Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
715/18.7PAPTM.E1
Relator: FERNANDO PINA
Descritores: PEDIDO CÍVEL
ABSOLVIÇÃO CRIME
Data do Acordão: 05/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Conforme estabelecido no Assento nº 7/99, do STJ, de 17 de Junho de 1999, publicado no DR I Série -A de 03-08-1999 – actualmente com valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência –, no âmbito no processo penal, a condenação em indemnização civil só pode ser sustentada em responsabilidade extracontratual ou aquiliana do demandado.

2 - Decorre do artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, que a condenação numa indemnização civil tem como pressuposto que esta indemnização resulta de um facto ilícito criminal, só o pedido de indemnização civil "fundado na prática de um crime" pode ser "deduzido no processo penal respectivo" (artigo 71º, do Código de Processo Penal).

3 - Sendo a arguida e demandada absolvida do crime por que vinha acusada, por não se ter demonstrado que a mesma tivesse protagonizada a actuação ilícita que lhe era assacada, por verificação no caso concreto de dúvidas sobre os factos por si praticados e respectiva motivação, levando à aplicação do princípio basilar de processo penal, do “in dubio pro reo”, também não estão verificados os pressupostos do direito à indemnização exercida pela demandante civil, fundado na responsabilidade de tal natureza, nos termos previstos nos artigos 483º e, seguintes, do Código Civil.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Processo Comum Singular, com o nº 715/18.7PAPTM, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Local Criminal de Portimão – Juiz 1, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida:
- (…)

Imputando-lhe a prática dos factos descritos na acusação, os quais integram os elementos objectivos e subjectivos de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo art. 205º, nº 1 e nº 4, alínea. a), por referência ao art. 202º, alínea a), todos do Código Penal.

A lesada (…) deduziu pedido cível contra a arguida, peticionando a condenação da mesma no pagamento da quantia total de 10.750,00 euros, acrescida de juros de mora legais, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência da sua conduta.

A arguida ofereceu o merecimento dos autos e arrolou testemunhas.

Realizado o julgamento, veio a ser proferida pertinente sentença, na qual se decidiu:
a) Absolver a arguida (...) da prática de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo art. 205º, nº 1 e nº 4, alínea a), do Código Penal.
b) Absolver a arguida do pedido cível deduzido pela demandante.
(…)

Inconformada com esta sentença absolutória, relativamente ao pedido civil deduzido nos autos, a demandante (...), da mesma interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação, as seguintes conclusões (resumo):
1. O mútuo no valor de dez mil euros (€10.000,00) só é válido se for celebrado por documento particular autenticado, nos termos do art. 1143º do Código Civil;
2. A prova da existência de um contrato de mútuo celebrado por falta de forma, não pode ser feita com recurso a prova testemunhal;
3. A recorrida não provou por documento a existência de qualquer mútuo;
4. A recorrida não provou a obrigação de restituição da coisa alegadamente mutuada;
5. A recorrida não interpelou a recorrente para devolução ou restituição da coisa alegadamente mutuada;
6. Não ficou provada a existência de qualquer contrato de mútuo, ainda que nulo, que tivesse sido celebrado entre a recorrente e a recorrida;
7. Não existe qualquer causa de exclusão da ilicitude, nomeadamente um direito, nos termos do art. 31º, nº 2, alínea b) do Código Penal, por não existir qualquer direito que possa ser exercido pela recorrida contra a recorrente.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente Recurso ser admitido e em consequência ser revogada a decisão de tribunal a quo em absolver a arguida do pedido de indemnização cível contra si formulado, condenando-a, em virtude de não ter ficado suficientemente demostrada a existência de qualquer contrato de mútuo no valor de dez mil euros (€10.000,00), de não ter sido feita prova da obrigação de restituição da quantia eventualmente mutuada, nem ter sido feita prova da interpelação da recorrente para devolução dessa mesma quantia e em consequência condenando a arguida no pedido de indemnização cível contra si deduzido e devidamente provado e assim se dando integral provimento ao presente recurso.
Porém, V. Exas. decidirão como de costume.

Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, o Ministério Público respondeu ao recurso, (transcrição):
a) No nosso entender, deverá esse Venerando Tribunal manter a decisão por não merecer qualquer reparo;
b) A decisão não enferma de qualquer dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do mesmo diploma legal;
c) A discordância da recorrente relativamente à forma do contrato de mútuo, não assenta na violação de qualquer dispositivo legal, sendo certo que o tribunal apreciou as provas à luz do disposto no art. 127º, do C.P.P;
d) A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, nela se tendo enunciado todas as provas que serviram para a formação da convicção do tribunal, bem como todo o raciocínio lógico e racional que lhes serviu de base.
e) O tribunal a quo tudo fez para o cabal esclarecimento dos factos, conforme pode nas sessões em que se desenrolou o julgamento, tendo em face das provas produzidas, concluído pelo não preenchimento do tipo de crime de que a arguida vinha acusado;
f) E consequentemente a absolver a arguido da prática do crime de que lhe era imputado.
Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela recorrente, mantendo-se a decisão recorrida por ter feito correcta apreciação e valoração da prova produzida e não ter violado qualquer disposição legal.
Porém, Vossas Excelências, farão, como é habitual, a melhor Justiça.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer por se tratar de questão de natureza meramente civil.

Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
Na sentença recorrida, com relevância para o presente recurso, consta o seguinte:

Discutida a causa, apurou-se a seguinte factualidade com relevância para a decisão da mesma:
Factos provados:
1. No dia 26 de Janeiro de 2005, (...) e a arguida, sua irmã, abriram uma conta bancária de depósitos à ordem, sedeada no Banco “Millennium BCP”', com o nº (…), ficando ambas co­titulares da referida conta.
2. Não obstante a contitularidade da conta, os montantes ali depositados pertenciam apenas a (...), que era quem movimentava a conta, quer a débito, quer a crédito.
3. Sucede que, no dia 12-02-2018, a arguida, aproveitando-se da qualidade de co-titular da referida conta bancária, sem o consentimento de (...), realizou duas transferências bancárias, respectivamente, no valor de 6.000 e de 4.000 euros, quantias, essas, que retirou daquela conta e que transferiu para a conta nº (…), também domiciliada no Banco “Millennium BCP”, da qual é a única titular.
4. (...), ao ter conhecimento de tal conduta, por várias vezes interpelou a arguida a devolver-lhe as quantias em apreço, contudo, a arguida nada devolveu, integrando outrossim as referidas quantias no seu património, contra a vontade daquela, sabendo que eram da sua irmã.
5. A arguida agiu de modo livre, deliberado e consciente.
6. Ao descobrir que a arguida lhe tinha retirado os 10.000 euros da conta, (...) sentiu-se traída pela sua irmã, pessoa em quem confiava, ficando emocionalmente perturbada e passando a ter dificuldades em dormir.
7. A arguida trabalha como empregada de limpeza, auferindo o equivalente ao salário mínimo nacional; vive em casa arrendada, pagando a renda mensal de 400 euros; vive com um companheiro, que se encontra desempregado; tem uma filha, maior de idade e já autónoma; tem o 4º ano de escolaridade.
8. A arguida não tem antecedentes criminais.

Factos não provados:
Nenhum outro facto com relevo para a decisão se apurou, designadamente que:

