Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3476/17.3T9FAR.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS
RACIONALIDADE
SUFICIÊNCIA
NULIDADE
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. As decisões judiciais têm de ser claras, precisas e autossuficientes na sua compreensibilidade.
II. Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto o julgador pode ilustrar o seu raciocínio com extratos da literatura policial. O que se não pode é suspender a racionalidade exigível e expectável.
III. Sendo o que sucederá se ao invés de explicitar, de forma lógica, racional e clara, as razões que fundaram a sua convicção quanto aos factos julgados, substituir o cumprimento desse dever com mera referência a um quadro literário, assente em pressupostos distintos dos exigíveis a uma sentença.
IV. Tal redundará em insuficiência da fundamentação, que constitui nulidade prevista no artigo 379.º/1-a) CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nos autos de processo comum singular supra numerados que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo de Competência Genérica ..., J... – O Ministério Público deduziu acusação contra:

AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia e concelho ..., nascido em .../.../1988, solteiro, com morada na Estrada ..., ..., ..., e

DD, filho de EE e de FF, natural de freguesia ..., concelho ..., nascido em .../.../1985, solteiro, com residência na Rua ..., ... ...,

Imputando-lhes a prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança agravado, na forma continuada, previsto no artigo 205, n.ºs 1 e 4, al. b), em conjugação com os artigos 202, al. b), e 30, n.º 2, todos do Código Penal.

E promoveu que se determinasse a perda a favor do Estado das vantagens obtidas pelos arguidos com a prática do crime, no valor de 25.754,63 (vinte e cinco mil e setecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos), e sem prejuízo dos direitos de terceiros, nos termos do artigo 110, n.º 1, al. b), e n.º 4, do Código Penal.

Algartalhos – Supermercados, Lda., deduziu pedido de indemnização cível contra os arguidos pedindo a sua condenação solidaria a pagar-lhe a referida quantia de vinte e cinco mil e setecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal até integral pagamento, por danos patrimoniais pelos factos narrados na acusação.

A final, por sentença de 20.04.2022, decidiu o tribunal recorrido:

Absolver o arguido AA;
Condenar o arguido DD, pela prática de um crime de abuso de confiança agravado, na forma continuada, previsto nos artigos 205, n.ºs 1 e 4, al. a), e 202, al. a), 32, n.º 2, e 79, n.º 1, do Código Penal, na pena de duzentos e cinquenta dias de multa, à taxa diária de sete euros, cf. artigo 50, n.ºs 1 e 5, CP.
Declarar perdida a favor do Estado a quantia de quantia de vinte e cinco mil e setecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos, correspondente à vantagem patrimonial obtida pela prática do ilícito pelo arguido DD, que é condenado a pagar tal quantia ao Estado, sem prejuízo dos direitos da ofendida, segundo disposto no artigo 110, n.º 1, alínea b), e n.ºs 4 e 6, do Código Penal.
Julgar o pedido cível parcialmente procedente, e o demandado DD é condenado a pagar à demandante Algartalhos – Supermercados, Lda., a quantia de vinte e cinco mil e setecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos, acrescida de juros de mora à taxa legal desde notificação para contestar até pagamento, de indemnização por danos patrimoniais; e o demandado AA é absolvido do pedido.


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O arguido, inconformado, interpôs o presente recurso, concluindo:

