Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
158/22.8T8TVR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - O dies a quo da contagem do prazo de prescrição previsto no artigo 498º, nº 2, corresponde ao do pagamento, pois é a partir desse momento que o direito poderá ser exercido (art. 306º, nº 1, do CC).
II - Pode, no entanto, autonomizar-se o pagamento de cada parcela, desde que se esteja perante danos normativamente diferenciados, como é entendimento jurisprudencial reiterado.
III - No âmbito da regularização do sinistro em causa, a autora efetuou diversos pagamentos com fundamento no acidente em apreço, o último dos quais ocorreu em 06.12.2019, começando então a correr o prazo prescricional. Tendo a autora instaurado a ação em 21.03.2022, fê-lo claramente dentro do prazo de três anos, pelo que não prescreveu o seu direito.
IV - Em face do disposto no artigo 27º, nº 1, al. c), do DL nº 292/2007, de 21 de agosto, exercendo a seguradora o direito de regresso, compete-lhe apenas alegar e provar que satisfez a indemnização, que o condutor deu culposamente causa ao acidente e que conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
V - Não suscita adequadamente a inconstitucionalidade a parte que discorda da decisão por esta alegadamente violar princípios constitucionais, sem questionar e pedir a desaplicação da norma (ou aplicação com uma determinada interpretação) que supostamente viola a Constituição.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 7.542,11, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, contados desde a primeira interpelação do réu até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, ter celebrado com o réu um contrato de seguro de responsabilidade civil através do qual foi transferida para a autora a responsabilidade por danos emergentes de acidentes de viação causados pelo veículo ..-AS-.., sendo que no dia 11.02.2018 ocorreu um acidente viação na EN 125, ao Km 126, no qual foi interveniente aquele veículo, conduzido pelo réu, o qual embateu no veículo com a matrícula ..-TE-.., provocando-lhe danos neste e ferimentos no condutor e passageiros do mesmo, sendo o réu o único responsável pela eclosão do acidente, já que não usou a diligência e o cuidado que lhe eram exigíveis, designadamente conduzindo o AS com uma TAS de 2,10 g/l, pelo que a autora procedeu à regularização do sinistro, tendo despendido a quantia de € 7.542,11.
O réu contestou, excecionando a prescrição do direito de regresso da autora e impugnando a generalidade dos factos alegados na petição inicial, negando ser o responsável pelo embate ocorrido entre os mencionados veículos, o que, segundo o réu, não pode sequer ser discutido nesta ação pela circunstância desse direito ter já prescrito. Mais alega que uma eventual condenação sua no pagamento de qualquer quantia à autora, sem que previamente tenha sido demandado num processo judicial, dentro do prazo legal para o efeito, para aí poder defender-se convenientemente, sempre constituiria uma decisão inconstitucional, por violação dos artigos 20º, nº 4 e 5, e 32º, nº 5, da CRP.
A Autora respondeu à exceção da prescrição, sustentando que o prazo de prescrição não se iniciou na data da ocorrência do acidente, mas sim na data em que foi feito o pagamento da última parcela da indemnização, o que ocorreu em 06.12.2019, pelo que tendo instaurado a ação em 21.03.2022, o seu direito não está prescrito. Mais sustenta a inexistência de qualquer inconstitucionalidade.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, relegando-se para final o conhecimento da exceção invocada, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação.
Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto, decide-se:
a) Condenar o Réu a pagar à Autora a quantia de €7.542,11(sete mil quinhentos e quarenta e dois euros e onze cêntimos), acrescida de juros[1] data da interpelação para o pagamento, ocorrida em 08-01-2020, até efetivo e integral pagamento.
b) Absolver o Réu da condenação como litigante de má fé;
c) Condenar o Réu nas custas do processo.»
Inconformado, o réu apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1- A A. celebrou com o R. um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório titulado pela apólice com o n.º ...97,
2- Através do qual foi transferido para a A. a responsabilidade civil por danos emergentes de viação automóvel do veículo de matrícula ..-AS-...
3- No dia 11 de Fevereiro de 2018 ocorreu um acidente do qual uma das vitimas foi o R., ora Recorrente.
4- A A. fez uma descrição do acidente que o R. impugnou, por uma questão de cautela, apesar de, na sua opinião, os factos terem sido objeto de prescrição.