1. A arguida apropriou-se daquela quantia, sabendo que não tinha direito a apoderar-se da mesma, causando prejuízo à sua irmã, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Motivação
Sendo certo que, salvo quando a lei disponha diferentemente, a prova, nos termos do art. 127º do CPP, deve ser apreciada no seu conjunto segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador, foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade apurada:
1 - Declaracões da arguida: que admitiu ter transferido, da conta dos autos, para a sua conta bancária, a quantia de 10.000 euros, por corresponder ao valor que havia, anos antes, emprestado à sua irmã, aquando da compra de uma casa em Portimão, e que a mesma recusava pagar-lhe. Assim, aproveitando-se do facto de titular, tendo, portanto, acesso às quantias ali depositadas, fez as ditas transferências, saldando, assim, a dívida que a sua irmã tinha para consigo. A respeito do dito empréstimo, esclareceu que a sua irmã, dias antes de celebrar a escritura da compra da casa, dirigiu-se à sua casa, pedindo-lhe aquele valor, que correspondia ao montante que lhe faltava para perfazer o valor da compra, tendo-lhe a mesma entregado aquela quantia, em dinheiro, na presença de um amigo. Mais esclareceu que, algum tempo antes da escritura, sendo suposto a ofendida trazer o dinheiro da Alemanha (onde a mesma estava emigrada), para depositar na conta dos autos, o seu ex-marido ter-se-ia apoderado de um valor avultado, razão pela qual a sua irmã teria regressado à Alemanha, a fim de obter a quantia em falta, que rondaria os 20.000 euros. Assim, quando regressou, tendo conseguido juntar apenas 10.000 euros, dirigiu-se a si para lhe pedir o restante, a fim de poder outorgar a escritura, como veio a suceder. Quando, porém, lhe pediu que lhe devolvesse o valor emprestado, a ofendida recusou pagar-lhe o que quer que fosse, rejeitando dever-lhe qualquer quantia, altura em que romperam relações. A sua versão, pese embora contrariada pelas declarações da ofendida, foi corroborada pelo depoimento da testemunha (…), que presenciou a entrega do dinheiro à ofendida e que acompanhou o negócio de compra da casa, mostrando-se, ainda, compatível com o que se extrai da prova documental, tudo conferindo foros de verosimilhança à sua versão, de modo adequado a gerar, pelo menos, dúvidas quanto à verificação dos factos tal como narrados nos autos. Por isso que, não se antevendo outros meios de prova capazes de ultrapassar o impasse probatório, se tivesse valorado a sua versão em conformidade com o princípio "in dúbio pro reo".
2 - Declarações da demandante (...): ofendida, a qual esclareceu sobre as circunstâncias que a levaram a abrir uma conta bancária conjunta com a sua irmã (a mesma estava emigrada na Alemanha, queria abrir uma conta em Portugal, e queria assegurar que se algo lhe sucedesse a arguida poderia dispor das quantias em favor do seu filho menor), tendo confirmado que, apesar daquela contitularidade, os valores ali depositados eram seus, produto das suas poupanças. Esclareceu ainda que, numa dada ocasião, em que foi ao Banco tratar de uns assuntos, descobriu que a sua irmã lhe havia tirado da conta a quantia de 10.000 euros, o que a deixou em estado de choque, não só pelo facto de ter ficado sem aquela quantia avultada, mas por ter sido a sua irmã, pessoa da sua inteira confiança, tendo descrito as consequências emocionais que para si resultaram. Instada a esclarecer sobre os contornos do negócio da compra da casa, admitiu a mesma ter pedido emprestada, à sua irmã, a quantia de 900 euros, para pagar ao notário, do que logo a reembolsou, negando, porém, ter-lhe pedido qualquer outra quantia emprestada (embora, em audiência, tivesse revelado, nessa ocasião, uma postura subitamente defensiva). Assim, esclareceu que, para a compra da referida casa, juntou o dinheiro necessário ao pagamento do preço, no montante de 55.000 euros, que depositou naquela conta (numa ocasião, em numerário - 10.000 euros - que trouxe consigo da Alemanha; e o resto, por três vezes, através de transferências). A sua versão, porque desacompanhada de outros elementos probatórios cabais, não se mostrou, porém, suficiente para afastar as dúvidas geradas pela versão dada pela arguida.
3 - Depoimento da testemunha (…): filho da ofendida e sobrinho da arguida, o qual apenas relatou acerca do que soube, pela sua mãe, confirmando que o dinheiro que estava depositado na conta bancária dos autos pertencia à sua mãe e que a mesma ficou muito desgostosa ao descobrir que a arguida lhe havia tirado dinheiro da conta. A testemunha depôs de modo coerente e sem suscitar reservas a respeito da sua isenção, tendo merecido credibilidade para o apuramento dos factos relativamente aos quais revelou conhecimento directo. Quanto aos restantes, não assumiu, o seu depoimento, relevo probatório.