a) Por Sentença ora colocada em crise, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Competência Genérica ... – Juiz ..., determinou o Meritíssimo Juiz a quo que: O Arguido DD é condenado pela prática de um crime de abuso de confiança agravado, na forma continuada, previsto nos artigos 205 nºs 1 e 4 al. a) e 202º al. a) do nº 2 e 79 nº 1 do Código Penal na pena de duzentos e cinquenta dias de multa à taxa diária de sete euros, Declara-se perdida a favor do Estado a quantia de vinte e cinco mil e setecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos, correspondente à vantagem patrimonial obtida pela prática do ilícito pelo arguido DD, que é condenado a pagar tal quantia ao Estado, sem prejuízo dos direitos da ofendida, segundo disposto no artigo 110 nº 1 alínea b) e nºs 4 e 6 do Código Penal, Julga-se o pedido cível parcialmente procedente, e o demandado DD é condenado a pagar à demandante Algartalhos – Supermercados Lda, a quantia de vinte e cinco mil e setecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação para contestar até pagamento, de indemnização por danos patrimoniais, Vai ainda o arguido DD condenado em custas processuais com 3UC de taxa de justiça: artigos 513, e 344 nº 2, al C), do código de Processo Penal e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, Anexo III do DL nº 34/08 de 26 de Fevereiro, atualizado, e nos encargos a que a atividade deu lugar, artigos 514º nº 1 do CPP e 16 do RCP, Custas Cíveis pelo demandado DD, cf. artigos 523 CPP e 527 CPC.
b) Insurge-se o Recorrente contra decisão condenatória proferida pelo Tribunal “a quo”, dela não se conformando, por entender que na decisão colocada ora em crise, saiu violado o Principio da Presunção Legal da Inocência consagrado no nº 2 do artigo 32º da Constituição da Republica Portuguesa o qual, naturalmente, constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
c) Na verdade, considera o Recorrente que por insuficiência da prova quanto a certos factos os mesmos, não o poderiam ter sido dados como provados incorrendo a sentença em nulidade por falta de fundamentação nos termos do disposto no artigo 379º do CC, por outro lado, considera ainda que certos factos deveriam ter sido dados como provados, atenta a prova testemunhal, que não o foram, enfermando-se assim a douta Sentença de que ora se recorre.
d) Por outro lado e na nossa modesta opinião, o Meritíssimo Juiz “a quo” num contexto factual em que inexiste prova para a imputação da prática do crime de abuso de confiança agravada na forma continuada, como estabelecida no libelo acusatório, absolve, atento mesmo circunstancialismo um dos arguidos – porque estava “sentado distante do outro, declarou-se inocente e afirmou calmamente não ter ficado com dinheiro algum”, e condena o ora Recorrente com base em ter este “resolvido prestar declarações dizendo de forma irritada e ansiosa” a sua versão dos factos, ou seja por meio da mera perceção visual, o que não se compatibiliza com o Principio da Livre Apreciação da Prova, mas assenta tão somente num juízo puramente arbitrário e inquisitório, como adiante se passará a demonstrar.
e) O Meritíssimo Juiz apenas fundamenta os pontos dados como provados de 1 a 11 e 33 a 35,
f) Assim, padece a Sentença de nulidade face ao vicio de falta de fundamentação, quanto aos factos dados como provados de 12 a 32 nos termos do disposto na alínea c) do artigo 379º do CPP.
g) Mais se refira da total insuficiência de prova para a condenação do ora Recorrente, em virtude de se basear apenas em presunções, que no iter criminis não obedecem a regras de experiência comum,
h) Com efeito quanto ao factos dados como provados a 12 a 32 – Não deveriam os mesmos ter sido dados como provados pois não resulta da produção de prova em sede de audiência de julgamento que esteja corporizada na fundamentação factualidade que garanta tal desiderato.
i) Aliás, o Meritíssimo Juiz “a quo” faz alusão à convicção do tribunal ainda que de forma sumária e sintética até ao facto 11,mas a partir deste facto, encontra-se a sentença totalmente omissa.
j) Com efeito e sob pena da violação das garantias de defesa do Arguido, devendo as decisões judiciais serem fundamentadas nos termos do disposto no artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, e “A exigência de fundamentação consiste na imposição de que “as decisões sejam eficazmente motivadas em matéria de facto e de direito”. “Motivar, na sua aproximação mais óbvia, é justificar a decisão adoptada para que possa ser controlada do exterior (Perfecto Andrés Ibañez, loc. cit., p. 167).”
k) Assim, exige-se ao julgador não só a indicação das provas e dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão.
l) Estes motivos de facto não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência” (Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, 229/30)
m) Ao motivar, o tribunal tem de dar a conhecer “as razões – necessariamente racionais e objectivas – da decisão, O tribunal dará cumprimento à norma, tendo em conta o artigo 205º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram (…) Ela destina-se a justificar, de forma racional e objectiva, a convicção formada” (Sérgio Poças, Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Rev. Julgar, nº3).
n) Abundante é, também, a jurisprudência do Tribunal Constitucional. No Acórdão n.º 198/2004, de 24.03.2004, por exemplo, chama-se a atenção para que “esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) o) Ora, com o devido respeito e salvo melhor e douta opinião, tal não ocorre na Sentença ora recorrida,
p) Os supra referidos factos necessários para a imputação objetiva e subjetiva da ptatica do crime, decorrem de puro circunstancialismo e inerência de funções de gerência, com acesso partilhado ao cofre com o arguido AA, aliás, transpondo a própria fundamentação do Meritíssimo Juiz, verificamos que o mesmo aventa esta convicção “pois, a quem entenda, como faz a defesa, que se estranha ou compreende mal que o arguido se apropriasse do dinheiro sendo responsável deste e da respectiva entrega aos funcionários da segurança que o vinham buscar, responde-se primeiro que não era só o arguido DD o responsável de tal, mas também o arguido AA”
q) Ora, tendo o Tribunal dado como provado que o Arguido AA tinha livre acesso ao cofre à semelhança do Recorrente, como condena um e não o outro, quando não existe qualquer elemento probatório que ateste que o Recorrente enriqueceu ou apresentou sinais exteriores de riqueza, bem como que alguém o tenha visto a apropriar-se dos referidos montantes pecuniários após a contagem dos dinheiros.
r) Na nossa modesta opinião não pode o Tribunal arbitrariamente imputar responsabilidades a nenhum dos dois, pois é totalmente impossível com grau mediano de certeza atestar que foi um ou o outro, pois na verdade, existe assim, uma dúvida razoável quanto à identidade do sujeito que perpetrou a apreensão das verbas financeiras descritas nos factos dados como provados de 13 a 30.
s) É de tamanha veleidade, no julgar um ilícito criminal desta natureza, com consequências profissionais, sociais e financeiras, invocar para a prova destes factos Edgar Allan Poe na “Carta Roubada”, ipsis verbis -“ pois, a quem entenda, como faz a defesa, que se estranha ou compreende mal que o arguido se apropriasse do dinheiro sendo responsável deste e da respectiva entrega aos funcionários da segurança que o vinham buscar, responde-se primeiro que não era só o arguido DD o responsável de tal, mas também o arguido AA, pelo que aquele bem podia contar lá nos seus cálculos com que esta circunstância sempre contribuiria para confundir o caso deixando o julgador perplexo sobre a qual dos dois atribuir a culpa; depois, que precisamente uma das formas de esconder algo é expô-la à maior evidência, como no caso e conto clássico e consabido da «Carta Roubada», de Edgar Allan Poe, em que ninguém repara nesta justamente por exposta à vista de todos ao centro da cornija da lareira, se bem me lembro, como certamente o arguido esperaria que sucedesse com a seu feito; e enfim, ainda que assim não seja, é a ficção que necessita de ser verosímil, não a verdade”.
t) Ora o Recorrente na data em que alegadamente desapareceram da esfera judicia da Demandante € 25.754,63 (vinte e cinco mil e setecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos) ou seja período mediado entre Julho e Agosto de 2017, contava com cerca de 31 anos de idade e trabalhava no grupo Algartalhos com as funções de chefia e gerência as quais prestou durante 11 anos, conforme resulta das declarações do próprio arguido de GG, de HH e de II.
u) Nunca lhe foi conhecido durante os onze anos em que prestou actividade de responsabilidade qualquer procedimento disciplinar, ou foi denunciado ou lhe imputado qualquer desaparecimento de valores em caixa.
v) Sempre de acordo com JJ, agente da PSP e seu cunhado, comprou ara revender veículos automóveis granjeando assim rendimentos adicionais, sendo que o carro mais carro que comprou não chegou a € 5.000,00 (cinco mil euros)
w) Para além do mais o Recorrente, possuía à data dos factos um crédito à habitação que pagava, conforme declaração de responsabilidades do Banco de Portugal - fls 178,
x) Foi qualificado por colegas de trabalho como bom profissional e tinha a confiança dos patrões como decorreu do depoimento de GG, inexistindo qualquer histórico de infrações disciplinares que lhe fosse aplicadas pela Demandante.
y) Assinou durante onze anos as contagens das diversas caixas registadoras sem que faltasse qualquer dinheiro, nem qualquer testemunha atestou que o tivesse visto a retirar dinheiro do cofre.
z) Aliás, se o próprio Recorrente assina as contagens do dinheiro que coloca no cofre, qual o motivo para fazer desaparecer tais verbas quando a espada de Dâmocles pairaria sempre sobre a sua cabeça.
aa) Naturalmente, este pelas funções de chefia que exerce seria sempre o primeiro a ser responsabilizado, ainda que não criminalmente, civil e disciplinarmente tendo que devolver as importâncias em falta ao seu empregador, atentando à posição de chefia que desempenhava?
bb)E, assim, qual pois o interesse deste em se apropriar de verbas monetárias, que sabe que são recontadas posteriormente pela empresa LOOMIS, quando a final teria sempre (ainda que não em natureza criminal) de restituir ao seu empregador tais montantes.
cc) Ora, a natureza das coisas que se impõe in casu determina que qualquer gerente que assine as contagens de dinheiro que é armazenado em cofre, não o faça em momento posterior desaparecer uma vez que ao atestar a quantia que guardou, tornar-se-á seu responsável.
dd)Não existe prova suficiente que ateste que o Recorrente tivesse praticado os ilícitos que lhe são imputados na Sentença, pelo que os factos dados como provados de 12 a 31 e atenta a manifesta falta de fundamentação na sua valoração, devem ser considerados como não provados e a sentença declarada nula, absolvendo-se o arguido da prática do ilícito criminal em que foi condenado, no pedido de indemnização civil contra si deduzido pela Demandante ALGARTALHOS SUPERMERCADOS LDA e em que foi condenado no valor de € 25.754,63 bem na perda de vantagens a favor do Estado Português no montante de € 25.754,63, nos termos do disposto no artigo 110 nº 1 do Código Penal.
ee) Como de forma clara e brilhante refere o douto acórdão 1360/14.IT9STB.E1 proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em que foi relator o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Gomes de Sousa “O princípio in dubio pro reo impõe ao tribunal que, na dúvida, favoreça o arguido quando formula uma apreciação racional sobre o acontecer naturalístico, no caso de se não ter a certeza sobre esse acontecer.
ff) O princípio in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997. Essa «dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal». Ac. STJ de 25-10-2007, in proc. 07P3170, relator Cons. Carmona da Mota, citando a autora anteriormente citada.
gg) Por fim, quando se formula um juízo de convicção tem-se presente a existência de uma presunção de inocência e, por isso, não vale um mero juízo de maior probabilidade de que os factos terão ocorrido de determinada forma, exigindo-se um forte juízo de certeza de que os factos terão ocorrido de determinada forma, não de outra.
hh) E ela é expressa em duas frases que se entendem não permitirem melhor explanação, a continental europeia “probabilidade que roça a certeza” e a anglo-saxónica “beyond reasonable doubt”, ambas expressando idêntica realidade, o mais exigente standard de prova.
ii) Ora, subsumindo in cau, existindo dois indivíduos em igualdade de circunstâncias (o Recorrente e AA) que são responsáveis pelo cofre, assumem funções de gerência, fazem a contagem do dinheiro e assinam os talões, que não existe qualquer suporte probatório testemunhal suficiente para os condenar, e tendo sido os mesmos incapazes de se acusar ou culpabilizar mutuamente por nunca terem presenciado quaisquer factos susceptíveis de consubstanciar a prática do crime de abuso de confiança agravado nos termos previstos no artigo 205º nºs 1 e 4 al. a) e 202 al. a) do Código Penal, entende o Recorrente que sempre se estaria no domínio da dúvida razoável, o que importaria uma absolvição do ora Recorrente.
jj) Com efeito, o próprio Juiz com uma fundamentação completamente inadmissível num Estado de Direito Democrático, admite a dúvida como possível afastando com possibilidades e não certezas como se lhe impunha “responde-se primeiro que não era só o arguido DD o responsável de tal, mas também o arguido AA, pelo que aquele bem podia contar lá nos seus cálculos com que esta circunstância sempre contribuiria para confundir o caso deixando o julgador perplexo sobre a qual dos dois atribuir a culpa; depois, que precisamente uma das formas de esconder algo é expô-la à maior evidência” ora, esta fundamentação é totalmente despida de objetividade factual e puramente inquisitória
kk) O que para além de se assumir como a condenação de um ilícito criminal grave, cujo teor se mostra prejudicial ao desempenho profissional do Recorrente, atentas as funções de gerência de loja que ainda hoje exerce, ainda o obrigaria a pagar € 52.000,00.
ll) E se o Tribunal a quo simplesmente entende que deve condenar o Recorrente por juízos de valor quanto à personalidade ou conduta do arguido DD as quais reitera-se, na nossa humilde opinião não se mostram como suficientes para além da duvida razoável conferir a culpabilidade na prática do ilícito criminal em que foi condenado, mais depressa e factualmente estre mui nobre Tribunal deveria ter atentado às listagens das contas bancárias de fls 199 a 226 dos autos, as quais deu como integralmente provadas, onde de forma clara se verifica que quanto ao Recorrente não existe qualquer entrada ou saída significativa de capital nas contas bancárias no período em que desapareceram as quantias monetárias da Demandante, já quanto ao Arguido AA, com um ordenado de € 1. 100,00, constatamos que entre julho agosto de 2017, o mesmo gasta mais de € 6.000,00 (Fls 199-200) em bens de consumo, ostensivos e de riqueza, precisamente, durante o período de tempo em que desapareceram montantes pecuniários da esfera jurídica da Demandante/Ofendida, o que o tribunal a quo encarou certamente deve ter encarado como mera casualidade.
mm) Pelo que, havendo arbitrariedade, na nossa modesta opinião, mais facilmente nos parece possível em teoria condenar o absolvido AA, e absolver o condenado DD.
nn) Porém, estribando-se tal possibilidade no princípio in dubio pro reo o qual estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
oo) E, assim, havendo dois indivíduos em total igualdade de circunstâncias, que assinam os documentos de contagem e guardam o dinheiro no cofre, sem qualquer outra prova cabal e não circunstancial que ateste tal imputação, sempre haverá uma dúvida razoável quanto a quem praticou o ilícito criminal, a qual e apesar da excelência da escrita de Edgar Allan Poe, não resulta afastada simplesmente pela conclusão empírica de que “uma das formas de esconder algo é expô-la à maior evidência.”
pp) Motivo pelo qual, se entende salvo melhor entendimento que em obediência ao Principio In Dubio Pro Reo previsto nos termos do disposto no artigo 32º da CRP, nunca deveria o Recorrente ter sido condenado na prática do crime, no pedido de indemnização civil e na perda de vantagens a favor do Estado, como o foi pela Sentença ora em crise em virtude da clara impossibilidade de aferir sem sombra de dúvida e face à prova produzida em sede de audiência de julgamento, a atribuição da responsabilidade do ilícito criminal de que foram acusados a qualquer um dos arguidos, uma vez que em igualdade de circunstâncias assumiam funções de gerência e efetuavam a contagem e assinatura dos talões de depósito referentes ao dinheiro diariamente recebido, sendo responsáveis pelas suas entregas, não decorrendo da prova (por depoimento, videovigilância ou fotograma) qualquer dado que permita determinar quem praticou o crime, principalmente quando e em termos pessoais e socio-económicos, se tratarem ambos os arguidos de Primários não possuindo pelo exposto qualquer condenação averbada ao seu registo criminal, nem ter sido esta situação precedida de qualquer procedimento disciplinar aberto pela Demandante, Empregador à data dos factos por exemplo quanto a erros nas contagens de dinheiros.
Nestes termos e nos melhores de direito que os venerandos desembargadores doutamente suprirão, deve:
A) Ser a Nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 379º do CPP, declarada procedente com as cominações legalmente previstas,
B) Ser admitido e julgado procedente presente Recurso e em consequência ser o Recorrente absolvido:
i) de um crime de abuso de confiança agravado, na forma continuada, previsto nos artigos 205 nºs 1 e 4 al. a) e 202 al. a) do nº 2 e 79 nº 1 do Código Penal na pena de duzentos e cinquenta dias de multa à taxa diária de sete euros,
ii) Da devolução a Estado da quantia de vinte e cinco mil e setecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos, correspondente à vantagem patrimonial obtida pela prática do ilícito pelo arguido DD,
iii) Do pedido cível parcialmente procedente,
iv) Do pagamento nas custas processuais com 3 UC de taxa de justiça: artigos 513, e 344 nº 2, al C), do código de Processo Penal e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, Anexo III do DL nº 34/08 de 26 de Fevereiro, atualizado, e nos encargos a que a atividade deu lugar, artigos 514 nº 1 do CPPP e 16 do RCP

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A Digna magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido apresentou resposta onde concluiu:

1. A sentença não padece de qualquer vício, nomeadamente de nulidade por falta de fundamentação.
2. A prova foi devidamente apreciada e, em consequência, foi corretamente dada como provada a factualidade assim considerada e enunciada na sentença recorrida.
3. O julgador é livre para apreciar a prova, nos termos do artigo 127.º CPP, embora deva ter como valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio, devendo decidir com base no bom senso e na experiência de vida, conjugados com a capacidade crítica de distanciamento e ponderação.
4. Essa apreciação livre da prova não pode ser confundida com a apreciação arbitrária da prova, nem com a mera dúvida gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
5. Pelo que, o princípio in dubio pro reo só é desrespeitado quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido.
6. In casu, ressalta, de forma límpida, do texto da sentença recorrida, que o Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obteve convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, da verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação e subsunção jurídica ao crime de abuso de confiança agravado continuado, previsto e punido pelos artigos 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), e 202.º, alínea a), 32.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1 do Código Penal.
7. Não foram violadas quaisquer normas legais, nomeadamente dos artigos 127.º e 379.º, ambos do Código de Processo Penal, dos artigos 32.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa.
8. Inexiste qualquer censura ou reparo a fazer quanto à assertividade da factualidade dada como provada na sentença recorrida, ao contrário do que afirma o Recorrente na motivação do seu recurso.
Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida, nos seus precisos termos, a douta decisão recorrida.

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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, afirmando:

Procedendo à ponderação dos termos da Sentença recorrida, à análise da motivação do recurso interposto pelo arguido e à resposta do Ministério Público na primeira instância, manifestamos a nossa concordância com os termos desta que pugna pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, não deixando, no entanto, de expressar que melhor serviço teria sido prestado à Justiça se a decisão recorrida fizesse um uso da linguagem orientado para o seu propósito último: boa comunicação.

