontrava sob a influência de quaisquer substâncias psicotrópicas na altura em que este conduzia o veículo”.

Para justificar a sua decisão, referiu o Tribunal “ a quo” o seguinte : “Relativamente à matéria de alínea b), antes de mais, não se olvide que ao Réu compete elidir a presunção legal que seja extraída do disposto no artigo 27.º, n.º 1, al. c) do D.L. n.º 291/2007, de 21 de agosto.
A relevância desta factualidade reconduzir-se-á, pois, à prova do contrário [artigo 347.º do C.C.], a ser necessária por se extraírem os efeitos presuntivos acabados de expor, ou seja, que não foi a influência do álcool ou produto estupefaciente no seu organismo a causa do acidente de viação.
Leia-se a propósito a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão datado de 25/03/2021 [relator Tomé Gomes; processo n.º 313/17.2T8AVR.P1.S1; disponível em www.dgsi.pt: do disposto no art. 27.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 291/2007, de 21-08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia ou a evidência de consumo de substância psicotrópica e o ato de condução causador do acidente, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em ação de regresso, o ónus da sua ilisão].
Ora, o primeiro fator que poderia contribuir para tanto, já sabemos que queda sub judice: uma versão alternativa para o sucedido, não comprovada [com rigor, tampouco vem propriamente alegada].
A única explicação para o despiste é a condução desadequada do Réu.
E, a partir daqui, inexistindo qualquer dado externo à condução deste que ajude a explicar o sinistro, torna-se muito difícil ao Réu uma prova do contrário.
Ou, o mesmo é dizer, fácil para a Autora lograr eficaz contraprova [artigo 346.º do C.C.], tornando simplesmente duvidoso que o álcool e o produto estupefaciente não tenham influenciado a condução, que não haja nexo entre uma e outra coisa.
Porque, para mais, apenas resta a apreciação dos valores [se reduzidos se elevados], quer de álcool quer do produto estupefaciente, sendo que nos presentes autos existe uma combinação de ambos no organismo do Réu.
E, na verdade, não é necessário aferir [não o sendo possível] qual o elemento que implicou [se o álcool se o produto estupefaciente] o resultado sinistro.
A realidade é esta [o Réu era portador de álcool e produto estupefaciente] e será nela que se aprecia a prova, podendo, no limite, existir causas concorrentes [no sentido de se influenciarem] sem que isso impeça a extração dos efeitos previstos no artigo 27.º, n.º 1, al. c) do D.L. n.º 291/2007, de 21 de agosto.
O que se afigura óbvio: a síntese é superior à soma das partes, mas não elimina essas mesmas partes; no limite, se se concluir que quer o álcool quer a droga se repercutiram, potenciando, no resultado sinistro, seria inusitado concluir-se que, então, nenhum dos dois o influenciou.
Ora, nenhuma prova existe que permita negar que o Réu se encontrasse nefastamente afetado pelos produtos [álcool e estupefaciente] consumidos.
Pelo contrário, a que existe [o parecer realizado pelo I.M.L.] constitui sinal de sentido contrário, concluindo, face ao exposto, tendo por base estudos publicados sobre os efeitos do THC no desempenho da condução em associação com etanol, consideramos que o valor detetado de 9-tetrahidrocanabinol (2,9 ng/ml) constituiu um fator de risco de acidente e de impairment, negativo para uma condução em segurança.
A relevância deste parecer, que se foca na situação concreta dos autos, de associação entre álcool e estupefaciente, é simplesmente a de não afastar o nexo de causalidade entre estes produtos e o sinistro ocorrido, consubstanciando eficaz contraprova que beneficia a Autora e impede o Réu de cumprir o seu ónus.
Em suma, ou noutras palavras, que os produtos [álcool e estupefaciente] de que o Réu era portador aquando do acidente não influenciaram a sua condução, estando o Réu na plenitude das suas faculdades mentais e psíquicas.”.

Vejamos.

Desde já se diga, que não é a circunstância de o facto em apreço (facto negativo) estar integrado no rol dos “Não Provados” que permite afirmar que se provou o contrário.