4 - Depoimento da testemunha (…): amigo da ofendida, o qual apenas soube esclarecer acerca do que a mesma lhe contou que a arguida lhe havia feito, confirmando o estado emocional em que ficou ao descobrir os factos. A testemunha depôs de modo coerente e sem suscitar reservas a respeito da sua isenção, tendo merecido credibilidade para o apuramento dos factos relativamente aos quais revelou conhecimento directo, não assumindo, quanto aos demais, relevo probatório.
5 - Depoimento da testemunha (…): prima da arguida e da ofendida, a qual chegou a morar em casa da arguida, em 2016, tendo deposto a respeito do relacionamento entre as duas irmãs, embora nada soubesse esclarecer a respeito dos factos aqui em causa, pelo que se mostrou, o seu depoimento, desprovido de relevo probatório.
6 - Depoimento da testemunha (…): amigo da arguida, em casa de quem mora, desde há cerca de 15 anos, o qual esclareceu acerca dos contornos do negócio da compra da casa por parte da ofendida, do que soube por ter acompanhado o mesmo. Mais esclareceu que, dias antes da escritura, e porque o ex-marido da ofendida se tinha aboletado com dinheiro desta, a mesma pediu à arguida que lhe emprestasse 10.000 euros, como a mesma emprestou, o que sucedeu na sua presença, tendo sido o próprio a contar o dinheiro, a pedido da arguida. Confirmou, ainda, o empréstimo de 900 euros, à ofendida, para a mesma pagar a escritura, tendo ainda esclarecido que as irmãs cortaram relações depois de a arguida ter ido pedir à ofendida que lhe devolvesse o valor em dívida. A testemunha revelou grande proximidade relativamente à arguida, deixando passar algum ressentimento com o facto de não lhe terem sido entregues as obras da casa comprada pela ofendida, o que suscitou reservas a respeito da sua isenção. Por isso, apenas se valoraram as suas declarações na parte em que não foram contrariadas pelos restantes meios de prova.
7 - Documentos: declaração bancária de fls 7; extracto bancário respeitante a Janeiro de 2018, de tis 8; lista de lançamentos bancários de fls 9; pesquisa de movimentos de fls 10; carta de interpelação de fls 11 a 13; informação bancária relativa a conta bancária titulada pela arguida (elementos de identificação de titular da conta e extracto bancário respeitante a Fevereiro de 2018), de fls 19 a 21 verso; cópia da escritura de compra e venda, de fls 147 a 151; extractos bancários da conta dos autos relativo ao ano de 2012, de fls 160 a 183; e CRC da arguida.
Os factos dados como provados resultam da conjugação de todos os meios de prova produzidos, na parte em que coincidem entre si, avaliados, ainda, à luz das regras de experiência e da normalidade do acontecer, que os confirmam.
Já os factos dados como não provados resultam da insuficiência da prova produzida.
Com efeito, sendo inequívoco que a conta bancária dos autos era titulada pelas duas irmãs, ambas confirmaram que os montantes ali depositados pertenciam apenas à ofendida, que era quem movimentava a conta, sendo a titularidade da arguida meramente formal. Assim, dúvidas não existem de que os 10.000 euros transferidos daquela conta, no dia dos autos, pertenciam à ofendida.
Assente se tem, também, que aquele montante foi transferido da dita conta conjunta para uma conta bancária da arguida, da qual é a mesma a sua única titular, como se alcança do teor dos documentos de fls 8 frente e verso e 19 a 21, pelo que só a arguida poderia ter feito tal transferência, como, de resto, a mesma admitiu em juízo.
Donde, foi a arguida que, no dia 12-02-2018, tendo acesso à conta bancária dos autos, por ser da mesma co-titular, deu ordem de transferência, do montante de 10.000 euros, daquela conta para a sua conta, fazendo sua a referida quantia, como a mesma quis fazer, sabendo que se tratava de dinheiro que à sua irmã pertencia. Mais assim agiu, como a mesma admitiu, sem disso ter prevenido a sua irmã e sem que a mesma lhe tivesse dado, para tanto, autorização.
Sucede que a arguida avançou com uma justificação para se ter apoderado da referida quantia: quando a sua irmã comprara uma casa, anos antes, havia-lhe emprestado 10.000 euros, em dinheiro, montante que ainda se encontrava em dívida, dado que a ofendida se recusava pagar-lhe o montante emprestado.
Já a ofendida negou ter pedido ou recebido qualquer empréstimo daquele montante, admitindo apenas ter-lhe pedido 900 euros, para pagar ao notário, no acto da escritura, valor que logo a reembolsou. Explicou, assim, que para a realização do negócio, trouxe o dinheiro da Alemanha, o que fez por três vezes, mediante depósitos em numerário e transferências bancárias, sendo o valor da compra da casa proveniente das suas poupanças.
Ouvida, porém, a testemunha (…), afiançou o mesmo que, dias antes da escritura, a ofendida dirigiu-se a casa da arguida, pedindo-lhe aquele montante emprestado, tendo sido o próprio a contar o dinheiro e a entregar-lhe o mesmo em mãos.