5- A A. imputou a responsabilidade ao ora aqui R. desde o início do acontecimento dos factos, o mesmo é dizer, desde o dia 11 de Fevereiro de 2018.
6- Desde esse dia que o R. sempre declinou qualquer responsabilidade sobre o mesmo.
7- Bem como sempre recusou efetivar qualquer pagamento.
8- Nunca o R. se deu como culpado do acidente e sempre demonstrou isso mesmo.
9- A A., mesmo sabendo disso, avançou, pagando indemnizações aos intervenientes no acidente em causa, conforme comprovativos juntos aos autos.
10- Apesar da negação de qualquer responsabilidade sobre o acidente por parte do R., a A. ignorou e tomou posição, extrajudicial sobre o mesmo.
11- E, a 21 de Março de 2022, 4 anos e um mês após o acidente, instaurou uma ação contra o ora aqui Recorrente, reclamando os referidos valores que decidiu pagar voluntariamente.
12- Concluiu a sua petição, alegando de direito, e por seu próprio juízo que fora o R. que deu causa ao acidente.
13- Factualizando com aquilo que os representantes da A. pensam ter sido a dinâmica do acidente.
14- A A. mentiu, referindo-se que a jurisprudência considera que as simples verificações da existência de álcool que é suficiente para a exigibilidade do direito de regresso.
15- E mentiu porque não contextualizou, dando a entender que assim é, mesmo quando passam os 3 anos e mesmo no âmbito de um outro processo judicial.
16- Deu a entender que basta uma empresa seguradora transferir montantes ao abrigo de uma convicção sua não decretada judicialmente, para que se constitua um direito de regresso.
17- Deu o exemplo de que na alínea c) do n.º 1 do art.º 27.º do RSSORCA refere que existe esse direito “quando o condutor tenha dado causa ao acidente a conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida (…)”
18- “Quando o condutor tenha dado causa ao acidente” tem de ser decidido por um tribunal; não é quando uma entidade não judicial assim o entende – não esqueçamos que estamos a falar de presunções.
19- A função de julgar compete exclusivamente aos tribunais.
20- Quando a A. refere que “basta à A. demonstrar que o acidente de viação foi causado pelo Réu”, esse “basta” é numa ação judicial – não é no âmbito de um processo administrativo dentro da sua própria empresa e decidido pelos seus funcionários.
21- Os excertos de decisões judiciais que a A. transcreveu para os autos tratam de situações onde empresas seguradoras instauraram processos contra os seus segurados dentro de três anos.
22- Efetivamente quando a responsabilidade se tenta apurar dentro desses três anos, realmente a jurisprudência “afrouxa” um pouco o nexo de causalidade.
23- Mas isso nunca pode acontecer numa ação de regresso; muito menos após a passagem dos três anos da responsabilidade extracontratual.
24- A A. laborou como se estivesse dentro do prazo legal de três anos.
25- O R. nunca reconheceu qualquer responsabilidade sobre os factos.
26- Estatui o art.º 498º do Cód. Civil que “O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos (…)”.
27- Pois o lesado, bem como a companhia de seguros tiveram conhecimento dos factos no dia do acidente.
28- Dispõe o art.º 323.º do Cód. Civil que a prescrição se interrompe pela citação ou notificação judicial, o que está de acordo com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 03/98, de 26/3/98.
29- Nenhum outro meio é apto a interromper a prescrição.
30- O direito à indemnização prescreveu e é uma exceção peremptória que se alegou, nos termos conjugados do disposto nos artigos 498.º do Cod. Civil, 576 .º, n.º 3 e 579.º, todos do Cód. de Proc. Civil.
31- O Réu nunca assumiu qualquer responsabilidade pelo acidente, que perante o lesado quer perante a A.
32- O art.º 325.º, n.º 1 do Cód. Civil só admite a interrupção da prescrição quando há o reconhecimento desse direito por alguém.
33- Pires de Lima e Antunes Varela (in CC anotado, Coimbra Editora, p. 292, V.I 4ª ed.) esclarecem: “Podem considerar-se como casos inequívocos de reconhecimento o pagamento de juros, a atribuição de uma garantia, o cumprimento de uma obrigação (mas não já o pagamento de parte da divida, se o solvens declara simultânea que não se considera devedor da parte restante).”