Foi observado o disposto no n. 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1 - São estes os elementos de facto relevantes e decorrentes do processo:

1 A sociedade comercial Algartalhos – Supermercados, Ld.ª, com o NIPC 503172618, também aqui demandante, dedica-se ao comércio a retalho de carne e de produtos com base em carne, comércio a retalho em supermercados e hipermercados, criação de bovinos, ovinos, caprinos e suínos.
2 A dita Algartalhos – Supermercados, Ld.ª, explora vários supermercados em várias localidades, nomeadamente o supermercado denominado Loja n.º ..., sito na Rua ..., em ....
3 No período compreendido entre, pelo menos, 01 de Janeiro de 2017 e 01 de Setembro de 2017, os arguidos DD e AA e eram funcionários da referida sociedade Algartalhos, exercendo funções respectivamente de gerente e subgerente da Loja n.º ... acima descrita, os quais era responsáveis pela gestão desta, cabendo-lhes, entre outras funções, confirmar as quantias recebidas nas caixas e depois proceder à entrega de tais valores aos funcionários da empresa Loomis Portugal, S. A., responsáveis pela recolha de tais quantias e posterior depósito na conta bancária da sociedade Algartalhos.
4 Com efeito, a sociedade Loomis Portugal, S. A., celebrou contrato com a sociedade Algartalhos, efectuando o serviço de recolha, transporte e posterior depósito das quantias obtidas pelas lojas (na qual se inclui a Loja n.º ... de ...) na sequência da venda de produtos.
5 Assim, no período acima compreendido, três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas-feiras, entre as 09 horas e as 20 horas, os funcionários da Loomis Portugal deslocavam-se às várias lojas da Algartalhos, incluindo a Loja n.º ... de ..., e recolhiam as quantias monetárias que lhe eram entregues em sacos fechados e selados pelos responsáveis das lojas.
6 Acresce que a sociedade Algartalhos adoptou procedimentos internos para registo das quantias obtidas, devendo os funcionários e responsáveis pelas lojas actuar dessa forma.
7 Assim, no período acima indicado, ao final de cada dia, cada um dos funcionários das caixas registadoras onde são efectuados os registos e pagamentos das compras de produtos vendidos pela Algartalhos, retiravam todo o dinheiro existente no interior das mesmas e faziam a respectiva contagem, entregando-o aos responsáveis pela loja.
8 Após a entrega do dinheiro aos responsáveis pela loja, estes confirmavam as quantias que lhe foram entregues por cada um dos funcionários, assinavam o talão de prestação de contas com a identificação de cada uma das funcionárias de caixa e com as quantias retiradas das respectivas caixas e guardavam todos os valores monetários obtidos no interior do cofre existente nas instalações da loja.
9 Somente os responsáveis pela loja tinham acesso às chaves do cofre instalado na respectiva loja.
10 Os arguidos DD e AA, na qualidade de responsáveis da Loja n.º ... de ..., actuavam de acordo com tal procedimento.
11 Nos dias em que os funcionários da Loomis se deslocavam à Loja n.º ..., mais sabiam os arguidos que, depois de contabilizado o dinheiro, deveriam proceder à colocação deste dentro de sacos previamente fornecidos pela Loomis e fechá-los, os quais tinham um sistema de abertura inviolável, depois de fechados.
12 Conhecedor de tal procedimento, o arguido DD formulou o propósito de fazer suas várias quantias monetárias, no maior valor possível, entregando o saco fechado sem as mesmas e fazendo seus tais montantes.
13 Assim, na concretização de tal propósito, no dia 05 de Julho de 2017, ao final do dia, o arguido DD efectuou a contagem do dinheiro existente nas caixas registadoras e assinou os talões de prestações de contas, tendo apurado que nesse dia foi obtida a quantia monetária de € 6417,40 em notas e moedas do Banco Central Europeu, que fez sua, dando-lhe destino não concretamente apurado.
14 No dia 07 de Julho de 2017, o arguido DD fechou e selou o saco previamente entregue pela Loomis, sem colocar no seu interior a quantia indicada em 13 (€ 6417,40).
15 No dia 07 de Julho de 2017, pelas 10 h 04, o arguido DD entregou o dito saco aos funcionários da Loomis Portugal que para o efeito se deslocaram à Loja n.º ....
16 No dia 03 de Agosto de 2017, ao fim do dia, o arguido DD efectuou a contagem do dinheiro existente nas caixas registadoras e assinou os talões de prestações de contas, tendo apurado que nesse dia foi obtida a quantia monetária de € 6519,66 em notas e moedas do Banco Central Europeu, que fez sua, dando-lhe destino não concretamente apurado.
17 No dia 04 de Agosto de 2017, o arguido DD fechou e selou o saco previamente entregue pela Loomis, sem colocar no seu interior a quantia indicada em 16 (€ 6519,66).
18 No dia 04 de Agosto de 2017, pelas 16 h 48, o arguido DD entregou o dito saco aos funcionários da Loomis Portugal que para o efeito se deslocaram à Loja n.º ....
19 No dia 10 de Agosto de 2017, ao fim do dia, o arguido DD efectuou a contagem do dinheiro existente nas caixas registadoras e assinou os talões de prestações de contas, tendo apurado que nesse dia foi obtida a quantia monetária de € 7057,84 em notas e moedas do Banco Central Europeu, que fez sua, dando-lhe destino não concretamente apurado.
20 No dia 11 de Agosto de 2017, o DD fechou e selou o saco previamente entregue pela Loomis, sem colocar no seu interior a quantia indicada em 19 (€ 7057,84).
21 No dia 11 de Agosto de 2017, pelas 10 h 52 min, o arguido DD entregou o dito saco aos funcionários da Loomis Portugal que para o efeito se deslocaram à Loja n.º ....
22 No dia 24 de Agosto de 2017, ao fim do dia, o arguido DD efectuou a contagem do dinheiro existente nas caixas registadoras e assinou os talões de prestações de contas, tendo apurado que nesse dia foi obtida a quantia monetária de € 5759,73 em notas e moedas do Banco Central Europeu, que fez sua, dando-lhe destino não concretamente apurado.
23 No dia 25 de Agosto de 2017, o arguido fechou e selou o saco previamente entregue pela Loomis, sem colocar no seu interior a quantia indicada em 22 (portanto, € 5759,73).
24 No dia 25 de Agosto de 2017, pelas 09 h 50 min, o arguido DD entregou o dito saco aos funcionários da Loomis Portugal que para o efeito se deslocaram à Loja n.º ....
25 O arguido DD retirou as quantias supradescritas, que fez suas, dando-lhes destino não concretamente apurado, mas usando-as em seu proveito.
26 O arguido DD sabia que as quantias monetárias em causa eram da propriedade da sociedade Algartalhos e que deveria ter procedido à entrega dessas quantias aos funcionários da Loomis Portugal para que estes depois as depositassem na conta bancária da sociedade Algartalhos.
27 O arguido DD fez suas as quantias monetárias acima descritas, usando-os no seu interesse, bem sabendo que tais valores não lhes pertenciam, e que actuava contra a vontade dos seus legítimos proprietários, o que quis.
28 Com a conduta supra descrita, o arguido DD fez suas quantias monetárias no valor total de € 25 754,63 (vinte e cinco mil e setecentos e cinquenta e quatro euros e sessenta e três cêntimos).
29 O arguido DD praticou o mesmo tipo de condutas ao longo do tempo, da forma descrita, porquanto se convenceu de que as condutas que vinha levando a cabo estavam a ser bem-sucedidas, o que a motivou à reiteração da prática descrita, de forma homogénea ao longo do período de tempo referido.
30 Actuou, pois, o arguido DD movido pela facilidade com que sucessivamente lograva concretizar os seus intentos, aproveitando-se da ausência de fiscalização por parte dos gerentes da sociedade Algartalhos.
31 O arguido DD procedeu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
32 O arguido DD bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
33 Os arguidos não têm antecedentes criminais registados.
34 O arguido AA, de 33 anos, com o 9.º ano de escolaridade, ganha 985 euros por mês na Algartalhos, possui carro, é solteiro, mora em casa dos pais.
35 O arguido DD, de 36 anos, com o 12.º ano de escolaridade, ganha 1220 a 1300 euros por mês como director de loja na Jerónimo Martins, possui um automóvel ... e casa, que dá de arrendamento por 550 euros mensais, que declarou pagar de amortização, e mora noutra, é solteiro, tem uma filha de 12 anos, que vive com ele.

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B.2 – Facto não provado: o considerando conclusivo «que o arguido AA tivesse praticado os factos narrados na acusação e pedido cível».

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B.3 – E adiantou os seguintes considerandos sobre a matéria de facto (por iniciativa deste tribunal os parágrafos da fundamentação vão ordenados para facilidade de posterior fundamentação):

