Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
550/17.0T8PTM.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
TRABALHADOR INDEPENDENTE
ACIDENTE IN ITINERE
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - As declarações de parte, ainda que devam ser analisadas com especial rigor e exigência, podem ser consideradas para provar factos favoráveis à parte, quando corroboradas por qualquer outro elemento de prova isento e credível.
II - O acidente de viação, que provocou lesões, ocorrido com um consultor imobiliário que regressava de um imóvel, que tinha mostrado a um cliente, em direção à sua residência, deve ser qualificado como acidente de trabalho in itinere.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

I. Relatório
Na presente ação especial emergente de acidente de trabalho que AA instaurou contra “Generali Seguros, S.A.” foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos e por tudo o exposto:
a. Julga-se o sinistrado AA, por via do acidente de trabalho ocorrido a 23-08-2015, afetado:
i. de uma Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 23-08-2015 até 23-08-2017 (731 dias);
ii. a partir de 23-08-2017, data da alta clínica, com uma Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de 13,4542%, sendo as sequelas físicas de que ficou a padecer subsumíveis aos itens 5.1. do Capítulo V, Capítulo X – Grau II e 3.2.7.3.a) do Capítulo I, todos da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.
b. Condena-se, em conformidade, a ré “Generali Seguros, S.A.” a pagar ao autor AA a quantia de € 20.328,77 (vinte mil, trezentos e vinte e oito euros e setenta e sete cêntimos), a título de indemnização pela incapacidade temporária absoluta sofrida, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde o seu vencimento e até efetivo e integral pagamento;
c. Condena-se “Generali Seguros, S.A.” a pagar ao autor o capital de remição calculado em função de uma pensão anual e vitalícia de € 1.318,51 (mil, trezentos e dezoito euros e cinquenta e um cêntimo), devida desde 24-08-2017, acrescida dos juros de mora contados à taxa legal de 4%, desde o seu vencimento e até efetivo e integral pagamento;
d. Condena-se a ré “Generali Seguros, S.A.” a pagar ao autor, a título de despesas médicas, medicamentosas, exames de diagnóstico e de transportes que suportou em consequência do acidente de trabalho em mérito, a quantia que se apurar em incidente de liquidação;
e. Condena-se a ré “Generali Seguros, S.A.” em custas, tudo de harmonia com o artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Fixa-se o valor da ação em € 40.148,61 (quarenta mil, cento e quarenta e oito euros e sessenta e um cêntimo).
Registe e notifique.».

Inconformada, veio a seguradora recorrer para esta Relação, finalizando as suas alegações com as conclusões que, seguidamente, se transcrevem:
«a) A Recorrente não coloca em crise a dinâmica do acidente sub judice, mas sim que não resultou cabalmente demonstrado que o Recorrido sofreu um acidente de trabalho it itinere.
b) Isto porque, abandonando o grupo de ciclismo cerca das 11h[2], tendo-se encontrado com o potencial comprador, no imóvel, cerca das 11h30m[3] e efetuado uma visita que caracterizou como tendo sido «muito rápida»[4], com a duração máxima de 30 minutos[5], não se compreende como, enquanto ciclista experiente, demorou cerca de 40 minutos a percorrer uma distância de aproximadamente de 5 Km, entre o imóvel e o local do acidente.
c) Sendo que o próprio chega a questionar-se se parou para beber um café, nesse mesmo trajeto[6].
d) O que leva a Recorrente a considerar, e colocar à consideração do Tribunal ad quem, se o Recorrido não terá efetuado um qualquer desvio, interrompendo, assim, o trajeto local de trabalho – residência, para satisfazer necessidades da vida pessoal e familiar, o que justificaria o tempo despendido, e para o qual o Recorrido não apresenta uma justificação plausível.
e) Sendo certo que apenas dispomos das suas declarações, acerca do desenrolar dos acontecimentos, dado que o potencial comprador não foi arrolado como Testemunha.
f) Nesta senda, considera a Recorrente que o acidente sub judice não é subsumível no artigo 9.º, n.os 1, al. a), e 2 da Lei n.º 98/2009, de 04.09, motivo pelo qual não poderá ser havido como acidente de trabalho it itinere, dado que resultou provado que o Recorrido ultrapassou o período de tempo habitualmente gasto para percorrer uma distância de aproximadamente 5 Km, conforme asseverado pelo próprio.