Ora, é certo que esta testemunha mora em casa da arguida há vários anos, tendo, com a mesma, uma relação de profunda amizade (são como família); foi até casado com uma prima de ambas; e esperava ganhar com o negócio da compra da casa, pois que ficara apalavrado que trataria das obras necessárias, o que, porém, se gorou, o que convoca algumas reservas a respeito da sua inteira objectividade. Sem embargo, a testemunha relatou os factos de modo coerente, sendo que a própria ofendida confirmou que foi esta testemunha quem lhe adiantou, por conta da sua irmã, os 900 euros de que precisou para pagar a escritura. É, pois, de estranhar que a ofendida fosse recorrer a alguém que fosse totalmente desconhecedor do negócio, o que não pode deixar de conferir consistência ao relato da testemunha.
Ademais, importa atentar no teor dos documentos juntos aos autos, uma vez que as restantes testemunhas inquiridas não revelaram qualquer conhecimento directo dos factos, sabendo apenas esclarecer acerca do que a ofendida lhes contou que se havia passado, sendo que a questão relevante a apurar é a de saber se a arguida emprestou ou não 10.000 euros à ofendida para que a mesma pudesse comprar a casa (pois que seria esse o motivo para a arguida retirar um montante equivalente da conta bancária dos autos).
Aqui chegados temos, pois, duas versões opostas: de um lado, a da ofendida, que reclama a restituição dos 10.000 euros que lhe foram tirados da sua conta, negando que a arguida tivesse qualquer direito a se apoderar daquele montante, uma vez que nunca lhe emprestou aquela quantia para a compra da casa; e por outro, a da arguida, que, apoiada pelo depoimento da José António Marques, afirmou ter emprestado 10.000 euros, em dinheiro, à sua irmã, dias antes da escritura da casa.
Ora, ante o que evola dos ditos documentos extrai-se que:
- No dia 14-12-2012, a ofendida comprou um imóvel, pelo preço de 55.000 euros (cfr escritura de fls 147 e segs);
- nesse dia, a ofendida emitiu um cheque, nesse valor, para pagamento desse preço (conforme a mesma referiu e que está comprovado pelo teor de fls 149 da escritura e do teor de fls 170 verso do extracto bancário), ou seja, o pagamento do preço da casa foi efectuado com os fundos existentes na conta dos autos.
Ora, nessa conta, que costumava estar provida com quantias na ordem dos 700/800 euros (como se extrai da análise dos restantes extractos respeitantes aos meses anteriores de 2012), foram feitos dois depósitos, em Outubro, de valores significativos (19.200 euros, em 08-10-2012, e 10.000 euros em 23-10-2012, cfr fls 171 verso), o que perfaz cerca de 29.000 euros, por sua vez coincidente com o que a arguida relatou em audiência (que, em data próxima da escritura, faltariam, à ofendida, cerca de 20.000 euros para o valor da casa).
Mais tarde, já em Dezembro, a ofendida junta, à conta, mais 10.000 euros, em 04-12-2012 (cfr fls 170 verso), junta mais 5.000 euros em 10-12-2012, e mais 10.000 euros, em 13-12-2012, na véspera, pois da escritura, altura em que são debitados os tais 55.000 euros do preço da casa.
Daqui se retira, pois, que os valores em causa foram ali depositados tendo em vista a realização da escritura.
Mais se retira que os créditos em causa resultam ou de transferências feitas em nome da ofendida ou de depósitos em numerário, o que, de resto, foi confirmado pela ofendida e mesmo pela arguida.
Ora, diz a arguida que lhe entregou 10.000 euros em dinheiro para que a mesma pudesse prosseguir com o negócio. E, efectivamente, há um depósito em numerário, nesse montante, em data anterior à escritura. Ou seja, a ofendida, de facto, depositou, em data anterior à escritura, 10.000 euros em dinheiro. A questão é a de saber de quem eram esses 10.000 euros que vieram a ser depositados nessa conta antes da escritura. E se a ofendida afirma que eram seus, por os ter trazido da Alemanha, já a arguida avança que lhe foram por si emprestados, o que foi confirmado pela testemunha (…), que até lhos viu entregar.
Perante tais elementos probatórios, não pode a versão da ofendida reputar-se como suficiente para afastar a versão dada pela arguida, a qual se mostra, pelo menos, adequada a gerar dúvidas, sobre o dito empréstimo.
Ademais, importa notar, não deixa de causar estranheza que a arguida, com acesso à conta da sua irmã e, portanto, à totalidade dos montantes ali depositados, tivesse levantado "apenas" 10.000 euros (que coincide com o valor que a mesma disse ter emprestado), quando ali ainda ficaram mais de 600 euros. Do mesmo modo, anota-se que a transferência bancária foi efectuada para uma conta titulada apenas pela arguida, ou seja, de fácil descoberta, o que sustenta, também por aqui, a versão da arguida.
Assim, tudo devidamente valorado, e porque as dúvidas geradas pela versão da arguida não são supríveis com recurso a outros meios de prova, em conformidade com o princípio do in dúbio pro reo, impunha­se dar tal factualidade como não provada, como se decidiu não dar.
(…)