a) «O tribunal formou a sua convicção com base na análise da prova produzida em audiência de julgamento, em que, e em suma, o arguido DD declarou não pretender prestar declarações para já.
b) E o arguido AA, sentado distante do outro, declarou-se inocente e afirmou calmamente não ter ficado com dinheiro algum, e também o narrado nos pontos 1, 2 e 3 (da acusação), salvo que ele era subgerente na dita loja, e o arguido DD gerente, e os pontos 4 e 5, e que as funcionárias tinham de ir fazendo «sangrias» (recolhas de dinheiro das caixas respectivas) ao longo do dia, as funcionárias tiravam o dinheiro, iam almoçar, e eles guardavam-no dentro do cofre, e assim sucessivamente, e voltavam às duas horas as funcionárias, e iam para as caixas até às seis da tarde, e voltavam outra vez, eles recebiam o dinheiro e guardavam-no no cofre, e também por ocasião do fecho da loja, e ao fim do dia recebiam ou recolhiam o restante das caixas, inseriam no computador, preenchiam os documentos, fechavam o saco com o dinheiro, e metiam-no no cofre, e afirmou o ponto Loja n.º ... e 7, com essas explicações, e 8, e quanto ao 9, que não tinha código, o cofre era de chave, e os encarregados, ou seja, eles, arguidos, tinham cada um sua chave, os patrões também, e afirmou igualmente os pontos 10 e 11, e negou o ponto 12 e seguintes (que são propriamente a matéria crime), e que não como aconteceu, só sabe que não foi ele, e mais que podiam ser ambos (os arguidos) a entregar o dinheiro aos empregados da Loomis, ou só um deles, assim como a receber as «sangrias» ao longo do dia, já ao encerrar era só com um ou outro (dos arguidos) em princípio, não os dois ao mesmo tempo, e mais que começou em 25 de Abril de 2010 a trabalhar para a Algartalhos, primeiro na ..., ..., depois na Loja ... de ..., e agora outra vez na Loja 7, dois anos depois do acontecimento, e não tem conhecimento de ter havido desvios destes, e mais que depois dos factos começaram a identificar os sacos pequenos (do dinheiro de cada dia) no talão de depósito, e referente a cada dia havia um só saco pequeno, que depois metiam no grande, o dinheiro era metido sempre no cofre, até o das «sangrias», este das sangrias em sacos diferentes, e também que eles e empregadas e fornecedores iam acima, à sala do cofre, que tinha porta que permanecia aberta, mas ver lá o cofre aberto não viu, mas pode acontecer que alguma vez ficasse aberto, e nunca lhe faltaram as chaves, e que o dinheiro era todo recontado à noite, na recolha, e, a instâncias da defesa do arguido DD, explicou que também fechava o saco pequeno ao pô-lo no cofre, saco que fica inviolável, e, para o abrir, só por baixo com tesoura, e era ele quem preenchia esse talão (cf. doc. 2), o dinheiro de cada dia tinha o seu código e saco, os sacos pequenos eram metidos no saco grande, que era fechado na presença dos empregados da Loomis, mas não abriam os sacos pequenos na presença desses empregados, desde o caso os sacos pequenos passaram a incluir a referência respectiva, nos sacos não se menciona o valor, só no talão, os sacos eram fornecidos pela Loomis em quantidade razoável, e enfim os patrões não o proibiram de trabalhar depois do caso, continuou a trabalhar lá como dantes, não sentiu perda de confiança, as «sangrias» eram registadas no computador, e através do saco grande é possível ver os sacos pequenos dentro do grande, não viu os responsáveis da empresa com as chaves do cofre, mas pensa que tenham acesso.
c) E aqui o arguido DD resolveu prestar declarações dizendo, de forma irritada e ansiosa, que na altura não existiam os sacos pequenos, eram os sacos deles, da fruta, havia mais chaves além daquelas do cofre e loja, às vezes não andava com as chaves, colocava-as expostas em cima da prateleira, e que HH, esposa de GG, o dono, ligava-lhe que precisava de dez mil euros, a correr, ela passava com o carro, e não havia registo disso, como também fazia com outras lojas, e ele não tomava nota, anotava num talãozinho pequeno, que lhe entregava a ela, ao ela levantar as folhas de caixa, e o resto é como o colega disse, «bate certo», e mais que soube dos factos em Outubro 2017, II, filho GG, confrontou-o, e que só tinham folga de 15 em 15 dias, e só nesses dias de folga não estavam os dois arguidos na loja, depois da dita confrontação não tornou à loja, ficou de baixa, e também que ele era gerente, o arguido AA subgerente, e que trabalhou onze anos nessa empresa, de onde saiu em 2018, de 2006 a 2018, o cofre podia ficar só com a tranca, mas escancarado não, usavam os indicadores que iam pondo no computador no final do dia, e não consegue explicar a falta do dinheiro, e referente a esses valores que entregava a HH ia um papel para esta, mas no talão para a Loomis já ia descontado esse valor do total.
d) HH declarou ser patroa dos arguidos como gerente da Algartalhos, em Julho de 2017 ou 2016 deu pela falta de dinheiro, ia três vezes por semana à loja levantar os papéis, cada um dos empregados fazia a sua caixa, ao final os arguidos fechavam as contas, ou conforme os empregados saíam, às 16 horas por exemplo, mas de «sangrias» não tem conhecimento, as faltas de dinheiro são de Julho e Agosto, não teve conhecimento de outros casos de dinheiro em falta, que não chegou ao banco, à conta da empresa, e mais que nunca pediu dinheiro ao arguido DD, o escritório da loja ficava na parte de cima do supermercado, resguardado, o cofre tinha chave e código, quem tinha as chaves eram os arguidos, ela não tinha a chave, talvez tivesse o código, chave não tinha de certeza, e gerentes da Algartalhos eram ela e GG, e, que saiba, GG também não tem chave, II é filho do GG e seu enteado, e que depois dos factos puseram máquinas para depositar dinheiro em cada supermercado, por ser mais seguro, o arguido AA continua a trabalhar na empresa, o que GG saberá explicar, e que é quem dá ordens na empresa, ela ia buscar os talões de depósitos às lojas (folhas de caixa), o supervisor da loja era KK por ordem de GG, cada folha de depósitos referia-se a um dia, por exemplo a de um dia cinco mil euros, que constava de talão e de mais outro talão no saco, que era apresentado no banco, e só quinze dias depois tinham confirmação desse recebimento, mas que esse dinheiro não foi depositado, falou com os arguidos, acha que a primeira vez com DD, que disse que precisava de moedas, e foi passando sem repor, e mais que às vezes não entrava na loja por não ter estacionamento, os arguidos traziam-lhe os talões de depósito, e também que o arguido AA continuou sempre a trabalhar na dita empresa, e enfim que em 2017 podiam fazer ou não fazer «sangrias», mas depois de haver assaltos começaram a fazê-las, os empregados da Loomis levavam o dinheiro em sacos com barras, a cada dia pertencia seu saco, metidos no saco grande da Loomis, que trazia vários sacos de tipos diferentes, não sabe se exactamente como esses (juntos aos autos), e que tem as chaves da loja, mas as do cofre só as têm os arguidos, e que o arguido DD já trabalhava na empresa havia anos, era de confiança até aos factos, e enfim que ao entrar na loja a buscar os talões, às vezes estava o cofre aberto, outras fechado, e não houve assaltos na dita loja de ....
e) GG declarou ser gerente e representante da Algartalhos, de onde desapareceram os fundos de caixa em Julho e Agosto de 2017, têm 20 lojas, a loja é a Loja n.º ..., em ..., tinham a Loomis para recolher o dinheiro, em 2013 tiveram assaltos, mas não nessa loja, e perguntou à Loomis, disseram que não chegara lá o dinheiro, e mais que só os arguidos tinham acesso ao dinheiro, têm cofre na loja, o cofre tem chave e código, não sabe se era uma chave para os dois arguidos, ou se cada um deles tinha a sua, ele e supervisores não têm chave da loja e cofre, não ia à loja regularmente, e muito poucas vezes ia ao escritório da loja, nunca viu lá chaves, as ordens eram que as chaves têm de estar sempre em poder dos arguidos, ele é que dava instruções aos arguidos, que tinham as mesmas funções, faziam as caixas a meio do dia, contavam o dinheiro, entregavam-no à Loomis, eram as instruções, a cada saco correspondia um dia, e o valor das quatro faltas é de vinte e seis mil e tal euros, ao saber da falta foi KK a falar com os arguidos, e DD meteu logo baixa, AA continuou no trabalho, não falou com eles sobre o assunto, o supervisor (KK) disse que eles não sabiam, mas contou-lhe ter visto dinheiro espalhado em cima da mesa de DD, achou estranho, e que DD dissera que era para trocar por notas grandes, DD meteu baixa e, depois de confrontado pelo supervisor, carta para despedimento, e, confrontado pelo supervisor, AA continuou a trabalhar, agora noutra loja, é normal trocarem de vez em quando os funcionários, AA continua como encarregado de loja, tem confiança nele, julga que não tirou nada, embora não tenha a certeza, e mais que, se DD não se tivesse despedido, não continuaria lá, apresentou carro novo e sinais de riqueza, e depois da Algartalhos já trabalhou noutras empresas e não correu bem, e de novo: que as ordens quanto à porta do escritório é para estar fechada e trancada, e o dinheiro não é para estar espalhado pelas mesas, as empregadas das caixas entregam o dinheiro aos gerentes de loja, conferindo com eles, e no fim os gerentes deviam meter o dinheiro no saco da Loomis, geralmente era um saco por dia, e os sacos eram metidos no saco grande da Loomis, e também que na sua convicção AA não tem nada com o caso, senão já o teria despedido, as moças da caixa queixavam-se de DD mexer nos fundos de caixa, e os papelinhos ainda lá andam por repor, por liquidar, e mais que até essa situação confiava no arguido DD, que às vezes tinha umas coisas lá da sua vida, acha que lhe morreu o pai, e andava em divórcio, e mais que os extractos do banco demoraram, e pediu os extractos de todos os depósitos para ver o que andavam a fazer, já no final de Agosto, e depois falou com a Loomis, e mais que a situação do superior e do dinheiro espalhado terá sido em meados de Julho, e que depois pediu mais segurança à Loomis, passaram a dar-lhe documento da chegada de dinheiro, e dos sinais da riqueza de DD refere carro novo ou usado, depende do carro, mas se andava a precisar de mexer fundo de caixa…, e enfim que nunca aconteceu eles, donos, pedirem dinheiro às lojas e a essa loja em particular, e enfim que a sua mulher, HH, contou-lhe que telefonou a DD sobre a falta dos depósitos bancários, acha que que ele deu uma desculpa qualquer esfarrapada.
f) II afirmou ser filho de LL e sócio e director comercial da Algartalhos desde 2012, não gerente, deslocava-se às lojas às vezes, os gerentes de loja são os responsáveis pelos depósitos e valores em caixa, mas faltaram quatro depósitos da Loja n.º ..., referidos a Agosto e Julho de 2017, os responsáveis dessa loja eram os arguidos, deram pela falta dos depósitos na conta bancária, nunca aconteceu antes outro caso, a empresa Loomis era recolhedora dos valores, não falou com os arguidos sobre o caso, ou talvez quando foi à loja, os quais não sabiam de nada, abriram eles o cofre à sua frente em Agosto de 2017, por aí, e mais que depois apertaram as condições de segurança com a Loomis, passaram a ter máquinas para depositar, DD meteu baixa, AA continua na loja na mesma, DD nem recebeu o último pagamento do ordenado, viu um ... ao arguido DD, não sabe se novo, mas dava nas vistas, e mais que é assinado o talão na entrega do dinheiro no escritório, e os gerentes de loja têm de saber quanto dinheiro foi entregue, depois da situação passou a haver saquetas pequenas que antes não havia, e mais que DD foi funcionário lá durante anos, às vezes bom, outras não, mas depositavam confiança nele, ao princípio desconfiaram de todos os intervenientes, agora têm máquinas para depositar nas lojas, do cofre só os gerentes da loja têm as chaves, das instalações têm mais, e ele, II, nunca teria deixado as chaves do cofre no escritório se fosse o gerente de loja, e enfim já aconteceu terem de abrir o cofre à força por não existirem mais chaves, e o gente ter desaparecido.
g) KK afirmou ser supervisor na Algartalhos, incluindo da Loja ..., já em 2017, e ter sido colega dos arguidos, compete-lhe visitar as lojas, verificar valores em cada loja além do mais, e o caso foi por falta de depósitos dessa loja em 2017, de Julho e Agosto, acha que quatro depósitos não efectuados, disseram-lhe da parte do escritório, D. HH, que lá fosse, mas antes de isso ter acontecido tinha ido à Loja ... e subido ao escritório, onde encontrou o arguido AA a conferir valores entregues por empregada na «sangria», e por trás da porta estava o arguido DD, e em cima de outro teclado viu notas espalhadas, e ele, BB, disse que viria outra vez, mas achou estranho, era um monte de notas espalhadas no outro computador, estranhou essa situação quando soube do sucedido depois, DD disse-lhe que com esse dinheiro ia comprar um carro, e que o dinheiro eram notas de sua mãe, e mais que conferia o fundo de maneio existente na loja com os dois arguidos, assinavam os três, quem tem as chaves do cofre eram os arguidos, que o abriam, quem tem os códigos de acesso do cofre são os gerentes de loja, e mais que começaram a fazer mais sangrias por causa de assaltos, os arguidos punham os depósitos no saco da empresa recolhedora, DD foi interrogado e meteu baixa, não sabe de processos disciplinares, AA continuou a trabalhar, e também que não sabe de casos destes antes ou depois desse, o escritório fica no primeiro andar da loja, tem uma porta aonde ia quem fosse chamado pelos arguidos, normalmente deve estar fechada, as instruções são essas, acha que os arguidos tinham consigo as chaves do cofre, ele, BB, não tinha acesso aos sacos da Loomis, que não se recorda se eram como os constantes dos autos, entretanto mudaram de empresa, estava a haver assaltos, contrataram outra empresa com mecanismos mais recentes, tipo multibanco, o dinheiro agora já não vai para o cofre, entra na máquina como em banco, é emitido talão, anexado à folha de caixa da operadora, e a Prosegur vai lá levantar o dinheiro, e enfim que também é supervisor da loja de ..., onde trabalha AA agora como dantes, e que só um ou outro dos arguidos pôde fechar o saco da Loomis, e que nunca entrou sozinho no escritório da loja, perguntava sempre quem estava de serviço dos gerentes da loja, e se via a porta fechada ou entreaberta, voltava para trás, e a chave do cofre teria de estar sempre com os arguidos, é isso o estipulado.