g) Entendendo a Recorrida que ocorreu um desvio ao trajeto, desde logo porquanto tal foi evidenciado pelo Recorrido, contudo, para satisfação de necessidades privadas e, como tal, que não deverá ser havido como prossecução de objetivos meritórios.
h) Impugnando, assim, os factos 9. e 10. integrantes da factualidade dada como provada, devendo o facto 9. ser eliminado e o facto 10. Ser substituído por “Após a visita, quando se encontrava numa fila de trânsito na Avenida das Olimpíades, em Portimão, no sentido Alvor – Portimão, cerca das 12:40 horas, foi intercetado pelo veículo ligeiro de passageiros, de matrícula Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-HM, conduzido por BB”, concluindo-se, a final, pela improcedência da ação.
Nestes termos, e nos que V. Exas. muito doutamente suprirão,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, devendo o facto 9. ser eliminado e o facto 10. Ser substituído por “Após a visita, quando se encontrava numa fila de trânsito na Avenida das Olimpíades, em Portimão, no sentido Alvor – Portimão, cerca das 12:40 horas, foi intercetado pelo veículo ligeiro de passageiros, de matrícula Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-HM, conduzido por BB”, concluindo-se, a final, pela improcedência da ação, por o acidente sub judice não ser subsumível no artigo 9.º, n.os 1, al. a), e 2 da Lei n.º 98/2009, de 04.09.»

Contra-alegou o Autor, pugnando pela improcedência do recurso.

A 1.ª instância admitiu o recurso com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
Tendo o processo subido à Relação, foi dado cumprimento ao estatuído no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo Penal.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer favorável à manutenção da decisão recorrida.
Não foi oferecida qualquer resposta.
O recurso foi mantido e foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso podem ser, assim, identificadas:
1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2. Não verificação de um acidente de trabalho in itinere.
*
III. Matéria de Facto
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. AA nasceu no dia .../.../1974.
2. O autor desempenha as funções de consultor imobiliário, consistindo as suas tarefas, essencialmente, na prospeção do mercado imobiliário na zona de Portimão, angariação de imóveis para venda e acompanhamento de clientes com vista à futura compra de imóveis.
3. No dia 23-08-2015 o autor e alguns amigos decidiram realizar um passeio de BTT pelo concelho de Portimão.
4. Os participantes reuniram-se cerca das 08:00 horas junto ao posto de abastecimento de combustível da BP, na V6, e iniciaram o dito passeio pelas 08:10 horas, tendo como objetivo o seguinte percurso: Portimão, Senhora do Verde, Corte Cibrão, Tojeiro, Romeiras, Barragem da Bravura, Portimão, num total de 58 km.
5. Cerca das 10:00 horas, em período de pausa, o autor estabeleceu contacto telefónico com um potencial cliente que lhe solicitou uma visita a um imóvel (apartamento T2), ainda no período da manhã desse mesmo dia.
6. Para corresponder a tal pedido, o autor informou o grupo de que iria sair do passeio, o que fez cerca das 11:00 horas, próximo da Igreja da Penina, na freguesia de Alvor.
7. De imediato, deslocou-se à sua agência, sita na Rua ..., em Portimão, para ir buscar as chaves do imóvel em questão.
8. Seguidamente, deslocou-se à Rua ..., em Portimão, onde se encontrou com o potencial cliente, mostrando-lhe o referido imóvel.
9. Após a visita, o demandante dirigiu-se para a sua residência, à data, na Rua ...-TB, em Portimão.
10. Nesse trajeto, quando se encontrava numa fila de trânsito na Avenida das Olimpíades, em Portimão, no sentido Alvor→Portimão, cerca das 12:40 horas, foi intercetado pelo veículo ligeiro de passageiros, de matrícula Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-HM, conduzido por BB.
11. O referido veículo circulava na Avenida das Olimpíadas, no sentido Portimão→Alvor/nascente-poente, e ao aproximar da rotunda do antigo “Palácio”, não reduziu a velocidade e ao aceder à rotunda entrou em despiste, colidindo com o autor.
