Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
446/14.7TBABT-E2
Relator: SILVA RATO
Descritores: INABILITAÇÃO
REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO
SENTENÇA NÃO TRANSITADA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - A Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que entrou em vigor em 10 de Fevereiro de 2019, revogou os regimes da interdição e da inabilitação e instituindo o regime do maior acompanhado.
II - O seu art.º 26º delimita a sua aplicação no tempo em duas vertentes, uma relativamente aos processos pendentes e outra às decisões já transitadas em julgado.
III - Quanto aos processos de interdição e inabilitação pendentes, não distingue a citada norma entre os processos em que a sentença já tenha sido proferida antes da entrada em vigor da lei, mas ainda não tenha transitado, dos processos em que a sentença ainda não foi proferida, pelo que o regime aplicável a todos eles deve ser o constante do seu n.º 1, que estabelece que “A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor” e, no seu n.º 2, que “O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes”.
IV - O que tem por consequência, entre o mais, que tendo sido extinto o regime da interdição e da inabilitação (vide corpo do n.º1, do art.º 1º, da Lei n.º 49/2018), a sentença proferida no âmbito da Lei anteriormente em vigor, mas não transitada em julgado, deixa de ter qualquer efeito, por via da extinção daqueles Institutos, devendo o processo ser formalmente adequado, mesmo que já tenha subido à 2ª Instância, à realidade do novo Instituto do regime do maior acompanhado, que obedece a um novo paradigma, ora plasmado na nova redacção do art.º 138º do Cód. Civ., e que vai no sentido do apoio ao maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, por forma _ estabelece a nova redacção do art.º 142º do Cód. Civ._, a assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as excepções legais ou determinadas por sentença.
V- Os recursos interpostos dessas sentenças, que se atêm à apreciação do seu mérito, perdem qualquer interesse por via da extinção dos Institutos em que as sentenças se alicerçaram.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam, na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc. n.º 446/14.7TBABT-E2
Apelação
Comarca de Santarém (Abrantes – Juízo Local Cível)
Recorrentes: BB e CC
Recorrida: DD
R23.2019

I. BB e CC, intentaram contra DD, a presente Acção de Interdição por Anomalia Psíquica, peticionando que a Requerida seja declarada interdita por anomalia psíquica.

Produzida a prova, foi proferida Sentença, em que se decidiu o seguinte:
“3.1.- Pelo exposto, delibera este Tribunal julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, decretar a inabilitação de DD, por incapacidade da mesma em praticar actos de disposição ou oneração de bens do património conjugal, como seja a celebração de contratos de compra e venda e doação, sendo a inabilitação decretada apenas para a prática destes actos jurídicos, fixando a data do início da incapacidade no dia 20/1/2015.
3.2.- No mais, absolver as partes do peticionado umas pelas outras.
3.3.- Deverão os requerentes e a requerida, no prazo de dez dias, indicar duas pessoas para integrar o conselho de família, presidido pelo M.P. e que irá ser ouvido sobre a pessoa a nomear com curador da requerida, ora inabilitada, sendo certo que essa indicação, de preferência, deve ser feita por acordo, e deve referir-se a pessoas que não deverão ser familiares, maxime herdeiros da requerida, para não haver conflitos de interesses, nem com requerentes, nem com a requerida.
…”