h) MM afirmou ser chefe de escritório na sede da Algartalhos, e não curava de aspectos monetários, os arguidos eram seus colegas, um deles ainda é, trata-se de quatro dias e depósitos em que o dinheiro não chegou a entrar na empresa, disse-lho HH, que fazia a conferência dos depósitos, a folha de prestação de contas era acompanhada com um talão de depósito, e, confrontada com o documento número 3 de folhas 19, referiu ser a folha de prestação de contas, a expressão «falta talão» ser da letra de HH a dizer que falta do talão de depósito, a prestação de contas vem da loja, o gerente é que tem de assinar normalmente, esse depósito não foi feito (fls 19), o saco usado era nessa altura cinzento e grande, os pequenos eram como os juntos aos autos, a empresa tem cerca de 350 trabalhadores, não aconteceu antes nem depois semelhante caso, o sistema de segurança é agora da Prosegur, para a qual mudaram por ter mais segurança, cada empregada faz a sua folha de caixa, os talões de depósito não passavam por ela, MM, sabe da falta de depósitos por lhe ter sido dito, e mais que nunca viu o saco grande transparente, esses sacos cinzentos foram dados pela Loomis logo na reunião semanas depois dos factos, a Loomis mostrou-lhe os sacos usados, que era esse cinzento e os pequenos, ainda continuaram algum tempo com a Loomis, depois mudaram para a Prosegur, que andava havia tempos a solicitá-los, e desses quatro dias em que faltavam os depósitos havia documentos assinados por arguidos.
i) NN afirmou que os arguidos foram seus gerentes na Algartalhos, onde trabalhou até há três anos, não sabe se em 2017 ainda trabalhava, fazia de tudo, DD era o gerente, AA o subgerente, trabalhou também na caixa, de manhã levantava o fundo, cem euros se precisavam de moedas, a meio da manhã tiravam o dinheiro da caixa, o excesso, iam ao escritório, onde os gerente ficavam com um talão, e elas com outro talão, acha que guardavam o cofre no escritório, visível, os gerentes tinham acesso ao cofre, acha que só com chave, acha que não havia código, viu abrir o cofre com chave, os dois arguidos tinham chave do cofre, não sabe onde eles guardavam a chave, não viu ninguém com as chaves do cofre, a não ser os arguidos, depois iam lá os senhores da carrinha buscar o dinheiro, iam para cima ao escritório, e quem dos arguidos estivesse de serviço entregava-lhe lá o dinheiro, e enfim só soube do caso na polícia, e, confrontada com folhas 20 (prestação de contas), referiu ser a folha que fazia ao fechar e sair, essa «sangria» deve ser dinheiro ou da parte da manhã ou da tarde, e mais que estavam duas na caixa, mas uma de manhã e a outra de tarde, por exemplo, e nesse folha está a sua assinatura, na outra uns riscos que só podem ser de AA ou DD, não se recorda dos sacos usados pela Loomis, nunca percebeu que os donos da empresa tivessem as chaves ao entrar, e a porta do escritório está sempre trancada quando não estavam os gerentes, que ela não sabe se traziam consigo as chaves do cofre ou do escritório.
j) OO afirmou que os arguidos foram seus chefes na Algartalhos, de onde saiu em Novembro de 2019, trabalhou lá 10 anos, fazia de tudo um pouco, era operadora de caixa, ia buscar o fundo, metia-o na caixa, e depois o dinheiro ia para o cofre, e o fundo também, assinava a folha, conferiam com os chefes, com os arguidos, que o guardavam no cofre à sua frente no escritório, no primeiro andar da Loja ..., os gerentes tinham acesso com chave e código ao cofre, a chave do escritório podia ficar com elas, a do cofre não, nunca viu ninguém abrir a porta, e os gerentes, os arguidos, eram ou um ou outro, pois faziam turno, os donos apareciam às vezes, mas pouco, e não subiam, e o supervisor só subia se a porta do primeiro andar estivesse aberta.
k) PP afirmou que os arguidos foram seus chefes na Algartalhos, onde trabalhou onze anos, e já não trabalho desde Março de 2020, era operadora de caixa, o que entregavam de dinheiro era assinado por ela e pelo chefe que estivesse, e guardado no cofre do escritório, não mexia no cofre, nem podia, estava fechado à chave, que os chefes tinham, a porta do escritório podia não estar trancada, e desde que entregassem o dinheiro a responsabilidade era dos gerentes, qualquer pessoa dos empregados entrava no escritório, os donos uma vez ou outra também foram ao escritório, não sabe se tinham as chaves, e acha que os sacos eram como o transparente (dos autos).
l) QQ afirmou ter sido colega dos arguidos, que eram gerentes da Loja ..., e agora ser encarregada da loja, era operadora de caixa, na altura dos gerentes arguidos levantavam um fundo de cem euros, e ao fim ia ao escritório, e o gerente que estivesse de serviço conferia com ela e guardava no cofre, onde mexiam os gerentes, com a chave, o escritório geralmente tinha a porta fechada, não trancada, e ninguém vai ao escritório senão ela e colegas, como já no tempo dos arguidos, os donos podiam ir lá e subir ao escritório, não sabe se os donos têm chave da loja, só os vê lá ir quando ela está, o arguido AA continua a trabalhar na Algartalhos como encarregado de loja e a tratar de dinheiros, os patrões confiam nele, não lhe viu nada comprado ou sinais de riqueza, viu mais o saco transparente usado pela Loomis, depois alteraram os procedimentos para mais segurança com a Prosegur, não se lembra quando, ninguém por sistema ia ao escritório sem a companhia do gerente, na entrega do dinheiro da caixa assinavam a operadora e o gerente, de quem era depois a responsabilidade pelo dinheiro.
m) RR afirmou que os arguidos eram seus gerentes na dita Loja ..., de onde saiu há um ano e meio, e esteve oito anos, era operadora de caixa, ao entrar ia ao escritório, davam-lhe um taparuere com o fundo de caixa, antes de almoçar faziam uma «sangria», ao fim do dia era feita a caixa, no escritório estava o gerente, nunca ela sozinha, entregava o dinheiro ao gerente ou ao subgerente, contava e assinava ela e o gerente ou subgerente que estivesse, o dinheiro ia para o cofre, em que só os gerentes mexiam, não ela nem as colegas, o escritório era fechado pelo gerente ou subgerente, AA continuou lá depois disso, têm confiança nele, o escritório estava fechado à chave sempre, uma vez por acaso os donos iam à loja, nunca os viu no escritório.
n) SS afirmou que os arguidos trabalhavam na dita Loja ..., onde ele fazia recolha de valores (pela Loomis) em 2017, ao chegar ao local procurava o responsável, que punha o saco na mesa, e ele metia-o na mala, de onde depois o tirava e metia no cofre da viatura, eram uma equipa de dois elementos, o condutor ficava sempre na carrinha, o transportador saía, às vezes diziam-lhe que o responsável estava lá em cima, outras vezes chamavam-no se andava pela loja, o responsável da loja tirava o saco do cofre, ou já estava na mesa, usavam um saco transparente, que, selado, não se pode abrir, às vezes já estava selado na mesa ou ao sair do cofre, outras vezes o gerente preparava-o à sua frente, não sabia os valores que lá iam, só que era dinheiro, usavam um outro saco primeiro, primeiro os opacos cinzentos, depois os transparentes, não sabe os valores que iam lá, imprimiam dois talões, um para o responsável da loja, outro era agrafado ao saco e assinado por ele e pelo gerente, e, confrontada com folhas 237, documento 2, afirmou não saber de quem é a assinatura, mas conhece o talão, não é a sua assinatura, e que ele também conduzia a viatura, podia fazer as duas coisas, na Algartalhos passavam às segundas, quartas e sextas-feiras, nunca à mesma hora, não sabe como possa desaparecer um saco pequeno, desde que na sua posse não há hipótese de o dinheiro desaparecer, não verificava o número de sacos pequenos dentro do saco grande, os sacos pequenos eram como o pequeno junto aos autos, se o grande fosse transparente viam os pequenos, os sacos eram fornecidos pela Loomis, e o dinheiro só podia ter desaparecido na Algartalhos, tudo se passou normalmente sempre, em 2017 acha que já usavam os sacos pequenos e grandes, era sempre um ou outro dos arguidos que o recebia, nunca foram os dois ao mesmo tempo, às vezes teve de esperar que fossem metidos os pequenos no grande, depois entregaram os sacos em ..., na central, não sabe o procedimento seguinte.
o) TT afirmou conhecer os arguidos trabalhar para a Loomis em 2017, conhece-os da Loja ..., em ..., onde ia recolher os valores, estacionavam perto da entrada, faziam reconhecimento, perguntavam à funcionária se podia ir ao andar superior, onde fica o escritório, e se o saco estivesse pronto iam ao escritório, como lhe dizia um responsável gerente, não preparavam o saco à sua frente, era o saco transparente, não usou opacos, picam o saco e também ficam com talão, assinado pelo transportador e pelo cliente, e ele conduzia ou recolhia, não sabia os valores do dinheiro que lá ia, não reparava nos maços ou sacos dentro do saco, em 2017 eram usados sacos transparentes, não havia registos de número de sacos dentro do saco grande, agora já mencionam o número de sacos que vai dentro do saco maior, de vez em quando alteram as regras talvez por segurança, em 2017 só picavam o saco grande, não os de dentro, não sabe de ocorrências anómalas, sacos abertos, etc., nem de irregularidades no comportamento dos arguidos, e mais que depois levam o dinheiro para a central do ..., onde descarregam o PDA no sistema, e o saco grande é metido noutros maiores, segue para o centro de tratamento da Loomis, e depois para ....
p) UU afirmou trabalhar para a Loomis desde 2015, conhecer os arguidos por isso, na área de ..., fazia recolhas de dinheiro em 2017, ao chegarem o saco já estava fechado, ou não, mas eram os arguidos que o preparavam, às vezes à sua frente, no escritório, no andar de cima, ia sozinho ao escritório, mas com um dos arguidos, ou um ou outro dos arguidos, coisa de cinco minutos, era picar os sacos e vir embora, os sacos são selados e transparentes, e em 2015, antigamente, ia tudo num saco, depois mudaram para saquetas pequenas, picavam cada uma, ou o saco, já não se lembra, e, confrontada com folhas 243, documento 8, da Loomis, afirmou ser um talão de recibo de uma recolha de 25 de Agosto, com o seu nome, foi pois ele que foi à loja, possivelmente é a sua assinatura, a dos rabiscos deve ser a de quem fez a entrega, não sabe quem, – e aqui o arguido DD interveio dizendo ser a sua assinatura, – e que deixavam sempre lá 1, 2 ou 3 sacos na Loja ..., os sacos pequenos iam nos sacos grandes, e as saquetas também eram picadas, as pequenas e o grande, nunca viu o saco opaco, acha que não o usavam, ele pelo menos não usou, não sabia a quantia de dinheiro que ia nos sacos, o talão era do saco grande, mas na altura não sabe se já havia as saquetas, ou só envelopes, pois mudaram de sistema, e, confrontado com fls 243, documento 8, afirmou que havia só um saco grande, não saquetas, depois iam para a central do ..., e daí para ..., central, no mesmo saco, e depois a leitura dos depósitos.
q) VV afirmou trabalhar na Loomis, conhecer os arguidos por isso na Loja ... da ofendida, em 2017 deve ter feito trabalho rotativo, mas cliente frequente ao longo da semana, a loja tinha escritório no andar de cima, às vezes o valor já estava preparado, outros era preparado à sua frente, depois de fechado (o saco) tinha um PDA para picar com código de barras, e assinava o gerente que lho entregava, e ele, VV, com duas cópias, uma para o gerente, outro para anexar ao saco, e ele, VV, se precisasse imprimia outras, sacos de onde, uma vez fechados, não se pode tirar sem os alterar, usava saco grande transparente, e acha que também as saquetas, e, confrontado com documento 4 de fls 239 (Loomis), afirmou que é a impressão de recibo de recolha, não a reconhece como sua assinatura, e 04.08.2017 talão referido a esse dia, – e aqui o arguido DD interveio dizendo ser a sua assinatura, – e que não se certificava de exactidão do conteúdo do saco, se os sacos pequenos existissem, eram também picados, e conteria o talão da entrega, no talão de fls 239 não consta essa referência aos sacos pequenos, aí só se refere um saco, e enfim que daí seguiam para a central do ..., onde se fazia a entrega, e que não percebeu comportamentos estranhos dos arguidos nas entregas, na central do ... era entregue o saco, mas não aberto, e da central para diante não sabe de mais.