12. Em virtude dessa colisão, o autor sofreu:
- Focos de contusão no encéfalo (frontal e à esquerda);
- Fratura da parede externa da órbita esquerda;
- Feridas na face;
- Edema e equimose peri-orbitária esquerda com ptose palpebral;
- Hemotímpano e otorragia à esquerda;
- Ferida da parede do canal auditivo externo;
- Limitação do membro superior esquerdo com dor ao nível da omoplata/braço;
- Dor torácica com agravamento à inspiração profunda e queixas a nível do hemicorpo esquerdo;
- Fratura de esmalte num dente;
- Sintomas de depressão e stress pós-traumático e agravamento da obstrução nasal na fossa nasal esquerda por desvio septal para a esquerda.
13. Em consequência da colisão, foi transportado para o “CHUA _ Centro Hospitalar do Algarve” – Unidade de Portimão e, posteriormente, foi transferido para a Unidade de Faro, retornando, posteriormente, à Unidade de Portimão onde esteve internado até 25-08-2015.
14. Em função de tais lesões, foi submetido a vários tratamentos e intervenções cirúrgicas.
15. Em consequência dessas lesões/sequelas ficou com várias cicatrizes na face, ligeira ptose palpebral à esquerda, desvio do olho esquerdo para fora (exotropia – desvio fixo do olho esquerdo), paresia completa do III par esquerdo com envolvimento pupilar, omalgia esquerda, cervicalgia e síndrome de stress pós-traumático ligeiro.
16. Desse acidente resultou para o sinistrado:
a) uma Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 23-08-2015 até 23-08-2017 (731 dias);
b) A partir de 23-08-2017, data da alta clínica, uma Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de 13,4542%.
17. Na data do acidente o autor exercia a profissão de «consultor imobiliário», como trabalhador independente.
18. À data do acidente a responsabilidade por acidentes de trabalho encontrava-se transferida para a ré “Generali Seguros, S.A.” pelo valor de uma retribuição anual de € 14.000,00 [€ 1000,00x14].
*
IV. Impugnação da decisão de facto
Em sede de recurso, a Apelante impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, relativamente aos pontos 9 e 10 dados por assentes.
No seu entender, considerando as declarações prestadas pelo Apelado, deve ser eliminado o ponto 9 e o ponto 10 deve passar a ter a seguinte redação: «Após a visita, quando se encontrava numa fila de trânsito na Avenida das Olimpíades, em Portimão, no sentido Alvor – Portimão, cerca das 12:40 horas, foi intercetado pelo veículo ligeiro de passageiros, de matrícula Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-HM, conduzido por BB».
Mostrando-se observado o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo laboral, nada obsta ao conhecimento da impugnação.
Apreciemos, então.
Os pontos factuais impugnados têm o seguinte conteúdo:
9. Após a visita, o demandante dirigiu-se para a sua residência, à data, na Rua ...-TB, em Portimão.
10. Nesse trajeto, quando se encontrava numa fila de trânsito na Avenida das Olimpíades, em Portimão, no sentido Alvor→Portimão, cerca das 12:40 horas, foi intercetado pelo veículo ligeiro de passageiros, de matrícula Renault, modelo Clio, com a matrícula ..-..-HM, conduzido por BB.
Da impugnação deduzida, infere-se que a Apelante pretende retirar do acervo de factos provados qualquer referência à execução de um trajeto local de trabalhoresidência do Apelado, uma vez que não impugna a dinâmica do acidente.
A pretendida alteração baseia-se, exclusivamente, no que foi declarado pelo Apelado na audiência final.
Consigna-se, desde já, que procedemos à audição de toda a prova gravada produzida em julgamento.
E, ponderada a mesma, afigura-se-nos que não há fundamento para alterar a decisão fáctica nos termos pretendidos pela Apelante.
É verdade que a única pessoa que referiu que após a visita ao imóvel, a que alude o ponto factual n.º 8, o destino visado era a sua residência, foi o próprio Apelado.
E fê-lo de forma que se nos afigurou muito sincera e credível. Repare-se que não obstante as falhas de memória que assumiu ter relativamente ao acidente e aos momentos imediatamente prévios e posteriores à sua ocorrência, afirmou, com manifesta espontaneidade, que a sensação que tem é que se dirigia para casa.
A corroborar esta declarada intenção, referiu a testemunha CC (que o acompanhou no passeio de BTT, que presenciou o telefonema com o potencial cliente do imóvel e que o viu sair do grupo de ciclistas para ir mostrar o imóvel), que no final do passeio de BTT achou estranho o Apelado não telefonar a dizer que já estava em casa (como era prática habitual) e que lhe telefonou, mas ele não atendeu.