34- No mesmo sentido, vd. O Ac.STJ 29/03/2000 (Proc. n.º 99S538), in www.dgsi.pt” o reconhecimento de uma divida constitui um negócio jurídico que deve ser interpretado com o sentido que lhe daria um declaratório normal. Se da declaração normal não se puder concluir que o devedor reconhece a divida e se compromete a pagá-la, essa declaração não interrompe o prazo de prescrição da divida.”
35- Como o Réu nunca reconheceu qualquer responsabilidade no acidente, nem sequer foi demandado em qualquer outra ação judicial para o efeito, não pode ser considerado ter havido qualquer reconhecimento, pelo que não houve interrupção da prescrição.
36- A A. não pode no presente processo discutir a responsabilidade do acidente – que o Réu, aliás, sempre negou, pois já foi invocada a prescrição.
37- O n.º 2 do art.º 498.º do Cód. Civil refere que “prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.
38- Quem decide que determinado agente está obrigado a cumprir é um tribunal, através de uma decisão judicial – que nunca aconteceu.
39- O direito de regresso constitui-se a partir do momento em que exista um cumprimento de uma obrigação verdadeira, certa, declarada por parte do R.
40- O R. negou essa responsabilidade. Este processo teria sido a primeira vez onde a A. quereria ter discutido essa questão, depois de o prazo de caducidade/prescrição já se encontrar ultrapassado.
41- Situação que já não pode ser analisada por terem já passado mais de três anos sem que a A. tivesse tido qualquer impulso processual – culpa própria – e tendo o ora aqui Recorrente invocado a prescrição.
42- A A. alega que cumpriu uma obrigação.
43- Uma obrigação, nos termos do art.º 397.º Do Cód. Civil é “o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação.”
44- Não existe vínculo jurídico que vincula a A. ao alegado lesado. Não existe fonte reconhecida judicialmente da obrigação.
45- Não havia nenhum contrato entre eles (a A. e o lesado);
46- Não houve nenhum negócio unilateral que se permita criar uma obrigação nos termos da lei.
47- Não houve qualquer ato de ratificação por parte do R. para coisa nenhuma.
48- O enriquecimento sem causa não está pedido, nem subsidiariamente, e os factos relativamente ao acidente já não podem ser julgados.
49- Portanto, não existe, nem nunca existiu, por parte do ora aqui R. Qualquer obrigação de pagar o que quer que seja.
50- O R. nunca teve oportunidade de discutir os valores que foram pagos ao alegado lesado – foram-lhe apresentados esses valores como como factos consumados.
51- Nunca existiu e não existe qualquer obrigação por parte do ora aqui R. para com quem quer que seja.
52- Podia haver direito de regresso se o R. tivesse sido constituído na posição de devedor para com alguém, e a A. tivesse cumprido em sua vez.
53- A A. pagou o que entendeu sem ter havido qualquer intervenção judicial e sem qualquer assunção de responsabilidade por parte do ora aqui Recorrente.
54- A situação de se ter flexibilizado a prova do nexo de causalidade entre um acidente e a ingestão de bebidas alcoólicas, tendo apenas a seguradora que alegar e demonstrar que existia alcoolemia do condutor na altura do acidente é uma flexibilização que se deu mas apenas no âmbito do processo onde se está a averiguar a responsabilidade do condutor em sede de responsabilidade extracontratual.
55- Ou seja, no âmbito desse processo, dentro do prazo legal, onde o segurado tem todas as garantias de defesa.
56- Pode recorrer a perícias, pode juntar documentos, pode arrolar testemunhas, dentro desse processo; posteriormente a seguradora cumpre a obrigação dele e depois exerce o seu direito de regresso
57- O que a seguradora não pode fazer é usar presunções jurisprudenciais ou as normas d RSSORCA para concluir pela responsabilidade do ora aqui Recorrente sem um processo judicial dentro do prazo legal.
58- Essas presunções não passam disso mesmo, de presunções e, por natureza, ilidíveis e as pessoas, mesmo perante as normas do RSSORCA também podem lograr fazer valer a sua tese perante um tribunal de que não terá sido o causador de determinado acidente.
59- Por isso a decisão violou as normas jurídicas acima enunciadas; as normas que se enunciaram que no entender do Recorrente servem de fundamento jurídico à pretensão do mesmo deveriam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido invocado pelo Recorrente, tendo havido erro na determinação das normas que se aplicaram por parte do tribunal a esta questão.