r) WW afirmou conhecer o arguido AA, trabalhar para a Loomis, não se estar a lembrar do arguido DD, o arguido AA entregava-lhe os valores para ele transportar, e é possível que DD também, mas não se está a lembrar, entregava-lhe o saco fechado o AA, já preparado, ou então era preparado à sua frente dele, mas para as suas mãos já vinha fechado, pois tem uma fita que o sela, e era transparente, e também usou o opaco, trabalha lá de 1986 até agora, e em 2017 produziram mais os dois tipos de sacos, e picavam o saco, e assinava ele e o gerente que lho entregava, sempre fechado, seguia para a central, onde não é aberto, e daí para ..., e para o banco, mas da central em diante não sabe de procedimentos, e que houve introdução de saquetas pequenas, talvez por pedido de cliente: era consoante os clientes, e nesse caso picava saquetas e saco grande, e constava do talão a existência dessas saquetas e número e saco grande, e portanto se do talão não consta essa referências, os números de saquetas, é porque esse sistema ainda não fora introduzido.
s) XX afirmou trabalhar na Loomis, há três ou quatro anos, conhecer o arguido AA, e talvez o arguido DD, da Algartalhos (note-se que o arguido DD saiu da empresa em Agosto de 2017), os sacos opacos e transparentes são da Loomis, mas normalmente usam o transparente, ia ao escritório, e aguardavam o saco, já preparado ou preparado ali, e, confrontado com fls 241, documento 6 (Loomis), afirmou que tem o seu nome dele, TT, deve ser cópia do recibo do que dão aos arguidos, e 11.08.2017 é a data da recolha do valor, e valor não declarado, quer dizer que o gerente não lhe disse o valor, nem ele precisa de o saber, pois podia-lhe dizer uma coisa e ser outra, e selo 1 significa que é esse saco, e só um, e as saquetas seriam picadas se existissem, mas aí não fez referências a saquetas, nem respectivos códigos, portanto aí só houve um saco, e os rabiscos não sabe de quem são, – e aqui o arguido DD interveio dizendo que são seus (fls 241), – e mais que o dinheiro dentro do saco vai segundo entregue pelos clientes, ou em envelope ou enrolado, não havendo saquetas, e deduz que em ... o saco será aberto no centro de tratamento de valores, e se em ... houver desconformidade, não têm de lhe comunicar, salvo se faltar algum saco, e, confrontado com fls 237 de documento 2 (Loomis), afirmou ser cópia de talão como o outro, 07.07.2017, e a assinatura de rabiscos não será a sua, – e aqui o arguido DD interveio dizendo ser a dele.
t) YY afirmou conhecer o arguido AA de antes, e ambos os arguidos do Algartalhos, da Loja ... de ..., trabalhar para a Loomis desde 2016, recolhia os valores em 2016, chegava, ia ao escritório, entregavam-lhe o saco fechado, picava com PDA, emitia talão, colocava na mala e depois no cofre da viatura, e entregava na central e metido noutro saco com outros sacos, e ia para o tratamento de valores em ..., e os sacos nunca eram abertos na central do ..., são sacos transparentes, depois passaram a ser vários sacos, depois com saquetas, registada uma a uma, e metida em saco selado, e na Loja ... o escritório era no 1.º andar, ia sozinho, primeiro falava na caixa, perguntava pelo responsável da loja, que tanto podia ser um arguido como o outro, o saco já estava preparado, ou à sua frente, não se recorda, não notou comportamentos estranhos, nunca aconteceu na empresa desaparecimento de sacos, que ele saiba, e antes das saquetas os valores iam dentro de saco normal em geral, e não conferia nada de valores.
u) ZZ afirmou ser irmã e colega de trabalho do arguido AA, conhecer o arguido DD profissionalmente, trabalhar na Algartalhos, em loja diferente, de que é gerente, e que o arguido AA era subgerente e agora é chefe de loja com outro colega, e mais que as empregadas da caixa recolhem os valores, e fazem com elas folhas de caixa dos valores entregues aos gerentes da loja, que ficam responsáveis pelos valores, que guardam no cofre da loja, e a Loomis vinha buscá-los, o saco era de plástico transparente (como o dos autos), o opaco não, nunca o viu, ao princípio era o saco com outro dentro, depois era um saco por cada dia, depois deste caso é que começaram a usar as saquetas, uma por dia, os da Loomis não conferem valores, picam o saco, com PDA, e é assinado talão pelos da Loomis e pelo gerente, por exemplo ela, e só ela sabe quanto dinheiro lá vai, o da Loomis não sabe, e que nunca foi posto em causa pelos superiores e donos e colegas que o arguido AA fizesse isso, este ficou sozinho e subiu de posto para encarregado da loja, na mesma loja, e que há códigos de alarme em todas as lojas, onde os patrões podem entrar, e na sede há cópias das chaves das lojas, pelo menos a sua, que já perdeu, e foi busca-la lá, não sabe se há mais chaves de cofres além das que têm os encarregados de loja, não viu nada mudado na vida do arguido AA, e que na sua loja ela juntava os depósitos todos dos dias anteriores, e não tem explicação para o desaparecimento do dinheiro.
v) BB afirmou ser pai do arguido AA, viverem juntos, o rendimento do arguido resultar do trabalho na ofendida, não saber de sinais de desconfiança de quem quer que seja para com ele, nem de irregularidades no comportamento.
w) AAA afirmou conhecer o arguido AA como seu subgerente, na loja em ..., entregar-lhe o dinheiro, que é guardado em máquina, e não acreditar que ele tirasse o que quer que seja, e sempre a tratou bem, é cumpridor de horários, trata todos por igual, mas que não trabalhou na Loja ..., nem conhece o arguido DD.
x) BBB afirmou conhecer o arguido AA, com quem trabalha há dois anos em ..., onde ele é subgerente, e que lhe entrega as «sangrias» normalmente, não tem nada contra ele, que é cumpridor de horários e uma pessoa normal.
y) CCC afirmou trabalhar na Algartalhos, ser gerente de loja na ... agora, e antes em Olhos de Água, conhecer o arguido AA, mas não trabalhou directamente com ele, tem-no por pessoa de confiança, ao ela precisar de folga ele substitui-a na sua loja como gerente, onde ela tem as chaves do cofre, só os gerentes ao serviço têm as chaves, tanto da loja como do cofre, e, quando os patrões vão à loja, ela acompanha-os, pelo menos na sua loja desde 2018, onde é gerente com outra colega, e se porventura lhe faltasse dinheiro do cofre por irem lá, ela comunicava logo e verificava, e enfim que tinham talão de depósito de que entregava à empresa de segurança.
z) DDD afirmou conhecer os arguidos como colegas de trabalho, com o arguido DD não directamente, com o arguido AA foi colega directo na Loja ... de ..., onde, antes de DD, era ele que trabalhava, mas foram trocados por ordem do patrão, esteve cerca de dois anos com AA subgerente, e ele, SS, gerente, nunca lhe pareceu nada suspeito de AA, que trabalhava de forma leal, tudo batia certo, tinha boa conduta, e continua a fazer como subgerente o que fazia sempre, e ele, SS, é supervisor de AA desde Junho de 2021, e, quanto a ele, o dinheiro só pode sair pelo gerente, pois o saco é selado, no saco vai o talão com o valor do saco, e fica a cópia.
aa) EEE afirmou conhecer os arguidos como seus colegas há seis ou sete anos, conhecer o arguido DD na Algartalhos, onde ela já trabalhava, em ..., chegaram a trabalhar juntos, era um chefe normal, acessível, trabalhador, não lhe sabe de processo disciplinar, nunca teve problemas com ele, que acha que trabalha no Continente supermercado, e na Algartalhos até 2017, ela era funcionária normal, prescindiu de ser chefe em 2016 ela, e que conhecia o escritório, às vezes fechado, outras fechado sem tranca, os patrões não sabe se tinham chaves, os subgerentes e gerentes da loja tinham chaves, acha que não trabalhou com a Loomis, só com a Securitas, trabalhou com ele um ano e tal só na Loja ..., não na Loja n.º ..., e DD tinha um ... ... e um carro ... também, ... talvez, e talvez mais um carro, mas ela saiu da empresa em fins de 2016, por aí, e não sabe onde trabalhou mais o arguido DD desde que saiu da Algartalhos.
bb) JJ afirmou ser «cunhado» do arguido DD, pois vive em união de facto com a irmão desse arguido, que conhece desde 2007 como gerente de loja na Algartalhos, depois no Recheio, e agora no Continente como gerente, e é pessoa simples, calma, simpática, responsável nas actividades profissionais, os seus carros dele são antigos, de 18 ou 20 anos, para andar com eles e por gosto, também teve um ... ..., que devia ter os seus 18 anos, valeria aí 5000 euros, foi dos mais caros que comprou, acha, não o considera do género de se envolver «numa coisa destas», acha que se despediu da Algartalhos e esteve de baixa médica por problemas de filha e ex-mulher, e de «baixa psicológica», não lhe viu sinais de riqueza, ou mais jantares fora ou viagens, ao mesmo tempo acha que só teve um carro de cada vez, teve os carros ..., ... velho, e agora ..., acha que já teve dois ou três ....
cc) Enfim, o arguido AA declarou ainda que nunca HH ou GG lhe pediram dinheiro algum da loja, nem falou com ela ou pelo telefone sobre o caso, e o arguido DD declarou nunca ter falado com HH nem GG sobre o caso.
dd) E, feita acareação entre o arguido DD e HH, manteve cada um o seu dito.
ee) E, perante estas declarações e testemunhos, - tem-se desde logo por certa a relação laboral e o modo do seu exercício existente entre arguidos e ofendida e demandante qual se descreve na acusação e pedido cível, - e adverte-se no modo calmo e tranquilo como o arguido AA depôs afastando-se do arguido DD e negando ter empolgado as quantias de dinheiro, - mas afirmando os factos dos pontos 1 a 3, explicando ser subgerente, e não gerente, como ficou amplamente confirmado pelos depoimentos de todos os que o conheciam das suas funções, - e os pontos 4 e 5, e também o essencial dos pontos 6 e 7, e ainda os pontos 8, 10 e 11, - e, quanto ao ponto 9, que o cofre era de chave, e que cada um dos arguidos tinha a sua, e que pelo menos era de chave também foi confirmado por todos os depoimentos dos que exerciam funções na Algartalhos, o que o tribunal retém, conquanto outros também dissessem que seria de código, - como retém que cada um dos arguidos tinha a sua chave, já que outros, incluindo os patrões, também a tivessem foi negado por estes e pela generalidade das testemunhas, e, quanto ao resto, adverte-se outrossim - em que este arguido, além da serenidade demostrada, não insinuou a responsabilidade de ninguém mais nos factos, ao contrário do arguido DD dizendo deixar a chave do cofre exposta em cima de prateleira e entregar dinheiro da loja sem recibo a HH a pedido desta, que o negou com veemência, como o arguido AA negou que tivesse procedido alguma vez de igual modo com ele, - em que, segundo praticamente todos os depoentes relacionadas com a Algartalhos, o acesso ao cofre dos dinheiros apurados nas caixas era feito somente pelos arguidos, detentores cada um da sua chave do cofre, - em que, segundo todos os funcionários da Loomis, e não só, estes somente recebiam os valores contidos em saco selado e inviolável entregue de cada vez por um ou outro dos dois arguidos, únicos que de cada vez respectiva lhe conheciam o valor do conteúdo, ignorado pelos funcionários da Loomis, - em que não consta que fosse detectada irregularidade alguma da parte destes, - em que, segundo praticamente todos os depoentes relacionadas com a Algartalhos e a Loomis, nunca antes nem depois desta se verificou falta alguma na entrega de dinheiros, - em que portanto tais faltas ocorreram só na Loja ... e no período em que os arguidos trabalhavam com responsáveis da loja, - e em que as entregas dos sacos com o dinheiro não eram feitas pelos dois arguidos juntos e ao mesmo tempo aos homens da segurança e transporte, mas sempre e somente por um deles, arguidos, - e finalmente e sobretudo em que de todas as vezes e referidos dias de Julho e Agosto de 2017 em que faltou dinheiro dos sacos, a entrega desses sacos aos funcionários da empresa de segurança foi feita pelo arguido DD, - e de tudo isto conjugado entre si e mormente com os documentos que foram sendo apresentados aos depoentes, mas também com certidão permanente do registo comercial de fls 12 a 16, e relacionados com o contrato celebrado com a Loomis de fls 17 e 18, folhas de prestação de contas de fls 19 a 42, informação da Loomis Portugal de fls 114 a 115, fichas do registo automóvel de fls 170 a 175 e 181 a 191, listagem das contas bancárias dos arguidos, de fls. 177 a 180, listagem de movimentos de contas bancárias de fls 199 a 226, talões de entrega de fls 237, 239, 241 e 243, e de entregas de fls 235 a 236, talões de depósito de fls 238, 240 e 242, extrai-se a convicção de que a autoria dos factos e empolgamento do dinheiro apurado na dita Loja ... da Algartalhos e em falta deve ser imputada ao arguido DD, e não ou não também ao arguido AA, fora de qualquer dúvida razoável, como aqui se faz: - pois, a quem entenda, como faz a defesa, que se estranha ou compreende mal que o arguido se apropriasse do dinheiro sendo responsável deste e da respectiva entrega aos funcionários da segurança que o vinham buscar, responde-se primeiro que não era só o arguido DD o responsável de tal, mas também o arguido AA, pelo que aquele bem podia contar lá nos seus cálculos com que esta circunstância sempre contribuiria para confundir o caso deixando o julgador perplexo sobre a qual dos dois atribuir a culpa; depois, que precisamente uma das formas de esconder algo é expô-la à maior evidência, como no caso e conto clássico e consabido da «Carta Roubada», de Edgar Allan Poe, em que ninguém repara nesta justamente por exposta à vista de todos ao centro da cornija da lareira, se bem me lembro, como certamente o arguido esperaria que sucedesse com a seu feito; e enfim, ainda que assim não seja, é a ficção que necessita de ser verosímil, não a verdade. Para os antecedentes criminais, CRC de fls 396 e 397; para a situação económica e financeira dos arguidos, as suas declarações».