Do pedido de indemnização civil:
Veio a demandante peticionar a condenação da arguida no pagamento da quantia de 10.750 euros, dos quais, 10.000 euros, a título de indemnização pelos danos patrimoniais, e os restantes 750 euros, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, danos esses sofridos em consequência da conduta da arguida.
Tal como estatuído pelo art. 483º do CCivil, «aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Ora, pese embora se tivesse provado que a arguida retirou, da conta dos autos, a quantia de 10.000 euros, que pertenceriam à ofendida, e que a mesma, ao descobri-lo, sentiu forte abalo emocional, não só pelo valor do qual ficara privada, mas por se ter sentido traída na sua confiança, pela sua irmã, não se logrou demonstrar, para além de qualquer dúvida, que à arguida não assistisse qualquer direito ao referido montante e, por isso, que tivesse sido de modo ilegítimo que assim tivesse agido.
Por isso que, não ficando demonstrado que tivesse havido uma violação ilícita e dolosa dos direitos da ofendida, por não se mostrarem preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, importa absolver a arguida do peticionado, uma vez que improcede a pretensão da ofendida, como se decide fazer.
(…)

II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai das respectivas motivações, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

No caso em apreço, atendendo às conclusões, a questão que se suscita é a seguinte:

- Impugnação da sentença proferida, por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente à absolvição da demandada do pedido civil deduzido.

