Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1373/21.7T8STR-A.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRINCÍPIO DO ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - A apreciação da má-fé da parte e a sua condenação em multa e indemnização, por via da atuação na lide na fase que antecedeu a sentença, não pode o juiz relegá-las para depois da sentença, embora já não assim quanto à fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na elaboração da sentença, o não habilite a determiná-lo.
2. Neste caso, não se tratando de conduta superveniente relativamente à sentença, com a prolação desta, que não apreciou da relevância da conduta da parte em sede de litigância de má fé, fica esgotado o poder jurisdicional relativamente a esta matéria.
3 – Situação diferente - que não é a dos autos – seria se a questão da má-fé não tivesse sido objeto de discussão entre as partes, designadamente em alegação que proceda a sentença, pois nesse caso deve o tribunal, antes de a proferir, proporcionar o contraditório, ouvindo, nomeadamente a parte contra a qual tem a intenção de proferir a condenação como litigante de má-fé.
(Sumário pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
A.S.F., na qualidade de cabeça-de-casal e em representação da Herança indivisa aberta por óbito de A.J.F., instaurou o presente procedimento cautelar comum contra V.P.M.F., pedindo que esta seja «intimada a facultar/proporcionar/viabilizar o acesso do cabeça-de-casal e de perito avaliador ao interior do imóvel sito na Rua (…), em Alcanede, bem como do imóvel sito na Rua (…), na Nazaré, entregando-lhes, em 5 dias, uma cópia das chaves, sob a cominação de, não o fazendo, cometer um crime de desobediência, p. e. p. pelo art. 348.º do Cód. Penal».
Mais requereu a inversão do contencioso.
Alegou, em síntese, que, na invocada qualidade de cabeça-de-casal, necessita de aceder aos referidos imóveis a fim de proceder à respetiva avaliação para subsequente partilha, mas que a requerida, apesar de interpelada, se recusa a facultar-lhe tal acesso e a entregar-lhe as chaves dos imóveis, o que impossibilita a avaliação dos mesmos, impossibilitando desse modo que o processo de partilha prossiga os seus trâmites.
A requerida deduziu oposição, excecionando a falta de personalidade judiciária da herança indivisa, a ilegitimidade processual ativa do cabeça-de-casal por preterição de litisconsórcio necessário, o erro na forma do processo e, por fim, a inutilidade superveniente da lide quanto ao imóvel sito na Rua (…), em Alcanede.
Por impugnação concluiu não estarem reunidos os requisitos de que a lei faz depender o decretamento da providência requerida, concluindo ser a requerida que, por todas as razões, é a pessoa mais indicada, a mais isenta e mais imparcial, para assegurar a guarda e preservação do património do falecido A.J.F., até à sua partilha ou acordo de todos os herdeiros para proceder à sua entrega..
Pediu ainda a condenação do requerente como litigante de má-fé em multa nunca inferior a € 2.000,00 e em indemnização não inferior a € 5.000,00.
Convidado a responder às exceções, o requerente nada disse.
Posteriormente, foram as partes também convidadas a, querendo, se pronunciarem sobre a eventual verificação da falta do pressuposto processual de interesse em agir quanto ao imóvel sito na Rua (…), em Alcanede, e, ainda, para alegarem por escrito quanto ao mérito da causa relativamente ao imóvel sito na Rua (…), na Nazaré.
O Requerente nada disse.
A Requerida respondeu, concluindo pela falta do aludido pressuposto processual e pela sua absolvição do pedido, reiterando o pedido de condenação do requerente como litigante de má-fé.
De seguida foi proferida decisão em cujo dispositivo se consignou:
«Face ao exposto,
a) julgo verificada a exceção dilatória inominada relativa à falta de interesse processual em agir no que tange à providência dirigida ao bem imóvel sito na Rua (…), em Alcanede, e, em consequência, absolvo nessa parte a Requerida da instância; e
b) julgo totalmente improcedente o presente procedimento cautelar relativamente à providência dirigida ao bem imóvel sito na bem imóvel sito na Rua (…), na Nazaré e, em consequência, absolvo nessa parte a Requerida do pedido.»