***

Cumpre apreciar e decidir.

B.2 – Do recurso.

O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal - não estando o tribunal de recurso impedido de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito.

As questões abordadas no recurso sistematizam-se da seguinte forma, tal como expostas pelo recorrente:

i - da nulidade da sentença recorrida – art. 379 nº 1 al. c) do CPP

ii – da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada - artigo 410º nº 2 al. a) do CPP;

iii - da insuficiência da matéria probatória;

iv – da violação do princípio in dubio pro reo.

Esta sistematização exige dilucidações adicionais, pois que entendemos que o conceito de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada merece esclarecimentos.

Repetimo-nos, usando anteriores relatos neste ponto e na apreciação da invocada nulidade de sentença.

O conceito de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, como se afirmava no acórdão do STJ de 11-11-1998 (Proc 98P1093 – Cons. Leonardo Dias) a “é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão, ou seja, é aquela que resulta da circunstância de o tribunal julgador não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão. (II) Logo, o mencionado vício não tem nada a ver, nem com a insuficiência da prova produzida, nem com a insuficiência dos factos provados para a decisão de direito proferida”.

O STJ tem sido claro na delimitação dos contornos de tal conceito, reservando-o para os casos em que “o tribunal recorrido não esgotou como devia o objecto do processo, assim deixando a matéria de facto exposta ao vício de insuficiência a que alude o artigo 410.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal” – acórdão do STJ 15-03-2007 (Cons. Pereira Madeira – Proc. 07P648)

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é a “insuficiência que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da discussão da causa, ou seja os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339.º, n.º 4 do Código de Processo Penal. Na verdade, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância do tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito” - Ac. STJ de 21-06-2007 (Cons. Simas Santos, proc. 07P2268).

De forma cabal, (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 10/04/2006, no processo nº 06P2678 – rel. Cos. Santos Cabral):

I - O vício de «insuficiência para a decisão» relevante para integração do normativo do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP não pode ser confundido, como frequentemente sucede, com erro de julgamento, que resultaria de errada apreciação da prova ou insuficiência desta para fundamentar a decisão recorrida.

II - É um dado adquirido em termos dogmáticos que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, visto a sua importância para a decisão, por exemplo para a escolha ou determinação da pena”.

Logo, aquilo que o recorrente invoca nos pontos ii e iii não é o dito vício, sim a insuficiência probatória para sustentar em sede de factos a matéria dada como provada, aquilo que igualmente se designa como standard de prova necessária à convicção de condenação.

No entanto, a sistemática processual penal obriga-nos a percorrer um caminho que se inicia, necessariamente, pelo apurar da existência de nulidade da decisão e só após, caso o não seja, de conhecer dos pontos restantes (iii e iv).


*
B.3 - Da nulidade da decisão

E nesse conspecto é opinião deste tribunal que a sentença recorrida quanto à apreciação da prova não se mostra formal e substancialmente adequada e dela não resultam evidentes as razões que sustentaram a motivação da matéria factual, mormente quanto à condenação do arguido recorrente.

Dessa fundamentação - repetindo-nos por referência a anteriores relatos - não resulta claro o processo lógico seguido pelo tribunal recorrido, quer por referência à linguagem, à lógica, quer por apelo racional aos meios de prova especificamente indicados, quer por apelo às regras de experiência comum, quer, por fim, no uso adequado e prudente, das presunções naturais.

Nos termos do artigo 379 al.ª a) do Código de Processo Penal a sentença deve conter, sob pena de nulidade, “... uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” – artigo 374 n.º 2 do mesmo diploma.

O objectivo é claro.

A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso, ………………….”
“E, extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade”. [1]

Isto é, tempera-se o princípio da livre apreciação da prova com uma obrigação de motivação com alteridade e objectividade.

Como afirma Germano Marques da Silva, “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da validade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autocontrolo”.[2]

Ou, como é bem salientado por Maria de Fátima Matamouros, “È a motivação que confere um fundamento e uma justificação específica à legitimidade do poder judicial e à validade das suas decisões, a qual não reside nem no valor político do órgão judicial nem no valor intrínseco da justiça das suas decisões, mas na verdade que se contém na decisão”, para além de ser mera consequência “do direito a um processo equitativo…”. [3]

Face a isto como interpretar o comando contido no artigo 127º do Código de Processo Penal que determina que o juiz deve apreciar a prova “segundo as regras da experiência e a livre convicção”? Esta “livre convicção” corresponde a uma livre discricionariedade na apreciação da prova?

Convém recordar que a livre convicção do julgador pôs fim ao processo assente na prova legal ou tarifada.

É certo que o sistema da “livre convicção” deu origem a dois sistemas de convicção, surgindo o sistema da íntima convicção (“intime conviction”) na sequência da Revolução Francesa associada à livre convicção, no qual o juiz estava “desligado não só das regras de prova legal, mas também de qualquer critério racional de valoração”. [4]

Este sistema, de irracionalidade motivadora, de cariz marcadamente subjectivo, abre a porta à arbitrariedade na apreciação probatória, com base numa imperscrutável actividade individual do juiz e constitui – em si – uma negação do recurso em matéria de facto. [5]

Assim o princípio da livre convicção deve ser associado a uma discricionariedade do juiz na apreciação probatória mas apenas no sentido de o não vincular – como regra geral – a uma valoração probatória pré-definida, porque apenas nisso é livre.

Mas não exime o juiz da busca da verdade através dos métodos epistemológicos aceites. E o método epistemológico, por excelência, aceite na busca da verdade dos factos é a razão.

Ou seja, a livre convicção é, hoje, uma concepção racional de livre convicção na busca da verdade factual, com dois corolários:

1 – Regra geral o juiz aprecia livremente – não sujeito a valoração tabelada – toda a prova produzida;

2 – Através do uso da razão para demonstrar a verdade dos factos.

Deste modo haverá que afirmar, de forma absoluta, que a motivação não é o seguimento do “iter lógico-psicológico que o juiz seguiu para chegar à formulação final da sua decisão”, sendo irrelevantes “as sinapsis que se produziram nos neurónios do juiz, os seus humores, os seus sentimentos e qualquer outra coisa que tenha sucedido in interiore homine”. [6]

Ou seja, o sistema da livre convicção consagrado no ordenamento jurídico português não é um sistema irracionalista, subjectivo, de apreciação probatória, [7] sim um sistema racionalista, assente na razão, nas regras de experiência social comprovada e em presunções probatórias racionalmente fundadas. [8]

Ora, que se passa no caso dos autos?

No caso em apreço, a decisão recorrida indicou, de modo claro, as provas em que o tribunal se baseou para formar a sua convicção, mas olvidou a explanação do processo lógico que a esta conduziu. Fundamentou de forma a deixar muitas dúvidas sobre o percurso lógico seguido.

Desde logo há clara omissão fundamentadora quanto aos factos não provados 12 a 22, como bem salienta o recorrente.

Aqui nem sequer há “insuficiência intolerável” de fundamentação, há total ausência de fundamentação.

Depois – e este é ponto essencial – a fundamentação quer-se assente na razão e não numa apreciação subjectiva insindicável designadamente quanto à postura de ambos os arguidos em julgamento. O estar irritado ou calmo, ou o sentar-se longe de outro arguido não são índices aceitáveis de apreciação probatória.

Ora, o que o tribunal recorrido fez foi usar em excesso a sua margem de apreciação subjectiva quanto à apreciação de meios de prova de carácter pessoal – declarações – fazendo desaparecer a razão na apreciação desses mesmos meios de prova. E isso é inadmissível, pois que corresponde à ausência total de fundamentação.

O cerne do recurso, nesta sede, localiza-se na fundamentação factual do tribunal recorrido, já que nesta ao tribunal incumbe fazer o elenco descritivo das provas carreadas para os autos e que foram relevantes para a apreciação factual e, logo após, proceder à análise crítica e racional das razões que conduziram a que se atribuísse relevância (ou não) a essa prova (cada uma delas), assim como a uma ponderação lógica dos factos e das provas com vista à decisão de facto, fazendo – ou não – apelo às regras de experiência comum, assim como o fazer funcionar presunções de facto (presumptiones hominis), meios de prova admissíveis, desde que fundadas e explicitadas (ambas, regras de experiência comum e presunções de facto).