INCONSTITUCIONALIDADE
60- A decisão tomada em primeira instância, condenado o ora aqui Recorrente nos moldes em que o foi, sem ter sido demandado num processo judicial com todas as garantias legais e judiciais que tem, no que diz respeito à sua defesa, ou seja, sem ter havido um processo justo e equitativo, é inconstitucional por violação expressa dos números 4 e 5 do art.º 20.º, do n.º 5 do art.º 32.º, violou também o art.º 204.º do mesmo diploma legal.
Termos em que requer a V. Exas. coincidem provimento ao presente Recurso, revogando a sentença recorrido.
Absolvendo o R. dos pedidos contra si proferidos, bem como seja declarada a inconstitucionalidade de por violação dos números 4 e 5 do art.º 32.º, bem como do art.º 204; todos da Constituição da República Portuguesa, fazendo assim a inteira e necessária J U S T I Ç A!

A autora contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- prescrição do direito invocado pela autora;
- condução sob o efeito do álcool/nexo de causalidade
- inconstitucionalidade da “decisão recorrida” por violação dos nºs 4 e 5 do art. 20º, do nº 5 do artº 32.º e 204º da Constituição.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos[2]:
1. No exercício da sua atividade, no âmbito do ramo automóvel, a Autora celebrou com o Réu um contrato de seguro de responsabilidade civil titulado pela apólice n. º ...97.
2. Com a celebração desse contrato foi transferida para a Autora a responsabilidade civil por danos emergentes de viação automóvel do veículo de matrícula ..-AS-.. [doravante designado por AS].
3. No dia 11 de fevereiro de 2018, pelas 20:00 horas, ocorreu um embate na EN 125, ao Km 126, na União das Freguesias de Luz de Tavira e Santo Estêvão.
4. No referido embate foram intervenientes o veículo de matrícula AS, conduzido pelo Réu, e o veículo de matrícula ..-TE-.. [doravante designado por TE], conduzido por BB.
5. O local do embate, na EN 125, caracteriza-se por ser uma reta, em que o trânsito se processa em ambos os sentidos, com uma via de circulação para cada sentido, delimitadas por linhas longitudinais descontínuas.
6. No momento em que o embate ocorreu o tempo estava bom, embora já estivesse escuro.
7. Estando o pavimento, que se encontrava em regulares condições de manutenção, seco e limpo.
8. No local do embate, a faixa de rodagem é visível em toda a sua largura numa extensão de pelo menos 50 metros.
9. A velocidade máxima permitida ascende a 90 km/h.
10. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o Réu conduzia o veículo AS pela EN 125, no sentido Olhão /Tavira
11. Pela via de circulação da direita, atento o seu sentido de marcha.
12. O veículo TE circulava na EN 125, no sentido Tavira/Olhão,
13. Pela via de circulação da direita, atento o seu sentido de marcha,
14. A uma velocidade não superior a 80 km/h,
15. Ao aproximar-se do local do embate, o Réu, sem que nada o fizesse prever, fletiu a sua marcha para a esquerda, atento o seu sentido de marcha,
16. transpôs a linha descontinua delimitativa das vias de circulação,
17. E passou a circular pela via de circulação afeta ao trânsito em sentido contrário ao seu,
18. Indo colidir com a parte frontal esquerda do veículo AS na lateral esquerda traseira (zona da porta esquerda) e na parte traseira do veículo TE.
19. Tendo o condutor deste veículo sido surpreendido pelo súbito e inesperado aparecimento do veículo AS a circular na sua via de circulação.
20. No local do embate, a faixa de rodagem mede 7 metros de largura.
21. Cada via de circulação mede 3,50 metros de largura.
22. O embate ocorreu na via de circulação afeta ao trânsito que circulava no sentido Tavira/Olhão.
23. O Réu, após análise sanguínea, acusou uma TAS de pelo menos 2,10 g/l, à qual corresponde a taxa de erro máxima admissível de 0,27g/L.
24. A taxa de alcoolemia apresentada pelo Réu provocou uma alteração anormal no estado físico e psíquico do Réu, que culminou com a ocorrência do sinistro acima descrito.
25. Do embate descrito resultaram danos no veículo TE.
26. A reparação do veículo TE foi orçamentada em 7.049,19 [IVA incluído].
27. Em virtude dos danos causados ao veículo TE na sequência do embate, o mesmo ficou impossibilitado de circular durante 10 dias, correspondente ao lapso temporal necessário para proceder à reparação dos danos no veículo.