Fixo à causa o valor de € 30.000,01 (cfr. art. 304.º, n.º 1, 305.º, n.º 4 e 306.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil).
Custas pelo Requerente.
Registe e notifique.»
Notificada a decisão às partes, a requerida, constatando que a mesma era omissa quanto a pronunciar-se sobre a litigância de má-fé que havia oportunamente invocado, requereu «que, após prévia notificação do Requerente para, querendo, exercer o princípio do contraditório sobre o pedido de litigância de má-fé deduzido pela Requerida na Oposição à Providência Cautelar, seja proferido Despacho subsequente à sentença (mas que deve passar a fazer parte integrante) a pronunciar-se, e a dar provimento, sobre tal matéria».
Notificado o requerente para se pronunciar, veio o mesmo requerer a absolvição do pedido de litigância de má-fé contra si deduzido.
Foi então proferida decisão com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto, julgo o incidente de litigância de má-fé deduzido pela Requerida V.P.M.F. contra o Requerente A.S.F. (que intervém na qualidade de cabeça-de- casal e em representação da HERANÇA INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE A.J.F.) parcialmente procedente e, em consequência, condeno o mesmo em multa de 3 UC’s e no pagamento à Requerida de indemnização no montante de € 500,00 (quinhentos euros).
Fixo ao incidente o valor de € 30.000,01 (cfr. art. 304.º, n.º 1 do Cód. proc. Civil).
Custas do incidente pela Requerida e Requerente na proporção do respetivo vencimento, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, sem prejuízo do apoio judiciário de que a Requerida beneficia (cfr. art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 7.º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela II anexa ao mencionado diploma).
Notifique.»
Inconformado, o requerente apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as seguintes conclusões:
«a) O despacho recorrido consubstancia uma decisão de condenação por litigância de má fé, determinada pela instauração de uma providência cautelar em 25.05.2021, tendo por objeto o acesso a um imóvel, no dia posterior (24.05.2021) à mudança de fechadura determinada no âmbito do procedimento cautelar de arrolamento n.º 937/21.3TSTR, tendo a Requerida sido ali nomeada fiel depositária, por sentença e o requerido recebidas as chaves do imóvel por indicação da funcionária que efetuou a diligência.
b) Funda-se a decisão de condenação do Requerente como litigante de má fé na circunstância de «como referido na sentença, extrai-se da documentação junta ao processo que a fechadura de tal imóvel, já havia sido mudada coercivamente no dia 24.05.2021 no âmbito do procedimento cautelar de arrolamento n.º 937/21.3TSTR, tendo o aqui Requerente sido ali nomeado fiel depositário, conforme auto assinado pelo próprio.».
c) No caso dos autos, não é sequer evidente que não exista utilidade processual na providência concretamente requerida, apesar do decretamento, em sede de arrolamento, da mudança de fechadura do imóvel aqui em crise, com nomeação do Requerente como fiel depositário do mesmo, uma vez que em causa, no arrolamento e na providencia cautelar requerida nos presentes autos, estão situações jurídicas totalmente distintas, máxime, não tendo esta providência, rejeitada pelo tribunal a quo, como desiderato o mero acesso àquele imóvel, mas sim, ou mais, a definição da respectiva situação jurídica, enquanto bem sujeito (ou não) à administração do cabeça-de-casal, aqui Requerente.
d) Por outro lado, o facto de «no dia em que o requerimento inicial deu entrada em juízo (25.05.2021) já o Requerente tinha acesso àquele imóvel», olvida que as instruções dadas pelo Requerente ao signatário para instaurar a presente providência cautelar, não o foram, como é óbvio, no dia em que o respetivo requerimento inicial foi apresentado em juízo!