Aliás, na petição inicial, a Autora alegou que “o acidente ocorreu devido ao excesso de velocidade a que seguia o veículo motivado pela presença de canabinóides e de álcool que foram detectados no sangue do condutor seguro”- cfr. art.º 17º - o que foi impugnado pelo Réu na sua contestação que trouxe uma outra versão sobre as causas do acidente (negando a existência de excesso de velocidade).

Portanto, independentemente de haver ou não uma presunção legal (de nexo de causalidade sobre a influência do álcool na condução) o facto que se deveria ter considerado na sentença (como provado ou não provado) era o facto tal como havia sido alegado e não uma versão contrária ao mesmo facto mas não alegada.

Posto isto, o que se impõe concluir é que é despicienda a impugnação do facto em apreço já que a versão que o impugnante pretende ver carreada nem sequer foi por si alegada em sede própria e, por consequência, não pode ser considerada (art.º 5º, nº1 do CPC).
Mantém-se por isso incólume a decisão da matéria de facto.

4.3. Reapreciação jurídica da causa: Da (in) existência do direito de regresso da seguradora à luz do disposto na alínea c) do nº1 do art.º 27º do D.L. nº 291/2007, de 21.8.

Perante a matéria de facto apurada, a primeira questão que se coloca de imediato, consiste em apurar a quem deverá ser atribuída a culpa no acidente de viação que causou graves lesões ao BB que era transportado no veículo conduzido pelo Réu que se despistou.
Não há quaisquer dúvidas que o acidente ocorrido se deu porque, conforme resultou provado ( ponto 15) o condutor do veículo o fazia em excesso de velocidade, de forma desatenta e alheada à configuração da via.

Na verdade, apesar de no local do sinistro, no sentido de marcha do veículo, existir sinalização vertical sinal C13-Proibição de exceder a velocidade máxima de 50km/h e o sinal C14a-Proibição de ultrapassagem ( cfr. ponto 10) provou-se também que no momento do sinistro, o veículo circulava entre os 70 e os 75 km/h. ( cfr. ponto 11).

Pode, assim, concluir-se que o acidente é exclusivamente imputável à sua conduta culposa, de acordo com o critério enunciado pelo art.º 487º, nº2 do Código Civil.

Posto isto, há agora que ponderar que está provado que no momento do acidente, o Réu conduzia o veículo sendo portador de canabinóides no sangue, metabolitos THC-COOH 9,3 ng/ml e THC 2,9 ng/ml e sendo portador de uma taxa de alcoolemia de 0,47 g/l, com variação de 0,06 g/l. ( cfr. pontos 12 e 13).

Pretende por esse motivo, a Autora exercer contra o Réu direito de regresso fundado no disposto na alínea c) do nº1 do art.º 27º do D.L. nº 291/2007, de 21.8. que assim dispõe:
“1 - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
a) Contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente;
b) Contra os autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente, bem como, subsidiariamente, o condutor do veículo objecto de tais crimes que os devesse conhecer e causador do acidente;
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos;
d) Contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado;
e) Contra o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda de carga decorrente de deficiência de acondicionamento;
f) Contra o incumpridor da obrigação prevista no n.º 3 do artigo 6.º;
g) Contra o responsável civil pelos danos causados nos termos do n.º 1 do artigo 7.º e, subsidiariamente à responsabilidade prevista na alínea b), a pessoa responsável pela guarda do veículo cuja negligência tenha ocasionado o crime previsto na primeira parte do n.º 2 do mesmo artigo;
h) Contra o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de utilização ou condução de veículos que não cumpram as obrigações legais de carácter técnico relativamente ao estado e condições de segurança do veículo, na medida em que o acidente tenha sido provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo;
i) Em especial relativamente ao previsto na alínea anterior, contra o responsável pela apresentação do veículo a inspecção periódica que, na pendência do contrato de seguro, tenha incumprido a obrigação de renovação periódica dessa apresentação, na medida em que o acidente tenha sido provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo..
2- (…)”.

No regime pretérito - o do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31.12. de Dezembro- mercê de divergência jurisprudencial quanto à interpretação da alínea c) do nº1 do art.º 19º - foi prolatado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ n.º 6/2002, de 28-05 que definiu o seguinte entendimento: “A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus de prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.