Inconformados com tal Decisão, vieram os Requerentes interpor Recurso de Apelação, cujas Alegações terminaram com a formulação das seguintes Conclusões:
1 - A matéria dada como provada na alínea P), mostra-se insuficiente face ao que resulta dos documentos juntos aos autos e à audição complementar do Perito Médico que observou a Recorrida em Tribunal;
2 - Aliás, já da observação realizada em 05 de Dezembro de 2013, pelo Perito, Dr. António C…, do Gabinete Médico Legal, resultava que a Recorrida não sabia a sua idade, nem a data do nascimento, não conhecia o dinheiro actual, sendo portadora de Perturbação Depressiva, moderada, com sintomas somáticos;
3 - Ora, o Perito Médico, Dr. Luís F…, nas conclusões 5 do seu relatório, mencionou o seguinte: "Apesar de não possuir dados relativos ao estado da peritada em Fevereiro de 2014, pelo grau de degradação intelectual apresentado na presente avaliação e pela evolução típica da patologia em causa, sou da opinião que é altamente provável que a mesma, já nessa altura não apresentasse as capacidades intelectuais que lhe permitissem uma total compreensão do seu acto.";
4 - E, o mesmo perito, inquirido em audiência de julgamento pelo Meritíssimo Juiz, sobre esta matéria, ou seja, acerca da data em que DD deixou de ter capacidades mentais para praticar negócios, o Dr. Luís F… declarou o seguinte: "Difícil resposta. (..) Vi-a em Janeiro de 2015. Nessa altura ela já apresentava alguns défices intelectuais e, portanto, estas doenças têm uma evolução gradual, portanto, na altura de 2014 ... eu acredito que ela em 2014 não tinha capacidade para perceber a totalidade de negócios que envolvem quantias elevadas de dinheiro." E ainda "Perceber a totalidade quase de certeza que não tinha essa capacidade. Se posso dar 100% de certeza? Não posso! Mas há um grande grau de probabilidade? Sim!"(Ref. CD: 20181204143726_149803_2871736_ 3:15);
5 - Mais à frente no seu depoimento, o Dr. Luís F…, confirmou que mantinha neste depoimento que as limitações se reportavam ao início de 2014 (Fevereiro), o que já tinha afirmado no seu relatório, elaborado após a observação da D. DD em 2015;
6 - E, ainda, mais à frente do seu depoimento, o Sr. perito Médico, respondeu o seguinte: "(.) Agora, o que eu estou a dizer é que há alta probabilidade de ela já não ter capacidade de perceber, de compreender a totalidade da matéria que envolve um raciocínio complexo. (.) Há essa probabilidade pela evolução da doença. A probabilidade é uma probabilidade. Eu acho que a probabilidade é grande (.) não posso dizer em 100% é assim. Há uma alta probabilidade de ser assim!" (Ref.CD: 20181204143726_149803_2871736 _ 10:50 a 12:30);
7 - Face à conjugação dos dois relatórios e às declarações complementares prestadas em audiência de julgamento, é manifesto que apesar do Perito, Dr. Luís F…, só ter observado a Recorrida no dia 20 de Janeiro de 2015, o certo é que o mesmo não teve dúvidas em retroagir as patologias da Recorrida, no que respeita à capacidade de perceber, compreender a totalidade da matéria que envolva o raciocínio complexo, dada a evolução gradual da doença, o que se conjuga com o teor do relatório de observação de 05 de Dezembro de 2013 já referido na conclusão 3;
8 - Deste modo, a matéria da alínea P), que foi dada como provada, deve ser complementada, devendo ficar a constar com o seguinte teor: "A incapacidade da Ré reger sozinha o seu património em questões de particular relevância, como seja a compreensão do valor dos prédios objecto de compras e vendas e doações, pelo grau de degradação intelectual apresentado na avaliação de 20 de Janeiro de 2015, e pela evolução típica da patologia em causa, ocorre com alta probabilidade desde Fevereiro de 2014, altura em que DD já não apresentava as capacidades intelectuais que permitissem uma total compreensão dos seus actos";
9 - A decisão em recurso viola o disposto no nº 1, al. d), do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
A finalizar ainda se impetra o douto suprimento de v. Exas. para as deficiências do nosso patrocínio, clamando-se, JUSTIÇA!!!! “

Cumpre decidir.
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual:
“2.1.- Provaram-se os seguintes factos com relevo para a decisão da causa, os quais foram mantidos pelo Tribunal da Relação de Évora :
A)- A Ré DD nasceu em 4/8/1931, na freguesia de Souto, concelho de Abrantes, sendo filha de José L… e de Maria N….
B)- Casou catolicamente, com Joaquim M…, no dia 17/10/1956, no regime da comunhão geral de bens.
C)- Os Autores são filhos da Ré.
D)- A Ré não sabe ler, nem escrever.
E)- Não se adaptou à moeda euro, pelo que não sabe fazer a conversão de escudos para euros, e vice-versa, quando envolvam grandes quantias, apenas sabendo fazer pequenos trocos, como sejam os das compras de mercearia do dia-a-dia.
F)- Ficou bastante fragilizada emocionalmente com este processo, uma vez que foram dois dos seus filhos a instaurar a acção contra ela.
G)- Por não saber o valor real dos prédios, confiou sempre no marido quanto à realização dos negócios jurídicos, que envolvessem a disposição de bens desta natureza.
H)- A Ré sempre percebeu o sentido e o alcance desses mesmos negócios jurídicos, isto é, sempre percebeu a quem dava, ou vendia terrenos, porque razão o fazia e porque razão dava ou vendia, em relação a uns filhos e não em relação a outros.
1)- Atenta a sua idade e actual fragilidade emocional, a Ré não consegue deslocar-se sozinha a qualquer outra localidade, nem diligenciar pela sua deslocação em transportes públicas, andando sempre acompanhada, designadamente pelo marido.
J)- A Ré apresenta, actualmente, défices cognitivos ligeiros de orientação, atenção, memória a curto prazo e de abstracção, que, tendo em conta a idade e a sua baixa escolaridade, revelam um demencial ligeiro e sintomatologia depressiva ligeira em consequência do corrente processo.
L)- Ela demonstra capacidade para governar a sua pessoa nas actividades da vida diária, mas não tem capacidade para reger sozinha o seu património, não em questões da vida quotidiana ( por exemplo, as compras da mercearia do dia-a-dia), mas em questões de particular relevância, como seja o valor dos prédios, objecto de compras e vendas ou de doações, em relação ao qual está dependente do marido em quem confia.
M)- Os Autores instauraram este processo em virtude de estarem descontentes com negócios jurídicos que a Ré celebrou, juntamente com o marido, tendo por objecto prédios, estando os Autores descontentes com a forma como ela procedeu à disposição do seu património.
N)- A Ré confecciona as suas refeições e as do marido.
0)- A Ré e o marido apanham os frutos das árvores e colhem os vegetais da horta, sendo que é o marido da Ré quem trata da horta e das árvores de fruto. Mais se provou, da discussão da matéria de facto ocorrida na audiência final do dia 4/12/2018, que:
P)- A incapacidade da Ré para reger sozinha o seu património em questões de particular relevância, como seja a compreensão do valor dos prédios objecto de compras e vendas e doações, ocorre, seguramente, desde o dia 20/1/2015. “
***
III. Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do N.C.P.C., o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