e) E não resulta do argumentário subjacente à condenação – nem dos autos - que o mandatário tivesse conhecimento, no dia 25.05.2021, de que no dia ANTERIOR (note-se: no dia ANTERIOR) tal diligência processual que redunda no acesso ao imóvel, tivesse sido efetivada!
f) Se a providência cautelar tivesse dado entrada em juízo no dia da mudança de fechadura do imóvel, no âmbito do procedimento cautelar de arrolamento n.º 937/21.3TSTR, já não ocorreria fundamento para a condenação?
g) Tal circunstância, impõe que não se considere existir negligência grosseira, ou sequer grave, por parte do Requerente, na actuação que (bem ou mal; não é isso que está em causa!) visou através da instauração da presente providência cautelar.
h) Assim, uma vez que a condenação como litigante de má fé pressupõe uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva, é inolvidável que tal situação não se verifica, tendo o Tribunal a quo violado o art.º 542º, nº2, do CPC.
i) A decisão final da providência cautelar foi proferida em 22.09.2021 e como também decorre desta ulterior decisão, ora recorrida, estava já à data da sua prolação tal «sentença, transitada em julgado, proferida nestes autos ».
j) A apreciação da má fé da parte e a sua condenação em multa e indemnização, por via da actuação na lide na fase que antecedeu a sentença, não pode ser pelo juiz relegada para depois da sentença, embora já não assim quanto à fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na altura da sentença, o não habilite a determiná-lo.
k) Nestas circunstâncias, não se tratando de conduta superveniente relativamente à sentença, com a prolação da sentença, que não apreciou da relevância da conduta da parte em sede de litigância de má fé, esgotado fica o poder jurisdicional relativamente a esta matéria.
l) É nulo por excesso de pronúncia o despacho proferido após o esgotamento do poder jurisdicional do juiz do processo (art.ºs 613º, n.º 3 e 615º, n.º 1 al. d), 2ª parte, do CPC).
m) A decisão é objectivamente omissa quanto ao elenco dos factos provados ou não provados, que justificam a condenação, inexistindo sequer um relatório, quanto mais, referencia aos elementos de prova ponderados para a decisão (respaldados na lacónica afirmação de que «extrai-se da documentação junta ao processo», situação que consubstancia nulidade, por falta de fundamentação, nos termos dos arts. 607º, nº4, e 615º, nº1, als. c) e d) do CPC.
Termos em que deverá o recurso merecer provimento e em consequência, ser a decisão, assim se fazendo sã e serena JUSTIÇA!»

A requerida contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

No despacho em que admitiu o recurso, a Sr.ª Juíza a quo pronunciou-se apenas relativamente à nulidade de falta de fundamentação da decisão recorrida, considerando que esta não enferma de tal nulidade.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir, atenta a sua precedência lógica, consubstanciam-se em saber:
- se a decisão é nula (por excesso de pronúncia e/ou por falta de fundamentação);
- se deve manter-se a condenação do requerente/apelante no pagamento de multa e de uma indemnização à requerido/apelada, como litigante de má-fé.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos a considerar para a decisão do recurso são os constantes do relatório que antecede, que aqui se dá como reproduzido.

O DIREITO
Da nulidade da decisão por excesso de pronúncia
Nos termos do art. 613º, nº 1, do CPC, proferida a sentença, esgota-se o poder jurisdicional do juiz, pelo que, em regra, apenas poderá ser modificada por via de recurso, quando este seja admissível, ou mediante incidente de reforma ou arguição de nulidade (arts. 615º, nº 4 e 616º, do CPC). Tal regime é também de aplicar aos despachos, tenham cunho material ou formal, por implicarem apenas com o direito adjetivo, ainda que neste caso possam sofrer as restrições que decorrem do art. 620º, nº 2, do CPC.
Será que o despacho recorrido extravasa o poder jurisdicional do processo, relativamente à problemática da má-fé?
A resposta a esta questão é afirmativa. Senão vejamos.