Nos termos supra, referidos, impõe-se, antes do mais por obediência à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, deixar exarado que a sentença recorrida, por si ou com recurso às regras da experiência, não revela qualquer dos vícios prevenidos no nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal.
Com efeito, investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos julgados provados ou entre estes e os factos julgados não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
Assim, não se verificando qualquer vício de procedimento e, não sendo invocado qualquer erro no julgamento da matéria de facto, cumpre apreciar a impugnação da demandante por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente à absolvição da demandada do pedido civil deduzido, por inexistência de qualquer contrato de mútuo válido.
Resulta da decisão recorrida que foi julgado improcedente o pedido civil e a demandada absolvida do pedido de indemnização cível deduzido pela demandante, no montante de € 10.750,00, acrescido de juros de mora legais, a título de indemnização pelo dano patrimonial de € 10.000,00 e pelo dano não patrimonial de € 750,00, por se ter considerado que não resultou provado que a demandada havia praticado um acto ilícito e culposo que fosse a causa adequada dos danos alegadamente sofridos, não estando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos.
A recorrente reitera o pedido formulado.
Tal pretensão recursiva terá que improceder, por se manter a matéria de facto e a absolvição da demandada no âmbito penal e, consequentemente, o enquadramento jurídico dado aos mesmos factos.
Na verdade, o pedido civil foi deduzido pela demandante contra a arguida/demandada, ao abrigo do princípio da adesão previsto no artigo 71º, do Código Penal, com fundamento no cometimento de um ilícito (criminal) pela segunda.
Conforme estabelecido no Assento nº 7/99, do STJ, de 17 de Junho de 1999, publicado no DR I Série -A de 03-08-1999 – actualmente com valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência –, no âmbito no processo penal, a condenação em indemnização civil só pode ser sustentada em responsabilidade extracontratual ou aquiliana do demandado.
Decorre do artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, que a condenação numa indemnização civil, tem como pressuposto que esta indemnização resulta de um facto ilícito criminal, só o pedido de indemnização civil "fundado na prática de um crime" pode ser "deduzido no processo penal respectivo" (artigo 71º, do Código de Processo Penal).
Ora, sendo a aqui arguida e demandada absolvida do crime por que vinha acusada, por não se ter demonstrado que a mesma tivesse protagonizada a actuação ilícita que lhe era assacada, por verificação no caso concreto de dúvidas sobre os factos por si praticados e respectiva motivação, levando à aplicação do princípio basilar de processo penal, do “in dubio pro reo”, também não estão verificados os pressupostos do direito à indemnização exercida pela demandante civil, fundado na responsabilidade de tal natureza, nos termos previstos nos artigos 483º e, seguintes, do Código Civil.
Assim, bem andou o Tribunal “a quo”, ao absolver a demandada/arguida (...), do pedido civil contra si deduzido pela demandante, (...), por não ter resultada provada nos autos qualquer conduta ilícita daquela, o que determina a inexistência dos pressupostos do direito à indemnização, fundado na responsabilidade por acto ilícito, nos termos previstos nos artigos 483º e, seguintes, do Código Civil.
Nestes termos improcede a pretensão constante da motivação do recurso interposto, confirmando-se consequentemente a sentença recorrida.

Custas nos termos do artigo 523º, do Código de Processo Penal.


III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar improcedente o recurso interposto pela demandante (...), confirmando-se a sentença recorrida.

- Custas nos termos legais, artigo 523º, do Código de Processo Penal.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.
Consigna-se, ainda, não ter sido realizada conferência presencial, mas por teleconferência.

Évora, 11-05-2021
(Fernando Paiva Gomes M. Pina) (Beatriz Marques Borges)