As questões objecto do presente recurso resumem-se, pois, a saber:
a) Se deve ser alterada a Decisão relativa à matéria de facto, relativamente à matéria constante da alínea P) dos Factos Provados;
b) Qual a decisão a dar ao pleito.

Previamente à apreciação das questões objecto do recurso, importa tecer algumas considerações sobre a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que entrou em vigor em 10 de Fevereiro de 2019, revogando os regimes da interdição e da inabilitação e instituindo o regime do maior acompanhado.
No que interessa à decisão do presente recurso, importa ter em conta, entre o mais, e desde logo, o regime da aplicação no tempo desta Lei, vazado no seu art.º 26º, que delimita a sua aplicação em duas vertentes, uma relativamente aos processos pendentes e outra às decisões já transitadas em julgado.
Quanto aos processos de interdição e inabilitação pendentes, como é o em apreço, não distingue a citada norma entre os processos em que a sentença já tenha sido proferida antes da entrada em vigor da lei, mas ainda não tenha transitado, dos processos em que a sentença ainda não foi proferida, pelo que o regime aplicável a todos eles deve ser o constante do seu n.º 1, que estabelece que “A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor” e, no seu n.º 2, que “O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes”.
O que tem por consequência, entre o mais, que tendo sido extinto o regime da interdição e da inabilitação (vide corpo do n.º1, do art.º 1º, da Lei n.º 49/2018), a sentença proferida no âmbito da Lei anteriormente em vigor, mas não transitada em julgado, deixa de ter qualquer efeito, por via da extinção daqueles Institutos, devendo o processo ser formalmente adequado, mesmo que já tinha subido à 2ª Instância, à realidade do novo Instituto do regime do maior acompanhado, que obedece a um novo paradigma, ora plasmado na nova redacção do art.º 138º do Cód. Civ., e que vai no sentido do apoio ao maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, por forma _ estabelece a nova redacção do art.º 142º do Cód. Civ._, a assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.

Ora, perante este novo quadro legal, que a Lei manda aplicar a todos os processos pendentes, sem distinguir, como se disse, entre processos em que a sentença já foi proferida antes da entrada em vigor desta nova Lei, mas que não transitou em julgado, dos processos em que ainda não tinha sido proferida sentença, os recursos interpostos dessas sentenças, que se atêm à apreciação do seu mérito, perdem qualquer interesse por via da extinção dos Institutos em que as sentenças se alicerçaram.

Consequentemente, somos levados a revogar a Sentença recorrida, para que o Tribunal “a quo”, tendo em vista o disposto no n.º2, do art.º 26º da Lei n.º 49/2018, e o novo regime do maior acompanhado definido por essa Lei, adeqúe formalmente o presente processo ao novo regime legal.

Fica assim prejudicada a apreciação do presente Recurso.
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IV. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se:
a) Revogar a Sentença recorrida, para que o Tribunal “a quo”, tendo em vista o disposto no n.º2, do art.º 26º da Lei n.º 49/2018, e o novo regime do maior acompanhado definido por essa Lei, adeqúe formalmente o presente processo ao novo regime legal;
b) Não conhecer do recurso, por a sua apreciação ter ficado prejudicada pelo anteriormente decidido.
Sem custas.
Registe e notifique.
Évora, 02 de Maio de 2019
Silva Rato – Relator
Mata Ribeiro – 1º Adjunto
Sílvio Sousa – 2º Adjunto