Na sua oposição, a requerida pediu a condenação do requerente como litigante de má-fé, em multa nunca inferior a € 2.000,00 e em indemnização não inferior a € 5.000,00, pedido que reiterou posteriormente, quando o Tribunal notificou as partes para se pronunciarem sobre a eventual verificação da falta do pressuposto processual de interesse em agir quanto ao imóvel sito na Rua (…), em Alcanede, e, ainda, para alegarem por escrito quanto ao mérito da causa relativamente ao imóvel sito na Rua (…), na Nazaré.
Sucede, porém, que a decisão que julgou o procedimento cautelar é absolutamente omissa quanto ao pedido de condenação do requerente como litigante de má-fé.
Foi só depois daquela decisão ter sido notificada às partes, e na sequência de requerimento apresentado pela requerida, que o Tribunal a quo veio a proferir decisão em que condenou o requerente como litigante de má-fé, em multa de 3 UC’s e no pagamento à requerida de indemnização de € 500,00.
Nestas circunstâncias o despacho recorrido extravasa o poder jurisdicional do juiz do processo, relativamente àquela problemática[1], pois que este seu poder se esgotou com a sentença proferida, entendimento este que é corroborado pelo que dispõe o nº 3 do art. 543º do CPC: «[s]e não houver elementos para fixar logo na sentença a importância da indemnização, são ouvidas as partes e fixa-se, depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável…»
Como se evidencia da mera leitura e devida interpretação do normativo em apreço, só a fixação da indemnização a atribuir em consequência da litigância de má-fé pode ser relegada para posterior (relativamente à sentença) decisão.
Pelo que, a contrario sensu, a condenação da parte como litigante de má-fé e a fixação da respetiva multa processual não pode ser deixada para ulterior decisão, antes devendo ser fixada pelo juiz na sentença final, salvo casos excecionais[2],que no caso não ocorrem[3].
Neste sentido e a propósito desta temática [à luz do art. 466º, 1º, do CPC, na sua versão original, em tudo similar à atual] ensinava o Prof. Alberto dos Reis[4], que «[a]preciação da má fé e a condenação em multa e indemnização não pode o juiz relegá-las para depois da sentença; é nesta que há-de decidir se o litigante procedeu de má fé; é aí que, em caso afirmativo, há-de condená-lo como tal em multa e indemnização; o que pode e deve deixar para depois da sentença é a fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na altura da sentença, o não habilite a determiná-lo».
No mesmo sentido, referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[5] que, «[h]avendo elementos suficientes para tanto, deve ser fixada a indemnização que deles resulte. Não havendo, o juiz, ouvidas as partes, fixará, já depois da sentença em que profira a condenação por má-fé, mas nos autos da acção, aquilo que, no seu prudente arbítrio, lhe pareça razoável, não havendo assim lugar para a condenação no que se liquidar em execução de sentença».
Sufragando este mesmo entendimento, podem ver-se, entre outros, os seguintes arestos:
- Acórdão da Relação de Guimarães de 02.06.2016[6], com o seguinte sumário:
«1. Assumindo a conduta processual da parte, na pendência da causa e até à prolação da sentença, contornos que a permitam qualificar como litigância de má-fé, tem o juiz que o afirmar e proferir a consequente decisão de condenação da parte, enquanto litigante de má-fé, na sentença, ali fixando, ainda, a multa que julgue mais adequada, fixando-a sempre em quantia certa.
2. Não é consentido ao juiz, salvo casos excepcionais (de incidentes ou factos supervenientes à sentença), relegar tal decisão quanto à litigância de má-fé para momento posterior à sentença, por a tanto se oporem os limites do seu poder jurisdicional, que cessa com a prolação da mesma.
3. Apenas quanto à indemnização a arbitrar a favor da parte contrária (e se esta se mostrar pedida) é consentido ao juiz relegar a sua quantificação para momento posterior à sentença e se os autos não contiverem elementos que o habilitem a fazer, desde logo, na sentença, essa quantificação.