Se o tribunal recorrido cumpriu a primeira parte da fundamentação factual de forma exaustiva nas alíneas de b) a dd) (com, de permeio, apreciações suas, o que não é aconselhável), expondo os contributos dos arguidos e das várias testemunhas, limitou o exame crítico das provas – depoimentos e outros meios de prova – à alínea ee), ponto que se impõe analisar.

Aqui é igualmente evidente que o tribunal recorrido cumpriu a obrigação de fundamentação de facto relativamente aos factos provados sob 1) a 11), 33) a 35), de forma expressa.

Apesar de o recorrente parecer insurgir-se também quanto à prova do facto 9º, certo é que ele surge fundamentado, apesar de sinteticamente. E o colocar em causa tal facto deve situar-se em sede de impugnação da matéria de facto, algo que o recorrente não fez, seguindo a exigência do disposto nos nsº 3 e 4 do art. 412º do CPP.

Restam os factos – aliás referidos pelo recorrente – 12) a 32), dos quais não há qualquer referência na decisão recorrida. Para facilidade de exposição reproduzem-se tais factos:

12 Conhecedor de tal procedimento, o arguido DD formulou o propósito de fazer suas várias quantias monetárias, no maior valor possível, entregando o saco fechado sem as mesmas e fazendo seus tais montantes.
13 Assim, na concretização de tal propósito, no dia 05 de Julho de 2017, ao final do dia, o arguido DD efectuou a contagem do dinheiro existente nas caixas registadoras e assinou os talões de prestações de contas, tendo apurado que nesse dia foi obtida a quantia monetária de € 6417,40 em notas e moedas do Banco Central Europeu, que fez sua, dando-lhe destino não concretamente apurado.
14 No dia 07 de Julho de 2017, o arguido DD fechou e selou o saco previamente entregue pela Loomis, sem colocar no seu interior a quantia indicada em 13 (€ 6417,40).
15 No dia 07 de Julho de 2017, pelas 10 h 04, o arguido DD entregou o dito saco aos funcionários da Loomis Portugal que para o efeito se deslocaram à Loja n.º ....
16 No dia 03 de Agosto de 2017, ao fim do dia, o arguido DD efectuou a contagem do dinheiro existente nas caixas registadoras e assinou os talões de prestações de contas, tendo apurado que nesse dia foi obtida a quantia monetária de € 6519,66 em notas e moedas do Banco Central Europeu, que fez sua, dando-lhe destino não concretamente apurado.
17 No dia 04 de Agosto de 2017, o arguido DD fechou e selou o saco previamente entregue pela Loomis, sem colocar no seu interior a quantia indicada em 16 (€ 6519,66).
18 No dia 04 de Agosto de 2017, pelas 16 h 48, o arguido DD entregou o dito saco aos funcionários da Loomis Portugal que para o efeito se deslocaram à Loja n.º ....
19 No dia 10 de Agosto de 2017, ao fim do dia, o arguido DD efectuou a contagem do dinheiro existente nas caixas registadoras e assinou os talões de prestações de contas, tendo apurado que nesse dia foi obtida a quantia monetária de € 7057,84 em notas e moedas do Banco Central Europeu, que fez sua, dando-lhe destino não concretamente apurado.
20 No dia 11 de Agosto de 2017, o DD fechou e selou o saco previamente entregue pela Loomis, sem colocar no seu interior a quantia indicada em 19 (€ 7057,84).
21 No dia 11 de Agosto de 2017, pelas 10 h 52 min, o arguido DD entregou o dito saco aos funcionários da Loomis Portugal que para o efeito se deslocaram à Loja n.º ....
22 No dia 24 de Agosto de 2017, ao fim do dia, o arguido DD efectuou a contagem do dinheiro existente nas caixas registadoras e assinou os talões de prestações de contas, tendo apurado que nesse dia foi obtida a quantia monetária de € 5759,73 em notas e moedas do Banco Central Europeu, que fez sua, dando-lhe destino não concretamente apurado.

Relativamente a estes factos – centrais na imputação dos factos a ambos os arguidos – não há qualquer fundamentação na decisão recorrida.

Não é, assim, possível aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que subjaz à motivação pela via do recurso.


*

B.4 – Do juízo fundamentador

Relativamente ao trecho fundamentador da decisão recorrida, acerbamente criticada pelo recorrente, em que o Mmº Juiz - para a contraposição de culpas entre os dois arguidos – afirma:

«… extrai-se a convicção de que a autoria dos factos e empolgamento do dinheiro apurado na dita Loja ... da Algartalhos e em falta deve ser imputada ao arguido DD, e não ou não também ao arguido AA, fora de qualquer dúvida razoável, como aqui se faz: - pois, a quem entenda, como faz a defesa, que se estranha ou compreende mal que o arguido se apropriasse do dinheiro sendo responsável deste e da respectiva entrega aos funcionários da segurança que o vinham buscar, responde-se primeiro que não era só o arguido DD o responsável de tal, mas também o arguido AA, pelo que aquele bem podia contar lá nos seus cálculos com que esta circunstância sempre contribuiria para confundir o caso deixando o julgador perplexo sobre a qual dos dois atribuir a culpa; depois, que precisamente uma das formas de esconder algo é expô-la à maior evidência, como no caso e conto clássico e consabido da «Carta Roubada», de Edgar Allan Poe, em que ninguém repara nesta justamente por exposta à vista de todos ao centro da cornija da lareira, se bem me lembro, como certamente o arguido esperaria que sucedesse com a seu feito; e enfim, ainda que assim não seja, é a ficção que necessita de ser verosímil, não a verdade»,

ela é aceitável apenas como comentário a latere, não criticável em si, pois que o apelo à literatura não é vedado ao magistrado judicial.

Coisa diversa é saber se tal trecho é suficiente para alicerçar um juízo de imputação!

Sabe-se, ao menos desde Samuel Coleridge – na peugada de Luciano de Samósata – que a literatura implica uma suspensão da incredulidade ou "suspensão voluntária da descrença", no sentido de isso implicar para o leitor a aceitação das premissas do romance ficcionado, convidando-o a ser crédulo nessas premissas, implicando tal a suspensão do seu juízo crítico quanto à veracidade do relato. Ou seja, suspende-se a racionalidade, o espírito crítico, em troca do prazer da leitura.

Mas se esta “suspensão da incredulidade” é essencial na literatura e outras forma de arte, ela não é possível no discurso judicial, que vive da razão e, necessariamente, da sistemática incredulidade do juízo crítico.

Concordando com a Exmª PGA e parafraseando anterior relato nosso, se a linguagem deve ser clara e compreensível como elemento essencial de uma comunicação interpessoal, a linguagem judicial (com maior acuidade nas decisões judiciais) deve procurar a clareza e certeza, como elemento básico não só do acto de comunicação humana que também é, mas também com o significado de precisão de linguagem jurídica no âmbito da Ciência do Direito.

A linguagem judicial deve ser compreensível mas uma decisão judicial deve ser mais, deve ser clara, precisa e ser auto-suficiente na sua compreensibilidade.

Porque se é certo que “a linguagem é sempre mais ou menos vaga de modo que as nossas asserções nunca são completamente precisas”, não deixa de ser verdade que a “função da linguagem é ter sentido”. [9] E no caso de uma decisão judicial, “ter sentido” é acautelar o que de impreciso uma linguagem pode ter na produção de efeitos jurídicos na esfera dos destinatários da decisão.

Portanto, a linguagem judicial deve primariamente seguir o aforismo de Wittgenstein (4.116): “Tudo o que pode de todo ser pensado, pode ser pensado com clareza. Tudo o que se pode exprimir, pode-se exprimir com clareza”. [10]

Isto implica explicitar, de forma lógica, racional e clara, por referência ao teor dos depoimentos, documentos, às suas circunstâncias e às regras de experiência comum e presunções naturais, as razões que fundaram a convicção do tribunal recorrido quanto a tais factos.

Por isso que o trecho citado, sendo legítimo, não é suficientemente racional e apegado aos factos e à prova.

De outra banda, o uso de regras de experiência comum e de presunções naturais não é a mera afirmação da sua existência, já que ambas exigem explanação rigorosa.

Como se afirmou no acórdão desta Relação de Évora de 25-06-2013 (proc. 535/09.0TAOLH.E1):

I. Tomada isoladamente uma “regra de experiência comum” é inoperante em qualquer processo. Isto é, uma regra de experiência comum não pode isoladamente fazer prova num processo, a não ser que haja uma aproximação ao acontecido, o que se opera por via de uma presunção hominis. (…)
III. A operatividade da presunção deve, no entanto, apresentar alguns requisitos metodológicos básicos, como uma relação directa, unívoca e precisa, logo necessária, entre o facto conhecido e o facto desconhecido. Em resumo, a presunção com base no facto probatum só permite a ligação ao facto probandum se a presunção se basear num juízo lógico seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco. Não basta a mera verosimilhança, o provável, o plausível, para que se permita operar de forma capaz uma presunção hominis. (…)

Destarte, a fundamentação, tal como está, é patentemente insuficiente, incorrendo na nulidade referida pelo artigo 379.º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal.

Do exposto resulta a existência de nulidade de sentença, por ausência de fundamentação quanto aos factos provados e factos não provados.

E porque assim é, prejudicados ficam os restantes fundamentos do recurso, pois que conhecer dos vícios de julgamento pressupõe a inexistência de nulidade por falta de fundamentação.


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C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, declaram nula a sentença recorrida, devendo ser lavrada outra que supra os vícios indicados.

Sem custas.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 28 de Março de 2023.


João Gomes de Sousa

Carlos Campos Lobo

Ana Bacelar


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[1] - Marques Ferreira - “Meios de Prova”, in “Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal”, Almedina, 1988, pag. 230.
[2] - In “Curso de Processo Penal”, Verbo, 1994, III, 290.
[3] - In “A fundamentação da decisão como discurso legitimador do Poder Judicial” – Boletim Informação e Debate – IVª série, nº 2, Dezembro de 2003, ASJP, pag. 109.
[4] - “Simplemente la Verdad – El juez y la constuccion de los hechos” – Michele Taruffo, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2010, pags. 179-180.
[5] - Uma concepção subjectiva coerente apela à íntima convicção do juiz como único critério de apreciação probatória, forte pendor da imediação e do papel do juiz de 1ª instância na apreciação da prova, débeis exigências de motivação e um sistema de recursos que dificulta o recurso em matéria de facto. V. g Jordi Ferrer Beltrán, in “La valoracion racional de la prueba”, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2007, pag. 62.
[6] - “Simplemente la Verdad – El juez y la constuccion de los hechos” – Michele Taruffo, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2010, pag. 267.
[7] - “Concepção persuasiva” na terminologia de Jordi Ferrer Beltrán, in “La valoracion racional de la prueba”, Folosofía y Derecho, Marcial Pons, 2007, pag. 62.
[8] - Ou “concepção cognoscitivista”, que se apresenta coerente com o método de corroboração e refutação de hipóteses como forma de valoração da prova, versão limitada do princípio da imediação, forte exigência de motivação factual e recurso amplo em matéria de facto. V.g. Jordi Ferrer Beltrán, in “La valoracion racional de la prueba”, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2007, pag. 64 e nota 6.
[9] - Bertrand Russell in “Introdução” ao “Tratado Logico-Filosófico”, de Wittgenstein, L. – pags. 2-3, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian – 4ª Edição, 2008. [10] - “Tratado Logico-Filosófico”, pag. 63.