Em consequência da diversa redacção dada à norma em análise do regime vigente, tem-se entendido maioritariamente que tal AUJ caducou[2] e que o legislador teve como escopo desonerar as seguradoras da prova do mencionado nexo de causalidade, exigindo-lhes apenas a alegação e prova da culpa do condutor na eclosão do acidente e que o mesmo condutor, no momento do acidente, era portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.

Tal como José Carlos Brandão Proença[3], achamos preferível o entendimento sufragado no Acórdão do STJ de 6.4.2017 ( Lopes do Rego) segundo o qual o “ sentido a atribuir ao regime normativo introduzido pelo DL 291/07 será o de ter vindo estabelecer, afinal, uma presunção legal, assente nas regras ou máximas de experiência, na normalidade das situações da vida, segundo a qual o concreto erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado – e que consubstancia a responsabilidade subjectiva por facto ilícito que lhe é imputada - se deveu causalmente à taxa de alcoolemia verificada objectivamente por meios técnicos adequados e inteiramente fiáveis – deixando naturalmente a parte beneficiada pelo estabelecimento desta presunção legal de estar onerada com a prova efectiva do facto a que conduz a presunção, nos termos do art. 350º, nº 1, do CC.
É certo que poderá discutir-se se, no regime actualmente vigente, passou a ser absoluta e totalmente irrelevante a existência de um concreto e efectivo nexo causal entre o estado de alcoolização do condutor, culpado na produção do acidente, e o erro ou falta censurável na condução que integra a respectiva culpa.
Na verdade, afigura-se que a dita presunção legal carece de ser interpretada e aplicada em consonância com os princípios fundamentais da culpa e da proporcionalidade, em termos de não criar uma responsabilização puramente objectivada, cega e absolutamente irremediável do condutor/segurado pelas indemnizações satisfeitas ao lesado, precludindo-se a garantia emergente do contrato de seguro sempre e apenas em função da verificação totalmente objectivada de uma situação de alcoolemia: representando esta preclusão da garantia do seguro a imposição ao condutor/segurado de um ónus gravoso, implicando uma responsabilidade patrimonial pessoal particularmente onerosa, é naturalmente indispensável que esta imposição de uma responsabilização definitiva pelas quantias satisfeitas pela seguradora aos lesados se possa conformar com os referidos princípios fundamentais , não traduzindo a imposição ao condutor de um ónus manifestamente excessivo e desproporcionado.
E, assim sendo, por força dos referidos princípios estruturantes da ordem jurídica, não excluímos, que o condutor/demandado possa alegar e demonstrar na acção de regresso, com vista a ilidir a referida presunção legal:
- como exigência do princípio da culpa - que a situação de alcoolemia, impeditiva do legítimo exercício da condução, lhe não é imputável, por não ter na sua base , por exemplo, um comportamento censurável de ingestão de bebidas alcoólicas na altura da condução do veículo ( demonstrando, por exemplo, que tal taxa de alcoolemia está ligada a factor acidental e incontrolável, como reacção imprevisível a determinado medicamento);
- como decorrência do princípio da proporcionalidade - que, apesar da taxa de alcoolemia objectivamente verificada, não ocorreu, no caso, qualquer nexo causal efectivo entre tal situação e o acidente – ilidindo, por esta via a presunção legal segundo a qual qualquer situação de alcoolemia objectivamente proibida funciona como causa efectiva do erro ou falta cometida no exercício da condução: não é, pois, a seguradora que tem de provar, como pressuposto do direito de regresso, a existência de um concreto nexo causal entre a taxa de alcoolemia verificada e o erro de condução que desencadeou o acidente e o evento danoso, como sucedia no regime anteriormente em vigor, mas o próprio condutor que, se quiser afastar a sua responsabilidade em via de regresso, terá de ilidir tal presunção legal, perspectivada como presunção juris tantum, nos termos do nº2 do art. 350º do CC.”.

Através da consagração de um direito de regresso das seguradoras faculta-se-lhes a possibilidade de agirem contra os que tornaram efectivamente mais perigosa a condução pela ingestão de álcool ou consumo de estupefacientes em termos em que seria injusto, a coberto da existência de seguro, garantir a intangibilidade do seu património.