4. Todavia, essa quantificação só é viável se, previamente e na sentença, o juiz tiver proferido decisão no sentido de declarar e condenar a parte como litigante de má-fé, ali fixando a multa processual devida em quantia certa.
5. Se tal não tiver sucedido, o poder jurisdicional do tribunal quanto a essa matéria mostra-se esgotado, não sendo lícito reabrir a instância para tal fim.»
- Acórdão da Relação de Coimbra de 08.09.2020[7], em cujo sumário se consignou:
«1. A apreciação da má fé da parte e a sua condenação em multa e indemnização, por via da actuação na lide na fase que antecedeu a sentença, não pode o juiz relegá-las para depois da sentença, embora já não assim quanto à fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na altura da sentença, o não habilite a determiná-lo.
2. Nestas circunstâncias, não se tratando de conduta superveniente relativamente à sentença, com a prolação da sentença, que não apreciou da relevância da conduta da parte em sede de litigância de má fé, esgotado fica o poder jurisdicional relativamente a esta matéria.»
O caso tratado no Acórdão da Relação de Guimarães de 31.10.2019[8] invocado pela requerida/apelada nas contra-alegações para sustentar a bondade da decisão recorrida, tem contornos diversos dos do presente caso, bastando para tanto atentar no seguinte segmento da respetiva fundamentação:
«No caso vertente, não consta que na decisão proferida em 21-06-2019 - que julgou totalmente procedente a oposição deduzida pelo requerido J. M. e improcedente o pedido do requerente F. R. improcedente, determinando o imediato levantamento do arresto anteriormente ordenado e concretizado nos autos -, tenha havido efetiva pronúncia do Tribunal sobre a existência ou verificação dos pressupostos da litigância de má-fé, nem qualquer condenação a propósito. Antes se verifica que no segmento final da parte dispositiva desta última decisão, o Tribunal a quo entendeu fazer preceder de discussão contraditória a eventual decisão a proferir sobre a questão da litigância de má-fé, determinando, por isso, a notificação das partes para, querendo, no prazo de dez dias, tomarem posição sobre tal matéria, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC. Mais justificou tal iniciativa na perceção então firmada perante os factos apurados naquela decisão, ainda que indiciariamente em razão da natureza do processo, de que a conduta do Requerente poderia, em abstrato, justificar a sua condenação por litigância de má-fé.» (sublinhado nosso).
Num caso como o retratado naquele aresto, concordamos que «a condenação como litigante de má-fé deve ser precedida de discussão contraditória, em obediência ao disposto no art. 3-3, que proíbe as decisões-supresa. Por isso, quando não tenha sido objeto de discussão entre as partes, designadamente em alegação que proceda a decisão, deve o tribunal, antes de a proferir, proporcionar o contraditório, ouvindo, nomeadamente a parte contra a qual tem a intenção de proferir a condenação como litigante de má-fé»[9]
Não é este, porém, o caso dos autos, onde, como vimos, a litigância de má-fé foi suscitada e sujeita ao contraditório antes da decisão que pôs fim ao procedimento cautelar.
Conclui-se, assim, que, assumindo a conduta processual da parte contornos que a permitam qualificar como litigância de má-fé, tem o juiz que o declarar e proferir a consequente decisão de condenação, na sentença, fixando a multa que julgue adequada, não podendo relegar tal decisão para momento posterior, por a tanto se oporem os limites do poder jurisdicional, que cessa com a prolação da sentença. Apenas quanto à indemnização a arbitrar a favor da parte contrária (se pedida), e não permitindo os elementos dos autos a imediata quantificação, poderá o juiz relegar a sua quantificação para momento ulterior (art. 543º do CPC).
Aferindo da legalidade do despacho recorrido, sob o ponto de vista formal, dúvidas não restam de que não era lícito à Sr. Juíza a quo, na ocasião em que o proferiu, conhecer da questão da litigância de má-fé do requerente da providência cautelar.
Só o poderia ter feito se a requerida tivesse interposto recurso da decisão que conheceu das exceções e do mérito da providência cautelar, arguindo a nulidade daquela decisão por omissão de pronúncia quanto à questão da litigância de má-fé (art. 617º, nº 1, do CPC).