28. Tendo a proprietária do veículo TE reclamado à Autora o pagamento do montante de € 155,90, a título de privação de uso do mesmo, à razão diária de € 15,59.
29. A Autora liquidou à proprietária do veículo TE o montante de € 7.205,90.
30. Em consequência do embate suprarreferido, o condutor e os passageiros que seguiam no veículo TE sofreram ferimentos.
31. Tendo sido transportados para o Centro Hospital Universitário do Algarve, E.P.E,.
32. O tratamento prestado ao a CC deu origem ao Episódio de urgência nº ...88, cujo custo ascendeu ao montante de € 112,07.
33. O tratamento prestado a DD deu origem ao Episódio de urgência nº ...91, cujo custo ascendeu ao montante de € 112,07.
34. O tratamento prestado ao condutor do veículo TE deu origem ao Episódio de urgência nº ...42, cujo custo ascendeu ao montante de € 112,07.
35. A Autora suportou o custo da assistência médica prestada ao condutor e passageiros do veículo TE, tendo liquidado ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P.E o montante de € 336,21.
36. No âmbito da regularização do sinistro em causa nos autos, a Autora efetuou diversos pagamentos, o último dos quais em 06-12-2019.
37. Em 08-01-2020, a Autora remeteu ao Réu uma carta, interpelando-o para proceder ao pagamento do montante despendido.
38. A presente ação foi instaurada em 21-03-2022.
39. O Réu considera-se citado para a mesma em 20-04-2022.

E foi considerado não provado o seguinte facto:
i. O Réu circulava a uma velocidade não inferior a 110 Km/h.

O DIREITO
Da prescrição
Não tendo o réu/recorrente procedido à impugnação da matéria de facto, tem-se por intocada a factualidade dada como assente pelo tribunal recorrido, situando-se assim o objeto do presente recurso no estrito plano da impugnação de direito.
Assim, à questão de saber se prescreveu o direito da autora, respondida negativamente na sentença recorrida, importa começar por dizer que não existe dissídio das partes quanto à aplicação do prazo prescricional de três anos, nem de outra forma poderia ser.
Na verdade, o direito de regresso da autora/recorrente funda-se no art. 27º, nº 1, al. c), do Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo DL 291/2007, de 21 de agosto, no qual se dispõe: «Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso (…) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.»
O prazo para o exercício do direito de regresso encontra-se diretamente previsto no nº 2 do art. 498º do Código Civil[3]: «Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.»
Assim, como bem decidiu a sentença recorrida – sendo este também o entendimento do recorrente -, é aplicável in casu o prazo prescricional de 3 anos.[4]
Problema diverso – no qual existe já dissídio - é o da determinação do dies a quo da contagem do prazo de prescrição de três anos.
A letra do art. 498º, nº 2, do CC não permite resolver, sem mais, as situações frequentes e complexas em que, relativamente aos danos resultantes de um mesmo sinistro, existe uma sucessão de atos de pagamento efetuados pela seguradora.
Nestes casos, várias interpretações são possíveis: por um lado, entender-se que o prazo de prescrição se conta a partir de cada ato de pagamento, atomisticamente considerado; por outro lado, considerar-se que o prazo se conta apenas a partir do último ato de pagamento. Defendendo-se, porém, que o último ato de pagamento correspondente ao cumprimento pelo titular do direito de regresso é o último ato de pagamento que integre um mesmo núcleo indemnizatório juridicamente diferenciado de outros valores indemnizatórios. Foi esta a orientação acolhida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.04.2011[5], cuja conclusão aqui se cita: «Em suma: se não parece aceitável a autonomização do início de prazos prescricionais, aplicáveis ao direito de regresso da seguradora, em função de circunstâncias puramente aleatórias, ligadas apenas ao momento em que foi adiantada determinada verba pela seguradora, já poderá ser justificável tal autonomização quando ela tenha subjacente um critério funcional, ligado à natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados, com o consequente ónus de a seguradora exercitar o direito de regresso referentemente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, de modo a não diferir excessivamente o contraditório com o demandado, relativamente à causalidade e dinâmica do acidente, em função da pendência do apuramento e liquidação de outros núcleos indemnizatórios, claramente cindíveis do primeiro.»[6]
Neste aresto indica-se expressamente ter-se partido da posição assumida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.11.2010[7], em cujo sumário se concluiu: «Relativamente ao mesmo sinistrado e ressalvados os casos de indemnização sob a forma de renda, o prazo prescricional da seguradora para exercer o direito de regresso relativamente a indemnização que pagou, faseadamente, no âmbito do seguro obrigatório automóvel, começa a contar-se da data em que foi efectuado o último pagamento».