Também resultou das declarações do Apelado e do depoimento da mencionada testemunha, que o passeio de BTT terminava por volta das 12 horas, pelo que parece razoável que, após a aludida visita ao imóvel, o Apelante (que estava com a bicicleta e vestido para a prática de ciclismo) se dirigisse a casa.
A contextualização do declarado destino/trajeto e a hora a que se deu o acidente, reforçam a versão apresentada pelo Apelado.
E ainda que as suas declarações, por ser parte interessada no processo, devam ser sempre analisadas com especial rigor e exigência, nada impede que sejam consideradas para provar factos que lhe são favoráveis, quando corroboradas por qualquer outro elemento de prova, isento e credível[7],como foi o caso.
Aliás, a 1.ª instância procedeu a uma criteriosa análise crítica das declarações do Apelado, corroboradas pelo testemunho de CC.
Na motivação da sua convicção, escreveu o tribunal a quo na sentença recorrida:
«Já no que respeita ao contexto espácio-temporal em que o acidente se verificou, designadamente a sua conexão com as suas funções de consultor imobiliário desempenhadas pelo autor, tomou-se em consideração, desde logo, as declarações prestadas pelo sinistrado em audiência final.
O autor afirmou que, no dia 23-08-2015, pelas 11:00 horas, abandonou o passeio de BTT e deslocou-se à sua agência para recolher as chaves de um imóvel, situado na Rua ..., em Portimão, para efetuar o acompanhamento e a visita ao mesmo de um potencial cliente, sendo vítima do abalroamento pelo veículo de matrícula ..-..-HM, cerca das 12:40 horas, já no trajeto para a sua residência, sita na Rua ...-TB, em Portimão.
Não se desconhece a singularidade das declarações prestadas pelas partes, atento o seu interesse direto no desfecho do processo, que devem ser analisadas com especial rigor e exigência e corroboradas por qualquer outro elemento de prova, isento e credível, para que possam ser consideradas para provar factos que lhes são favoráveis.
Na situação em apreço, apesar de alguns lapsos de memória e da evidente emoção demonstrada, perfeitamente justificáveis, pelo tempo, entretanto, decorrido (mais de 7 anos) e pela violência do acidente e as suas consequências (longo período de recuperação e limitações permanentes muito significativas), as declarações prestadas pelo autor reputaram-se credíveis, coerentes e absolutamente conformes com a normalidade dos acontecimentos da vida e o desenrolar da atividade profissional de consultor imobiliário numa região turística como é o Algarve, no decurso do mês de Agosto, mês por excelência de férias.
Por outro lado, essas declarações foram inteiramente corroboradas pelo depoimento de CC, amigo do autor e também participante do passeio de BTT, que relatou, de forma muito criteriosa e plausível, o hábito que o grupo de amigos, entre os quais se incluía o autor, tinha de se reunir aos domingos de manhã (cerca das 8:00 horas) e fazer um passeio de BTT, que podia durar até 4 horas, por percursos de terra batida e estradas de asfalto pelo concelho de Portimão. Com referência à mencionada data, a testemunha relatou um contacto telefónico que o autor manteve com um potencial cliente, a meio do percurso, na pausa das 10:00 horas, tendo na sequência deste informado o grupo de que iria abandonar o passeio, para efetuar uma visita a um imóvel. Este abandono do grupo e do passeio veio a concretizar-se junto da Igreja da Penina, pelas 11:00 horas, tendo o sinistrado dirigido para Portimão, onde recolheu na agência a chave do imóvel que iria mostrar ao eventual interessado. Posteriormente, na ausência de notícias do autor, a testemunha dirigiu-se ao CHUA – Unidade de Portimão, onde o encontrou gravemente ferido, em virtude do acidente que sofreu, a receber assistência médica.
Os elementos probatórios identificados, sem margem para quaisquer dúvidas, afastam a possibilidade de os factos se terem passado de outra forma, designadamente colocando a hipótese de o acidente ter ocorrido no âmbito da vida pessoal do autor, conforme alegou a ré.