É que as seguradoras assumem pelo contrato de seguro a obrigação de indemnizar, até determinado montante , os lesados de acidente de viação perante os sujeitos da obrigação de segurar referidos no artº 6º do D.L. nº 291/2007, ou seja, a obrigação de indemnizar das seguradoras é assim uma obrigação contratual , embora demarcada com algum pormenor e rigor pela lei , tendo em vista os interesses em causa , sobretudo os dos lesados em receberem a indemnização .

Ora, alguns dos casos em que é concedido às seguradoras um direito de regresso, i.e. o direito de se ressarcirem do que pagaram aos lesados, são casos em que se entende ter ocorrido um facto que exorbita de modo apreciável o risco previsível directamente ligado à circulação automóvel e que as mesmas se obrigaram contratualmente a suportar.

Dentre esses conta-se, como vimos, o conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.

Dispõe o artigo 81.º do Código da Estrada sob a epígrafe “Condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas”, o seguinte :
1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.
2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
3 - Considera-se sob influência de álcool o condutor em regime probatório e o condutor de veículo de socorro ou de serviço urgente, de transporte coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxi, de TVDE, de automóvel pesado de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,2 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
4 - A conversão dos valores do teor de álcool no ar expirado (TAE) em teor de álcool no sangue (TAS) é baseada no princípio de que 1 mg de álcool por litro de ar expirado é equivalente a 2,3 g de álcool por litro de sangue.
5 - Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.”.

Considerando que o álcool continua a ser uma das grandes causas da sinistralidade rodoviária em Portugal, entendeu o legislador [4]reduzir para 0,2 g/l o limite a partir do qual os condutores em regime probatório ( assim como os condutores de veículos de socorro ou serviço urgente, de transporte colectivo de crianças, de táxis, de veículos pesados de mercadorias ou passageiros e de veículos de transporte de mercadorias perigosas) se devem considerar “ sob influência de álcool”.

De acordo com o nº1 do art.º122.º do Código da Estrada, “a carta de condução emitida a favor de quem ainda não se encontrava legalmente habilitado a conduzir qualquer categoria de veículos fica sujeita a regime probatório durante os três primeiros anos da sua validade”.

Resultando provado que o Réu tem carta de condução desde …/…/2014 ( ponto 14) e que o acidente ocorreu em 22.6.2016, conclui-se que estava ainda em regime probatório nessa data.
Por conseguinte, estava-lhe vedado conduzir o veículo com uma TAS igual ou superior a 0,2 g/l.

De igual sorte se apurou que o Réu conduzia sendo portador de canabinóides no sangue, metabolitos THC-COOH 9,3 ng/ml e THC 2,9 ng/ml.

Como se viu, do nº5 do art.º 81º do C.E. a sua influência deverá ser determinada especificamente mediante relatório médico ou pericial estabelecidos em legislação complementar, nomeadamente nos arts. 13.º, n 1 e 3, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17.5, e conforme os procedimentos prescritos na Portaria n.º 902-A/2007, de 13.8.

Cremos se compreende a destrinça pois o estupefaciente, por essência, provoca alteração do estado mental ou físico da pessoa – já que se assim não fosse não haveria justificação para o seu consumo – ao passo que o álcool – só provoca tais efeitos a partir de determinada quantidade, sendo que a sua ingestão moderada não provoca normalmente qualquer perturbação na percepção ou na capacidade de discernimento.

Não vemos, pois, com todo o respeito pela opinião contrária[5], qualquer violação do princípio da igualdade (art.º 13 da CRP) nesta interpretação.

Da conjugação do disposto no art.º 81º, nº5 do C.Estrada com o disposto no art.º 27º, nº1, alínea c) do D.L. nº 291/2007 alcança-se, pois, que só no caso de o condutor ter sido declarado influenciado por substâncias psicotrópica é que se poderá cogitar o direito de regresso da seguradora por esse motivo.

No caso, não vemos que tal declaração haja sido feita, sendo que o parecer do INML de fls. 97 segs não é concludente e o despacho de arquivamento do Ministério Público repudia, perante a exiguidade da presença de canabinóides ( muito aquém do valor de referência do quadro 2 da citada Portaria) a comprovação da sua influência de modo a se poder afirmar que o Réu não estava em condições de encetar a condução segura de veículos.