No âmbito da regularização do sinistro dos autos, a autora efetuou diversos pagamentos com fundamento no acidente em causa, o último dos quais ocorreu em 06.12.2019, pelo que só na data deste último pagamento a autora passou a deter um direito sobre o réu e, por isso, a poder exercê-lo, sendo esta a posição largamente maioritária da jurisprudência, na medida em que o direito de regresso determina a constituição de um direito novo na esfera do devedor que satisfez integralmente a prestação extinguindo o direito creditício.
Assim, o decurso do prazo prescricional iniciou-se com o cumprimento, ou seja, com o último pagamento efetuado, pois apenas este corresponde ao cumprimento tal como a lei o configura nos artigo 406º, nº 1, e 762º, nº 1, do Código Civil, pelo que tendo a autora instaurado a ação em 21.03.2022[8], fê-lo claramente dentro do prazo de três anos, já que podia ter intentado a ação até, pelo menos, 16.12.2022, sem contar com a eventual suspensão dos prazos referente ao período em que os mesmos estiveram suspensos por força da doença Covid19, como bem observa a autora/recorrida na resposta ao recurso.
Assim, como bem se decidiu na sentença recorrida, não se encontra prescrito o direito da autora.

Do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente
Diz o recorrente na conclusão 18 que «“Quando o condutor tenha dado causa ao acidente” tem de ser decidido por um tribunal; não é quando uma entidade não judicial assim o entende …», esquecendo que foi exatamente isso que sucedeu, só podendo atribuir-se tal alegação a uma leitura menos atenta da sentença recorrida.
Porque a questão se encontra bem analisada no acórdão desta Relação de 14.07.2021[9], transcrevemos aqui o respetivo sumário:
«I. Em face do disposto no art.º 27.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 292/2007, de 21 de Agosto, exercendo a seguradora o direito de regresso, compete-lhe apenas alegar e provar que satisfez a indemnização, que o condutor deu culposamente causa ao acidente e que conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
II. À luz do art.º 27.º, n.º 1, al. c) do DL n.º 291/2007, já não é exigível e necessário que a seguradora alegue e prove factos que integrem o nexo de causalidade entre a alcoolemia e a produção do acidente para que haja direito de regresso.
III. A alteração legislativa corporizada na art.º 27.º, nº1, alínea c) do DL 291/2007, substituindo expressão “agido sob influência do álcool” constante da al c) do n.º 1 do art.º 19.º do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, por “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida” teve como consequência dispensar a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta, cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução, - e que despoletou o acidente - e a situação de alcoolemia.
IV. Actualmente é irrelevante apurar a factualidade tendente a demonstrar a relação de causa e efeito entre a influência do álcool na condução e o acidente, se este ocorreu já na vigência do Dec.-Lei n.º 291/2007, nexo de causalidade esse que era determinante para a procedência do direito de regresso, na vigência do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na interpretação do AUJ n.º 6/2002.
V. Com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, caducou a jurisprudência uniformizadora do AcUJ n.º 6/2002 que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente.»
Assim, sem necessidade de mais considerações, conclui-se que o art. 27º, nº 1, al. c), do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, atribui à seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sendo inquestionável a verificação do pressuposto da responsabilidade, subjetivamente imputada ao réu/recorrente, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, o que se verifica na espécie, e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
Tendo sido este o entendimento da sentença recorrida, só resta confirmá-lo.

Da alegada inconstitucionalidade da “decisão recorrida”
Está na disponibilidade das partes invocar a inconstitucionalidade de uma norma cuja desaplicação se pretenda - art. 280º, nº 1, al. b), da CRP. Devem, aliás, fazê-lo, caso pretendam recorrer para o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta, porque só assim o recurso será admissível[10] - arts. 70º, 72º e 75-A, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (doravante LOTC), Lei nº 28/82, de 15 de novembro.
Contudo, a questão da inconstitucionalidade tem de ser arguida «…de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» - art. 72º, nº 2, da LOTC.