Esgotado ficou, pois, na referida decisão, o poder jurisdicional da Sr.ª Juíza a quo para conhecer da litigância de má-fé do requerente pela atuação deste anterior a tal decisão final, com a consequente ilegalidade do conhecimento dessa questão no despacho recorrido e da condenação do requerente aí proferida.
Em face da conclusão que se extraiu quanto à ilegalidade do despacho recorrido, fica prejudicado o conhecimento da verificação dos pressupostos da litigância de má-fé que o Tribunal a quo entendeu estarem reunidos[10].
Quanto à qualificação do vício de que padece a decisão assim proferida – após o esgotamento do poder jurisdicional do juiz -, porque nos revemos inteiramente no que a esse propósito de escreveu no citado Acórdão da Relação de Coimbra de 08.09.2020, fazemos nossas as suas palavras:
«(…), antolha-se evidente que não deverá ser o da inexistência jurídica do despacho/sentença, invalidade que supõe que o autor da sentença/despacho não esteja pessoal ou funcionalmente investido de poder jurisdicional ou não tenha a qualidade necessária ao exercício do poder jurisdicional (não, apenas, que tal poder esteja esgotado em razão do estado ou do desenvolvimento da lide), não reunindo o acto o mínimo de requisitos essenciais para que possa ter a inerente eficácia jurídica (tem existência material mas não tem existência jurídica).
No caso vertente, assim não se verifica, sendo que, por um lado, o juiz titular do processo detém jurisdição e competência no âmbito do processo em apreço, e, por outro, o despacho em causa adquiriria eficácia jurídica se a parte interessada não reagisse tempestivamente contra o respectivo vício (art.º 615º, n.º 4 do CPC).»
O despacho recorrido enferma, pois, do vício da nulidade acima identificada, na medida em que, repete-se, a Sr.ª Juíza a quo conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento (arts. 613º, nº 3 e 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do CPC).
Assim, fica sem efeito a condenação do requerente/apelante como litigante de má-fé, procedendo, desta forma, as conclusões da alegação de recurso.
Vencida no recurso, suportará a requerida as respetivas custas – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão que condenou o requerente por litigância de má-fé.
As custas do incidente e do recurso são da responsabilidade da requerida/apelada.
*
Évora, 7 de abril de 2022
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Francisco Xavier (1º adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2º adjunto)
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[1] Em violação, portanto, do art. 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do CPC.
[2] Com efeito, não é de afastar, em termos abstratos, a possibilidade ou a eventualidade de a parte (qualquer uma), já após a prolação da sentença, vir a deduzir algum incidente superveniente (v.g. em sede de reclamação da conta, em sede de esclarecimento ou reforma da sentença, em sede […]de fixação do efeito do recurso, de prestação de caução, etc.) em que se suscite e ou justifique a condenação (após a prolação da sentença) como litigante de má-fé - cfr., a título exemplificativo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 05.03.2009, proc. 1418/08-8, in www.dgsi.pt [tratava-se de um caso referente ao prosseguimento de um incidente após a desistência do pedido da ação].
Todavia, essa atuação, para assim ser considerada e decidida, isto é, como litigância de má-fé, após a sentença, tem, necessariamente, que se reportar a uma conduta superveniente relativamente à sentença.
[3] Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 26.09.2013, proc. 4351/08.8TBVNG.P2, in www.dgsi.pt.
[4] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1981, p. 281.
[5] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, Almedina, p. 463.
[6] Proc. 128/12.4TBVLN.G2, in www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto.
[7] Proc. 197/17.0T8TND.C2, in www.dgsi.pt, igualmente citado pelo recorrente nas alegações de recurso.
[8] Proc. 587/18.1T8PTL-A.G1, in www.dgsi.pt.
[9] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., p. 459.
[10] Assim como da nulidade da decisão por falta de fundamentação.