Assim, nada mais resta do que desprezar tal facto (o vertido no ponto 12) no apuramento da (in) existência do direito de regresso da seguradora, ora apelada, ficando a subsistir a questão de o Réu conduzir com uma taxa de alcoolemia de 0,47 g/l, com variação de 0,06 g/l.

Cumpre relembrar igualmente que nada foi alegado pelo apelante susceptível de contrariar a presunção legal de que essa TAS funcionou como causa efectiva do excesso de velocidade imprimida ao veículo que, de acordo com o entendimento expresso no citado aresto do STJ – se tem por consagrada no art. 27º, nº1 al. c) do DL nº 291/2007.

Ora, “constituem pressupostos do direito de regresso pela seguradora contra o condutor de veículo: a) Que a seguradora tenha pago/satisfeito uma indemnização a terceiro lesado por ocorrência de acidente de viação em que foi envolvido um veículo seu segurado; b) Que o condutor desse seu veículo tenha (culposamente) dado causa ao acidente; c) E que o condutor desse seu veículo segurado fosse então portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida/permitida.
Pressupostos esses que são cumulativos e cujo ónus de alegação e prova incumbe à seguradora.[6]

Assim, tendo-se provado que o apelante conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida para os condutores em regime probatório, sem que se mostre afastada a referida presunção , não pode deixar de se reconhecer à apelada o direito de regresso sobre o mesmo pelas quantias pagas em consequência do acidente que ele culposamente provocou sob influência do álcool e ao mesmo apelante a correspondente obrigação de as satisfazer.

Porém, apenas se provou que a Autora pagou a BB o valor acordado de indemnização de € 48.000,00 (cfr. pontos 20 e 19).
Não se provou que os valores objecto da transacção no Tribunal de Trabalho hajam sido liquidados pela Autora.
Aliás, pelo contrário: apenas se provou ( ponto 22.) que a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. já interpelou a Autora para pagamento das quantias por aquela liquidadas a BB no âmbito do processo laboral supra aludido, estando as partes, Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. e Autora, a discutir os valores em causa.
Pressuposto do direito de regresso é que a seguradora haja satisfeito a indemnização ao lesado ( cfr. artº 27º do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto).
De facto, o direito de regresso é um direito “ex novo”, que se constitui em virtude do pagamento de um crédito.

Sem que tal suceda, não existe direito de regresso já que este só nasce na esfera jurídica do respectivo titular com o cumprimento; só a partir de então pode ser exercido.

Não sendo titular do direito de regresso relativamente às demais quantias reclamadas para além dos € 48.000,00, não pode o apelante, por ora, deixar de ser absolvido do pedido de pagamento das mesmas.

Isto sem prejuízo do disposto no art.º 621º do CPC[7].

III. DECISÃO

Por todo o exposto, se acorda em julgar a apelação parcialmente procedente e ,em consequência:
a) Declarando-se a nulidade da decisão constante da alínea b) do dispositivo da sentença recorrida, decide-se, ao abrigo do disposto no art.º665º do CPC, julgar improcedente o pedido formulado na alínea b) do petitório pela Autora, ora apelada, e dele absolver o Réu, ora apelante;

b) Manter o demais decidido.


Custas por apelante e apelada na proporção do decaimento.
Évora, 14 de Setembro de 2023
Maria João Sousa e Faro ( relatora)
Manuel Bargado
Maria da Graça Araújo

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[1] Rui Pinto , “Meios reclamatórios comuns da decisão civil”, Julgar on line, , Maio de 2020, pag.30.
[2] Neste sentido, Ac. TRL de 30.11.2022 ( Ana Azeredo Coelho).
[3] In Revista “ Julgar” nº 46, 2022, pag.108.
[4] Da Lei n.º 72/2013, de 03/09.
[5] Como é o caso do Ac. do TRL de 15.9.2022 (Pedro Martins)
[6] Assim, Ac. TRC de 26.6.2020 (Isaías Pádua).
[7] Como se pode ler no Ac. STJ de 22.9.2016 (Abrantes Geraldes): “Julgada improcedente determinada pretensão por falta de verificação de um facto (o efectivo desembolso de uma quantia), o caso julgado formado pela sentença não obsta a que seja interposta nova acção na qual seja alegada a verificação ulterior desse facto para sustentação da mesma pretensão material (art. 621º do CPC).”.