A doutrina e jurisprudências são unânimes em considerar que o objeto do recurso é sempre a (in)constitucionalidade de uma norma e não de uma decisão judicial. O juízo incide apenas sob a norma aplicada ou não-aplicada no processo (art. 79º-C, nº 1, da LOTC). O que é uma decorrência da prejudicialidade da questão (o objecto do processo não é esse, a inconstitucionalidade é instrumental) e do princípio processual do pedido[11].
Suscitar a questão da inconstitucionalidade não equivale a sindicar a decisão impugnada ou os seus fundamentos.
Com efeito, a parte tem o dever de: (i) identificar e pedir a desaplicação da norma ordinária que considera inconstitucional e (ii) indicar o princípio constitucional violado[12].
No caso dos autos discute-se essencialmente a verificação da exceção de prescrição do direito de regresso da autora, sendo que o recorrente discordou da decisão do tribunal a quo que julgou não prescrito tal direito, brandindo os supra referidos princípios constitucionais.
Das conclusões decorre que o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade de qualquer norma ordinária, e limita-se a formular um pedido de declaração de inconstitucionalidade da própria sentença. Em suma, o que o recorrente defende é que, na decisão recorrida, não se respeitou nem a lei ordinária, nem a Constituição.
Poderia o recorrente entender que o tribunal a quo aplicou uma norma que, interpretada em certo sentido, viola normas constitucionais. Mas, para isso teria de suscitar expressamente a inconstitucionalidade da norma aplicada, o que não fez.
Tanto bastaria para não se tomar conhecimento da alegada inconstitucionalidade.
Sem prejuízo, sempre se dirá que podia e devia o recorrente ter-se defendido na presente ação, mas inexplicavelmente, no momento processual próprio, ou seja, quando apresentou a contestação, limitou-se a invocar alegadas inconstitucionalidades, ilegalidades e prescrições, de todo inexistentes.
Já quanto aos factos alegados na petição inicial e relativos à dinâmica do acidente, ser o réu portador de uma taxa de álcool no momento do sinistro, os danos que provocou a terceiros, etc, não se pronunciou o recorrente, não tendo refutado ou apresentado factos diferentes ou que pudessem ser contrapostos aos invocados pela autora, pelo que não faz qualquer sentido dizer que se viu impedido de exercer o direito à defesa e o direito a um processo justo e equitativo.
Por conseguinte, o recurso improcede, não se mostrando violadas as normas indicadas ou quaisquer outras.
Vencido no recurso, suportará o réu/recorrente as respetivas custas – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Évora, 25 de maio de 2023
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Francisco Xavier (2º adjunto)

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[1] Omitiu-se, por lapso, a preposição “desde”.
[2] Mantém-se a redação e a numeração dos factos constantes da sentença.
[3] Doravante CC.
[4] O problema do eventual alargamento do prazo de prescrição tem sido resolvido, de forma reiterada, em sentido negativo pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça - cfr., inter alia, os acórdãos de 06.12.2011, proc. 797/07.7TBVCD.P1.S1, de 18.10.2012, proc. 56/10.8TBCVL-A. C1.S1, de 22.09.2015, proc. 255/14.3T8SCR.L1.S1 e de 19.05.2016, proc. 645/12.6TVLSB.L1.S1, consultáveis, como os demais que venham a ser citados sem outra indicação, em www.dgsi.pt.
[5] Proc. 329/064TBAGN.C1.S1.
[6] No mesmo sentido, inter alia, os acórdãos do STJ de 19.05.2016, proc. 645/12.6TVLSB.L1.S1 e de 18.01.2018, proc. 1195/08.0TVLSB.E1.S1 e de 26.11.2020, proc. 2325/18-0T8VRL.G1.S1.
[7] Proc. 2564/08.1TBCB.A.C1.S1.
[8] Considerando-se o réu citado em 20-04-2022.
[9] Proc. 24/18.1T8ODM.E1.
[10] Artigo 280º (Fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade):
“1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais: a) Que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade; b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo…
[11] Jorge Miranda, O Regime de Fiscalização Concreta da Constitucionalidade em Portugal, CJP, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, p. 10, in https://www.icjp.pt; acórdão do Tribunal Constitucional de 10.03.2010, proc. 11/10.
[12] Cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 07.10.2021, proc. 1782/20.9T8BRG.G1.