Com efeito, todos os dados de facto apurados permitem com a segurança exigível a toda e qualquer decisão judicial, isto é, para além de toda e qualquer dúvida razoável, relacionar o embate que vitimou o autor com o regresso que fazia à sua residência, após ter realizado um conjunto de atos/procedimentos que se integram no pleno desempenho da sua atividade profissional, inexistindo qualquer elemento que perturbe ou interrompa o processo lógico que a análise dos factos permite supor. (…)».
Em suma, considerando as declarações de parte do Apelado, corroboradas pelo depoimento da testemunha CC, entendemos que existe suporte probatório para dar como demonstrado que o Apelado, após a visita ao imóvel, se estava a dirigir para a sua residência, quando, infelizmente, foi vítima de violento acidente de viação.
Pelo exposto, mantêm-se os pontos 9 e 10, tal como foram decididos pela 1.ª instância.
Em consequência, improcede a impugnação da decisão fáctica.
*
V. Acidente in itinere
A Apelante sustenta que não resultou cabalmente demonstrado que o Apelado sofreu um acidente de trabalho in itinere.
A sua posição estriba-se, significativamente, na procedência da deduzida impugnação da decisão fáctica, que, como vimos, não se verificou.
E, atenta a materialidade demonstrada, afigura-se-nos que a 1.ª instância caracterizou devidamente o evento infortunístico ocorrido como acidente in itinere.
Escreveu-se na sentença recorrida:
«O sinistro a que se reportam os presentes autos ocorreu no dia 23-08-2015, pelo que é aplicável a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, por força do estatuído nos seus artigos 186.º, 187.º e 188.º.
A lei não define o que é acidente, recorrendo a jurisprudência ao sentido usual e corrente que costuma dar-se àquela expressão, ou seja, como o “acontecimento ou evento súbito, inesperado e de origem externa”.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-02-1995, Coletânea de Jurisprudência, tomo I, p. 272, “(...) o acidente de trabalho pressupõe uma cadeia de factos, em que cada um dos relativos elos está interligado por um nexo causal: aquele evento naturalístico há-de resultar da relação de trabalho; a lesão corporal, perturbação funcional ou doença tem de resultar daquele evento; a morte ou a redução na capacidade de trabalho ou de ganho devem ter por causa a lesão corporal, perturbação funcional ou a doença”.
De acordo com o ensinamento de VÍTOR RIBEIRO, Acidentes de Trabalho, Reflexões e Notas Práticas, Editora Rei dos Livros, 1984, p. 207, trata-se de um “conceito normativo complexo que não se confunde com a lesão nem com o facto ou evento (naturalístico) que a provoca” e que se decompõe nos seguintes elementos integradores:
“1 - Pressuposto relacional: dependência económica;
2 - A ocorrência de um facto ou evento em sentido naturalístico;
3 - Lesão, perturbação funcional ou doença;
4 - Morte ou redução da capacidade de ganho: o dano;
5- Nexo causal relevante entre a relação de trabalho e o dano que, por sua vez pressupõe a existência de uma cadeia sucessiva de causalidade relevante entre o primeiro e o segundo, o segundo e o terceiro e o terceiro e o quarto dos elementos acima indicados”
Todos os supra referidos elementos integram a causa de pedir da presente ação emergente de acidente de trabalho e, por conseguinte, recai sobre o autor, nos termos previstos pelo artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, o ónus de alegar e provar os factos constitutivos do direito que invoca, entre os quais os que constituem elementos integradores do conceito de acidente de trabalho.
Segundo o artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 14 de Setembro, “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
Esclarece o n.º 2, quanto à noção de “local de trabalho”, que será “todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador”.
Por outro lado, reconhecendo a dificuldade que por vezes representa para o sinistrado (ou para os seus beneficiários) a prova do nexo de causalidade, o legislador estabeleceu uma presunção de causalidade no n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro: fixa-se a presunção da existência de um nexo causal entre a lesão e o acidente naqueles casos em que a lesão é constatada no local e tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo 9.º, que encerra ele próprio uma extensão do conceito de acidente de trabalho.
Tal presunção não visa liberar o autor da prova da existência de um acidente, nem da prova da existência de lesões, mas apenas liberá-lo da prova do nexo de causalidade entre o acidente e a lesão, perturbação ou doença.
Assim, em conformidade com o citado artigo 9.º, e no que ao caso dos autos importa, além do acidente ocorrido no local e tempo de trabalho, considera-se também acidente de trabalho aquele que ocorre no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, desde que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador e as instalações que constituem o seu local de trabalho e, também, nos trajetos entre o local onde, por determinação do empregador, o trabalhador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho ou a sua residência habitual ou ocasional (cfr. n.º 1, alínea a), e n.º 2, alíneas b) e f), do referido preceito) – ou seja, o denominado acidente in itinere.
Conforme se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-10-2011, processo n.º 154/06.2TTCTB.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, “o acidente in itinere será indemnizável desde que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador (…).
Exige-se assim um carácter consecutivo do percurso, pois as suas interrupções só serão consideradas se forem determinadas para satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, ou por motivos de força maior ou de caso fortuito (…)” – neste sentido, pode ver-se também o acórdão da Relação de Lisboa de 05-12-2012, processo n.º 252/10.8TTLSB.L1-4, igualmente acessível em www.dgsi.pt.
Ora, vertendo tais considerações de direito para a matéria de facto provada, in casu, os elementos apurados – cfr. os pontos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 da factualidade provada – permitem concluir que, no caso em apreço, se verificam os elementos supra referidos.
Com efeito, da matéria provada resulta que o autor, após se ter deslocado a um imóvel situado na Rua ..., onde se encontrou com um potencial comprador e lhe mostrou tal imóvel, quando se encontrava numa fila de trânsito na Avenida das Olimpíadas, em Portimão, dirigindo-se para a sua residência sita na Rua ...-TB, nesta mesma cidade, foi abalroado por um veículo automóvel, vindo a sofrer as graves lesões descritas.
Significa isto que o acidente que vitimou o autor ocorreu no trajeto para a sua residência (não se questionando que o trajeto percorrido fosse compatível com tal destino, nem a prova produzida é suscetível de afastar tal conclusão), após este ter realizado uma “visita” a um imóvel, acompanhando e elucidando um potencial comprador, atividade que, tipicamente, se integra no âmbito das funções de consultor imobiliário que o demandante desempenhava.
Por outro lado, o acidente veio a ter lugar às 12:40 horas, bastante tempo após o autor ter terminado o passeio de BTT (11:00 horas), abandonando o grupo para se entregar aos seus afazeres profissionais (já se tinha deslocado à sua agência para recolher as chaves do imóvel em questão e já tinha acompanhado um “cliente” na visita), não podendo afirmar-se, como sustenta a ré, que se verificou no contexto da sua vida pessoal ou privada.
A nosso ver é, pois, patente a conexão espacial e temporal entre o acidente e a atividade profissional levada a cabo pelo autor, de consultor imobiliário, nos termos pressupostos pelo artigo 9.º, n.º 1, alínea a), do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, não constituindo óbice a tal conclusão o facto de o autor trabalhar ao domingo ou de, na referida ocasião, envergar o equipamento de ciclista.
Na verdade, na atividade de mediação imobiliária, diz-nos a experiência, é muito frequente, por razões de conveniência dos próprios interessados na aquisição dos imóveis, que as visitas tenham lugar à noite e aos fins-de-semana, nomeadamente numa zona turística e num período de grande afluência de turistas, como é o caso do Algarve no mês de Agosto.
Acresce também que o facto de o contacto com o autor para a efetivação da visita ao imóvel se ter concretizado no decurso do passeio de BTT e ter ficado agendada para o período da manhã desse mesmo dia explica, de forma cabal, a circunstância de o demandante ter comparecido junto do potencial comprador do imóvel vestido com o equipamento de ciclista e não de modo mais formal, como seria expectável para aquele tipo de atividade económica, num normal dia de semana.
Mais resulta da factualidade assente que foi em consequência dessa colisão, que o autor veio a sofrer as graves lesões na sua integridade física descritas, que determinaram que carecesse de demorado e multidisciplinar tratamento médico, incorresse em despesas decorrentes desses tratamentos, consultas, exames e em deslocação que efetuou e ficasse impedido, totalmente, durante um período muito relevante de trabalhar e que, após consolidação das lesões [23-08-2017], sobreviesse um défice funcional permanente.
Em suma, estando tal deslocação do autor compreendida no âmbito do trajeto entre o seu local de trabalho e a sua residência, de acordo com o enquadramento legal que foi fornecido, parece-nos claro que o acidente em causa tem de ser considerado como acidente de trabalho.»
Concordando-se inteiramente com a análise efetuada e visando evitar tautologias, subscrevemos, sem reservas, os fundamentos expostos.
Destacamos, somente, alguns aspetos essenciais:
Resulta do acervo de factos provados que o Apelado desempenhava as funções de consultor imobiliário, pelo que, no âmbito desta atividade profissional, se tiver de se deslocar a um imóvel para o mostrar a potenciais clientes (como sucedeu no caso dos autos), esse imóvel não poderá deixar de ser considerado “local de trabalho” para efeitos de reparação dos acidentes de trabalho – artigo 8.º, n.os 1 e 2, alínea a) da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro[8].[9]
Mais se apurou que o acidente de viação sofrido, causador de lesões (matéria que não suscita qualquer controvérsia), ocorreu quando o Apelado regressava do seu local de trabalho (imóvel que havia estado a mostrar a um potencial cliente), em direção à sua residência.
Ora, atendendo às disposições conjugadas dos artigos 8.º, 9.º, n.º1, alínea a) e n.º2, alínea f) da LAT, deve entender-se que o acidente ocorreu no trajeto normal de regresso do local de trabalho para a residência habitual do Apelado.
O carácter normal do trajeto tem de se aferido em função das circunstâncias concretas.
Numa profissão como a do Apelado, os imóveis a mostrar aos clientes, por norma, situam-se em diferentes locais.
Sendo assim, os caminhos que, de um modo geral, permitissem o regresso a casa, devem considerar-se trajetos normalmente utilizados.
Depreende-se dos factos provados que o percurso que o Apelado estava a realizar quando se deu a colisão era apropriado para o regresso a casa.
Competia à Apelante demonstrar qualquer facto que impedisse tal consideração, o que não sucedeu.
Destarte, o acidente verificou-se no trajeto tutelado pela LAT.
Igualmente se deve considerar que o acidente ocorreu no período de tempo habitualmente gasto para regressar a casa.
Conforme se deduz da factualidade assente, logo após a visita ao imóvel, o Apelado dirigiu-se para a sua residência e foi durante o trajeto que se deu o acidente.
Ou seja, o período de tempo do regresso a casa não foi interrompido até ao momento do acidente.
Pelo exposto, no nosso entender, não pode deixar de se considerar que, quando ocorreu acidente, estava a decorrer o período de tempo habitualmente gasto no percurso que estava a ser utilizado.
Em resumo, e com arrimo nos factos provados, deduz-se que, no dia 23/08/2015, o Apelado sofreu um acidente que lhe causou lesões, enquanto percorria o trajeto normalmente utilizado de regresso do local de trabalho para a sua residência, e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto nesse trajeto.
Por isso, o concreto acidente foi devidamente qualificado, pela 1.ª instância como acidente de trabalho in itinere, atento o disposto nos artigos 8.º, 9.º, n.º1, alínea a) e n.º2, alínea f) da LAT.
Concluindo, a sentença recorrida não merece censura quanto à questão agora analisada.
-
A terminar, resta concluir pela total improcedência do recurso, sendo as custas a suportar pela Apelante.
*
VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Notifique.

Évora, 15 de junho de 2023
Paula do Paço (Relatora)
Emília Ramos Costa (1.ª Adjunta)
Mário Branco Coelho (2.º Adjunto)

__________________________________________________
[1] Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho
[2] «Cfr. [00:27:24.17] e [00:27:42.17] do ficheiro áudio Op. cit.».
[3] «Cfr. [00:36:33.26] e [00:36:42.28] do ficheiro áudio Op. cit.».
[4] « Cfr. [00:36:17.03] a [00:36:26.22] do ficheiro áudio Op. cit.».
[5] «Cfr. [00:37:28.18] e [00:37:37.05] do ficheiro áudio Op. cit.».
[6] «Cfr. [00:37:37.05] do ficheiro áudio Op. cit.».
[7] Neste Sentido, o Acórdão desta Secção Social de 27/05/2021 2021, proferido no Proc. 3951 18.2T8FAR.E1.
[8] Doravante, designada por LAT.
[9] Dispõe o artigo 8.º, n.º2, alínea a) da LAT:
«Local de Trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador.